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Pesquisas com novos fármacos
e resposta comunitária
(resumo da palestra)1
Mário César Scheffer2
A palestra aqui resumida teve início com a apresentação de um vídeo de quatro
minutos, um clipping eletrônico, contendo denúncias e ações comunitárias
veiculadas na mídia televisiva, sobre uma pesquisa de medicamento para AIDS,
patrocinada pelo Laboratório Merk.
Essa pesquisa é considerada um marco, não só por ser uma das pesquisa mais antiética1 realizadas no país, mas também por significar a inserção do movimento contra
HIV / AIDS nessa discussão de Ética em Pesquisa.
Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.
In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos – questões emergentes dos
Jornalista
Antes dessa pesquisa, que teve início em 95, nosso acompanhamento de pesquisas com
novas drogas era feito à distância. As informações que obtínhamos eram de pesquisas
realizadas no exterior. O grupo Pela Vidda edita, há 8 anos, uma publicação sobre
tratamentos e terapias. Então, temos familiaridade com esta discussão. Conhecemos o
lado mais técnico, sabemos o que é "Fase 1 ", "Fase 2" e outros termos específicos. Já
sabíamos como se chegava a uma nova droga, mas acreditávamos que esta era uma
discussão de "Primeiro Mundo".
Quando liamos na mídia que ativistas de Nova Iorque discutiam mudanças na
metodologia de uma pesquisa porque era discriminatória ou tinha critério rígidos de
inclusão..., acreditávamos que esta era uma discussão supérflua, bem distante de nós, até
porque considerávamos que tínhamos problemas bem mais sérios, como o acesso a
medicamentos e a exames. Discutir Ética em Pesquisa era, realmente, uma coisa
colocada em segundo plano, e não conseguíamos ainda identificar a importância de
discutir e interferir na condução dos estudos.
Pesquisas já eram desenvolvidas no Brasil, no eixo São Paulo-Rio, mas eram pesquisas
com poucos pacientes e, geralmente, adotavam procedimentos ou drogas nos quais a
gente não via benefício direto, mas também não enxergava risco. O pesquisador e a
instituição eram conhecidos e pronto. Antes da discussão com a pesquisa da Merk,
conhecemos pesquisas realizadas em pacientes com citomegalovírus, um estudo em
que eram usados anabolizantes com 20 pacientes que tinham perdido peso, e um outro
estudo de medicamentos para pacientes soropositivos com tuberculose... enfim,
tínhamos notícias de várias pesquisas em andamento mas não aprofundávamos no
debate se era ético ou não.
1
Por opção do palestrante, essa palestra foi transcrita e resumida, sem necessidade de sua revisão.
Qualquer equívoco de interpretação ou de informação é de nossa responsabilidade (V. Nota da
Organizadora, pág. 9).
2
Membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, na qualidade de representante dos interesses dos
usuários.
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Três pesquisas nos chamaram, particularmente, a atenção, pela quantidade de pacientes
soropositivos que começaram a aderir a elas. Essas pesquisas mexeram com o dia-a-dia
dos nossos grupos, pois os pacientes (quase toda a população soropositiva de São Paulo)
iam atrás dessas drogas. Duas delas não tiveram seqüência, mas tiveram um impacto
muito grande em nossa reflexão e ação. Uma delas foi uma pesquisa de vacina Salk, no
complexo hospitalar de Guarulhos - uma instituição que não tinha sequer autorização
para fazer pesquisas. Nós ficamos sabendo de todas essas informações pela imprensa.
Os soropositivos, possíveis voluntários, foram atrás da droga ou de um procedimento
inovador a partir da convocação na mídia pelo pesquisador principal ou promotor da
pesquisa e, da mesma forma, as ONGs não participaram da discussão.
Essa vacina Salk teve problemas com quem patrocinava e realmente ela não avançou.
O fato é que milhares de pessoas do Estado de São Paulo, cerca de duas mil e
quinhentas, se submeteram ao teste da nova droga, sem eficácia nenhuma. Um grande
blefe, coisa de um pesquisador irresponsável, vaidoso...Foi aí que atentamos para o fato
da questão da convocação, da arregimentação: - o que levava voluntário a querer
participar de uma pesquisa?
Em seguida, uma nova pesquisa da Fundação de Hemocentro de São Paulo chamava
pacientes para testar a imunoterapia passiva - que consistia na troca de sangue, tipo uma
hemodiálise, entre um soropositivo com estado imunolágico melhor e um soropositivo
com sistema imunolágico mais deficiente. E era uma Fundação de renome, um
pesquisador de renome, e novamente os soropositivos em massa, os amigos, parentes e
familiares, etc., foram de novo ludibriados por uma pesquisa. Era uma pesquisa com
poucos voluntários (doze pessoas), mas a hemoterapia passiva foi sepultada pela
medicina e pela ciência.
Logo em seguida, veio essa pesquisa da Merk com esquema de marketing muito
poderoso - matérias pagas diariamente em jornais de grande circulação em São Paulo -e
que prometia resultados com a substância Idinavir. Esta droga já era conhecida e foi
confinada sua potência, talvez uma das mais potentes, hoje, disponíveis para combater o
HIV.
