A DISCUSSÃO FILOSÓFICA DA MODERNIDADE E DA PÓS – MODERNIDADE Daniel Nery da Cruz Orientador: Prof. Dr. João Santos Cardoso Resumo:Este trabalho faz uma reflexão filosófica sobre a modernidade e pós-modernidade e os seus impactos sobre o sujeito. Em primeiro instante, será abordado como a idéia de modernidade e sujeito foram forjadas a partir de Descartes. Em seguida, discorre-se acerca do sujeito e a pósmodernidade na concepção de Lipovetsky e como o esvaziamento do sujeito na sociedade do prazer e bem-estar dissolve os valores deixados pela modernidade ocasionando um universo sem referenciais, sem sentido e sem objetivo. Palavras-chave: Pós-modernidade. Sujeito. Narcisismo. Lipovetsky. Abstract: This work is a philosophical reflection on modernity and postmodernity and their impacts on the subject. In the first moment, we shall discuss how the idea of modernity and subject were forged from Descartes. Then talks about the subject itself and postmodernity in designing and Lipovetsky as emptying into the subject in society of pleasure and well-being dissolves the values left by modernity causing a universe without references, without meaning or purpose. Key words: Post-modernity. Subject. Narcissism. Lipovetsky. A Modernidade e a Descoberta do Sujeito difícil definir a modernidade, pois se trata de um Éperíodo histórico que é ao mesmo tempo passado e presente. No geral, ela é um processo de transformações do pensamento ocidental iniciado no século XVI onde há uma ruptura com a tradição medieval. Michel Focault (1984) no seu Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 34 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da texto o que é o iluminismo diz que o tempo moderno é “tudo isso, a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação para o filósofo dessa atualidade da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade.” Duas noções são importantes para entender o moderno: a idéia de progresso, que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avançado do que o antigo; e a valorização do individuo, ou da subjetividade como lugar da certeza e da verdade, e origem dos valores, em oposição à tradição isto é, ao saber adquirido, às instituições, à autoridade externa. (MARCONDES, 2004, p. 140). Com a inauguração dos tempos modernos, o homem se torna o centro, a medida do conhecimento em que tudo está estritamente ligada à razão. Daí a importância da compreensão da modernidade para, então, se compreender como foi descoberta a idéia de sujeito, de agente dominador. As grandes navegações dão uma nova visão de mundo no contato de novas culturas, o Renascimento e a Reforma Protestante trazem mudanças cruciais principalmente no âmbito religioso e político. É indispensável considerar o Renascimento como o momento chave nas profundas transformações do Ocidente, em que a visão de mundo do homem é marcada “por uma verdadeira paixão pelas descobertas”. “Eruditos redescobrem as antigas doutrinas filosóficas e cientificas, forjadas pelos gregos, e em nome das quais torna-se possível constituir uma sabedoria nova, oposta às concepções que prevaleceram na Idade Média” (AMÉRICO, 2004. p. 07). A modernidade é a época em que a alma se retira do mundo das coisas e recolhe-se no mundo dos homens, bem como a época em que os homens se acreditam suficientemente fortes e poderosos, qual um novo, qual um novo Prometeu, se não para elevaremse contra a divindade e se imporem aos deuses, ao Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 35 CRUZ, Daniel Nery da menos para prescindirem de sua proteção e dispensarem seus serviços. (DOMINGUES, 1991, p.32) Com todas essas novidades, o mundo parecia está desordenado, fragmentado e sem referência ou centro, era preciso achar alguma orientação ou método para centralizar o mundo. É aqui que a razão entra como aquela que vai restituir a unidade perdida, pois ela está para além das culturas e é universal. A razão é de fato, o elemento comum a todos os seres humanos e, por isso, assume a condição de fundamento a partir do qual o