FLAGRANTES DE CONTAÇÕES DE HISTÓRIA
EM ESPAÇOS EDUCATIVOS GAÚCHOS
Rosa Maria Hessel Silveira
PPGEdu-ULBRA e PPGEdu-UFRGS
Pano de fundo
Desde que, a partir dos anos 70, no Brasil, o discurso sobre as relações entre
a leitura e a escola sofreu importantes modificações, vindo a constituir o que chamei,
em outro texto, de “discurso renovador da leitura na escola” (Silveira, 1999), também
a chamada contação de histórias, em especial na Educação Infantil e nos anos
iniciais do Ensino Fundamental, começou a tomar fôlego e expandir-se. No discurso
que então passou a ter foros de legitimidade, apontava-se a existência de uma
“crise”, que seria a da prática leitora entre alunos, identificando-se, como principal
causa de tal crise, a inadequação das práticas escolares. Na época (e ainda hoje se
ouvem tais afirmações), dentro do quadro da teoria crítica e sob a influência do
pensamento de Paulo Freire, falava-se no autoritarismo das estratégias de leitura na
escola, na imposição da leitura única, na insistência no significado único dos textos e
na dimensão pedagogicamente errônea de atividades de “cobrança de leituras”, com
a autêntica demonização, por exemplo, das fichas de leitura. E, para substituir tais
práticas consideradas nefastas, o conceito de “gosto pela leitura” torna-se central e o
objetivo de que a escola desenvolvesse tal gosto também se tornou consensual.
Neste sentido, o “gosto” passou a representar o último termo de uma equação que
pode ser assim simplificada: “prazer – interesse – leitura – hábito – gosto” (Silveira,
1999, p. 112).
Pois bem: onde se situa a contação de histórias neste circuito? Certamente
nos primeiros termos da equação. Não constituindo, propriamente, uma atividade de
leitura das crianças (mas podendo sê-lo do/da professor/a), a contação de histórias
freqüentemente é defendida e associada ao incentivo ao gosto pela efabulação
narrativa, com forte acento na atmosfera prazerosa e lúdica. Quem atualmente toma
contato com as estratégias prestigiadas para o desenvolvimento do gosto de leitura
na escola e vê enfatizada a recomendação de que se conte histórias para crianças
desde muito cedo, talvez não saiba que esse princípio curricular hoje consensual é,
pois, relativamente recente no panorama brasileiro – não mais do que duas décadas
ou um pouco mais. A poética seqüência abaixo, de Abramovich (2002, p. 16),
sintetiza adequadamente tal consenso, pagando seu tributo à reverência inconteste
à letra escrita:
Ah, como é importante para a formação de qualquer criança ouvir
muitas, muitas histórias... Escutá-las é o início da aprendizagem para
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ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de
descoberta e de compreensão do mundo.
De qualquer forma, é importante salientar que, se a recomendação de abertura
de escolhas de leitura para o aluno sem cobrança pedagógica posterior,
a
condenação de uma leitura intencionalmente pedagógica ou presa precocemente a
cânones literários e, enfim, a recomendação de que haja “horas do conto” para as
crianças nas escolas são hoje truísmos correntes no discurso pedagógico
dominante, efetivamente vieram tais idéias tomar o lugar de outros ideários
pedagógicos, em que a iniciação ao cânone era valorizada, a uniformização das
leituras era vista com “naturalidade”, e a cobrança e o controle estrito das mesmas
encarados como parte indispensável ao progresso discente e à formação do “leitor
culto”.
Sem que queiramos aqui fazer qualquer julgamento de valor ou – numa postura
moderna – afirmar que houve uma “evolução” de práticas e, em decorrência,
estamos cada vez mais perto do “ideal”, pretendemos apenas, nessas breves linhas
anteriores, contextualizar historicamente o presente trabalho.
