Attico Chassot Neste artigo da seção História da Química, como parte mais ampla da história da ciência, procurase resgatar omissões na história usual do mundo ocidental. Busca-se remover filtros que impedem leituras menos reducionistas e até mais audaciosas, apresentando um pouco de uma história da ciência de povos andinos, em especial os incas. ciência não-ocidental, cultura no incaico, tecnologias pré-colombianas Recebido em 22/3/01, aceito em 12/4/01 34 É usual ao nos envolvermos com a história da ciência, e de uma maneira especial com a história da química, nos centrarmos quase exclusivamente no mundo ocidental e o fazermos sob ótica eurocêntrica e alimentada por olhares brancos, masculinos, cristãos... Pouco sabemos de diferentes áreas do Oriente. Mesmo nos dias atuais, o que conhecemos, por exemplo, da educação na China, apenas para ficar no país onde vive cerca de um quinto dos humanos? Em A ciência através dos tempos (Moderna, 1994), quando refiro a revolução galilaica e a copernicana, encimo o capítulo com um título no mínimo tendencioso: Século 16: nasce a ciência moderna, em uma leitura que desconhece o que se fez no mundo não europeu. Assim, fui reducionista e simplista. Eu, latino-americano, escrevo apenas um parágrafo, muito pouco elucidativo, ao referir as civilizações que existiram nas Américas antes da chegada dos ‘colonizadores’. Ao buscar escolher um outro marco zero para as leituras de uma história da ciência na América Latina, vale considerar: i) o desenvolvimento em épocas pré-colombianas do que chamamos de arquitetura, engenharia, agronomia, astronomia, hidrologia, matemática, medicina, com a existência de QUÍMICA NOVA NA ESCOLA atividades científicas relevantes. Isso de ser decisiva para encontrarmos um enseja possibilidades de outras duas outro ponto de partida para a nossa leituras: ii) a influência da relação da história e, assim, não apenas fazermos ciência e tecnologia no desenvolviuma leitura eurocêntrica da ciência. mento de altas culturas, e iii) a (re)vaEnsaio considerações na primeira lorização desses conhecimentos e técdas três dimensões com objetivo de nicas, não apenas para fazer um resgalevantar pistas para necessárias amte histórico, mas uma tentativa de pliações e conjugações com as duas (re)utilizar conhecimentos (quase) peroutras dimensões propostas. Mesmo didos. Por exemplo, o resgate da culreconhecendo a importância de cultutura dos homens e das mulheres de ras que existiram em outras partes da outras gerações é importante quando América, onde, por exemplo, datações da reativação de atividades relacionaregistraram a presença de civilizações das com a agricultura. no México 23.800 Ao buscar escolher um Assim, se aceitarmos anos AP (antes do outro marco zero para as que a ciência possa presente), vou buscar leituras de uma história da não ter uma conceprestringir meus cociência na América Latina, ção única – como o inmentários a povos anvale considerar: o culcado pelo ocidendinos. desenvolvimento em te, especialmente por Há inferências de épocas pré-colombianas do intermédio do positique por volta de que chamamos de vismo, que desenvol12.000 AP caçadoresarquitetura, engenharia, veu a idéia de que a coletores tenham poagronomia, astronomia, ciência é única –, é vávoado a região andina hidrologia, matemática, lido buscarmos um e já praticavam a agrimedicina, com a existência outro marco zero, difecultura em torno de de atividades científicas rente daquele definido 6.000 AP e, desde relevantes hegemonicamente 4.000 AP, existiam civipelo mundo europeu. lizações avançadas Limito-me à primeira das leituras annos Andes. A cordilheira, com sua tes referidas, mas insisto que esta seja diversidade de relevos, clima, solo, vefeita mediada pelas duas outras, até getação, recursos hídricos, flora e porque a terceira dimensão ganha oufauna, cuja exploração havia começatros significados. Essa dimensão podo nos remotos tempos pré-agrícolas, Outra história da ciência latino-americana N° 13, MAIO 2001 se constituiu no locus de desafios e organização de povos, que têm a culminância nos incas. Mesmo que tenham desconhecido o uso da roda e de animais de tração – e essas duas ausências foram decisivas no confronto com os brancos – e de um sistema formal de escrita (contestável adiante ao referir os quipus), os incas constituiriam uma civilização que alcançou um alto desenvolvimento cultural, que pode ser creditado às peculiaridades de sua organização social. O Império Inca se estendia – usando referências atuais – desde o Equador, todo o Peru, porções da Bolívia, até o norte do Chile e noroeste da Argentina. facilitação da irrigação e o