mundo deve ser organizado. É ela quem deve, a partir de agora, dar unidade e sentido a todas as esferas que compõem a existência humana. Tudo quanto pretenda ter legitimidade para existir necessita, pois, de submeterse ao crivo da Razão. (HANSEN, 1999, p. 37). Ela, a razão, desmonta antigas crenças e reconstrói o novo edifício do saber como destaca Cassier: A razão desliga o espírito de todos os fatos simples, de todos, de todos os dados simples, de todos as crenças baseadas no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; só descansa depois que desmontou peça por peça (...) Mas, após esse trabalho, impõe de novo uma tarefa construtiva (...); deverá construir um novo edifício, uma verdadeira totalidade (CASSIER, 1992, p.32-3) Não é mais a vontade da divindade e entidades que garantem ou definem o sentido do agir humano, é o próprio sujeito quem dá significado à sua existência. O próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida. O Movimento Iluminista, grande propagador do projeto moderno, depositou uma confiança cega e ilimitada na razão a ponto de o século XVII ser denominado o “Século das Luzes”. A razão teria chegado a um tal estágio de Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 36 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da desenvolvimento que ela seria capaz de dissipar as trevas da ignorância que obscurecem o espírito humano (MONDIN, 1980). Kant, ao tentar dar uma resposta ao o que é o esclarecimento (Was is Aufklärung?) define Aufklärung como uma saída do homem para a sua maioridade. Afirma Kant sobre o esclarecimento, “é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (KANT, 1974, p.100), e continua: “fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (KANT, 1974, p.100). Segundo Touraine (1994), o que distingue a filosofia do iluminismo da que a precede é a sua intenção de estender a todos os homens o que havia sido propriedade de apenas alguns, a saber, uma existência conduzida em conformidade com a razão. Uma autonomia que leva o indivíduo à busca do saber: “Sapere Aude” (KANT, 1988, p. 100), pois é do conhecimento livre e correto que o ser humano alcançará o progresso, a tranqüilidade e a felicidade. Como afirma Lyon (1998, p. 14), “[...] a ênfase ao movimento progressivo da história foi facilmente combinada com a convicção de que as coisas, de uma maneira geral, estavam melhorando, especialmente sob o impacto do pensamento iluminista emergente.” A ideologia moderna alicerça toda forma de conhecimento num modelo natural sem relação a crenças religiosas, o que deve valer é o que se pode medir “e o individuo só está submetido às leis naturais” (TOURAINE, 1994, p. 20). O pensamento científico deve ser totalmente transparente e a sociedade deve refletir essa transparência sendo organizada pela razão que, “nesse sentido, nada mais é do que cálculo, isto é, adição e subtração [...]” (HOBBES, 2002. p. 39). Já não mais indaga por aquilo que é a realidade, mas por suas possibilidades. Se na antiguidade e na Idade Média, o homem considerava verdadeiro o pensar de acordo com o que existe na realidade, nos tempos modernos inverte sua postura dizendo que aquilo que pode pensar, poderá realizar. O homem passa a interessar-se não tanto por aquilo que já é, mas por Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 37 CRUZ, Daniel Nery da aquilo que ainda poderá ser. (URBANNO ZILLES, 1993, p. 10). A Modernidade foi construindo assim um personagem independente, livre das pressões tradicionais. Fazer a pergunta o que é o sujeito ou o que se entende por sujeito deve levar o investigador a buscar respostas nas duas “figuras da modernidade: a racionalização e a subjetivação” (TOURAINE, 1994, p. 218). A absolutização da razão com a promessa de uma vida de progresso, equilibrada e segura para o ser humano, fez o sujeito se identificar e confiar plenamente na ciência que até hoje existe um certo traço dessa influência iluminista. Porém, a história mostrou principalmente no século XX, o mau uso da razão pelo homem, não legitimando a