Trocando em miúdos a teoria e a prática em ação na sala de aula Maria Irma Hadler Coudry Professora Livre-Docente do Departamento de Lingüística do IEL/Unicamp. Co-responsável pelo Laboratório de Neurolingüística (LABONE) e pelo Centro de Convivência de Afásicos (CCA) e responsável pelo Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho) - IEL/Unicamp Fernanda Maria Pereira Freire Pesquisadora do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED/Unicamp) e Doutora em Lingüística (IEL/Unicamp) Linguagem e letramento e m fo c o Cérebro e linguagem © Cefiel/IEL/Unicamp É proibida a reprodução desta obra sem a prévia autorização dos detentores dos direitos. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Presidente: LUIS INÁCIO LULA DA SILVA Ministro da Educação: FERNANDO HADDAD Secretário de Educação Básica: FRANCISCO DAS CHAGAS FERNANDES Diretora do Departamento de Políticas da Educação Infantil e Ensino Fundamental: JEANETE BEAUCHAMP Coordenadora Geral de Política de Formação: ROBERTA DE OLIVEIRA Cefiel - Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)* Reitor da Unicamp: Prof. Dr. José Tadeu Jorge Diretor do IEL: Antonio Alcir Bernárdez Pécora Coordenação do Cefiel: Marilda do Couto Cavalcanti Coordenação da coleção: Marilda do Couto Cavalcanti Coordenação editorial da coleção: REVER - Produção Editorial Projeto gráfico, edição de arte e diagramação: A+ comunicação Revisão: REVER - Produção Editorial; Sandra Barbosa de Oliveira * O Cefiel integra a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica. A Rede é formada pelo MEC, Sistemas de Ensino e Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação Básica. Impresso em abril de 2008. ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ Sumário Introdução / 5 Um dia sem números na vida de PH / 8 Dado 1: PH e os números / 10 Como vivem PH, TS e outros brasileiros / 13 Dado 2: PH e os brasileiros / 14 Dado 3: TS e os brasileiros / 19 O julgamento do Lobo Mau: culpado ou inocente? / 22 Dado 4: As leis / 24 Dado 5: A cadeia alimentar / 26 Dado 6: A natureza animal / 27 Quando a escrita ganha, de fato, sentido /30 Dado 7: ChácaPe / 31 Dado 8: Genetriz / 33 Dado 9: Xué / 35 Mas, afinal, o que está em jogo na sala de aula?/ 37 Dado 10: O froguês / 39 ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ Introdução E ste fascículo visa trocar em miúdos conceitos relacionados ao funcionamento do cérebro e da linguagem quando entram “em ação” em situações de sala de aula e em situações do dia-a-dia. Para tanto, apresentamos atividades propostas por professores, cujas soluções – encontradas pela criança – mostram a indissociabilidade entre a vida e a escola. Essa forte vinculação ocorre mesmo quando a escola padrão tenta negar a presença da vida na escola. Se o aluno vence, como é o caso de PH1 e de tantas outras crianças, é porque estabelece essa relação; quando a escola vence é porque conseguiu excluir, rotular, tratar a criança para, em seguida, “reincluí-la” mediante programas especiais para supostas patologias. As atividades apresentadas são exemplares por dois motivos: P 1 mostram as soluções criativas propostas por alunos tendo analisado o que a tarefa pressupõe em termos de funcionamento de linguagem, de cérebro e de sujeito; PH é um dos sujeitos apresentados no fascículo teórico O trabalho do cérebro e da linguagem: a vida e a sala de aula, de nossa autoria.. . 5. servem como material para os professores pensarem atividades destinadas a seus próprios alunos. Esse tipo de análise não se faz, no entanto, sem que se tenha um conjunto de pressupostos teóricos e metodológicos que orienta nosso olhar. Tais pressupostos foram apresentados no fascículo teórico intitulado O trabalho do cérebro e da linguagem: a vida e a sala de aula, de nossa autoria, que, neste texto, será simplesmente chamado de “o fascículo”. Assim, para evitar repetir o que já foi apresentado, indicamos aqui ao leitor os principais conceitos teóricos a que nos referimos nas análises. É recomendável, portanto, manter à mão o referido fascículo. Sugerimos, ao longo das análises, algumas tarefas a serem feitas pelo leitor ou indicamos alguns pontos que merecem um exame mais cuidadoso. Esperamos, dessa maneira, contribuir para o estabelecimento de relações entre o que é da ordem da teoria e o que é da ordem da prática. As atividades/soluções propostas têm por objetivo elucidar, esclarecer, “dar vida” à teoria que adotamos e, ao mesmo tempo, provocar reflexão sobre a prática em sala de aula. Mais do que criticar um certo tipo de prática escolar, queremos mostrar que atividades – já consagradas pela escola ou bastante simples de serem realizadas em sala de aula – podem ser bem aproveitadas pelos alunos. O importante é compreender por que tais atividades promovem a aprendizagem e incitam o bom funcionamento do cérebro e da linguagem. Não é nosso objetivo propor uma série de atividades que pode ser diretamente reduplicada em sala de aula, como uma espécie de receituário. Ao contrário. Nosso objetivo é fazer com que o leitor reflita sobre as atividades para que ele mesmo possa criar as suas em consonância com as condições de trabalho que tem: tipo de escola, objetivo educacional, perfil sociolingüístico dos alunos, materiais disponíveis. P . 