aproveitamento em momentos precisos dos excedentes de água por percolação. As águas das geleiras eternas dos Agronomia Andes eram conduzidas em extensos A agricultura andina é fundamene sofisticados aquedutos e transformatada em milênios de observação e um vam regiões estéreis em vales férteis. extenso processo de domesticação de As ferramentas agrícolas incas plantas, que no século XVI chegou a eram muito simples, pois a não existênum desenvolvimento excepcional. A cia da roda e de animais de tração imsemeadura, a colheita e a armazenapossibilitava maior sogem davam lugar a fisticação tecnológica. Entre os incas, a saúde era práticas que introduPor outro lado, os proo resultado da harmonia ziam novas aprendicessos de armazenaentre o homem e Deus. A zagens e implemengem em silos, com sissaúde se conseguia tavam novas técnitemas de aeração e de mediante esforços, cas. Era freqüente conservação de alisacrifícios e a purificação que o nicho ecológimentos, implicavam Tentativas de evidenciar a existência dos pecados, obtida pela co, onde se desenvolem técnicas bem elaconfissão vocal dos mesmos de atividades científicas relevantes via essa agricultura, boradas, que incluíam apresentasse exigêndesidratação, maceArquitetura e engenharia cias que obrigavam a introdução de ração e congelamento. modificações no terreno e nos sisteNada surpreende tanto nas realizaCom o estabelecimento da colonimas de aproveitamento de águas. ções dos incas, ainda nos dias atuais, zação, rebanhos de milhões de lhaAssim eram criadas novas oportuniquanto a arte de criar espaços organimas, de alpacas, de vicunhas e de dades de desenvolvimento de conhezados, buscando soluções urbanas, guanacos (camelídeos andinos) foram cimentos. Também nos surpreende o principalmente através de edificações dizimados com o pretexto da vicunha cultivo de mais de 84 variedades de destinadas a abrigar diferentes tipos de ser um símbolo de veneração pagã. Os milho, com grãos de diferentes tamaatividades sociais, religiosas e econôincas não conheciam o gado bovino nhos e cores (verde, branco, amarelo micas, originando verdadeiras cidades. (os camelídeos se constituíam na fonte e roxo – deste fabricavam a chicha, um Entre as mais impressionantes reade carne e leite), nem o eqüino (a fermentado semelhante à cerveja, muilizações arquitetônicas estão amplos ausência de cavalos foi decisiva na perto consumido nos países andinos). Antemplos, palácios, fortalezas, pontes da de embates com os espanhóis, que tes da chegada dos conquistadores, suspensas (com mais de 100 metros os possuíam, apesar desses animais eram cultivadas variedades de algodão de extensão) e praças públicas. Tamterem problemas com altitudes). de diferentes cores (branco, bege, bém como obras de engenharia mereMedicina: a saúde e as doenças ocre, vermelho e violeta), que os espacem destaques aquelas ligadas à Entre os incas, a saúde era o resulnhóis, ao vê-las nos tecidos, julgavam agricultura (canais de irrigação e aquetado da harmonia entre o homem e serem tingidas. A quidutos). Nada surpreende tanto nas Deus. A saúde se conseguia mediannua, cereal de alto vaHá fortalezas forrealizações dos incas, ainda te esforços, sacrifícios e a purificação lor proteico e vitamímadas por muralhas nos dias atuais, quanto a dos pecados, obtida pela confissão vonico, riqueza agrícola de 300 metros de arte de criar espaços cal dos mesmos. A doença era consiinca, hoje volta a ser comprimento, consorganizados, buscando derada como um transtorno que afetacultivada na Bolívia. truídas com enormes soluções urbanas, va a unidade corpo-espírito ou o equilíEntre os diferentes blocos de pedras, principalmente através de brio com a natureza ou o grupo social. tipos de processos trabalhados em ânedificações destinadas a O saber médico incaico preocupaagrícolas, os cultivares gulos com tal preciabrigar diferentes tipos de va-se, fundamentalmente, com as cauem terraços ou andesão que se encaixam atividades sociais, religiosas sas sobrenaturais das enfermidades; nes são dos feitos uns aos outros, sem e econômicas mas as causas naturais, ou melhor, os mais notáveis da agrinecessidade de qualfatores que eram mais facilmente cultura andina, que tiquer tipo de massa reconhecíveis (traumatismos, influência nha como base o constante equilíbrio aglutinante ou cimento. Muitos têm do frio ou do calor, ação das fases da com a Pachamama1 (a Mãe Natureza). mais de 5 metros de altura (há um com Com a sua aplicação conseguiram lua, certas condições pessoais como 9 metros e 360 toneladas). Há comtransformar terrenos impróprios, por consumo excessivo de bebidas alcoóplexos arquitetônicos que podem ser