promessa iluminista. “A sociologia, por exemplo, que prometia conseguir o equilíbrio nas relações sociais, presenciou contraditoriamente o caos contemporâneo produzido pelo perverso e desumano uso da razão” (CHAUÍ, 2003, p.). Habermas em o discurso filosófico sobre a modernidade, faz uma reflexão de uma razão que não busque conhecimento somente da relação sujeito objeto ou que ela não seja fechada em si mesma. Ele busca uma filosofia que seja pautada na comunicabilidade dos sujeitos frente aos novos paradigmas da modernidade. Essa razão moderna está centrada na sua auto-afirmação e na autoafirmação da subjetividade é ai que Habermas alerta sobre o perigo do purismo da razão: “Só a razão reduzida à capacidade subjetiva de entendimento e de atividade teleológica corresponde à imagem de uma razão exclusiva que, quanto mais aspira triunfalmente às alturas se desenraiza até finalmente cair, vítima da força da sua oculta origem heterogênea.” (HABERMAS, 1990, p.284). Quais as conseqüências de uma razão que subjuga tudo em volta de si? Esse sujeito, guiado por um modelo de absolutização do racional presenciou inúmeras ações destruidoras: Confecção de bombas atômicas, massacres totalitários, as guerras mundiais dentre outros atos Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 38 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da destruidores, tudo isso levou o sujeito a perder confiança na razão, entrando de forma descontrolada no universo das emoções. Os ideais iluministas pareciam não garantir o que prometeu. Antes disso Nietzsche já fazia a crítica à modernidade, o pensamento tradicional desde Aristóteles era totalizante e coerente com a realidade, a verdade era procurada em um sistema lógico e formal. Com Nietzsche há uma desconstrução do modo de pensar tradicional. Desfazendo a idéia de um pensamento sistemático, ele fundamenta sua linguagem filosófica na vontade de poder e a própria verdade é colocada em questão. Agora a verdade não está mais pautada na razão, (que se engana) mas na vontade. A descoberta do sujeito em René Descartes O poeta inglês John Donne exprimiu em 1611 sua preocupação e a inquietude provocadas pelo desaparecimento da antiga ordem das coisas: A nova filosofia Poe tudo em dúvida, o elemento do fogo está extinto, o sol está perdido, e também a terra, e nenhum espírito humano tem com o que se orientar para a procura. E os homens confessam livremente que este mundo está em ruínas, quando entre os planetas e firmamento eles procuram tantos mundos novos; Eles vêem então que tudo está de novo pulverizado em átomos, tudo está em pedaços, toda a coerência perdida (...).” (DONNE, 1949, p. 202) Essa mesma angústia foi sentida por René Descartes. Sua tomada de decisão em meio a uma época de inovações e incertezas deu uma nova perspectiva no campo epistemológico. Abandonando uma visão cosmológica do homem centralizada na autoridade e na religião, ele propõe um olhar centrado na certeza do conhecimento a partir do próprio individuo. Esse fundamento antropológico deu origem ao chamado racionalismo. Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 39 CRUZ, Daniel Nery da O filósofo diferenciou seus escritos dos outros medievais que usavam um modo impessoal de se comunicar, escrevendo na maioria das vezes na primeira pessoa, relatando suas meditações filosóficas. Procurando encontrar um método seguro e indubitável para as novas ciências, “em uma época em que haviam afirmado e se desenvolviam com vigor novas perspectivas científicas e novos horizontes filosóficos” (REALE, 2004, p. 287), Descartes desenvolve uma metodologia fundamentada no conhecimento a partir de “[...] regras que se fundamentam na certeza adquirida de que o “nosso eu” ou a consciência de si como realidade presente se apresenta com as características da clareza e da distinção.” (REALE, 2004, p. 293). Formei um método pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar (DESCARTES, 2004, p. 36). Esse método é pautado na chamada “Dúvida Metódica”. Ele começa duvidando de tudo, a reviravolta