COLECÇÃO GENTE INDEPENDENTE
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Flannery O’Connor (1925 – 1964) nasceu em
Savannah, no Sul dos Estados Unidos, numa
família de religião católica romana, dois dados
biográficos que determinaram em grande
medida a sua escrita. A sua curta obra, considerada uma das mais importantes da literatura norte-americana do século xx, está integralmente editada pela prestigiada Library of
America. Entre as muitas distinções que recebeu, destacam-se os vários prémios O’Henry,
atribuídos a vários dos seus contos e o National
Book Award, excepcionalmente atribuído a
título póstumo, em 1972, ao volume The complete short stories, em reconhecimento pela sua
carreira literária. A Cavalo de Ferro editou
em língua portuguesa toda a obra narrativa
desta autora, que inclui os romances «Sangue
sábio» e «O céu é dos violentos», e os volumes
de contos «Um bom homem é difícil de encontrar» e «Tudo o que sobe deve convergir».
«Não foi somente a melhor escritora deste tempo e lugar:
ela conseguiu descrever algo de secreto acerca da América
chamado “Sul”, com aquele talento transcendental para
descrever o real espírito de uma cultura. Ela era um génio.»
New York Times
«Flannery O’Connor é uma escritora moderna no sentido mais
amplo do termo, as suas histórias descrevem obsessões que
estão no coração do nosso mundo moderno.»
Times Literary Supplement
«Flannery O’connor deixa o leitor estarrecido, comovido e
profundamente impressionado por um talento de escrita que
contém a singularidade da grandeza.»
Sunday Telegraph
«Apesar de ser muito duro e violento, é de uma violência que
promove a lucidez.» Gonçalo M. Tavares
Flannery O’Connor
TUDO O QUE SOBE
DEVE CONVERGIR
Tradução
Clara Pinto Correia
Título original: «Everything that rises must converge»
Copyright © 1956, 1957, 1958, 1960, 1961, 1962, 1964, 1965
Copyright renovado em 1993 pelos herdeiros de Mary Flannery O’Connor.
© Cavalo de Ferro Editores, 2010
para a publicação em território português
Revisão: Maria Aida Moura
Paginação: Finepaper
1.ª Edição, Março de 2010
ISBN: 978-989-623-118-7
Quando não encontrar algum livro Cavalo de Ferro nas livrarias,
sugerimos que visite o nosso site: www.cavalodeferro.com
ÍNDICE
Prefácio - Uma questão religiosa ........................................
Tudo o que sobe deve convergir ........................................
Greenleaf .............................................................................
A vista dos bosques ..............................................................
O calafrio permanente........................................................
Os confortos do lar .............................................................
Os coxos hão-de entrar primeiro .......................................
Revelação .............................................................................
As costas de Parker ..............................................................
Juízo final .............................................................................
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33
65
96
132
161
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246
275
PREFÁCIO
UMA QUESTÃO RELIGIOSA
Em 1981 passei três semanas na Universidade do Kansas,
mais precisamente em Lawrence, onde, um ano mais tarde,
haveria de ser instalado o cenário para o filme The Day After.
Foi entre Dezembro e Janeiro, e a neve acumulava-se nas
ruas até meio da altura dos postes de semáforo, cortada pelo
limpa-vidros num padrão cristalino por cima e barrento por
baixo. Depois de todo o frio que um biólogo pode sofrer
num trabalho de campo invernoso — sobretudo se, como
era o meu caso, estiver mal agasalhado pela estrita falta do
hábito —, Nova Orleães acaba por cintilar ao longe como
uma estrela balsâmica e tépida, onde um negro toca saxofone numa esquina e onde barcos grandes de rodas gigantescas acostam nos portos. Comprámos o carro maior e
mais barato que conseguimos encontrar (uma carrinha
Volkswagen a cair de podre) e decidimos fazer-nos à estrada
a caminho do Grande Sul.
São três dias de viagem através do Bible Belt1, e dormir
dentro daquele carro era tudo menos simples.
Até aparecerem os primeiros grandes pântanos do Mississipi, com as placas de aviso «Certifique-se se não está um
aligator no meio da estrada», parecíamos rodar no vazio sem
nunca sairmos do mesmo sítio: a toda a volta, para trás e para
frente, estendiam-se a perder de vista campos de cereais já
1 Conglomerado de Estados no Sul e Centro dos Estados Unidos onde os luteranos
ortodoxos correspondem a cerca de 82% da população e o texto bíblico é tomado com total
seriedade como o paradigma a seguir no quotidiano.
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ceifados e inteiriçados pelo gelo, interrompidos ocasionalmente por um armazém, uma garagem, ou um silo perdidos
no meio da paisagem. A certa altura, no que parecia ser o
deserto total do Inverno, a carrinha avariou-se.
Sondámos a paisagem com os binóculos (éramos biólogos) e lá descobrimos, ao fundo de um rolamento longínquo de colinas suaves, aquilo que parecia ser a chaminé de
uma grande habitação.
Já não me lembro de como conseguimos fazer a carrinha
chegar até lá, mas creio que foi a pulso.
A casa pertencia a uma herdade, com um único piso de
madeira pintada de bege que se prolongava para a esquerda
até ao que parecia ser o arco em zinco de uma vacaria, e
crescia para a direita em direcção a uma arrecadação de
forragem e farinha para os animais. Estavam um tractor e
uma retroescavadora estacionados lá atrás, e um camião de
caixa aberta, baixo, robusto, de rodas grossas e carroçaria
pesada, parado próximo do grande alpendre, abrigado
debaixo da continuação do telhado, onde se desenhavam a
porta de entrada e duas cadeiras de baloiço com ar de muito
usadas. Assim que nos aproximámos, saltaram da esquina,
de debaixo do alpendre, dois cães presos por uma corrente
a um aro de alumínio.
