José Mauricio de Carvalho
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Vida especialmente humana
Estes dias reencontrei antigos colegas de curso na comemoração de trinta e
dois anos de conclusão da formação universitária. E ao revê-los todos e todas
na incontida alegria do reencontro deparei-me com existências maravilhosas,
vidas dedicadas ao que nunca pude imaginar quando convivia com aqueles
moços e moças. Não se sai impune de um reencontro em que se escuta do
colega, que tem nos olhos a ternura amadurecida no sofrimento, que viveu
esses anos para estudar, amparar, acompanhar e aliviar as dores de pessoas
diagnosticadas esquizofrênicas. Que vida é essa, é inevitável que se pergunte?
Desde que se consolidaram os primeiros núcleos de civilização os homens se
perguntam sobre o que seria uma vida propriamente humana. A simples
pergunta nos coloca diante da constatação: uma vida singularmente humana
não se limita a responder aos desafios imediatos da sobrevivência. Se conseguir
os meios de sobreviver é importante, viver por viver nunca pareceu valer a
pena. Sem se encantar, apaixonar-se, entregar-se, a vida humana é uma pobre
experiência de sentido.
Encantar-se tem algo irracional no sentido de que não dedica a cuidar dos que
sofrem por decisão exclusivamente racional, não se decide escolher um
companheiro ou companheira simplesmente fazendo um balanço intelectual,
não se escolhe um amor como se busca um bom reprodutor ou reprodutora
para gerar filhos bonitos e saudáveis. Uma vida sexual satisfatória só ganha
charme e duração quando além do contato físico propicia momentos de
partilha do mundo do outro. Ortega y Gasset falava de um descansar no outro
que é para quem ama um lugar feliz de acolhimento. E o encantar-se é a
possibilidade de olhar de perto a personalidade do outro, de encontrar as
analgesias para a alma submetida à distância incômoda e inevitáveis ciúmes e
experimentar a terna superação das mágoas involuntariamente causadas.
Encantar-se é levar o componente irracional da paixão, ou melhor, transferir o
olhar maravilhado do amado para o cuidado com os que sofrem, para as
amizades cultivadas, para o ato criador de beleza e bondade. Isto permitiu
construir mais que um simples lugar para viver, mas criar um espaço cultural
que é uma espécie de segunda pele. Uma pele em que nos sentimos
verdadeiramente homens, mais do que quando estamos dentro de nossa pele
corporal que nos mantém protegido das inadequadas condições para a vida
biológica.
Encantar-se é também comprometer a inteligência com a verdade, mergulhar
numa procura diuturna do que vale a pena conhecer, apreciar, avaliar e
São João del-Rei - Minas Gerais - Brasil
José Mauricio de Carvalho
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aprender. Encantar-se
se está na base da Filosofia. Ela é uma forma de admiração
que Aristóteles observa no comportamento do antigo grego quando ele
desejava entender os movimentos do universo e com tal preocupação chegou à
Filosofia, o maior bem com que
q os deuses presentearam os homens. EncantarEncantar
se, portanto, tem algo irracional, mas não é irracionalismo ou misticismo que
ordinariamente alimentam crenças ruins e nos colocam na
n mentira e na dúvida.
Uma vida especialmente humana é uma criação, é uma realização
real
pessoal que
ocorre para além das exigências biológicas, para além da rotina e das
repetições sem sentido. E uma vida humana está,
está, em nossos dias, cada vez
mais comprometida com relações respeitosas com o ambiente, com o
reconhecimento da dignidade dos
dos outros que une todos numa humanidade
comum, apesar das diferenças e singularidades. Uma vida dedicada à
superação da violência. Enfim, uma vida que se realiza em direção ao futuro, no
ir adiante dos limites atuais para encontrar no que transcende a experiência
fenomênica os elementos de sentido que diferenciam
diferencia a vida do homem de
outras formas de existir. Uma vida onde o sentido suplanta as dores do
momento e o gozo efêmero que ao acabar deixa o vazio da angustia.
E só então, pelos imprescindíveis momentos
momentos em que vamos além das
exigências diárias,, é que a vida humana adquire o sentido singular que a
diferencia de outras formas de existir. É nessas ocasiões que se fortalece o
compromisso com a singularidade que nos faz tão diferentes sob a humanidade
comum. É na construção de sentido único que vemos alguém fazer do cuidado
com os que sofrem uma
um razão para a própria vida.
Prof. Dr. José Mauricio de Carvalho
Departamento de Filosofia da UFSJ
Contato: [email protected]
mauricio@ufs
São João del-Rei
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