Assim é que, neste “novo” panorama de abordagem da leitura, a contação de
histórias no ambiente escolar estrito ou em outros assemelhados – bibliotecas,
espaços de recreação, livrarias, etc. – adquiriu forte relevância, especialmente na
educação infantil – desde o berçário - e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A
institucionalização de uma prática que era corrente em outros espaços e tempos –
em especial, naqueles em que a oralidade primária (não apropriada pela mídia)
adquiria uma centralidade nas relações sociais cotidianas e, em decorrência, na
produção dos sujeitos - trouxe consigo uma série de adaptações (como costuma
acontecer com qualquer prática que se escolariza). Relembremos, enfim, que
nenhuma prática social que surge fora da escola passa impune por sob a soleira de
suas portas – e este é um tema para reflexão daqueles que defendem o lema de que
“a escola deve aproximar-se da vida”.
É, pois, dentro desse panorama educativo, em que a contação de histórias é
vista, de maneira unânime, como uma estratégia preferencial para o
desenvolvimento infantil, para o incremento de imaginação, para o estabelecimento
do gosto de leitura nas idades posteriores - entre outros objetivos freqüentemente
verbalizados - que elaboramos o presente trabalho. É preciso, ainda, apontar que,
na esteira deste prestígio, movimenta-se todo um mercado “cultural”, com o
oferecimento de cursos para contadores de histórias, a publicação de livros sobre a
mesma temática, as oficinas para professores sobre a confecção de recursos
plásticos como fantoches, dedoches, varal, etc, assim como um comércio às vezes
agressivo de livros de “literatura” infantil a preços módicos e qualidade discutível (às
vezes em sacolinhas promocionais), como adiante veremos. Mas muitas perguntas
restam ainda – no nosso entender - por serem respondidas nesta explosão escolar
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da atividade. Como se concretizam os objetivos da atividade por quem efetivamente
a realiza? Que histórias (textos) são prioritariamente escolhidas e a que critérios e
circunstâncias tal escolha se prende? Que importância têm – para quem escolhe as
histórias - os elementos propriamente intrínsecos à história (enredo, personagens..),
frente a questões tais como atividades posteriores à contação de histórias, utilidade
da história dentro de um contexto pedagógico mais global (assunto de interesse dos
alunos, conexão com um projeto de estudo, etc.)?
Não pretendemos dar respostas definitivas a tais perguntas, mas trazemos
neste trabalho alguns elementos do contexto escolar sul-rio-grandense recente que
podem nos ajudar a pensar o espaço e o significado da contação de histórias no
trabalho pedagógico da educação infantil e anos iniciais.
O estudo específico
No caso específico desta comunicação, discutiremos algumas dimensões
trazidas por 70 relatos de situações de contação de histórias, feitos nos anos de
2005 a 2007. Tais relatos são produto de tarefas de observação realizadas por
alunas de Pedagogia, da disciplina de Literatura na Educação Infantil e Anos Iniciais,
em uma instituição privada de ensino na região metropolitana de Porto Alegre. O
conjunto de 70 relatos não se configura como uma amostragem com algum tipo de
estratificação (tipo de escola, nível de escolaridade, etc.), mas apenas como um
material que pode nos dar pistas sobre como esta estratégia vem sendo utilizada e,
mesmo, concebida num espaço geográfico determinado. Entretanto, é possível que
muitas das suas características se estendam para vários outros espaços
geográficos, uma vez que nada aponta para uma especificidade da prática por
motivos espaciais estritos1.
As observações realizadas eram seguidas por entrevistas com o adulto que
realizava a hora do conto (professor/a, bibliotecário/a... eventualmente um/a
ator/atriz), o que possibilitava um enriquecimento da visão da atividade. Tais dados,
de certa maneira, permitem a melhor compreensão dos tipos de materiais (histórias)
escolhidos para a “hora do conto”, e das estratégias mais usadas pelos contadores
de histórias e da própria formação e atividade profissional dos contadores
observados. Observe-se, entretanto, que as apreciações feitas são filtradas pelas
próprias experiências anteriores das licenciandas, como alunas da disciplina
específica, como alunas de outras disciplinas do curso – e registre-se o predomínio
do discurso das chamadas teorias construtivistas e críticas em sua formação - e, em
vários casos, como professoras de educação infantil e anos iniciais, com tudo o que
a chamada “cultura escolar” proporciona.