Abriu-nos a porta uma família inteira de pessoas fortes
com bochechas rosadas. O pai estava de jardineiras de
ganga cobertas, na parte de cima, por um blusão de lã aos
quadrados vermelhos e pretos. A mãe, de pantufas calçadas
por cima de meias grossas, envergava um fato de treino vagamente alaranjado, com dizeres nas costas quase apagados
pelas lavagens e secagens ao sol. Seguiam-nos cinco filhos,
numa escadinha de alturas dos cem aos duzentos centímetros, todos tão parecidos nos olhos cheios de pestanas, a
centrar a cara ossuda de testa larga, que se tornava difícil
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diferenciá-los uns dos outros. Distinguiam-se três rapazes
e duas raparigas. O Sol, pendurado em total imobilidade
no céu quase transparente de Janeiro, formava um disco de
prata que lhes batia de frente no rosto campónio.
Os homens expuseram ao pai o problema da avaria, e ele
voltou para dentro depois de enfiar na boca uma pastilha
elástica. Reapareceu em poucos minutos, munido de cabos
grandes, uma caixa de ferramentas, uma lanterna e um
esfregão enorme, cheio de nódoas. Limitou-se a fazer um
meneio de cabeça aos meus colegas, e foi deitar-se sem mais
hesitações debaixo da nossa carrinha, com aquela prontidão
e segurança de movimentos que caracterizam as pessoas
habituadas desde pequenas a resolverem sozinhas todos os
problemas práticos que a vida lhes apresenta.
Na minha qualidade de única mulher do grupo, fiquei de
parte à conversa com a mãe. As crianças estavam ansiosas por
me apresentarem o seu animal de estimação, e trouxeram
ao colo um porquinho jovem ainda suavemente cor-de-rosa,
que lhes lambia a cara e os dedos com uma devoção canina
desmesurada, sobretudo para um suíno daquela idade. A
mãe quis saber de onde eu vinha, mas não conseguiu localizar Portugal no seu mapa mental do mundo. De forma
que passou de imediato à questão realmente interessante:
— Então e diga-me, honey, que religiões é que existem no
seu país, e qual delas é a sua?
Bem-vindos ao estranho mundo de Flannery O’Connor.
Tudo isto existe precisamente no Sul dos Estados Unidos,
ainda que esteja cada vez menos à vista.
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TUDO O QUE SOBE DEVE CONVERGIR
O médico tinha dito à mãe de Julian que ela devia
emagrecer dez quilos por causa da tensão arterial, por isso,
às quartas à noite, Julian tinha de acompanhá-la de autocarro ao centro da cidade para uma aula de emagrecimento
nas instalações da Y2. A aula de emagrecimento era destinada a mulheres trabalhadoras com mais de cinquenta anos
que pesassem entre 80 e 100 quilos. A mãe dele era uma
das mais magras, mas as ditas senhoras não desvendavam a
sua idade nem o seu peso. Não andava sozinha à noite de
autocarro desde a altura em que brancos e negros tinham
começado a andar nos mesmos autocarros; e, porque a aula
de emagrecimento era um dos seus poucos prazeres, necessária à sua saúde e de graça, ela dizia que Julian podia pelo
menos fazer o sacrifício de acompanhá-la, tendo em conta
tudo quanto ela tinha feito por ele. Julian não gostava de
recordar tudo quanto ela tinha feito por ele, mas todas as
quartas à noite enchia-se de coragem e acompanhava-a.
Ela estava quase pronta para sair, postada em frente do
espelho do vestíbulo, a colocar o chapéu, enquanto ele, com
as mãos atrás das costas, parecia pregado à moldura da porta,
aguardando, como São Sebastião, que as setas começassem a
trespassá-lo. O chapéu era novo e tinha-lhe custado sete dólares
e meio. Ela não parava de dizer:
— Talvez não devesse ter pago tanto por ele. Não, não devia.
Vou tirá-lo e devolvê-lo amanhã. Não devia tê-lo comprado.
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Abreviatura de YWCA (Young Women Christian Association).
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Julian ergueu os olhos para o céu.
— Claro que devia tê-lo comprado — disse. — Ponha-o na
cabeça e vamos embora.
O chapéu era horroroso. Uma aba de veludo púrpura
dobrada para baixo de um dos lados e dobrada para cima do
outro; o resto era verde e parecia uma almofada com o enchimento por fora. Ele achava que era mais vistoso e patético do
que cómico. Tudo o que lhe dava prazer a ela era medíocre e
deprimia-o a ele.
Ela ergueu o chapéu mais uma vez e colocou-o lentamente
no cimo da cabeça. Duas asas de cabelo grisalho projectavam-se de cada lado da sua face corada, mas os seus olhos, da cor
do céu, eram ainda tão inocentes e intocáveis pela experiência
como deveriam ter sido aos dez anos. Não fosse ela uma viúva
que tinha batalhado arduamente para o alimentar, para o vestir
e para o pôr a estudar e que ainda o sustentava, «até que ele
caminhasse pelos seus próprios pés», poderia passar por uma
rapariguinha que ele tivesse de acompanhar à cidade.
— Está óptimo, está óptimo — disse Julian. — Vamos
embora.
Abriu ele próprio a porta e começou a descer o caminho
para a obrigar a sair. O céu apresentava-se de um tom violeta
esmorecido e as casas recortavam-se, escuras, contra ele,
monstruosidades bolbosas e cor de fígado de uma fealdade
uniforme embora não houvesse duas iguais. Como o bairro
tinha estado na moda quarenta anos antes a mãe persistia
em pensar que eles tinham muita sorte em ter ali um apartamento. Cada casa tinha um colar estreito de terra à sua volta
no qual se sentava, normalmente, uma criança suja. Julian
caminhou com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa e inclinada para a frente e os olhos velados pela determinação de
se tornar completamente insensível durante o tempo que
seria sacrificado ao prazer dela.
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A porta fechou-se, ele voltou-se e deparou com a figura
baixa e rechonchuda, coroada pelo horrível chapéu, que se
dirigia a ele.
— Bem — disse ela, — só se vive uma vez e, ao pagar
um pouco mais por ele, pelo menos não tenho de que me
envergonhar.
— Um dia destes vou começar a ganhar dinheiro — disse
Julian sombriamente, sabendo que isso nunca iria acontecer,
— e a mãe poderá ter uma dessas coisas ridículas sempre que
lhe apetecer.
Mas, antes, haviam de mudar de casa. Imaginou um local
onde os vizinhos mais chegados ficassem a cinco quilómetros
para cada lado.