6. Criar uma atividade implica, também, saber como avaliar o desempenho dos alunos e saber como intervir em suas resoluções de modo a promover o aprendizado. É isso que está em jogo neste fascículo. Começamos por um relato de autoria de PH, quando estava na 2ª série do ensino fundamental. . 7. ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ UM DIA SEM NÚMEROS NA VIDA DE PH UM DIA SEM NUMEROS NA VIDA DE PH V eja-se a resposta construída por PH a partir do desafio proposto por sua professora de matemática – relatar a experiência de viver um dia sem números –, uma forma criativa de ensinar um conceito abstrato e de correlacioná-lo com a vida da criança, imersa em uma cultura que se utiliza fartamente de números Reveja, no fascículo para várias coisas. Trata-se de uma atividade apateórico (página 17), o rentemente simples, que, no entanto, desperta no conceito de prática discursiva e analise o que desta aluno um fator crucial para aprender: a curiosidaatividade justifica conside. Veja Dado 1, na página 10. derá-la como tal. O que uma atividade como a da página seguinte supõe? Que a criança sabe muitas coisas sobre números; coisas que aprende sem se dar conta de que aprendeu; que aprende com o uso e que pode aprender a refletir Reveja, no fascículo sobre o que já sabe. Isso fortalece certos conheteórico (páginas 16 e cimentos e mobiliza outros que podem se relaciseguintes), o que dizem onar ao que já sabe, abrindo outras frentes de Papert e Luria sobre fazer e refletir. saber. PH passou o dia em estado de alerta, atento a tudo o que fazia, em busca da correspondência com a atividade proposta. . 8. O dia, hoje, foi assim: Fui no elevador não pude apertar o número do apartamento então pidi ao porteiro que apertasse. . Quando desci ao apartamento de minha vó desci de escada para evitar que eu usasse os número . Quando fui ver TV não usei o controle remoto usei o outro botão que fica na tela da TV . Em uma folha que eu estava escrevendo tinha calendário então dobrei a parte do calendário Achei difícil o dia sem os números usamos números porque tudo nós , mas foi foi boa a esperenscia experiência . 9. Dado 1: PH e os números (7a6m; 2ª série) Reveja, no fascículo teórico, o boxe de texto da página 29, “Sobre atenção”, e analise o funcionamento do cérebro aí envolvido. Além disso, a atividade correlaciona o aprendizado formal da escola com o aprendizado que ocorre na vida, o que dá sentido ao que se aprende na escola e ao que se vive em sociedade. Trata-se de uma atividade que, ao correlacionar a escola com a vida, correlaciona também o funcionamento do cérebro com o funcionamento da linguagem. Quando PH relata o seu dia sem números por meio da linguagem ele “dá forma a essa experiência”. Ao mesmo tempo em que trabalha com e sobre a linguagem – ao escrever o texto –, trabalha com outros conhecimentos que ganham sentido no fazer da atividade: pensa sobre os números e os relaciona a outros conteúdos (modo de organização vertical do prédio e sua correspondência com o movimento do elevador pelos andares; Reveja, no fascículo seleciona os canais da TV por um caminho que teórico, o tópico “O não envolve números; evita a marca do tempo na cérebro em ação: trabalho e folha datada em que escreveu o texto); atividade reflexiva” (páginas P 26 e seguintes) para analisar que estruturas do cérebro foram convocadas: (1) no planejamento da atividade pela professora; (2) na execução da atividade por PH. P P organiza as atividades do seu dia em função da ordem em que ocorrem; cria soluções para não usar números nas situações que enfrenta (na chegada da escola, recorre ao porteiro para chegar em casa). Por fim PH conclui que seria difícil um mundo sem números, o que mostra que a professora acertou na escolha da atividade e atingiu os objetivos que a motivaram a selecioná-la. Acertou ao articular o que o senso comum e a escola padrão estabelecem como universos separados (Língua Portuguesa e Matemática); acertou ao conduzir o aprendizado de forma a rela- . 