E esta foi a entrada do Brasil nos grandes circuitos das pesquisa em HIV / AIDS. Os
pacientes teriam acesso a drogas inovadoras só conhecidas e testadas no Primeiro
Mundo.
Nós ajudamos a convocar os voluntários. Apesar dos requisitos super rígidos de
inclusão foi fácil para os laboratórios conseguir os 900 voluntários. E como nós
participamos desta convocação passamos a acompanhar muito de perto os pacientes e
todo o processo da pesquisa.
A investigação realmente passou por vários Comitês de Ética Médica, já que era uma
pesquisa multicêntrica, realizada em cinco instituições de São Paulo. Ela foi aprovada
pela Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde - na época não existia CONEP nem
CEPs - e foi aprovada por nós "informalmente", pois apesar de não termos sido
convocados para opinar, já tínhamos ajudado no
recrutamento dos voluntários.
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Porém, a velocidade dos avanços médico-científicos na AIDS fez com que o desenho
dessa pesquisa imediatamente ficasse muito defasado. Era uma pesquisa que no início
comparava o AZT - Monoterápico com o ldinavir monoterápico e o AZT com o
Idinavir. E logo essa pesquisa tornou-se defasada pois um grande estudo, o Projeto
Concorde, veio detonar a monoterapia com AZT, dizendo que a terapia dupla teria de
ser o mínimo indicado para começo de tratamento.
Começamos a discutir e, enquanto isso, veio sendo construída uma fundamentação
científica importante: qualquer terapia com anti-retroviral não seria recomendada em
detrimento da terapia dupla. Outro problema é que vários pacientes que estavam sendo
acompanhados por nós tiveram uma piora clínica significativa. Um dos procedimentos
do estudo - um exame de carga viral apontando o momento certo para se trocar a terapia
- era feito da seguinte maneira: o sangue era colhido, levado para a sede da
multinacional nos Estados Unidos e a informação não chegava aqui e os pacientes não
tinham acesso ao resultado do exame.
Com base nessas observações e informações - pacientes que tomavam monoterapia,
pacientes que não tinham acesso à informação e com piora clínica - começamos uma
verdadeira peregrinação para tentar interromper a pesquisa.
Foi quando nos deparamos com alguns obstáculos: as negociações com a Merk e com
os pesquisadores principais não evoluíam, não conseguimos um consenso para
interromper a pesquisa. Tentamos interlocução com os Comitês, de Ética de todos os
hospitais - todos eles eram subservientes aos pesquisadores principais (as respostas
chegavam a ser idênticas: eles protocolavam uma resposta com o texto dado pelo
pesquisador principal que era o mesmo texto deste Comitês de Ética).
Temos tudo isso documentado.
Protocolamos a denúncia no Conselho Nacional de Medicina, completamente
"engessado" numa legislação arcaica que acabou por arquivar essa denúncia contra a
Merk e contra cada um dos pesquisadores. Não tínhamos mais saída. Depois de mais
um ano de negociação, não podíamos denunciar essa pesquisa publicamente, de forma
leviana, pensando o que aconteceria aos 900 voluntários, no pânico, etc. , mesmo
porque a gente não tinha nada melhor a oferecer a esse grupo de pacientes que estava
tomando a terapia dupla.
A rede pública recebeu, então, uma terapia considerada melhor do que a oferecida pelo
laboratório Merk. E foi quando fizemos a denúncia, publicamente, fato que coincidiu
com o momento histórico da elaboração da Resolução CNS 196/96, que tinha acabado
de ser aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, criando a Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa. Protocolamos a denúncia junto à Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa e, uma semana depois do parecer ético da CONEP, a pesquisa foi
interrompida.
Essa pesquisa ainda é polêmica: os pesquisadores acham que estiveram com razão
durante o tempo em que ela aconteceu, mas hoje nenhum deles receita monoterapia para
seus pacientes. Com certeza, nenhum paciente hoje toma monoterapia. Eles alegam que
na época não tinham informação. Cá entre nós: houve má fé, eles sabiam sim, houve
falta de ética.
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A partir daí, descobrimos a importância da Resolução CNS 196/96 e dos CEPs e da
CONEP. Se na época tivéssemos esses fóruns de encaminhamento e a possibilidade de
discutir desde o início essa pesquisa, através da participação dos nossos representantes
nos CEPs locais, teríamos avançado muito mais e teríamos conseguido que menos
voluntários fossem prejudicados. Temos convicção de que muitos voluntários tiveram
piora clínica e morreram por causa dessa pesquisa, e que poderiam ter tido outro
tratamento, com mais benefícios. Mas avançamos: três desses centros de estudos têm
CEPs com gente nossa participando ativamente e, onde não há, temos solicitado para
ficar como pareceristas ad hoc. Continuamos lutando para que um caso como esse não
se repita.
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A vida no Comitê e seus paradoxos