— Acho que estás a sair-te bem — disse ela, calçando as
luvas. — Só acabaste a escola há um ano. Roma e Pavia não se
fizeram num dia.
Ela era uma das poucas participantes na aula de emagrecimento da Y que chegava de chapéu e de luvas e que se apresentava com um filho que tinha estudado na universidade.
— Leva tempo — disse ela, — e o mundo está uma
desgraça. Este chapéu ficava-me melhor do que qualquer
dos outros, embora quando a lojista o trouxe eu tivesse
dito, «Volte a guardar essa coisa. Nunca o poria na cabeça»,
e ela disse, «Espere só até o ver posto», e quando ela mo
colocou, eu disse, «Bem!!!», e ela disse, «Se quer saber a
minha opinião, esse chapéu favorece-a a si e a senhora favorece o chapéu, e para além do mais», arrematou, «com esse
chapéu, jamais se sentirá envergonhada».
Julian pensou que poderia ter suportado a sua sorte mais
facilmente se ela fosse egoísta, se fosse uma bruxa velha que
bebesse e lhe gritasse. Caminhava ao lado dela, saturado em
depressão, como se no meio do seu martírio tivesse perdido a
fé. Apercebendo-se da expressão dele, sombria, sem esperança,
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irritada, ela parou bruscamente com um olhar aflito e puxou-lhe o braço para trás.
— Espera por mim — disse. — Vou a casa tirar esta coisa e
amanhã vou devolvê-lo. Eu não estava em mim. Posso pagar a
conta do gás com os sete dólares e meio.
Ele apertou-lhe o braço com muita força.
— A mãe não vai devolvê-lo — disse. — Eu gosto dele.
— Bem — disse ela, — não me parece que deva...
— Cale-se e aproveite-o — murmurou, mais deprimido do
que nunca.
— Com o mundo na desgraça em que está — disse ela, —
é um milagre conseguir desfrutar seja do que for. Estou-te a
dizer, o mundo está às avessas.
Julian suspirou.
— Claro que — disse ela, — se tiveres consciência de
quem és, podes ir seja onde for. — Ela dizia isto de que cada
vez que ele a acompanhava à aula de emagrecimento. — A
maior parte deles não são o nosso tipo de gente — continuou ela, — mas eu sei ser delicada com toda a gente. Eu
sei quem sou.
— Eles estão-se nas tintas para a sua delicadeza — disse
Julian, ferozmente. — Ter consciência de quem se é, só se
aplica a uma geração. A mãe não tem a mais pequena ideia de
onde está neste momento ou de quem é.
Ela parou e lançou-lhe um olhar repentino.
— Eu sei muitíssimo bem quem sou — disse ela, — e se tu
não sabes quem és, envergonho-me de ti.
— Que inferno — disse Julian.
— O teu bisavô foi um antigo governador deste Estado
— disse ela. — O teu avô foi um próspero proprietário rural.
A tua avó era uma Godhigh.
— Olhe à sua volta — disse ele, tenso, — e veja onde está
agora.
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E fez um gesto abrangente para indicar a vizinhança, que
a escuridão crescente tornava menos esquálida dentro dos
limites do possível.
— Tu continuas a ser o que és — disse ela. — O teu bisavô
tinha uma plantação e duzentos escravos.
— Já não há escravos — disse ele com irritação.
— Estavam bem melhor quando o eram — disse ela.
Julian soltou um gemido ao ver que a mãe estava lançada
naquele assunto. Entregava-se a ele com regularidade como
um comboio sobre carris desimpedidos. Ele conhecia cada
apeadeiro, cada ramal, cada pântano do trajecto, e sabia o
ponto exacto em que a conclusão dela entraria majestosamente na estação:
— É ridículo. É simplesmente irrealista. Deviam erguer-se,
sim, mas do seu lado da cerca.
— Vamos esquecer o assunto — disse Julian.
— Aqueles de quem eu tenho pena — disse ela, — são os
que são meio brancos. Esses são uns desgraçados.
— É capaz de esquecer o assunto?
— Imagina que éramos meio brancos. Sentir-nos-íamos
certamente confusos.
— Eu sinto-me confuso neste momento — gemeu ele.
— Bem, falemos de algo agradável — disse ela. — Eu
lembro-me de ir a casa do avô quando era uma rapariguinha.
Naquela altura a casa tinha uma escadaria dupla que subia até
ao que era na realidade o segundo andar — os cozinhados
eram todos feitos no primeiro. Eu costumava gostar de ficar em
baixo, na cozinha, por causa do cheiro das paredes. Sentava-me
com o nariz esborrachado contra o estuque e inspirava profundamente. Na realidade a casa pertencia aos Godhighs mas o
teu avô Chestny pagou o empréstimo e conservou-a para eles.
Estavam reduzidos à pobreza — disse ela, — mas, empobrecidos ou não, nunca esqueceram quem eram.
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— Sem dúvida que aquela mansão arruinada não os deixava
esquecerem-se — murmurou Julian.
Nunca falava dela sem desprezo nem pensava nela sem
saudades. Tinha-a visto uma vez quando era criança, antes
de ser vendida. A escadaria dupla tinha apodrecido e sido
demolida. Era habitada por pretos. Mas permanecia na
sua cabeça como a mãe a tinha conhecido. Aparecia nos
seus sonhos com regularidade. Ele estava de pé na varanda
ampla, escutando o sussurro da folhagem dos carvalhos,
depois deambulava pelo vestíbulo de tectos altos até ao
salão, que abria para aquele, e olhava para as carpetes
gastas e para os cortinados desbotados. Ocorria-lhe que
era ele, e não ela, que a teria apreciado. Preferia a sua
elegância puída a tudo aquilo que ele pudesse nomear e
era por causa dessa casa que todos os bairros onde viveram
depois foram um tormento para ele — enquanto que ela
mal tinha sentido a diferença. Ela chamava à sua insensibilidade «adaptar-se».
— E eu lembro-me da velha escura que era a minha ama, a
Caroline. Não havia melhor pessoa no mundo. Sempre nutri
um grande respeito pelos meus amigos de cor — disse ela. —
Faria tudo no mundo por eles e eles...