10 . cionar saberes do vivido com saberes historicamente sistematizados. Para continuar acertando, o que seria imprescindível fazer? Mexer nos textos dos alunos para a própria escrita ser o foco do aprendizado, mesmo não sendo professor de português. Nesta atividade a professora dá sentido à escrita e, por Quanto à reescrita do isso mesmo, não pode deixar passar a oportunitexto, reveja, no fascídade de refinar essa produção. culo teórico, os tópicos Que outros desdobramentos que correlacionam cérebro e linguagem são possíveis para essa atividade? P P P P “Intervenção corretiva” e “Intervenção criativa” (páginas 51 e seguintes) para: (1) reescrever o texto de PH supondo que você é ele; (2) intervir no texto que você escreveu como se você fosse seu professor. a circulação dos textos entre os alunos, que promove a leitura de diferentes textos, o conhecimento interpessoal, a partilha de situações vividas e de estratégias usadas para evitar o uso de números; a síntese dos contextos em que o número aparece, que pode ser realizada oralmente pelos alunos e anotada pela professora na lousa, que requer o arranjo dos itens em forma de lista, e ajuda na reflexão final que a atividade propõe; a análise do que é comum e não-comum entre as situações vividas pelos alunos, que conduz a um raciocínio comparativo e dá a conhecer semelhanças e diferenças entre os envolvidos na tarefa; a síntese das estratégias fabricadas pelos alunos para evitar o uso de números, que mostra um raciocínio complexo em ação que precisa ser contextualizado em função da situação vivida. Esses desdobramentos, por sua vez, promovem: P a recuperação do que foi feito e sua relação com o aprendido; . 11 . P P a reflexão individual e coletiva sobre a tarefa; a possibilidade de reutilização dos conhecimentos e estratégias empregados em novas situações. . 12 . ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ COMO VIVEM PH, TS E OUTROS BRASILEIROS V eja-se como a professora de história e geografia da 3ª série de PH encaminhou a seus alunos a realização da síntese do conhecimento aprendido no bimestre: “Faça um enquadramento e nele finalize o semestre, desenhando ou colando sobre o conteúdo visto neste último bimestre”. O que a professora supõe para pedir o que pediu? Supõe que a tarefa será realizada a contento se o aluno tiver compreendido e relacionado o conteúdo tratado em sala de aula: o que é ser brasileiro; as origens do povo brasileiro; a população do Brasil; onde os brasileiros vivem; as condições de vida dos brasileiros. Supõe que a tarefa será realizada a contento se o aluno conseguir selecionar um aspecto central da rede de conteúdos – incluindo-se aí como parte integrante da própria atividade –, expressando-o por meio de recursos não-verbais. Reveja, no fascículo É assim que PH realiza o desenho a seguir teórico, o boxe de (Dado 2), possivelmente ultrapassando as texto da página 28, sobre os sistemas verbal e não-verexpectativas da professora: tanto ela quanto ele bal e a circulação entre são criativos em suas proposições e soluções. eles. . 13 . Componha uma lista de atividades que você já propôs a seus alunos e cujos resultados alcançados ultrapassaram a sua expectativa inicial. Reflita sobre elas. Possivelmente foram situações em que você atuou/interveio de maneira criativa sem se dar conta. Dado 2: PH e os brasileiros (9a9m; 3ª série) Atente para a complexidade da representação que PH faz e para a complexidade lingüístico-cognitiva que ela requer: relações entre o verbal e o não-verbal com foco no que PH prioriza no desenho para representar sua posição em relação ao tema proposto. A feitura do desenho de PH prevê um ponto de vista único, que é efeito de duas tomadas de posição: uma perceptiva, outra lingüística (não-verbal e verbal integrados). E como se vê isso? A partir de uma série de informações veiculadas pelo próprio desenho, quais sejam: . 14 . P P P P para dar visibilidade à pobreza presente em centros urbanos no Brasil, PH deixa de desenhar um grande viaduto, sob o qual habitam meninos de rua que pedem esmolas; para dar visibilidade de que se trata de um bairro nobre de uma cidade, PH inclui um grande posto de gasolina no qual há uma loja de conveniência; para dar visibilidade de que se trata de um espaço urbano, PH inclui sinalização de trânsito (placas, sinalização no asfalto), ilhas, árvores, canalização de água, tipo de comércio (banca de jornal), tipos diversos de transporte que aí circulam, ausência de pedestres; para dar visibilidade ao que entendeu do tema tratado ao longo do bimestre, PH escolhe representar o contraste social que caracteriza a vida dos brasileiros, tomando