parte 1
8/6/07
11:38
Page 151
k
20
MOHA*
Moha, o velho Moha, Moha o louco, Moha o sábio, saiu
de sua árvore, descabelado, a voz grave, o olho vivo, e se precipitou para Casabarata num café onde se fazem os tratos entre
os passadores e os clandestinos.
No início, Casabarata era uma favela, mas, com o tempo, o
lugar se transformou em feira para os pobres. Encontrava-se de
tudo ali, de sapatos velhos furados a televisores.Vendia-se tudo
que se pudesse imaginar. Progressivamente, os produtos chineses, as mercadorias falsificadas, foram invadindo tudo. Mas o
que interessava Moha em Casabarata eram os homens que
tomavam chá fumando cachimbos com kif.
Ele se apoderou de um jornal que estava sobre a mesa,
pediu um isqueiro ao garçom, olhou fixamente dois homens
* Moha é diminutivo do nome Mohamed, ou seja, Maomé. (N.T.)
parte 1
8/6/07
11:38
Page 152
152
| TAHAR BEN JELLOUN
com jeito abestalhado por terem fumado, sacudiu o jornal e
depois o queimou.
Eu também estou queimando, estou queimando como
este jornal que não conta a verdade, ele diz que está tudo bem,
que o governo está fazendo tudo que pode para dar emprego
aos jovens, diz que aqueles que atravessam o estreito são uns
perdidos, desesperados, sim, há por que estar vazio de toda e
qualquer esperança, mas a vida passa e nos deixa à margem, à
margem de quê, vai-se saber, eu não direi, a vida, mas que vida,
a que nos esmaga, nos dilacera? Peguem, juntem as cinzas das
notícias que queimei, tem um monte delas, falsas notícias,
como esta moça que escreve a coluna “coração no coração”,
pé no pé, meu pé seu pé, para perguntar se deve deixar seu
marido beijá-la nos lábios inferiores. Uma outra pergunta se a
nossa religião autoriza colocar na boca o pênis do marido, mas
que loucura é esta? Parece que essas cartas não existem, deve
haver um cara cheio de imaginação que as escreve e envia ao
jornal. Desde então, esse jornal de esquerda faz fortuna, é uma
coisa de louco o quanto as pessoas têm vontade de saber como
os outros se viram com seu sexo, bom, eu não vim aqui para
dar lição de moral, se uma mulher quer se dar a seu marido,
que o faça e não vá alardear nos jornais. Por isso vocês querem
cair fora, partir, deixar o país, ir para o lado dos europeus, mas
eles não estão esperando por vocês, ou melhor, eles os esperam
com os cães, pastores alemães, algemas e um pontapé no traseiro, vocês acreditam que lá tem trabalho, conforto, beleza e
graça, mas, meus pobres amigos, há tristeza, solidão, céu cinzento, tem também dinheiro, mas não para aqueles que vão
sem serem convidados. Bom, vocês sabem do que estou falando,
parte 1
8/6/07
11:38
Page 153
Partir
| 153
quantos caras partiram e se afogaram? Quantos caras partiram
e foram mandados de volta? Quantos caras desapareceram no
mato, não se sabe nem mesmo se ainda estão vivos, suas famílias não têm notícias, mas eu sei onde estão, estão aqui, no meu
capuz, estão amontoados uns sobre os outros, emboscados
como bandidos, à espera da luz para sair, isso não é vida. Ei,
você! O gordo com o gorro que esconde a testa e as sobrancelhas, você se acha esperto, embolsa dinheiro e os envia à morte,
um dia você será devorado por todos esses afogados, eles virão
encontrá-lo em sua cama e vão comer-lhe o fígado, o coração
e os colhões, você vai ver, pergunte aonde foi parar o Sif, é, o
que mandava que o chamassem de sabre porque manejava o
sabre como um revólver, foi degolado por mortos, é, centenas
de cadáveres se apresentaram e lhe pediram que prestasse contas, ele puxou o sabre, que derreteu sob os olhares vidrados dos
mortos, e ele ficou colado na parede onde mãos tão cortantes