— É capaz de mudar de assunto, pelo amor de Deus? —
disse Julian. Quando apanhava o autocarro sozinho, fazia
questão de se sentar ao lado de um preto, como que em reparação pelos pecados da mãe.
— Estás muito sensível esta noite — disse ela. — Estás a
sentir-te bem?
— Sim, sinto-me bem — disse ele. — Agora esqueça o
assunto.
Ela cerrou os lábios.
— Bem, estás mesmo de péssimo humor — observou. —
Não vou dirigir-te mais a palavra.
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Tinham chegado à paragem. Não havia autocarro à vista e
Julian, ainda com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça inclinada para a frente, fitava de mau humor o fundo da rua deserta.
A frustração de ter de esperar pelo autocarro, para além de ter de
andar nele, começou subir-lhe lentamente pelo pescoço acima
como uma mão fria. A presença da mãe foi-lhe recordada com
brutalidade quando ela suspirou penosamente. Olhou para ela
com frieza. Mantinha-se muito direita sob o chapéu grotesco,
usando-o como um estandarte da sua dignidade imaginária.
Habitava-o um impulso perverso de lhe quebrar o ânimo. De
repente afrouxou a gravata, tirou-a e colocou-a no bolso.
Ela ficou hirta.
— Porque é que tens de ter esse aspecto quando me acompanhas à cidade? — disse ela. — Porque é que tens de me
humilhar deliberadamente?
— Se nunca vai aprender qual é o seu lugar — disse ele, —
pode pelo menos aprender onde eu me encontro.
— Pareces um rufia — disse ela.
— Então devo ser — murmurou ele.
— Volto para casa — disse ela. — Não vou incomodar-te. Se
não consegues fazer uma coisinha destas por mim...
Revirando os olhos, Julian voltou a pôr a gravata. «Reintegrado na minha classe», murmurou. Voltou a cara para ela e
sibilou:
— A verdadeira cultura está na cabeça, na cabeça — disse,
e bateu na testa, — na cabeça.
— Está no coração — disse ela, — e na forma como fazes as
coisas, e a forma como fazes as coisas vem de quem tu és.
— Ninguém no maldito autocarro quer saber quem a mãe é.
— Eu quero saber quem sou — disse ela, friamente.
O autocarro iluminado apareceu no cimo da colina mais
próxima e, à medida que se aproximava, desceram o passeio
para se abeirarem dele. Ele colocou a mão debaixo do cotovelo
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da mãe e içou-a para o degrau que rangia. Ela entrou com um
pequeno sorriso, como se estivesse a ingressar numa sala de
visitas onde todos a esperavam. Enquanto ele colocava as fichas
para pagar a viagem, ela sentou-se num dos bancos compridos
da frente, destinados a três pessoas, que estavam voltados para
o corredor. Uma mulher magra de dentes salientes e cabelo
comprido amarelo estava sentada numa extremidade. A mãe
sentou-se ao lado dela e deixou espaço para Julian ao seu lado.
Ele sentou-se e olhou para o chão, do outro lado do corredor,
onde se encontrava um par de pés magros numas sandálias de
lona vermelhas e brancas.
A mãe iniciou imediatamente uma conversa geral, destinada a atrair qualquer pessoa que quisesse falar.
— Será que pode ficar ainda mais quente? — disse, e retirou
da mala um leque de dobrar preto com uma cena japonesa,
que começou a agitar à sua frente.
— Acho que sim — disse a mulher com os dentes salientes,
— mas tenho a certeza de que o meu apartamento é que não
pode ficar mais quente.
— Deve apanhar o sol da tarde — disse a mãe.
Sentou-se na ponta do banco e olhou para um e para o
outro lado do autocarro. Estava semicheio. Todos os passageiros eram brancos.
— Estou a ver que temos o autocarro só para nós — disse.
Julian encolheu-se.
— Para variar — disse a mulher do outro lado do corredor,
a dona das sandálias de lona vermelhas e brancas. — Apanhei
um no outro dia e pareciam moscas: à frente, e até ao fundo.
— O mundo está uma desgraça por todo o lado — disse a
mãe. — Não sei como é que deixámos chegar as coisas a este
ponto.
— O que me irrita são todos aqueles rapazes de boas famílias a roubar pneus de automóveis — disse a mulher de dentes
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salientes. — Eu expliquei ao meu filho, disse-lhe tu podes não
ser rico mas foste criado da maneira certa e se eu te apanho
numa confusão dessas, podem mandar-te para o reformatório.
É exactamente onde pertences.
— A educação fala por si — disse a mãe. — O seu filho está
no liceu?
— No nono ano — disse a mulher.
— O meu filho acabou a universidade o ano passado. Quer
ser escritor, mas vende máquinas de escrever até se lançar na
escrita — disse a mãe.
A mulher inclinou-se para a frente e observou Julian. Ele
deitou-lhe um tal olhar malévolo que ela voltou a encostar-se
no assento. No chão, do outro lado do corredor, estava um
jornal abandonado. Ele levantou-se, apanhou-o e abriu-o à sua
frente. A mãe continuou a conversa discretamente num tom
mais baixo, mas a mulher do outro lado do corredor disse em
voz alta:
— Que bom. Vender máquinas de escrever é parecido com
escrever. O rapaz pode mudar directamente de uma actividade
para a outra.
— Eu digo-lhe — disse a mãe — que Roma e Pavia não se
fizeram num dia.
Por detrás do jornal, Julian estava a retirar-se para o compartimento interior da sua mente onde passava a maior parte
do tempo. Era uma espécie de bolha na qual ele se instalava
quando não suportava tomar parte no que se passava à sua
volta. A partir daí ele podia observar e julgar, mas, dentro dele,
estava a salvo de qualquer tipo de intromissão do exterior.
Era o único sítio onde se sentia livre da idiotice geral dos seus
semelhantes. A mãe nunca lá tinha entrado — mas, a partir
dele, conseguia vê-la com absoluta clareza.