uma posição ideológica: trata-se, afinal, de uma lição de História e Geografia que, como o aluno mostra, atinge seus objetivos educacionais. Que tomada de posição – perceptiva ou lingüística – prevaleceu no planejamento que PH realizou para elaborar seu desenho? Não se pode dizer. No entanto, seja qual for, o que a representação de PH mostra é uma síntese de associações em Reveja, no fascículo que as ações dos blocos cerebrais II e III ocorteórico, o boxe de rem simultaneamente levando em conta as texto da página 31, “Sobre especificidades de cada hemisfério cerebral e os hemisférios cerebrais”, destacando o que é caractesua inter-relação: PH planeja e executa; relemrístico de um e de outro bra e planeja; lida com o real e o virtual; com hemisfério e analisando o representações bi e tridimensionais; com o papel organizador que a linguagem verbal desempeespaço e suas coordenadas; com a idéia de pronha, mesmo em um produto porção e com as regras pragmáticas que o insepredominantemente nãorem na vida em sociedade. verbal. . 15 . E o que dizer em relação à leitura do desenho de PH? Quem poderá interpretá-lo? Têm mais chance as pessoas que conhecem as cercanias do lugar em que mora PH, pessoas que vivem em grandes centros urbanos e que vêem a pobreza neles instalada. Se essa mesma tarefa tivesse sido realizada por escrito, quem poderia interpretá-la? Suponhamos que PH escrevesse algo como “No Brasil tem pobres e ricos”. Qualquer brasileiro, falante do português do Brasil (PB), que conhece o sentido do que é ser rico e do que é ser pobre (um conhecimento semântico) aliado ao uso social desses conceitos no país em questão (um conhecimento pragmático) poderia interpretar seu enunciado. A leitura do desenho (linguagem não-verbal) e a leitura do escrito (linguagem verbal) mobilizam conhecimentos e experiências diferentes do leitor. Mas isso não quer dizer que a escrita prescinda de aspectos não-verbais. Por quê? Para escrever o suposto texto PH tem que lembrar – psíquica e perceptivamente2 – de cenas urbanas em que presenciou a convivência entre riqueza e pobreza sem que a essa recordação corresponda um traço sequer no papel. É por meio dos arranjos sintáticos – No Brasil tem pobres e ricos – que se percebe que PH apreendeu a realidade em que vive o brasileiro. A solução verbal de PH mostra um aprendizado formal da escrita, em que contam aspectos ortográficos (usa bem as regras ortográficas e sinais de pontuação), sintáticos (usa bem uma construção com locativo e faz uma relação adequada entre sujeito e predicado por meio de um verbo que prevê uma regra de uso peculiar), semânticos (escolhas lexicais ajustadas ao contexto) e pragmáticos (usa um conhecimento partilhado pela comunidade em que vive). 2 A lembrança psíquica pode envolver vários sentimentos (medo, raiva, compaixão, injustiça, insegurança) e a perceptiva, várias sensações (visual, olfativa, auditiva, tátilcinestésica). . 16 . Queremos destacar que cada um dos modos de representação – verbal e não-verbal – tem características particulares que mobilizam diversos sistemas de referência que, por Reveja, no fascículo sua vez, demonstram um funcionamento cereteórico, o boxe de texto sobre sistemas de refebral específico, embora ambos envolvam integrarência (página 17) e liste os ção de zonas cerebrais (Blocos II e III) dos dois conhecimentos envolvidos hemisférios (direito e esquerdo) de modo diverna atividade em questão. so em um e outro caso. Isso significa que o tipo de encaminhamento de uma tarefa mobiliza certos conhecimentos e não outros; na maioria das vezes mobiliza muito mais do que o professor pode prever de imediato. Isso é saudável e a avaliação do aprendizado do aluno ganha muito se o professor ampliar seu olhar – um olhar interdisciplinar – para apreciar o trabalho lingüístico-cognitivo complexo produzido por seus alunos. Voltando à proposta da professora, o aspecto criativo a ser destacado está no fato de a tarefa possibilitar diferentes soluções por parte dos alunos, em pelo menos duas frentes: na que diz respeito à síntese do conteúdo e na que diz respeito ao produto final apresentado por cada criança. A proReveja, no fascículo teórico, o Dado 2 e pósito deste último item, a atividade conta com a sua análise (páginas 14 e manifestação da subjetividade de cada aluno 15) e reflita sobre o que a sobre o conteúdo aprendido: afinal, cada um professora de PH permite que os alunos digam/deseregistra a História e a Geografia em sua própria nhem na escola. história, seja pelo desenho, seja pela escrita. Suponhamos agora que PH tivesse feito uma colagem e não um desenho. O que entraria em jogo? O que significa colar nesse contexto? Para fazer uma colagem a criança passa, possivelmente, por momentos de organização do trabalho semelhantes aos que enfrenta ao desenhar, mas tendo que levar em conta o material selecionado para esse fim. Se o material disponível for papel- . 