causada pelo cogito está na desconfiança dos sentidos que podem enganar. Duvidando até mesmo de sua própria existência, Descartes conclui: A noção que possuo do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa, em comprimento, largura e profundidade e que não participa de nada que faz parte do corpo, é incomparavelmente mais clara do que a idéia de qualquer outra coisa corporal. (DESCARTES, 2004, p. 291) Desconfiado de todos os sentidos e das opiniões que enganam o gênero humano e não garantem uma certeza sobre as coisas existentes, Descartes encontra segurança no próprio indivíduo que com a capacidade de se autoconhecer define-se claramente como um ser pensante, traduzido nas Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 40 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da clássicas palavras: “cogito ergo sum” (“penso, logo existo”). Descartes parte do pressuposto de que o sujeito, antes de procurar conhecer o objeto, precisa voltar-se para si mesmo, e a partir daí o conhecimento é comprovado. Como no cálculo matemático, Descartes através de dispositivos estritamente racionais declara o que está imerso no seu “se duvido penso” a convicção de existir e esse existo do eu é dependente do pensamento e, por ser o pensamento colocado como fundamento do existir, naturalmente há uma separação entre a subjetividade e a objetividade. Esta última agora é dominada pela primeira, ou seja, a substância pensante (res cogitans) mantém o domínio sobre a res extensa (matéria). A razão é o instrumento por excelência da conquista do sujeito que com o novo método garantirá a não desarticulação das novas formas do saber. Com as ideias de Descartes, o sujeito aparentemente “livre”, “obedece a si mesmo e não a forças exteriores.” (REALE, 2004, p. 305). O primado da razão é definido no “res cogitans”, no eu interior onde deve haver uma perfeita harmonia entre a realidade subjetiva e objetiva. Assim, fica claro por que o racionalismo cartesiano é considerado o marco da modernidade, pois ele produziu um pensamento tão ousado para a ciência e para a formação do sujeito moderno que perpassou a partir de sua época até os dias atuais, provocando mudanças em todos os campos da sociedade. Pós-Modernidade e sujeito O termo "pós-modernismo" teve sua origem na Espanha na década de 1930. Perry Anderson em "As Origens da PósModernidade" (1999), aponta ter sido, Frederico de Onís, o primeiro a usar o termo pela primeira vez. Mas foi o filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação "A Condição Pós-Moderna" (1979), que expandiu do uso do conceito. Logo no inicio do primeiro capitulo dessa obra Lyotard usa o termo Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 41 CRUZ, Daniel Nery da idade pós-moderna se referindo ao objeto de estudo em questão: “Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pós-moderna.” (LYOTARD, 1979, p. 03). Em Lipovetsky o conceito é encarado como continuação do processo moderno e elevação exagerada de seus ideais, daí ele preferir usar o termo hiper-modernidade para se referir a esse processo. O termo “hiper” faz menção a uma exacerbação dos valores da modernidade, é a cultura do excesso determinada e marcada pelo efêmero em que o sujeito em ritmo acelerado busca a satisfação dos seus desejos. A sociedade contemporânea é a mais alta fase da modernidade. É uma sociedade do excesso e do vazio que dão autonomia e produz novas formas de liberdade causando “novos problemas, novas angústias e novas expectativas”. (MACHADO, 2005, p. 11). Em “A Era do Vazio” o filósofo chama a atenção para a fragmentação da sociedade e seus costumes, o consumo, o hedonismo, o individualismo e a urgência de um novo paradigma social. Com o enfraquecimento de todos os setores da sociedade e, principalmente, do indivíduo contemporâneo emerge um modo “inédito” de vivência, “numa ruptura com o que foi instituído a partir dos séculos XVII e XVIII”. (LIPOVETSKY, 2005, p. 15). Zigmund Bauman, outro filósofo contemporâneo, não utiliza o termo pós-modernidade, mas “Modernidade