quanto uma faca de açougueiro o despedaçaram. Partir, sim, eu
também tenho vontade de ir embora, olha, vou fazer a viagem
na direção oposta, vou atravessar o deserto, vou atravessar o
Saara como o vento, rápido, ligeiro, invisível, passarei entre as
dunas, não haverá pegadas, cheiro, Moha passará por aí e ninguém o verá, mas aonde você vai, Moha? Vou à África, a terra
de nossos ancestrais, a África é imensa, as pessoas têm tempo de
olhar a vida mesmo que a vida não seja generosa com elas, mas
elas arranjam tempo para fazer coisas gratuitas, a África, maldita pelo céu, a África, pilhada por negros de gravata, por brancos de gravata, por macacos de smoking, por gente às vezes até
totalmente invisível, mas os africanos o sabem, eles não esperam que lhes expliquem o que está acontecendo, eu estou
parte 1
8/6/07
11:38
Page 154
154
| TAHAR BEN JELLOUN
falando da África porque as pessoas de lá andaram dias e noites para chegar até aqui, em Tânger, disseram-lhes em Tânger
que aqui já é a Europa, vocês sentem a Europa, vocês vêem a
Europa e suas luzes, vocês tocam a Europa com os dedos, ela
cheira bem, ela está esperando por vocês, basta atravessar quatorze pequenos quilômetros e estarão ainda melhor, vão a
Ceuta e vocês já estão na Europa, sim, Ceuta e Melilla são
cidades européias, basta escalar uma barreira de arame farpado,
a Guardia Civil não pode controlar tudo, acontece-lhe de atirar a esmo, então, morrer nas águas geladas do estreito ou no
asfalto da fronteira, vocês podem escolher, meus amigos, a
África está aí e os caras acreditaram que a Europa fazia fronteira com Tânger, no porto, em Socco Chico, aqui neste café
miserável, eles chegam como sombras vacilantes, homens da
incerteza, homens esvaziados de sua substância, eles perambulam nas ruas, dormem nos cemitérios, comem gatos, sim, é o
boato, eu acredito no boato, é uma maldade gratuita, os africanos perdem um pouco mais sua alma, nós, os árabes brancos,
digamos, de pele mate, morena, marrom, nós nos sentimos
superiores, estupidamente superiores, pensamos ter finalmente
achado neles homens a desprezar, nosso racismo tinha necessidade de exercitar-se, já maltratávamos os pobres, mas quando
os pobres são africanos de pele negra, não nos agüentamos,
cremo-nos autorizados a olhá-los de cima, fazemos como
alguns políticos europeus, eles nos olham de cima, e de fato
eles nem mesmo nos olham, veja, eis o grande manitu, o
supertira que não pára os passadores, perguntamo-nos por que
ele os deixa tranqüilos, ah, não é um mistério, mas eu vou
parar, eu não digo mais nada, me calo, fecho a boca, se vocês
parte 1
8/6/07
11:38
Page 155
Partir
| 155
escutarem palavras, é que elas estão saindo sozinhas, elas vão
para o alto-mar, se libertam, dizem a verdade, bom, me dê um
copo d’água, a pequena Malika está precisando de mim, ela
está tossindo, está doente de tanto descascar camarões no frio,
ela pegou uma pneumonia, e é preciso achar-lhe medicamentos, os pais não têm dinheiro para comprar, vou fazer uma
vaquinha, é preciso salvá-la, é uma bela moça que merece
viver, rir, dançar, ir aos cumes das montanhas e falar com as
estrelas...
Partir, partir! Partir de qualquer jeito, a qualquer preço,
afogar-se, boiar na água, de barriga inchada, o rosto carcomido
pelo sal, os olhos perdidos... Partir! É tudo o que vocês encontraram como solução. Olhem o mar: é belo em seu vestido
reluzente, com seus perfumes sutis, mas o mar os engole e
regurgita em pedaços...
Vou deixá-los, Malika está me esperando.
Download

Moha, o velho Moha, Moha o louco, Moha o sábio, saiu de sua