17 . dobradura de várias cores, PH pode recortá-los para dar forma à sua cena urbana, criando um certo tipo de representação em que diferentes formas geométricas compõem a colagem. Se, por outro lado, PH tiver em mãos revistas com fotos e propagandas, o trabalho lingüístico-cognitivo será diferente. A criança realiza um trabalho de análise ao selecionar as figuras que deseja (carros, caixa eletrônico, prédios, ruas, pessoas, entre outras) e de síntese ao organizá-las para compor a sua cena urbana. Neste último caso, pode-se dizer que o aluno Reveja também o tópico “A linguagem está transitando de um discurso para outro ao se em funcionamento: fazer e deslocar de uma propaganda de um imóvel qualrefletir por meio da escrita” quer para o discurso em questão: “como vivem (páginas 21 e seguintes do fascículo teórico). Propoos brasileiros”. Assim, a colagem requer o estanha uma atividade para belecimento de relações entre o que se quer seus alunos em que o desenho é usado também representar e as possibilidades oferecidas pelo como meio de reflexão, material escolhido e o que dessas relações resulalém de ilustrar um conteúta como produto final, o que requer uma atividado qualquer. de reflexiva complexa por parte do aluno. Diferenças entre os conhecimentos envolvidos na leitura/avaliação de uma solução predominantemente verbal em oposição a uma solução predominantemente não-verbal (seja por meio de um desenho ou de uma colagem) representam um ponto que merece atenção por parte do professor. À primeira vista parece ser mais simples avaliar o entendimento do aluno a respeito do conteúdo por meio da escrita. Um colega de classe de PH, TS, fez um outro desenho como resposta a essa mesma atividade. Veja a seguir (Dado 3). . 18 . Dado 3: TS e os brasileiros (9a5m, 3ª série) O desenho de um campo de futebol pode ser considerado uma boa síntese do conteúdo aprendido? Qual a relação que o aluno estabelece entre “campo de futebol” e “a vida dos brasileiros”? A observação detalhada do desenho feito por TS nos ajuda a inferir as relações que ele pressupõe ao desenhar. Também seu desenho mostra uma grande complexidade lingüístico-cognitiva: P P seleciona o futebol como uma prática social típica dos brasileiros; conhece as dimensões de um campo e de um estádio de futebol e suas configurações; . 19 . P P P P P enfatiza a polaridade entre ricos e pobres ao desenhar (e nomear via escrita) as duas entradas que dão acesso ao estádio de futebol: de um lado a geral e, de outro, a vip, o que mostra a sua percepção da divisão de classes que existe na sociedade em que vive; tem o cuidado de escrever a palavra vip em apenas algumas fileiras de um dos lados da arquibancada, o que mostra que o número de ricos é bem menor do que o número de pessoas que pertencem a outras classes sociais; ilustra os serviços que podem ser encontrados em um campo de futebol – carrinho de pipoca e de hot-dog –, o que demonstra que ele sabe que alguns brasileiros precisam trabalhar muito, até em dia de jogo; no alto, à esquerda, reserva um espaço em que escreve “Globo”, o que mostra que ele retrata uma partida de futebol importante, de algum campeonato que vale a pena ser televisionado por uma grande emissora; o desenho legendado de uma “menina pobre grávida” representa os excluídos de nossa sociedade, onde meninas – especialmente pobres – engravidam e ele é cuidadoso ao escolher o item lexical “menina” em vez de “mulher”. Um aspecto importante do desenho de TS se refere à escrita. Há lugares específicos para que ela apareça. Por quê? Possivelmente para direcionar a interpretação do leitor de seu desenho, na tentativa de garantir seu entendimento, evitando, assim, possíveis ambigüidades. Por exemplo: o desenho da menina grávida poderia ser confundido com o de um torcedor barrigudo qualquer. Também chama a atenção o modo como TS desenha as pessoas no estádio de futebol. Ele faz o desenho do estádio tomando . 