15 de setembro de 2013
(conto que abre o livro O TEMPO EM ESTADO SÓLIDO)
A velocidade parece ser a única solução para o esquecimento.
Impressionante o que o vento faz, quando se anda de moto — a rispidez dos ares, o estremecimento do asfalto, e o corpo naquela postura
A cada 15 - Tércia Montenegro
de pássaro ruflando as roupas. O vento pode tudo, inclusive criar o
esquecimento.
Nos relâmpagos que os pneus desenham, cortando o trânsito, ele finalmente chega à ponte. É um dos locais mais altos da cidade, e de onde
se pode ver a pista de decolagem do aeroporto. Melhor: por ali passam
os aviões que se preparam para a aterrissagem, e bem antes que eles
surjam na curva do leste, é possível captar os sons. Um rádio adaptado
revela a conversa dos pilotos, o timbre abafado no diálogo com a torre de
controle:
— Tango Papa 163 a 5 mil pés; informe o procedimento.
— Tango Papa 163, aproximação direta para pouso. Continue a
descida e reporte a 3 mil pés. Prioridade 1.
Um A 310 entra no circuito de tráfego aéreo. Dessa vez, o dia é de
sorte. Ontem, na espera de quase uma hora, apenas três Bandeirantes
cruzaram o céu. Mas agora virá um avião bonito, que fará estremecer a
terra. No acostamento, quatro carros e outras três motos descansam. Os
motoristas reuniram-se em grupos em torno dos rádios. Agitam-se, na
expectativa; alguns gesticulam, lábios se articulando em palavras que
não se ouvem daqui. O movimento dos veículos na pista é intenso; poucas bicicletas se arriscam, como gafanhotos, na teia dos faróis acesos. A
noite apenas principia, nesta margem de estrada. Depois, virão as prostitutas e os vadios bêbados.
Alessandro pensa no desenho que finalizou esta tarde. De novo,
na editora, criticaram discretamente seu traço, pelo indisfarçável estilo
mangá. Se ele fosse daqueles poderosos, um grande nome no ramo, teria
mandado os filhos da mãe para o canto que merecem. Mas se ele fosse
um dos grandes, não estaria trabalhando para aquela editora vagabunda… Não estaria tomando essa cerveja num boteco de esquina, sozinho,
apenas para deixar correr o tempo e não ter de voltar ao seu quarto
vazio.
A verdade é que ultimamente o apartamento tem contado com
mais uma presença. E Alessandro qualquer dia desses terá de dizer para
Larissa que ela deixe de esquecer vestidos no apartamento dele, porque
não vão se casar nem morar juntos. Será um choque para ela, que deve
estar pensando que ele saiu da casa da mãe para assumir um compro-
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misso. Foi o contrário. Aliás, Alessandro não concebe a ideia de que
alguém saia da casa dos pais por outro motivo que não seja a conquista
da liberdade.
O bar ainda está tranquilo, a esta hora. Faltava um cigarro para
completar a cena — um quadro de decadência poética. A lona da sinuca
gasta, a música indefinida que vem de trás do balcão, cadeiras na calçada, onde um velho cão fareja. Faltava também Larissa, o terceiro de seus
vícios. Mas Alessandro não quer pensar nela; vai magoá-la, tem de ser
assim. Terá de esquecê-la. Está próximo o momento de pegar a moto de
novo e rasgar os ares — buscar a velocidade, o vento.
Se quisesse falar da primeira vez que veio a esta ponte, não saberia.
Talvez fosse ainda menino. O certo é que não recorda as circunstâncias,
mas a sensação que tem é a de que naquele episódio conheceu o mecanismo do tempo. Como quando se banhava e costumava brincar de fazer
bolhas de sabão — aprendendo a brevidade do voo, o círculo transparente
que se desloca antes da explosão. Como quando reconheceu, após vários
anos, o velho carro do avô desmontado numa sucata, e as janelas e portas
ausentes lhe pareceram gritos escancarados. Assim foi perceber as pequenas luzes do avião, estrelas que se agigantam, sua oscilação suave, a busca
quase imperceptível da estabilidade, pouco antes que a aeronave cruze o
céu, bem sobre sua cabeça — um instante mínimo, feito um raio, estria de
fogo, arestas.
Hoje não gosta muito de olhar para cima. As nuvens, o horizonte…
tudo isso lhe parece espiritualizado demais. Procura pelo avião apenas
quando o rádio lhe informa que ele já está próximo. Então investiga o espaço, num olhar científico. Nada de ficar em devaneios, com essa expressão de melancolia que alguns têm por aqui. Feito os namorados que nem
saem do carro, achando romântica essa coisa de parar no acostamento,
esperando passar o avião como quem espera um cometa.
Durante muitos meses Alessandro esperou pela presença de Deus
num esplendor assim. Perdeu a fé desde a noite em que se viu obrigado
a rezar para que o pai morresse, escapasse do sofrimento. Talvez algo
da ingenuidade de sua infância o fizesse crer que, do mesmo jeito que
os aviões aparecem em seu brilho, poder metálico e som, Deus surgiria
naquele quarto de hospital, numa resposta de radiocomunicação da
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sua reza. Deus apareceria por um segundo apenas, o suficiente para um
sopro de vida, o último ou o primeiro, e o milagre seria tão súbito que
todos perguntariam se realmente acontecera.
Em casa, o recado na secretária eletrônica é o mesmo. A voz da mãe
numa mensagem tão idêntica à do dia anterior, que Alessandro poderia
pensar que tinha esquecido de apagá-la. A outra gravação é de Larissa.