Líquida”. Em que os preceitos duros, sólidos e sedimentados da modernidade derreteram-se (BAUMAN, 2001). Ele também concorda com Lipovetsky quando afirma que “a sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura” (BAUMAN, 2007, p. 111). Para Lyon (1998), a pós - modernidade existe como uma idéia ou forma de critica na mente dos intelectuais e nos meios de comunicação. Embora muitos autores usem variados conceitos para discorrer sobre o fenômeno, um fio une todos eles, a mudança: “o conceito de pós-modernidade faz parte do pensamento social porque nos alerta para Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 42 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da algumas mudanças sociais e culturais importantes que estão acontecendo neste final de século XX” (LYON, 1998, p. 09). Essa época, principalmente o século XX, é um ambiente de muitos contrastes, onde acontecimentos desastrosos dão a idéia de uma deserção social nunca ocorrida na História: [...] o desenraizamento sistemático das populações rurais, depois urbanas, langores românticos, o spleen dandy, Oradour, os genocídios e etnocídios, Hiroshima devastada em dez quilômetros quadrados, com 75 mil mortos e 62 mil construções destruídas,os milhões de toneladas de bombas jogadas sobre o Vietnã e a guerra ecológica com produtos herbicidas, a escalada do estoque mundial de armas nucleares, Phnom Penh espoliada pelos Khmers vermelhos, as figuras do niilismo europeu,os personagens mortos vivos de Beckett, a angústia e a desolação interior Antonioni, Messidor de A. Tanner, o acidente de Harrisburg... com certeza a lista se alongaria desmesuradamente se quiséssemos inventar todos os nomes do deserto. (LIPOVETSKY 2005 p. 17) É interessante notar que para Lipovetsky, diferentemente de outros críticos, esse deserto, depois dessa hecatombe, se alastra no interior do homem, sem catástrofes, sem tragédias ou vertigem e acaba por se identificar com o nada e com a morte. Não é verdade que o deserto induz a contemplação de crepúsculos mórbidos. [...] O deserto se alastra e nele lemos a ameaça absoluta, o poder do negativo, o símbolo do trabalho mortífero dos tempos modernos até seu termo apocalíptico. (LIPOVETSKY, 2005. p.18). Numa incessante busca do seu bem-estar e uma supervalorização do EU, o individuo moderno torna-se frágil e vulnerável á medida que se fecha para o outro e imerge dentro de si. Esse individualismo estimulado pelo consumismo foi esvaziando o sujeito a tal ponto que ele já não tem mais Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 43 CRUZ, Daniel Nery da forças para lutar pelos ideais comunitários e transfere a responsabilidade política para os partidos por não ter tempo disponível para a “res publica” estando envolvido nos seus próprios negócios, em seu mundo, cuidando dos seus interesses. Todas as instituições, organizações e todos os valores estão sendo esvaziados de sua substância. O saber, o poder, o trabalho, o exército, a família, a Igreja, já não estão em funcionamento como princípios absolutos e intangíveis. Há uma descrença geral em todos eles. Entretanto, o sistema funciona e as instituições se desenvolvem multiplicando-se assustadoramente, a diferença é que agora num ritmo livre e leve, no vazio e sem sentido. É preciso saber viver ou sobreviver nos “espaços desativados”. Uma onda de apatia invadiu a sociedade que acompanhou a morte das ideologias e “a morte de Deus” prevista por Nietzsche. Deus está morto. Nós o matamos. Deus permanece morto. E fomos nós que o matamos. Como nos consolar, nós, os assassinos dos assassinos? Aquilo que o mundo possuía até agora de mais sagrado e de mais poderoso perdeu seu sangue sob nossos punhais. Quem limpará esse sangue de nossas mãos? Que água instral poderá jamais nos purificar? (NIETZSCHE, 2002) Nietzsche nos carrega de culpa diante da depreciação mórbida dos valores e anuncia o niilismo europeu. Porém, Lipovetsky vê um deserto pós-moderno todo feito de indiferença e em que cada vez mais se afasta do niilismo. “Deus morreu, as grandes