A velhota era suficientemente inteligente, e pareceu-lhe
que, se tivesse partido de algumas das premissas correctas,
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poder-se-ia ter esperado mais dela. Vivia de acordo com as
leis do seu mundo de fantasia, fora do qual ele nunca a tinha
visto pôr um pé. A lei desse mundo era sacrificar-se por ele
depois de ter anteriormente criado essa necessidade gerando
uma confusão. Tinha adquirido os seus sacrifícios apenas
porque a sua própria falta de perspicácia os tornara necessários. Toda a sua vida tinha sido uma luta para agir como uma
Chestny sem os bens dos Chestny, e proporcionar-lhe a ele
tudo o que ela achava que um Chestny devia ter; mas já que,
dizia ela, era divertido lutar, porquê queixar-se? E quando se
vencia, como ela tinha vencido, que divertido era olhar para
os tempos difíceis! Julian não conseguia perdoar-lhe o facto
de ela apreciar a luta, e muito menos o facto de pensar que
ela tinha vencido.
O que ela queria dizer quando afirmava que vencera era
que tinha conseguido educá-lo e enviá-lo para a universidade,
e que o resultado era tão positivo — ele era bem-parecido
(os dentes dela tinham ficado com cáries para que os dele
pudessem ser endireitados), inteligente (ele tinha consciência
de que era demasiado inteligente para ter sucesso), e tinha um
futuro à sua frente (claro que não havia futuro algum à sua
frente). A mãe desculpava-lhe a melancolia justificando-a com
o facto de ele estar ainda a crescer, e com as suas ideias radicais que derivavam da falta de experiência prática. Ela dizia
que ele ainda não sabia nada sobre a «vida», que ele não tinha
sequer entrado no mundo real — quando, na realidade, ele
estava tão desencantado com o mundo real como um homem
de cinquenta anos.
A maior ironia de tudo isto era, apesar dela, ele ter conseguido sair-se tão bem. Apesar de ter andado numa universidade apenas de terceira categoria, tinha, por iniciativa própria,
saído com uma educação de primeira. Apesar de ter crescido
dominado por uma mentalidade mesquinha, tinha conseguido
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desenvolver uma mentalidade aberta. Apesar de todas as
opiniões idiotas que ela tinha, ele não tinha preconceitos nem
receio de enfrentar os factos. O mais extraordinário de tudo
era que, em vez de estar cego pelo amor por ela, como ela
estava por ele, ele se tinha libertado dela a nível emocional e
conseguia vê-la com completa objectividade. Ele não era dominado pela mãe.
O autocarro parou com um solavanco súbito e arrancou-o
à sua meditação. Uma mulher vinda do fundo correu para a
frente com pequenos passos, e por pouco não caiu por cima
do jornal dele ao endireitar-se. A mulher desceu, e subiu um
preto de estatura considerável. Julian manteve o jornal em
baixo para observar. Dava-lhe uma certa satisfação ver a injustiça a operar no dia-a-dia. Confirmava-lhe a opinião de que,
salvo raras excepções, não havia ninguém que valesse a pena
conhecer num raio de quinhentos quilómetros. O preto estava
bem vestido e transportava uma pasta. Olhou em volta e depois
sentou-se na extremidade do assento onde estava a mulher das
sandálias de lona vermelhas e brancas. Desdobrou imediatamente um jornal e escondeu-se por trás dele. O cotovelo da
mãe de Julian começou imediatamente a bater-lhe com insistência nas costelas.
— Agora percebes porque é que eu não ando sozinha nestes
autocarros — sussurrou ela.
A mulher das sandálias de lona vermelhas e brancas tinha-se
levantado ao mesmo tempo que o preto se sentara e dirigira-se
mais para o fundo do autocarro, ocupando o lugar da mulher
que se apeara. A mãe dele inclinou-se para a frente e lançou-lhe
um olhar de aprovação.
Julian levantou-se, atravessou o corredor, e sentou-se no
lugar da mulher das sandálias de lona. Desta posição, olhou
serenamente para a mãe, do outro lado. A cara dela tinha
ficado de um vermelho irritado. Ele fitou-a, transformando os
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seus olhos nos de um estranho. Sentiu a tensão desaparecer de
repente como se tivesse declarado guerra aberta à mãe.
Teria gostado de começar a conversar com o preto e de
falar com ele sobre arte ou política ou sobre qualquer outro
assunto que estivesse acima da compreensão dos que os rodeavam, mas o homem permaneceu entrincheirado atrás do seu
jornal. Não dava importância à mudança de lugares, ou nem
sequer a tinha notado. Não havia forma de Julian transmitir a
sua simpatia.
A mãe mantinha os olhos fixos na cara dele, de forma
reprovadora. A mulher com os dentes salientes olhava para ele
avidamente, como se o rapaz fosse uma espécie de monstro
desconhecida para ela.
— Tem lume? — perguntou ao preto.
Sem levantar o olhar do jornal, o homem procurou no
bolso e entregou-lhe um pacote de fósforos.
— Obrigado — disse Julian.
Durante um momento segurou nos fósforos de forma idiota.
Um sinal de NÃO FUMAR olhava para ele em cima da porta.
Só isto não teria sido suficiente para o demover; não tinha
cigarros. Tinha deixado de fumar uns meses antes porque não
tinha dinheiro para comprar cigarros.
— Desculpe — murmurou, e voltou a entregar os fósforos.
O preto baixou o jornal e lançou-lhe um olhar aborrecido.
Agarrou nos fósforos e voltou a levantar o jornal.
A mãe continuou a olhar para ele mas não se aproveitou
do seu desconforto momentâneo. Os olhos dela mantiveram
a mesma expressão ferida. A cara parecia estar anormalmente
vermelha, como se a sua tensão arterial tivesse subido. Julian
não deixou que qualquer traço de simpatia transparecesse no
seu semblante. Tendo conseguido alguma vantagem, queria
desesperadamente mantê-la e aprofundá-la. Gostaria de lhe
dar uma lição que lhe ficasse por uns tempos na memória, mas
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não parecia haver maneira de levar a coisa mais adiante. O
preto recusava-se a sair de trás do jornal.