seus desníveis e escarpas, em extenlicas, mau comportamento, ira retida) obra de cerca de 25 mil homens, dusões planas. Esse processo garantia ofereciam elementos para mostrar corante 3 ou 4 gerações. Quando se observa hoje construções que os espatambém a eliminação da erosão, a mo se geravam culpas e, em QUÍMICA NOVA NA ESCOLA nhóis assentaram sobre alicerces ou destroços incas, vê-se uma diferença significativa no acabamento. Outra história da ciência latino-americana N° 13, MAIO 2001 35 36 conseqüência, o desequilíbrio. Havia, na para medir os terrenos. Para aqueastronomia representava um dos estáassim, um grupo de doenças sobreles irregulares – e precisavam fazer isso gios mais avançados da atividade naturais ou da alma, que se associamuitas vezes, pois os terrenos eram intelectual. A observação de algumas vam às doenças do corpo. constantemente repartidos – necessiinformações nos ajudarão a nos dispirA principal ação do curandeiro era tavam medir ângulos e o faziam através mos um pouco de preconceitos em dar ao paciente o conhecimento de sua da medição por graus. Criaram um cosempre associar os calendários indígedoença, procurar mostrar-lhe as possínhecimento matemático para resolver nas à astrologia ou ao misticismo. Se veis causas e com isto afastar o medo problemas práticos, como o registro de compararmos calendários (o usado na que a ignorância da causa da doença censos populacionais, agrícolas e Europa quando da conquista e mesmo produzia. Os curandeiros eram em geral pastoris. Para tanto desenvolveram o atual), podemos verificar o quanto os anciãos doutos e distinguidos pelo processos engenhosos, que ainda pré-colombianos tinham calendários respeito da comunioferecem desafios de precisos. dade; eram também os Muito provavelmente nos interpretação: os quiMuito provavelmente nos estudos amautas ou os filósofos estudos dos fenômenos pus. dos fenômenos naturais, principalmennaturais, principalmente naquele meio social. Os quipus eram, te nos astronômicos, os incas alcannos astronômicos, os incas As cirurgias curaticertamente, sistemas çaram um grau tão elevado quanto os alcançaram um grau tão vas eram em número de registros numéricaldeus, um dos povos antigos mais elevado quanto os caldeus, muito significativo e cos. Assim, descartaadiantados. Não devemos nos surpreum dos povos antigos mais muito diversificadas. se a hipótese que fosender que os incas, como os demais adiantados Entre estas merecem sem apenas úteis enameríndios, fossem geocêntricos. Aliás destaque as cesariagenhos para se exetoda civilização ocidental, quando da nas e as trepanações cranianas. As pricutar cálculos, mesmo que se conheça descoberta da América era geocênmeiras eram empregadas para predescrições onde os mesmos eram trica. venir partos naturais nos quais se construídos de uma maneira semeMetalurgia, ourivesaria e artesania diagnosticara mau posicionamento felhante ao ábaco oriental. Os quipus, O uso de alguns metais na fabrital e, principalmente, para auxílio às mesmo que sejam instrumentos para cação de jóias e de objetos de culto índias grávidas com parto difícil. Há calcular – e até para isto talvez não e a combinação de diferentes metais notícias de cesáreas punitivas e antrofossem práticos, pois os nós eram fixos para a produção de ligas exigiam pofágicas em algumas regiões, até –, eram instrumentos de registros de conhecimentos de metalurgia, que porque fetos eram usados em algumas informações. são atestados pela produção de práticas sacrificais. De um único quipu se tirava informaobras encontradas em pesquisas Quanto às trepanações cranianas, ções sobre o número de machos e de arqueológicas. Também possuíam por serem práticas surpreendentes pefêmeas formadores de rebanhos e, um elevado conhecimento de técnilas exigências de conhecimentos (a ainda, quantos animais haviam nascido cas de mineração, pois tinham um medicina ocidental só as praticou e morrido em cada um dos meses de complexo sistema de aproveitamuito tardiamente), há ainda muitas um determinado ano. Um outro uso dos mento da prata das discussões. Sabe-se que eram largaquipus era nos serviminas de Potossi. Os quipus eram, mente praticadas e muitas delas estão ços de correios, nos Hoje se enconcertamente, sistemas de certificadas. Os motivos pelos quais quais chasques levatram em museus registros numéricos. Assim, realizavam estas audaciosas cirurgias vam mensagens, por obras que nos obridescarta-se a hipótese que são objeto de discussões, mas parece longas distâncias, gegam a fazer releitufossem apenas úteis que a maioria tinha finalidade curativa, ralmente relacionadas ras. Isso se verifica engenhos para se