20 . como posto de observação uma vista aérea. Se mantivesse essa mesma perspectiva em relação aos jogadores e torcedores, eles deveriam ter sido desenhados sem o corpo. TS mostra que sabe isso, porque representa – do lado direito do campo, na segunda fileira – apenas “bolinhas”, que são as cabeças das pessoas. A mesma solução é encontrada para representar os serviços. Sem dúvida, tanto quanto PH, TS consegue resumir em seu desenho o entendimento dos conteúdos tratados pela professora, embora de um outro ponto de vista. Isso mostra, uma vez mais, que também o sistema não-verbal é aberto a múltiplos sentidos. Que outras atividades, a partir dessa, a professora pode propor aos alunos? Colorir o desenho uns dos outros pode ser uma tarefa bem interessante. Colorir a partir de um conjunto de instruções com o objetivo de dar vida aos desenhos que se apresentam em preto e branco. Veja-se como exemplo, como podem ser as instruções para colorir o desenho de PH: pinte de azul o carro que está no sentido direita–esquerda e de vermelho aquele que está no sentido esquerda–direita; P pinte de marrom a ilha que está à esquerda no alto do desenho e de cinza a que tem formato triangular, tendo de um lado um carro e, de outro, a sinalização “PARE”; P pinte de vermelho a placa do posto de gasolina e de verde a banca de jornal. P Faça essa atividade como se fosse um aluno. Preste atenção no modo como você interpreta cada instrução e a executa; veja como uma atividade simples pode se transformar em uma tarefa complexa e criativa. Escreva as instruções para pintar o estádio de futebol desenhado por TS. . 21 . ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ O JULGAMENTO DO LOBO MAU: CULPADO OU INOCENTE? A partir da polêmica que a leitura da história dos Três Porquinhos, de Joseph Jacobs, gerou entre os alunos, a professora de Português, da 4ª- série, de PH sugeriu que se fizesse em sala de aula uma espécie de tribunal para decidir sobre a inocência ou não do Lobo Mau. Afinal, ele tem o direito de perseguir os porquinhos? Os alunos gostaram da idéia e a professora dividiu a classe em dois grandes grupos, um a favor do Lobo Mau e outro contra ele. Cada um dos grandes grupos foi ainda subdividido em equipes menores. Cada equipe devia elaborar – por escrito – argumentos que inocentassem ou incriminassem o suposto algoz da história, para serem apresentados no dia do julgamento. A professora foi feliz ao propor essa atividade: além de mobilizar e motivar os alunos a participarem ativamente do trabalho, é um meio eficaz para aprender a argumentar oralmente e por escrito. Além disso, é uma forma de apresentar uma prática social específica – o funcionamento de um tribunal –, que requer o uso de gêneros de discurso próprios. . 22 . Faça uma lista de práticas sociais das quais você participa ativamente: fazer pagamentos, abrir um crediário, agendar uma consulta médica por telefone, enviar um cartão de felicitações para um amigo que faz aniversário, enviar um telegrama cumprimentando noivos pelo casamento, entre outras. Pense no modo particular como a linguagem é usada em cada uma dessas ocasiões. Há formas mais recorrentes, mais cristalizadas que caracterizam o que se denomina gênero de discurso, além daquelas comuns a todos esses usos que são próprios da língua e da cultura partilhadas. Proponha a seus alunos atividades em que apareçam construções típicas de certas práticas e não de outras. Converse com eles a esse respeito. PH e dois colegas, JF e CA, compuseram uma equipe a favor da absolvição do Lobo Mau. A tarefa se prolongou por três semanas porque o júri não conseguia chegar a um veredicto. Foram semanas de intenso trabalho entre os componentes do grupo e entre cada um deles e sua família. No caso de PH, ele consultou uma tia que é advogada. O resultado dos trabalhos se deu após três sessões de júri, o que demandou o refinamento dos argumentos em prol da absolvição do Lobo Mau. A cada etapa do trabalho o texto original – uma petição judicial – foi reajustado de modo a conter os melhores argumentos, capazes de convencer os jurados. A atividade foi bem sucedida porque supõe que as crianças aprendam a argumentar, argumentando; aprendam as formas apropriadas do gênero em questão utilizando-as na elaboração dos argumentos; aprendam o léxico específico utilizado em uma petição judicial, escrevendo uma petição judicial. Vejamos, na página seguinte (Dado 4), a primeira argumentação apresentada pela equipe de PH para absolver o Lobo Mau. O primeiro item a ser destacado é que, do ponto de vista argumentativo, o texto é bom: o Lobo Mau tem fome, é guloso e come o . 