Julian cruzou os braços e olhou impassivelmente em frente,
encarando-a, mas como se não a visse, como se tivesse deixado
de reconhecer a existência dela. Imaginou uma cena na qual,
quando o autocarro chegasse à paragem deles, ele permaneceria no lugar e quando ela dissesse, «Não vais sair?», ele olharia
para ela como se fosse uma estranha que se lhe tinha dirigido
impulsivamente. A esquina onde desciam estava normalmente
deserta, mas era bem iluminada e não lhe faria mal caminhar
sozinha ao longo dos quatro quarteirões até à Y Ele decidiu
esperar até que o momento chegasse e depois resolver se a
deixaria sair sozinha. Teria de estar na Y às dez para a trazer de
volta, mas poderia deixá-la na dúvida se iria ou não aparecer.
Não havia qualquer razão para ela pensar que podia sempre
depender dele.
Retirou-se novamente para o compartimento de tecto
alto escassamente mobilado com grandes peças de mobília
antiga. A sua alma distendeu-se momentaneamente mas
depois tomou consciência da mãe do outro lado do corredor
e a visão contraiu-se. Estudou-a friamente. Os pés dela dentro
de pequenas sabrinas oscilavam como os de uma criança e
não chegavam completamente ao chão. Ela ensaiava nele
um olhar de reprovação exagerada. Ele sentiu-se completamente desligado. Naquele momento, poderia tê-la esbofeteado com prazer, como teria feito a uma criança particularmente detestável que estivesse a seu cargo.
Começou a imaginar diversas formas inverosímeis através
das quais pudesse dar-lhe uma lição. Poderia tornar-se amigo
de um distinto professor universitário ou de um advogado
preto e levá-lo para casa para passar o serão. Seria perfeitamente legítimo, mas a tensão arterial dela subiria até aos 300.
Não podia pressioná-la de tal forma que ela viesse a ter um
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ataque e, para além disso, ele nunca tinha conseguido estabelecer amizade com negros. Tentara travar conhecimento
no autocarro com alguns com melhor aspecto, aqueles que
pareciam ser professores universitários, sacerdotes ou advogados. Uma manhã tinha-se sentado ao lado de um homem de
pele castanho-escura com aspecto distinto que respondera às
perguntas dele com uma solenidade sonora mas que era afinal
um cangalheiro. Num outro dia, tinha-se sentado ao lado de
um preto que fumava charuto e tinha um anel de diamantes
no dedo; mas, depois de alguns gracejos formais, o homem
tocou a campainha e levantou-se, enfiando dois bilhetes de
lotaria na mão de Julian ao passar por cima dele para sair.
Imaginava a mãe desesperadamente doente e ele a conseguir-lhe apenas um médico preto. Brincou com a ideia durante
alguns minutos e depois deixou que fosse substituída pela
imagem momentânea de si próprio a participar como simpatizante numa ocupação. Isto era possível, mas ele não se demorou
na imagem. Em vez disso, abordou o derradeiro horror. Levava
para casa uma linda mulher de aparência negróide. Prepare-se,
dizia. Quanto a isto, nada poderá fazer para impedir. Não há
nada que possa fazer acerca disto. Esta é a mulher que escolhi.
É inteligente, digna, mesmo bondosa, e sofreu e não achou que
isso fosse divertido. Agora atormente-nos, vá, atormente-nos.
Expulse-a daqui, mas lembre-se, está a expulsar-me também
a mim. Os olhos tinham-se-lhe estreitado; e, através da indignação que tinha gerado, viu a mãe do outro lado do corredor,
de cara arroxeada, reduzida às proporções de pigmeu da sua
natureza moral, sentada como uma múmia por baixo do ridículo estandarte que era o seu chapéu.
Foi arrancado de novo à sua fantasia quando o autocarro
parou. A porta abriu-se com um sibilar de sucção e, saída
da escuridão, entrou com um rapazinho uma mulher de
cor corpulenta, de aspecto mal-humorado, vestida de forma
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garrida. A criança, que devia ter uns quatro anos, trazia um
fato curto axadrezado e um chapéu tirolês com uma pena azul.
Julian desejou que ele se sentasse ao seu lado e que a mulher
se comprimisse ao lado da mãe. Não podia imaginar melhor
combinação.
Enquanto esperava pelas fichas, a mulher estudava os
lugares vazios — com a ideia, esperava ele, de se sentar onde
era menos desejada. Havia qualquer coisa de familiar nela, mas
Julian não conseguia perceber o quê. A mulher era gigantesca.
O seu semblante estava determinado, não apenas a responder
ao antagonismo mas a procurá-lo. A inclinação do seu enorme
lábio inferior era como um sinal de aviso: NÃO SE METAM
COMIGO. A sua figura protuberante estava encaixada num
vestido de crepe verde e os pés transbordavam dos sapatos
vermelhos. Tinha um chapéu horrível. Uma aba de veludo
púrpura estava virada para baixo de um dos lados e virada para
cima do outro; o resto era verde e parecia uma almofada com
o enchimento de fora. Tinha uma bolsa vermelha gigantesca
que tinha saliências por todo o lado como se estivesse cheia
de pedras.
Para desapontamento de Julian, o rapazinho subiu para o
lugar vazio ao lado da mãe. A mãe englobava todas as crianças,
pretas ou brancas, na categoria comum de «queridos», e achava
que os pretinhos eram, de uma forma geral, mais queridos
do que as criancinhas brancas. Sorriu ao menino quando ele
subiu para o assento.
Entretanto, a mulher caiu sobre o lugar vazio ao lado
de Julian. Para seu aborrecimento, encaixou-se nele. Viu a
expressão da mãe mudar quando a mulher se instalou ao seu
lado, e percebeu com satisfação que isto era mais censurável
para ela do que para ele. A cara dela parecia quase cinzenta
e havia uma expressão de reconhecimento sombrio nos seus
olhos, como se de repente se tivesse sentido agoniada com a
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perspectiva de um confronto terrível. Julian apercebeu-se de
que era porque ela e a mulher tinham, num determinado
sentido, trocado de filhos. Embora a mãe não tivesse consciência do significado simbólico disto, senti-lo-ia. O deleite espelhava-se abertamente na cara dele.
A mulher a seu lado murmurou para si própria qualquer
coisa incompreensível. Ele tinha consciência de que ela estava
como que a eriçar-se ao seu lado, rosnando silenciosamente
como um gato zangado. Não conseguia ver nada a não ser a
bolsa vermelha erguida sobre as protuberantes coxas verdes.