1
Assim é que encontrei em Portugal, no segundo semestre de 2007, em escolas e bibliotecas públicas de Lisboa
e arredores, práticas de contação de história fundamentadas nos mesmos princípios que baseiam a adoção e
realização de algumas “horas de conto” observadas.
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Localizemos melhor o cenário das cenas observadas. Assim, os relatos, em
função da residência das alunas, são, em grande parte, referentes ou à cidade de
Porto Alegre (34 casos), ou Canoas (9 casos), cidade onde está sediada a
Universidade, incluindo também outras cidades da região metropolitana (Esteio, São
Leopoldo, Cachoeirinha, Viamão, etc.), assim como municípios mais distantes:
Taquari, Lajeado, Montenegro, etc. alguns, inclusive, da zona de influência da
imigração alemã e italiana, num total de 14 municípios envolvidos. As escolas se
distribuem tanto pelo sistema público: 8 escolas estaduais e 15 municipais, num total
de 23 escolas públicas, quanto pelo privado: 24 escolas particulares,
freqüentemente pequenas escolas de educação infantil. Outros espaços, como
bibliotecas públicas, Feira do Livro de Porto Alegre, etc., também foram observados.
Quanto ao nível de ensino, predominaram as observações feitas em escolas de
Educação Infantil (32 das 70 observações), ao lado de 24 observações de grupos de
anos iniciais do Ensino Fundamental e outros casos de contação menos
institucionalizada (Feira do Livro, p.ex.), onde havia a presença de crianças de
diversas idades de ouvintes.
No caso do espaço utilizado nas escolas, os relatos apontam para o
predomínio da contação de histórias na própria sala de aula – o que não significa,
necessariamente, desconforto e fileiras rígidas de classes, uma vez que muitas
dessas salas são de escolas infantis, em que há almofadões, tapetes, etc. – mas
também houve alusão a salas especiais, biblioteca, etc. Um aspecto que chama a
atenção na maior parte dos relatos é o da expressiva utilização de recursos visuais
variados para “ilustrar” a história; assim, se, em 48 dos 70 episódios observados, foi
relatada a presença do livro em que se inspirava a contadora ou contador de
histórias – e, para a escola ocidental, o apreço ao livro tem uma tradição secular que
nos subjetiva - , encontramos, com a mesma freqüência, a referência à presença de
fantoches, à fantasia (no sentido concreto) vestida pela própria contadora de
história, ao uso de slides, de quadros de pregas, de varal de gravuras, de
flanelógrafo, ao uso clássico do avental com figuras que são fixadas no mesmo à
medida que a história se desenrola e a bonecos de material variado representando
personagens da história.
Também a alusão às atividades complementares predomina na maioria dos
relatos: a conversa sobre a “mensagem” da história, o desenho dos personagens ou
qualquer outra técnica de trabalho com artes visuais para “confecção dos
personagens”
(expressão freqüente no jargão pedagógico) são táticas
freqüentemente referidas. Neste sentido vale a pena referir o relato n. 13, relativo à
contação da história da “Arca de Noé” (possivelmente, em uma versão adaptada),
em uma turma de 3ª série do Ensino Fundamental, em que a professora, acadêmica
de Pedagogia, após a contação da história, aproveitou-a como “gancho” para
trabalhar Matemática, Ciências, Educação Física (“brincadeiras”), Artes, Português,
de tal forma que, após uma semana, fosse possível chegar à “culminância” (sic) do
trabalho...