A pasta com os novos desenhos ficou esquecida sobre a mesa da
cozinha. Hoje não há possibilidade de fazer mais nada. A não ser fumar,
sair com os amigos. Alguma boate com os rapazes da banda. Mas o duro
é dormir agora, quando não há sono, para acordar de madrugada, tomar
banho e se aprontar. Não: deveria mesmo arrumar uma viagem, qualquer
coisa de imprevisto, algo que lhe desse ritmo. O passeio de voadeira entre
os igarapés, na excursão amazônica, quando ainda era criança. O galope
no cavalo Remoinho, o campeão que lhe valera uma queda aos doze anos
e os dois pinos na perna esquerda, depois do desmaio e do sangue, o ruído
dos ferros e a dor nas axilas pelo tempo de muletas. E também o primeiro desespero diante da morte, quando, muitos anos depois, Alessandro
recebeu a notícia da eutanásia feita em Remoinho. Estava, nessa época,
largando a faculdade de computação para se aventurar num curso de
artes gráficas na Espanha. Depois, voltou para o Brasil, na altura em que
se descobriu a doença do pai.
Esquecer, viajar. Os passeios de buggy pelas dunas radicais, volteios
de caranguejo. Pular de asa-delta, surfar, fazer qualquer coisa que lhe
traga o vento nos cabelos, a tempestade de faíscas invisíveis, a comichão
no rosto que não deixa tempo para pensar.
A mensagem de Larissa é diferente da de ontem. Agora ela não está
chorando, parece séria. Conformada, talvez. Sente, apesar do timbre
distorcido da gravação, que a voz dela queima, parece esvoaçar como
cinza, pela sala — as palavras granuladas, pesando no ar. E antes, nos
tempos apaziguados, Alessandro sabia escutar apenas a melodia do que
ela falava; não atentava, como agora, para o impacto de cada sílaba. Tudo
parecia harmonioso, perfeito, em Larissa e sua voz.
Mas as coisas começaram a mudar há dois dias, quando teve coragem de dizer claramente para ela tudo o que queria. O que não era, no
fundo, nem um pouco claro — mas pelo menos a forma que ele usou
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para se expressar não deixava espaço para dúvidas. Larissa saiu, após
a discussão, deixando a casa numa espécie de embriaguez. As paredes
ficaram roxas de vinho, os tapetes mergulhados num odor ácido, a mesa
empapada de uma substância fluida, semelhante aos delírios. Aquela atmosfera tão concentrada lhe deu, por momentos, a sensação de remorso;
a incômoda impressão de que não deveria ter dito realmente tudo, sobre
a necessidade de ficar sozinho, a descrença em relações duradouras e o
interesse único do amor enquanto sinônimo de sexo habituado.
A velha disparidade dos gêneros: quando homem e mulher se entenderiam? Alessandro acendeu um cigarro, já sem a camisa, encostando-se no peitoril da varanda. Sentiu a brisa discreta na barba que deixara
crescer. Deixaria também os cabelos longos, rebeldes, já que não havia
chance de que um dia pudesse usar o uniforme branco e azul, o quepe
simbólico, o brevê pulsando na carteira como a maior de suas conquistas. Impossível imaginar.
Mais uma vez no aeroporto; não na ponte, mas no próprio terraço
panorâmico. Alessandro se aproxima da parede de vidro imensa; sente
o coração aos pulos. Após algumas semanas, o telefonema de Larissa
anunciou o retorno à cidade natal, no sul do país. Ele veio despedir-se
sem que ela soubesse; não queria que o gesto fosse interpretado de um
jeito sentimental. Na verdade, aquilo era apenas um pretexto para estar
ali, vendo o céu entrar num suave crepúsculo e conseguindo mesmo
identificar a torre de controle, como uma flor vermelha no centro da
parte gramada, entre as duas pistas.
Alessandro não trouxe o rádio; inquieta-se com a expectativa,
imaginando os procedimentos dos diálogos que tantas vezes ouviu. Pode
mesmo calcular que, para evitar uma esteira de turbulência, a torre espere alguns minutos até autorizar a decolagem. À sua frente, um Boeing
777, majestoso nos reflexos prateados de um peixe. A imobilidade,
porém, não dura tanto; autorizado a alinhar, o avião taxeia pela pista, e
logo o piloto inicia a corrida de decolagem, numa angústia de velocidade
e clímax, até o desprendimento completo, com o rastro de uma espiral de
fumaça.
Por instantes, Alessandro acompanhou com os olhos o avião,
percebendo-lhe a instabilidade. Uma curva muito inclinada reduziu
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drasticamente a sustentação e quase fez a aeronave glissar, entrando num
parafuso do qual rapidamente saiu. Ali estava Larissa, no meio de trezentos passageiros. Ao pensar nisso, Alessandro teve a velha sensação do
mecanismo do tempo e, no instante suspenso em que durou sua respiração contida, tomou a decisão absoluta de sua vida dali para frente.
Tércia Montenegro nasceu em 1976, em Fortaleza. É professora
adjunta do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Publicou os
livros de contos O Vendedor de Judas (prêmio Funarte 1997/ seleção do PNBE
2008), Linha Férrea (Prêmio Biblioteca Nacional 1999 e Prêmio Redescoberta
da Literatura Brasileira - Revista Cult, 2000) e O resto de teu corpo no aquário
(Prêmio Secult-CE, 2004). Participou das antologias nacionais 25 mulheres
que estão fazendo a nova literatura brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2004),
Contos Cruéis – as narrativas mais violentas da literatura brasileira (São
Paulo: Geração Editorial, 2005), Contos de agora (São Paulo: Livro Falante,
2007), Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães
Rosa (Rio de Janeiro: Garamond, 2006) e Capitu mandou flores (São Paulo:
Geração Editorial, 2008). Sua bibliografia ainda conta com diversos livros
infantis e juvenis.
Em abril a Grua publica da autora O tempo em estado sólido, selecionado
na Temporada Grua de Originais.
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