Visualizou a mulher no momento em que tinha estado à
espera das fichas — a figura imponente, erguendo-se a partir
dos sapatos vermelhos, passando pelas ancas sólidas, o peito
gigantesco, a face arrogante, até ao chapéu verde e púrpura.
Os olhos dilataram-se-lhe.
A imagem dos dois chapéus, idênticos, abateu-se sobre ele
com o brilho de um nascer de sol radioso. A sua cara ficou
subitamente iluminada pelo gozo. Não podia acreditar que o
Destino tivesse lançado sobre a mãe uma tal lição. Deu uma
gargalhada sonora de forma a que ela olhasse para ele e visse
o que ele via. Ela virou lentamente os olhos na sua direcção.
O azul deles parecia ter-se transformado num roxo pisado.
Durante um momento, Julian teve a sensação desconfortável
de que ela estava inocente; mas isso durou apenas um segundo
antes de a razão o salvar. A justiça dava-lhe o direito de rir. O
sorriso dele petrificou-se até lhe dizer tão claramente como se
o dissesse em voz alta: o seu castigo tem a medida exacta da sua
mesquinhez. Isto devia dar-lhe uma lição duradoura.
Os olhos dela deslocaram-se para a mulher. Parecia não
conseguir suportar olhar para ele e pensar que a mulher era
preferível. Julian tomou de novo consciência da presença
eriçada a seu lado. A mulher fazia ruídos surdos, como um
vulcão prestes a entrar em erupção. A boca da mãe começou a
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tremer ligeiramente num dos cantos. Desanimado, ele viu na
cara dela sinais incipientes de recuperação, e apercebeu-se de
que tudo aquilo ia acabar por lhe parecer apenas cómico, e não
lhe serviria minimamente de lição. Ela manteve os olhos na
mulher, e um sorriso divertido espalhou-se-lhe pela cara, como
se a outra fosse um macaco que lhe tivesse roubado o chapéu.
O pretinho olhava para ela com olhos grandes e fascinados.
Estava há já algum tempo a tentar chamar-lhe a atenção.
— Carver! — disse a mulher de repente. — Vem cá!
Quando viu que as atenções recaíam finalmente sobre
ele, Carver encolheu os pés e voltou-se para a mãe de Julian
e riu-se.
— Carver! — repetiu a mulher. — Estás a ouvir-me? Vem cá!
Carver deslizou do assento mas permaneceu de cócoras
com as costas encostadas à sua base, com a cabeça virada maliciosamente para a mãe de Julian, que lhe sorria. A mulher
esticou uma mão através do corredor e puxou-o para si. Ele
endireitou-se e recostou-se nos joelhos dela, sorrindo para a
mãe de Julian.
— Não é tão querido? — disse a mãe de Julian à mulher
com os dentes salientes.
— Suponho que é — disse a mulher, sem convicção.
A preta endireitou-o com um puxão, mas ele libertou-se da
mão dela e disparou pelo corredor e trepou, rindo a bandeiras
despregadas, para o assento ao lado do seu amor.
— Acho que ele gosta de mim — disse a mãe de Julian, e
sorriu para a mulher.
Era o sorriso que usava quando queria ser particularmente
simpática para alguém inferior. Julian viu tudo perdido. A lição
tinha deslizado por cima dela como chuva num telhado.
A mulher levantou-se e arrancou o rapazinho do assento
como se estivesse a protegê-lo de algum contágio. Julian
conseguia sentir a raiva dela por não possuir nenhuma arma
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semelhante ao sorriso da mãe dele. Deu uma palmada com
força na perna da criança. Ele gritou uma vez e depois enfiou
a cabeça no estômago dela e pontapeou-a nas canelas.
— Porta-te bem — disse a preta grande com veemência.
O autocarro parou e o preto que tinha estado a ler o jornal
saiu. A mulher afastou-se para o lado e, com um baque, sentou
o rapazinho entre si e Julian. Agarrou-o firmemente pelo
joelho. Pouco depois, ele colocou as mãos à frente da cara e
espreitou a mãe de Julian através dos dedos.
— Eu vejo-teeeeeeeeeeeee! — disse ela e colocou a mão à
frente da cara e espreitou.
A mulher deu-lhe uma palmada para ele baixar a mão.
— Pára de fazer disparates — disse, — antes que eu te bata
até Jesus vivo te abandonar!
Julian estava agradecido por a próxima paragem ser a
deles. Esticou-se e puxou a corda da campainha. A mulher
levantou-se e puxou-a ao mesmo tempo. Ó meu Deus, pensou
ele. Ele tinha a terrível intuição de que, quando se apeassem
juntos, a mãe abriria a bolsa e daria uma moeda ao rapazinho.
O gesto ser-lhe-ia tão natural como respirar. O autocarro parou
e a mulher levantou-se e apressou-se a dirigir-se para a frente,
arrastando a criança, que queria permanecer no autocarro,
atrás dela. Julian tentou libertar a mãe da bolsa.
— Não — murmurou, — quero dar uma moeda ao
rapazinho.
— Não! — sibilou Julian. — Não!
Ela sorriu para a criança e abriu a mala. A porta do autocarro abriu-se e a mulher pegou-lhe pelo braço e desceu, com
ele suspenso na anca. Uma vez na rua, pousou-o e abanou-o.
A mãe de Julian teve de fechar a bolsa enquanto estava
a descer o degrau do autocarro; mas, assim que os seus pés
tocaram no chão, voltou a abri-la e começou a procurar qualquer coisa lá dentro.
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— Não consigo encontrar senão um cêntimo — sussurrou,
— mas parece novo.
— Não faça isso! — disse Julian ferozmente entredentes.
Havia um candeeiro na esquina e ela apressou-se a dirigir-se
para lá para ver melhor o interior da bolsa. A mulher movia--se
rapidamente pela rua abaixo com a criança pela mão, ainda a
arrastar-se atrás dela.
— Ó, rapazinho! — chamou a mãe de Julian, e deu alguns
passos rápidos alcançando-os logo a seguir ao candeeiro. —
Toma, um cêntimo novinho em folha para ti — e segurou na
moeda, que brilhava como bronze sob a luz fraca.