executar sem que se descarte a possibilidade com decisões goverquando nos encancálculos, mesmo que se de práticas rituais e, talvez muitas delas namentais. tamos particularmenconheça descrições onde os realizadas post-mortem, para aproveiEm Cusco, antes te com peças de ourimesmos eram construídos tamento do cérebro de algum morto da conquista espavesaria – recordando de uma maneira ilustre. Uma hipótese não descartada nhola, havia colégio que as jóias de ouro semelhante ao ábaco era o uso de trepanação para a cura destinado à aristocrae prata foram, em sua oriental da epilepsia2. Os instrumentos cirúrgicia cusquenha e aos maior parte, fundidas cos para serrar ossos na cabeça eram nobres das províncias, pelos conquistadores para aumentar de uma liga de ouro, prata e cobre, que onde os jovens, durante quatro anos, os tesouros de cortes européias. tinha a dureza do aço. Da mesma liga estudavam a língua quíchua, o uso dos Também as peças em cerâmica, eram as agulhas para costuras cirúrquipus e os fundamentos de seus cáldestinadas ao uso doméstico, indusgicas. Havia instrumentos de corte de culos e de seus cômputos, além da trial e comunitário e as usadas como obsidiana e de sílex. história e da mitologia incaica. instrumentos didáticos para transMatemática Astronomia e astrologia mitir preceitos de saúde e de higiene Os incas conheciam geometria plaComo as práticas matemáticas, a são admiráveis, especialmente se QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Outra história da ciência latino-americana N° 13, MAIO 2001 para entendermos ainda mais a história da ciência. Notas 1. O apreço que os nativos tinham e têm pela Pachamama – a Gaia da mitologia grega – evidencia o quanto já havia entre os ameríndios uma preocupação com a natureza, tendência que aparece no mundo ocidental só recentemente, traduzida pelos movimentos ecológicos. 2. Isto não deve nos surpreender, pois, em 1949, o Prêmio Nobel de Medicina foi concedido ao médico português Abreu Freire Egas Moniz, pelo desenvolvimento da lobotomia (incisão no cérebro) para o tratamento da esquizofrenia e da paranóia, hoje considerado um método bárbaro. Machu Pichu, localizada próximo a Cuzco, é um exemplo contundente da arquitetura e engenharia incaica. Conhecida como ‘cidade perdida’, por ter ficado desaparecida durante três séculos, foi descoberta por Hiram Bingham, em julho de 1911, e imediatamente explorada por uma expedição arqueológica da Universidade de Yale (EUA). Attico Chassot ([email protected]), licenciado em química e doutor em educação pela UFRGS, é docente do Centro de Ciências Humanas da UNISINOS. Para saber mais nos damos conta que, por não disporem da roda, não tinham torno para a moldagem. As obras em tapeçaria tinham finalidades decorativas nos palácios e nos templos e se constituíam também em suportes para relatos históricos. São obras que, presentes as limitações dos instrumentais citados, trazem ainda maiores admirações. Nessa mesma direção pode-se referir à vasta pro- dução de tecidos destinados ao vestuário, pois o clima frio exigia roupagem adequada. Epílogo A limitação na extensão do texto faz restrições. É recomendável que se busque, com a ampliação da dimensão aqui acenada, mediada pelas duas outras citadas, leituras diferentes das usuais. Isso pode ser um facilitador ASCHER, M. & ASCHER, R. Code of the quipu. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1981. CHASSOT, A. Alfabetização científica: questões e desafios para a educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2000. ESTRELLA, E. Las culturas precolombinas (Coleção Historia de la Ciencia y de la Tecnica). Madrid: Alkal, 1992. v. 10. LEMOINE, M. Bolívia: guerra aos camponeses da coca. Atenção, ano 1, n. 2, p. 44-48, dez 1995/jan 1996. Abstract: Another Starting Point for the History of Latin-American Science – In this paper of the section on the History of Chemistry, the rescue of omissions in the history of the western world are striven for, as part of a greater history of science. The removal of filters that impede less reductional and even more audacious readings are seeked for, presenting a little of the history of science of the andean peoples, specially the incas. Keywords: non-western science, culture in the incaic, pre-colombian technologies Errata O artigo “Contaminação por mercúrio e o caso da Amazônica”, de Jurandir Rodrigues de Souza e Antonio Carneiro Barbosa, publicado no número 12, p. 3-7, saiu com diversos erros na figura do Quadro 1 (p. 4). Apresentamos ao lado a figura corrigida. QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Outra história da ciência latino-americana N° 13, MAIO 2001 37