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Um pouco mais sobre a escolha das histórias e dos livros
O olhar atento para as histórias e/ou livros inspiradores escolhidos e relatados
nos permite visualizar algumas tendências interessantes. Ainda que as
classificações sejam um pouco imprecisas (há situações em que a contadora conta
mais de uma história, assim como há “contações” onde nenhuma narrativa
propriamente dita é feita...), podemos vislumbrar tais sinalizações.
Em primeiro lugar, registre-se a presença de Contos de Fadas, mencionados
em 12 relatos dos 70, com maior ocorrência dos clássicos Os três porquinhos,
Chapeuzinho Vermelho e João e Maria. Seguramente, o acesso quase (?) universal
a tais contos (e não colocamos em questão aqui quais as versões utilizadas), seu
sucesso junto aos ouvintes, já tão exaustivamente estudado e diversamente
explicado, assim como a multiplicidade de recursos visuais de ilustração à
disposição dos professores (fantoches dos personagens do Chapeuzinho Vermelho,
por exemplo, estão à venda em feiras para professores amiúde) são fatores que
contribuem para tal onipresença.
Mas também encontramos uma grande variedade de aproveitamento de livros
de conhecidos escritores da literatura infantil brasileira contemporânea (mais de 30
títulos diversos) e citaremos alguns nomes de autores mais conhecidos: Sylvia
Orthoff, Tatiana Belinky, Pedro Bandeira, Ziraldo, Ana Maria Machado, Elias José,
Luís Camargo, Heloísa Penteado, Sônia Junqueira, Giselda Laporta, Ruth Rocha,
geralmente sendo utilizados os livros com enredo mais simples, para “pré-leitor”,
como rotulam algumas editoras. Merecem destaque duas obras freqüentemente
aludidas, que são O Sanduíche de Maricota, de Avelino Guedes, e O Grande
Rabanete, de Tatiana Belinky. Ambas são narrativas com uma estrutura cumulativa
(em que novos elementos são acrescidos a uma mesma situação), apreciada por
crianças da educação infantil, incluem o humor e têm uma apresentação gráfica
atraente e interessante.
E já que falamos em O Grande Rabanete, obra inspirada em conto tradicional2,
passamos a discutir a questão da presença de contos do folclore ou de fábulas
tradicionais entre as narrativas escolhidas pelos contadores de história.
Efetivamente, a presença deles é bem pálida no conjunto de observações: à
exceção de três escolhas de versões de A Festa no Céu, e alguma referência a
Galinha dos ovos de ouro, tais narrativas estão praticamente ausentes do repertório
das horas do conto, no conjunto observado.
Por outro lado, com alguma surpresa observamos que algumas contadoras de
história utilizam poemas não narrativos nas horas do conto, com especial destaque –
e aí se verifica todo o peso de um trabalho regional de valorização da obra – a
poemas de Mário Quintana (em especial retirados da coletânea Lili inventa o
mundo).
2
Em Portugal, a história tradicional correspondente se refere a um nabo gigante.
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Encontramos também, embora numericamente de forma não significativa, a
transposição de algumas narrativas originalmente produzidas para outras mídias ou
com personagens oriundos das histórias em quadrinhos ou desenhos animados,
como Os 101 Dálmatas, Bambi (Walt Disney), Cascão, faça o que eu digo (Maurício
de Sousa), Cocorocó, uma família muito complicada (TV Cultura). Evidentemente,
vem caracterizando o panorama contemporâneo esta proliferação de produtos
culturais variados a partir de uma história e/ou personagem de sucesso do cinema,
das histórias em quadrinhos, de desenhos animados, etc. Vive-se um momento em
que, por vezes, é difícil situar qual foi o primeiro artefato que deu origem aos outros,
evidentemente criados com o olhar mercantil de “aproveitar o filão aberto”, e o
segmento dos consumidores infantis – nesse mercado - sempre é um dos mais
visados.
Autores estrangeiros traduzidos também estiveram presentes entre os livros
utilizados para contação, ainda que em número sensivelmente menor do que os
autores nacionais. Nesse panorama, os livros sobre a personagem Bruxa Onilda,
repetidamente citada entre os professores de educação infantil, também foram
mencionados.