A mulher colossal voltou-se e durante um momento ficou
ali, com os ombros levantados e a cara congelada de raiva
frustrada, olhando para a mãe de Julian. Então, de repente,
pareceu explodir como uma máquina que tivesse recebido
uma onça de pressão a mais. Julian viu o punho preto afastar-se
brandindo a bolsa vermelha. Fechou os olhos e encolheu-se ao
ouvir a mulher gritar:
— Ele não aceita cêntimos de ninguém!
Quando abriu os olhos, a mulher desaparecia pela rua
abaixo com o rapazinho a olhar de olhos arregalados por cima
do ombro dela. A mãe de Julian estava sentada no passeio.
— Eu avisei-a para não fazer isso — disse Julian, zangado. —
Avisei-a para não fazer isso!
Ficou debruçado sobre ela durante um minuto, rangendo
os dentes. As pernas dela estavam estendidas à sua frente e
tinha o chapéu no colo. Ele agachou-se e encarou-a nos olhos.
O seu semblante estava completamente sem expressão.
— Teve exactamente o que merecia — disse ele. — Agora
levante-se.
Apanhou a bolsa e colocou lá dentro tudo o que tinha
caído. Apanhou o chapéu do colo dela. O cêntimo saltou-lhe
à vista no passeio, apanhou-o e deixou-o cair dentro da
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bolsa diante dos olhos dela. Depois levantou-se, inclinou-se
e estendeu as mãos para a puxar para cima. Ela continuou
sem se mexer. Ele suspirou. Acima deles, de ambos os lados,
erguiam-se edifícios negros de apartamentos, marcados por
rectângulos irregulares de luz. Na extremidade do bloco,
um homem saiu de uma porta e caminhou na direcção
oposta.
— Muito bem — disse ele, — suponha que alguém passa e
quer saber porque está sentada no passeio?
Ela agarrou na mão e, respirando com dificuldade, puxou-a
com força e depois ficou de pé durante um momento,
oscilando ligeiramente como se os pontos de luz na escuridão girassem à sua volta. Os olhos, confusos e cheios de
sombras, fixaram-se finalmente na cara dele. O rapaz não
tentou esconder a irritação.
— Espero que isto lhe sirva de lição — disse.
Ela inclinou-se para a frente e os olhos percorreram-lhe
a cara. Parecia tentar determinar a identidade dele. Depois,
como se não encontrasse nele nada de familiar, começou a
andar apressadamente na direcção errada.
— Não vai para a Y? — perguntou Julian.
— Casa — murmurou ela.
— Bem, vamos a pé?
Como resposta ela continuou a andar. Julian acompanhou-a, com as mãos atrás das costas. Não via razão para deixar
que a lição que ela tinha recebido passasse sem a corroborar
explicando-lhe o seu significado. Já agora podia fazer-lhe
entender o que lhe tinha acontecido.
— Não pense que aquela era apenas uma negra arrogante
— disse. — Era toda a raça negra que já não aceita os seus
tostões condescendentes. Aquela era a sua igual de raça negra.
Ela pode usar um chapéu igual ao seu, e, decididamente
— acrescentou imerecidamente (porque pensava que era
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cómico), — ficava-lhe melhor a ela do que a si. O significado
disto tudo — disse, — é que o mundo antigo desapareceu. As
práticas antigas são obsoletas e a sua benevolência não vale
um chavo. — Recordou-se amargamente da mansão que tinha
perdido. — Não é quem pensa que é — disse.
Ela continuou a marchar em frente, sem lhe dar qualquer
atenção. O seu cabelo estava solto de um dos lados. Deixou
cair a bolsa e não ligou. Ele inclinou-se, apanhou-a e entregou-lha mas ela não a agarrou.
— Não precisa de agir como se o mundo tivesse chegado ao
fim — disse, — porque não chegou. A partir de agora vai ter
de viver num mundo novo e enfrentar algumas realidades para
variar. Anime-se — disse, — não vai morrer por causa disso.
Ela tinha a respiração acelerada.
— Vamos esperar pelo autocarro — disse ele.
— Casa — proferiu ela com dificuldade.
— Detesto vê-la comportar-se dessa maneira — disse ele. —
Como uma criança. Eu devia poder esperar mais de si.
Decidiu parar onde estava e fazê-la parar e esperar pelo
autocarro.
— Não ando mais — informou ele, parando. — Vamos de
autocarro.
Ela continuou a andar como se não o tivesse ouvido. Ele
deu alguns passos e agarrou-lhe no braço. Olhou para a cara
dela e ficou sem respirar. Estava a olhar para uma cara que
nunca tinha visto antes.
— Diz ao avô para me vir buscar — disse.
Ele fitou-a, tomado de pânico.
— Diz à Caroline para me vir buscar — acrescentou ela.
Atordoado, ele deixou-a ir e ela guinou para a frente de
novo, caminhando como se uma perna fosse mais curta do
que a outra. Uma onda de trevas parecia arrastá-la afastando-a dele.
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— Mãe! — gritou ele. — Querida, minha mãe querida,
espere!
Amarfanhada, ela caiu no pavimento. Ele deu uma corrida
e caiu a seu lado a chorar:
— Mãezinha, Mãezinha!
Virou-a. A cara dela estava ferozmente distorcida. Um olho,
enorme e arregalado, moveu-se ligeiramente para a esquerda
como se tivesse sido desancorado. O outro permaneceu fixo
nele, percorreu-lhe a cara novamente, não encontrou nada e
fechou-se.
— Espere aqui, espere aqui! — gritou ele, e ergueu-se num
salto começando a correr para ir buscar ajuda em direcção a
um aglomerado de luzes que via na distância à sua frente. —
Socorro, socorro! — gritou, mas a sua voz era fraca, nada mais
do que um fio de som.
As luzes afastavam-se cada vez mais à medida que ele corria,
e os seus pés moviam-se como se estivessem entorpecidos e já
não pudessem levá-lo a lado algum. A onda de trevas parecia
arrastá-lo novamente para ela, adiando, a cada momento, a sua
entrada no mundo da culpa e da dor.
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