aspirações se extinguiram, mas ninguém está dando a mínima importância para isso” (LIPOVETSKY, 2005, p.18). Essa é a boa noticia, eis o limite do diagnóstico de Nietzsche em relação à tristeza européia. Não estando sob pressão, livre das correntes tradicionais e guiado pela lógica hedonista, a pós-modernidade forjou um indivíduo “narcisista” voltado para si mesmo em busca de Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 44 | P a g e CRUZ, Daniel Nery da satisfação e realização pessoal. Na verdade, o que caracteriza uma sociedade narcisista é a vivência do presente e não mais atrelada ao passado e ao futuro. O sentido histórico já não faz mais sentido, as pessoas não se prendem mais às instituições e desacreditam em seus valores. É instaurado por assim dizer um narcisismo coletivo. “A cultura narcisista é a celebração da aparência física, o triunfo do espelho e o culto da própria imagem” (PEREIRA 2006, p. 03). Narciso segue um caminho incerto, mas consegue caminhar, atravessando sozinho o deserto, levando a si mesmo sem qualquer apoio transcendental, o homem de hoje é definido pela vulnerabilidade. O que Lipovetsky quer demonstrar a respeito do individuo é que a deserção da “res pública” foi limpando o terreno para a ascensão do sujeito puro, em busca de si mesmo. Obcecado por ele mesmo pode desmoronar a qualquer momento por não se apoiar em nenhuma força exterior. “O homem descontraído está desarmado” (LIPOVETSKY, 2005, p.29). Agora, os problemas da vida pessoal ganham proporções desmensuradas, a grade psicológica e psicanalítica tenta apresentar soluções para acabar com um devastador solipsismo. A solidão não é apenas uma excepcional idade de alguns “românticos” ela tomou proporções populares. “Na verdade o narcisismo foi gerado pela deserção generalizada dos valores e finalidades sociais [...]” (LIPOVETSKY, 2005, p. 34). Com o enfraquecimento do interesse pela esfera política nasce o narcisismo, marcado pelo fim do “homo politicus” e o surgimento do homo “psicologicus”, ansioso por identidade e bem-estar. Um marasmo sem precedentes invade o interior do sujeito pós-moderno, enfraquecido na vontade, ele já não tem forças para a mobilização de massa. É o homem “cool” (vontade enfraquecida), ele não é, segundo Lipovetsky, nem o decadente pessimista de Nietzsche, nem o trabalhador oprimido de Marx: Revista Eletrônica Print by http://www.ufsj.edu.br/revistalable Μετάνοια, São João del-Rei/MG, n.13, 2011 P a g e | 45 CRUZ, Daniel Nery da O homem cool não é nem o decadente pessimista de Nietzsche, nem o trabalhador oprimido de Marx, ele se parece mais com o telespectador tentando “assistir” uns após outros aos programas noturnos ou com o consumidor enchendo o seu carrinho ou, ainda, com a pessoa em férias que hesita entre uns dias nas praias espanholas ou num acampamento na Córsega. A alienação analisada por Marx,resultante da mecanização do trabalho, deu lugar a uma apatia induzida pelo campo vertiginoso das possibilidades e o self–service generalizado. (LIPOVETSKY, 2005, p. 24) O que deve ser percebido na visão lipovetskyana sobre a pós–modernidade e o sujeito é uma abordagem critica em que essa época não é vista de modo tão pessimista, porém é oferecido um panorama sobre as realidades maléficas infiltradas no interior da “era do vazio” em que surge uma vasta gama de problemas relacionados principalmente à pessoalidade humana. Referências ANDERSON, Perry. Modernidad y revolucion. In: El debate modernidad e posmodernidad. Org. Nicolas Casullo. Buenos Aires, Argentina: El cielo por asalto, 1993. AMÉRICO, José Motta Pessanha. Vida e Obra. In: DESCARTES, René. Descartes – Vida e Obra. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004, pg. VII-XX. BAUMAN, Zigmunt _____. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CHAUÍ, Marilena. Filosofia Ensino Médio: Volume Único São Paulo, Ática, 2003. CASSIER, Ernest. “ A filosofia do iluminismo”. Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1992. DOMINGUES, Ivan. 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