Ao lado dos livros e histórias acima mencionados, cabe referir um número
bastante significativo de obras de cunho “popularesco”, digamos, com enredo e
fabulação pobres, com produção gráfica estereotipada e, geralmente, um grande
conteúdo moralizador e civilizatório. Por vezes, os autores de tais obras não são
identificados – nem pelo/a narrador/a entrevistado/a – mas a leitura de alguns títulos
já nos revela o intuito francamente pedagógico das obras: Ratapão o desobediente;
A árvore mágica; Leitão e seus amigos; Vermelha de vergonha... Algumas dessas
histórias também estão disponíveis em sites da Internet com dicas pedagógicas
(páginas bastante numerosas, diga-se de passagem) e é possível supor que, a partir
da consulta de um/a professor/a, seu conhecimento se espalhe pelos ambientes
escolares. Um exemplo de tal tipo de obra pode ser encontrado em Luli, a foca3, em
que a personagem principal, “uma foca muito especial”, “amiga de todos”,
simplesmente não se envolve em nenhuma peripécia ou situação problemática, que
caracterizasse um desenvolvimento propriamente narrativo, mas apenas é descrita
em um passeio cotidiano em que mostra sua “boa educação”: “Por onde Luli
passava, cumprimentava todos com carinho e educação, nunca esquecendo das
palavrinhas mágicas. As palavras mágicas eram por favor, obrigado, com licença,
bom dia, boa tarde e boa noite.” Também em O Ursinho Catavento4, o personagem
central, um ursinho irriquieto (hiperativo, classificariam-no, talvez, as ciências psi)
aprende que “precisa muitas vezes se banhar/ Para ter sempre saúde / e sempre
poder brincar...” e segue “Juntando o papel do chão / Jogando cascas no lixo /
Separando o que se pode / Ainda aproveitar... / Nunca come uma frutinha / Sem
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Trata-se de texto de Jaqueline Korman, da Coleção Pequenos Filhotes, da Editora Vale das Letras.
Trata-se de obra pertencente à coleção “Ursinhos companheiros”, da autoria de Yedda Goulart, da editora
Todolivro.
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muito bem a casca lavar”. Obras – ou histórias - desse tipo foram identificadas em
cerca de 12 relatos dos 70 analisados.
Por último, cabe mencionar o aproveitamento de outros livros que, se não têm
um cunho tão abertamente moralista e disciplinador, se relacionam claramente a
conhecimentos escolares, como se pode observar pelos títulos: Convivendo com a
Ecologia, O nascimento da borboleta, Zerinho foge de casa, A gotinha plim-plim (de
Gerusa Rodrigues Pinto),O livro do lápis (de Ruth Rocha).
Alguns apontamentos finais
Nesse rápido percurso sobre os 70 relatos que analisamos e tendo como pano
de fundo o panorama anteriormente desenhado, identificamos certas tendências
que, no nosso entender, merecem uma reflexão. É evidente que agregamos à nossa
interpretação, nossas vivências e nosso convívio com alunas da disciplina de
literatura infantil, muitas delas também professoras em escolas de diversos
municípios gaúchos, através de conversas informais, discussões, etc.
Assim, a despeito do caráter lúdico de que se pretendem revestir as “horas do
conto” – ao menos, em sua feição concreta, com recursos plásticos atraentes,
fantasias, objetos, etc. – pode-se identificar traços de uma evidente pedagogização,
através de três dimensões específicas. Afinal, como inicialmente comentamos, não
há escolarização de prática social inicialmente extra-escolar que não passe por
transformações dela advindas.
