Release Aláfia – Corpura Quem começou tudo isso? Jorge Ben? Elza Soares? Tim Maia? Toni Tornado? Dom Salvador? Itamar Assumpção? A lista é imensa, possivelmente não tem fim. Mas talvez seja o caso de recuarmos um pouco no tempo para recordar a grandiosidade de Clementina de Jesus, Noriel Vilela, Zé Keti, Moacir Santos e Pixinguinha, dentre muitos. Que eles estabeleceram alicerces e diretrizes para todos nós, não restam dúvidas. Que em cada gota de suor nosso há, no mínimo, uma molécula de cada um dos elementos que criaram, eu tenho a certeza. Sempre acreditei (e ainda acredito) na tese de que a missão que nos cabe aqui é defender, desenvolver, levar adiante os pensamentos e a música de nossos mentores. Parece simples, óbvio – mas não é… “Pelas nossas contas Pelo nosso toque Nosso fio desencapou e você não escapa do choque…” Essa é a estrofe que abre Corpura, segundo álbum do grupo paulistano Aláfia que, de cara, declara o compromisso não apenas com nossa ancestralidade e nossas matrizes, mas também com a discussão da realidade cultural e social de um Brasil que, dentre os milhares que existem, segue bradando e lutando por reconhecimento e pelo seu espaço de direito. Não é por acaso que a faixa Salve geral, escalada para abrir o disco, se coloca como a carta de intenções desses onze batutas, disseminando suas reivindicações num discurso sólido, seguindo o caminho aberto pelos mestres supracitados. Vivemos tempos difíceis, onde nossas liberdades e ideias são ameaçadas diariamente – daí a relevância da realização de um trabalho conceitual como este, onde questões importantíssimas são levantadas. As letras das canções do Aláfia não são apenas um convite à reflexão – sua verve crítica retrata, delata, expõe as contradições e tensões atuais da vida nas metrópoles brasileiras, soam como uma inevitável convocação. E nesta hora, onde a densidade do texto aumenta e inquieta, nada melhor do que a engenhosidade musical da banda que, com seus arranjos e grooves infecciosos, nos cativa, nos atrai e nos põe para dançar. E pensar. Disco é cultura, lembra-se? Corpura resulta da reunião de inúmeros componentes – cada palavra, frase, nota, melodia, acorde, timbre, sopro, batida, virada que vai entrando, durante sua audição, deixa claro que as influências dos integrantes os inspira na medida certa e os conduz firme à elaboração de seu próprio dicionário sonoro. Você identifica claramente a sintonia do grupo com a black music carioca do anos 70 e o funk norte-americano e africano. Ali os atabaques de candomblé encontram com Motown, Gil Scott Heron, George Clinton, Fela Kuti, Lincoln Olivetti, Robson Jorge e Cassiano. Tudo feito com assinatura própria, com sotaque singular, repleto de significados. Por outro lado, o respeito às tradições não afasta o Aláfia de seu tempo – a música que está ali, muito bem gravada e produzida por Alê Siqueira e Eduardo Brechó, decorre também do fato de ter sido gerada agora, no seio da maior cidade da America Latina. É reativa, é combativa, é filha legítima da magnífica cena alternativa de São Paulo que, há muito tempo, se firmou como uma das mais expressivas da situação de nosso país. Reafirma seus vínculos, remete com toda sua força à poesia e a linguagem de seu universo urbano, especialmente o do hip hop. "Você não escapa do choque..." O caldo engrossa nas onze faixas de Corpura– são onze petardos, na verdade. Imperdíveis... E o que mais é possível dizer? É melhor ouvir – vá correndo escutar o disco. Salve Xênia França, Jairo Pereira, Eduardo Brechó, Fabio Leandro, Alysson Bruno, Filipe Gomes, Gabriel Catanzaro, Gil Duarte, Lucas Cirillo, Pipo Pegoraro e Victor Eduardo! Louvados sejam todos aqueles que através da música buscam a sua liberdade. Finalizo com uma frase do refrão de Salve geral : “Com a nossa rapa você não é capaz...” Está certo Aláfia. Em frente. E com tudo. Charles Gavin, julho de 2015.