23 . Dado 4: As leis Cliente: Sr. Lobo Mau. Endereço: Floresta dos Contos, nº 128 Prezado(a) meritíssimo(a): ______________________________ gostaria que você entendesse o motivo de briga entre os dois animais. Nosso querido cliente ________________ passa o dia inteiro com fome e depois na hora que oferecem um pouquinho ele é guloso e sempre quer mais para comer e não dão, então ele se vira com o que dá. Sendo assim ele corre atrás dos porquinhos. A meritíssimo(a) se ofenderia se nós lhe perguntássemos o que você comeu no dia dos pais? Como a senhora já sabe, nós somos advogados de muita qualidade e pelo Sr. Lobo Mau nos temos que fazer o além do impossível. Códigos e Leis: LEI DE 1989 – 59 1553 Comida é para se comer. LEI DE 1968 – 23 1892 Animais grandes como lobos não devem comer carnes nobres, pois eles comem muito. Deve comer comidas mais baratas como porcos. Assinaturas: Data: __ /__ /___ que encontra para comer. Tal argumentação encontra respaldo legal nos códigos e leis apresentados pelos advogados e que são adequadamente citados por meio do ano e número de sua publicação. No entanto, o texto perde sua força argumentativa porque as formas empregadas pelos alunos são inadequadas e podem desagradar o(a) meritíssimo(a): tratar o juiz de “você” e o cliente de “querido”; usar expressões do uso cotidiano, como “se vira com o que dá”; . 24 . elogiar a si mesmos como profissionais de “muita qualidade”. Há, também, formas compatíveis com o gênero em questão: o uso de expressões como “cliente” e “meritíssimo”; o nome da rua escolhido; o tratamento respeitoso ao dirigir uma pergunta ao juiz; a marcação dos dois gêneros em “meritíssimo(a)”; a invenção/formulação de leis condizentes com o julgamento em questão. O que se observa, portanto, é que embora esse texto tenha sido intensamente trabalhado pela equipe, há vários ajustes a serem feitos, e a atividade é uma chance para que o professor intervenha de forma corretiva e criativa. Há questões sintáticas que podem ser reescritas, o que contribuirá para o refinamento da argumentação, como na passagem em que escrevem: “Nosso querido cliente _________ passa o dia inteiro com fome e depois na hora que oferecem um pouquinho ele é guloso e sempre quer mais para comer e não dão, então ele se vira com o que dá.” “Nosso cliente ___________ é muito guloso e por isso passa o dia inteiro com fome. Mesmo quando alguém lhe oferece comida, ele sempre quer mais e, como não lhe dão, ele come o que pode”. O mesmo ocorre em outro trecho: “Como a senhora já sabe, nós somos advogados de muita qualidade e pelo Sr. Lobo Mau nos temos que fazer o além do impossível.” Como você proporia a reescrita para esse trecho? Por quê? Releia o texto original e procure detectar outras imprecisões relacionadas à pontuação e ao emprego de pronomes, considerando que se trata de uma petição judicial cujo destinatário é um Juiz. . 25 . O texto apresentado a seguir (Dado 5) corresponde à segunda semana de trabalho da equipe. Dado 5: A cadeia alimentar Cliente: Sr. Lobo Mau Endereço: Floresta dos Contos, nº 128 Prezado(a) meritíssimo(a): __________________________ gostaria que a senhora entendesse o motivo de briga entre os dois tipos de animais: porquinhos e lobo. Nosso cliente ___________________________ passa o dia inteiro com fome enquanto tem muitas pessoas que estão muito bem alimentadas. Ele só come o que a Floresta dos Contos lhe proporciona. Assim, ele não tem muitas fontes de alimento. Todos nós, humanos, comemos porquinhos. Além disso, podemos escolher entre vários alimentos coisa que não acontece com o lobo. Para que a humanidade exista, nós precisamos da cadeia alimentar, ou seja, um animal come o outro. 1- Por que nós podemos comer porco e os lobos não? Assinaturas: Data: __ /__ /____ O interessante nessa versão é o conteúdo transversal que é utilizado pelos alunos – a cadeia alimentar e sua importância para a sobrevivência das espécies –, o que mostra que não só compreenderam o conceito de cadeia alimentar, mas que também sabem como reutilizá-lo em um outro contexto, ou seja, como argumento para a defesa do cliente. . 26 . O poder de persuasão dos advogados é mais claramente expresso na pergunta supostamente dirigida ao júri – “Por que nós podemos comer porco e os lobos não?” –, que se assenta em uma lógica que orienta o raciocínio argumentativo das crianças: se homens comem porcos, se lobos comem animais e se porcos são animais, logo lobos comem porcos. Implícito nessa pergunta está o fato de que uma resposta negativa poderá ser interpretada como injusta ou discriminatória. Vale a pena observar, portanto, que uma pergunta supostamente simples pode revelar um raciocínio bastante complexo. Na última semana dos trabalhos, as equipes são reagrupadas de modo a produzirem uma versão definitiva da defesa do réu. Veja, a seguir, o que a nova equipe de PH escreveu. Dado 6: A natureza animal3 Campinas, 28 de agosto de 2006 Prezada Meritíssima: ________________ gostaria que a senhora entendesse o motivo de briga entre as duas espécies de animais: os Três Porquinhos e o Lobo Mau. Eu irei lhe contar uma história que é o mesmo princípio da briga dos três porquinhos e o lobo mau. Ela começa em um dia em que o elefante está indo atravessar o rio e aparece um escorpião e diz: — Seu elefante você me poderia dar uma carona? E o elefante responde: — Claro que não porque depois você me pica e eu morro. E o escorpião diz: 3 Esta versão do texto contém, ainda, imprecisões relacionadas à grafia do pronome interrogativo “por que”. . 