Em primeiro lugar, a escolarização passa pela escolha de algumas histórias
e/ou livros (alguns, sem qualquer relevância literária, artística, sem compromisso
com a originalidade, com o inusitado...), que pretendem abertamente ´civilizar`
(ensinar a importância dos hábitos higiênicos ocidentais prevalentes, como escovar
os dentes, tomar banho, usar fórmulas de cortesia, apelidadas de “palavras
mágicas”, ser amigo de todos, respeitar os mais velhos...) ou formar
deliberadamente um tipo de sujeito: o sujeito ecológico (este, muito celebrado
atualmente) ou o sujeito solidário, ou o sujeito religioso, etc.
Em segundo lugar, a pedagogização que o espaço escolar imprime à
narrativa oral pode ser vista nas conversas que o/a contador/a de histórias com
muita freqüência realiza com as crianças após a contação; nelas, é freqüente que se
questionem e/ou enfatizem as “mensagens” da história. Também há uma grande
preocupação com as atividades de “enriquecimento” (desenhar, fazer dobraduras...)
da contação de histórias, dentro daquela regra informal da cultura escolar, pela qual
não pode ocorrer, naquele ambiente, qualquer atividade gratuita, sem registro, sem
um sinal ´visível`, comprobatório de que a atividade foi realizada.
Por fim, nas entrevistas realizadas com as contadoras (e a maioria
efetivamente pertence ao gênero feminino), quando questionadas sobre os critérios
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de escolha dos livros e das histórias, várias respostas apontavam uma escolha de
acordo com o “projeto que está sendo desenvolvido”, com “problemas que estão
acontecendo na sala de aula” (aponta aí a chamada “biblioterapia”) e tendências
semelhantes.
Mesmo assim, deve-se salientar a proporção em que várias das práticas
observadas fugiram à pedagogização deliberada, mostrando que muitas
professoras, em função de uma formação mais atualizada, estão inseridas em outro
discurso (aquele a que nos referimos nos parágrafos iniciais deste trabalho). Assim,
algumas afirmaram ter apenas o objetivo de desenvolver o gosto pela leitura ou de
trabalhar as emoções das crianças (vê-se aí, por exemplo, a influência do discurso
psicanalítico, ecoando as propostas muito conhecidas de Bruno Bettelheim).
Efetivamente, poder-se-ia argüir que, de uma forma inescapável, toda e
qualquer leitura ou narrativa oral é, em certa medida, pedagógica. Conforme Pinsent
(1997, p.19) relembra, “sempre tem havido uma forte crença na influência da
literatura nas ações e convicções de seus leitores” e essa crença, acrescentamos,
também está presente no discurso atual sobre a importância da literatura infantil.
Mesmo quando não há, de forma escancarada, o intuito civilizatório e moralista, é
preciso relembrar, ainda conforme Pinsent (p. 23), o ”fato de nenhum texto poder ser
escrito sem a presença, de certa forma significativa, dos valores do autor”.5
Mas é evidente que gostaríamos de que a literatura e a narrativa para as
nossas crianças, mesmo que transmitam inescapavelmente nossos valores – e
houve cultura em que gerações mais velhas não procurassem passar às gerações
mais novas as “verdades” em que acreditam? - não os reduzam a vernizes
moralistas e não os coloquem de forma tão simplificada, direta e limitada. Nesse
sentido, podemos refletir sobre as palavras de Busatto (2003, p. 82):
Não importa se contamos para instruir ou divertir, para curar, salvar ou
embalar. O que não podemos esquecer é que temos nas mãos, ou
melhor, na voz, um produto oriundo do imaginário dos nossos
ancestrais e, se queremos nos apropriar dele para encantar, é
necessário a consciência de que “o amor à palavra é uma virtude; seu
uso, uma alegria“.
Referências bibliográficas
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil – gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,
1997.
BUSATTO, Cléo. Contar & Encantar – Pequenos segredos da narrativa. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2003.
5
As traduções do inglês são de nossa responsabilidade.
9
PINSENT, Pat. Children´s Literature and the Politics of Equality. London: David Fulton
Publisher, 1997.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Leitura, literatura e currículo. In: COSTA, Marisa Vorraber
Costa (org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
1999.
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