27 . — Eu não farei isso, pois eu também morrerei. E o elefante responde: — Está bem, mas nem pense em me picar, OK? E o escorpião diz: — Sem problemas para mim. Então no meio da travessia o escorpião pica o elefante, e na agonia o elefante pergunta: — Mas porque você fez isso? Pois você também irá morrer. Então o escorpião responde: — Eu não queria, mas é de minha natureza. Por essa mesma razão – a natureza animal – é que o lobo persegue os porquinhos. Depois desta história que nós lhe contamos, achamos que a senhora entende o motivo que o lobo mau persegue os três porquinhos. E assim absolvesse nosso cliente. Obrigado pela sua atenção e compreensão. Assinaturas: Advogados do Plenário: Advogados Assistentes: Data: ___ /___ /_____ Nesse texto os alunos recorrem a uma outra história – o que já é interessante – como fonte de um argumento irrefutável: o instinto animal. Da experiência vivida entre o elefante e o escorpião conclui-se que o Lobo não consegue deixar de perseguir os porquinhos para se alimentar. O pressuposto que ancora essa argumentação coloca a condenação do Lobo no campo da impossibilidade: como culpá-lo por algo sobre o qual ele não exerce controle? As várias versões desenvolvidas pelas equipes mostram a propriedade da atividade: os alunos escreveram e reescreveram refinando sua argumentação; debateram entre si e consultaram ou- . 28 . tras pessoas; assumiram diferentes papéis na mudança das equipes; transitaram entre a oralidade e a escrita; lidaram com um novo gênero de discurso. Todas as sessões de júri foram dramatizadas em sala de aula e os alunos se prepararam para delas participar, caracterizando-se de acordo com o papel que assumiam na encenação do tribunal – juiz, advogado, jurado – usando, para tanto, roupa social – camisa, gravata, vestido, sapatos de salto alto – e alguns adereços, como aparelho celular, pasta de trabalho e relógio. Essa teatralização tem um papel adicional importantíssimo: os alunos podem, por meio dela, vivenciar Reveja, no fascículo esse tipo de prática com a linguagem, o que teórico , o tópico “A viestabelece uma estreita relação entre as coisas da, a escrita e a escola” (páginas 56 e seguintes). da vida e as coisas da escola. Uma experiência Pense em atividades para como essa pode ser revivida quando os alunos seus alunos que integrem assistirem a um filme sobre tribunal, ao ouvirem práticas do dia-a-dia e que possam ser produtivamente um noticiário que tematize sobre um crime, ao incorporadas ao cotidiano lerem um romance policial e por aí afora. É esse escolar como lugar para o o prolongamento da escola que se deseja: em aprendizado de novos conteúdos. direção à vida. . 29 . ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ QUANDO A ESCRITA GANHA, DE FATO, SENTIDO A prendemos com Papert que a aprendizagem – de qualquer coisa – é significativa quando o conteúdo aprendido ganha sentido do ponto de vista cognitivo, afetivo, social e cultural. Como se pode reconhecer isso? Quando o conteúdo em questão, de alguma forma, transborda para além dos Reveja, no fascículo limites em que foi, originalmente, tratado, testateórico , o tópico “A do, refletido; quando se percebe que ele é usado propósito de uma escola padrão” (especialmente à de modo pessoal e por iniciativa própria. página 16). É isso que acontece com PH. A leitura de seus textos, muitas vezes, o leva a reescrevê-los, o que mostra a relação prazerosa que estabelece com a leitura e a escrita, como uma atividade que tem início, mas não tem fim. Quando a leitura de um texto já escrito o remete a conteúdos que está vivendo em outras esferas de relação – como é o caso da construção da casa de seus avós paternos, que ele acompanha dia após dia – a reescrita é motivada e flui com naturalidade na vida de PH. É isso o que ocorre quando relê o seu texto intitulado “A chácara”, dois anos depois (releia o texto, no fascículo, à página 57). Estimulado pela história narrada e pelo desenho que fizera, PH atualiza o escrito – por meio de um novo texto e de um novo desenho – com . 30 . novas informações a respeito da construção da casa, assumindo outro papel discursivo, qual seja, o de um homem próspero. Veja, a seguir, o que ele produz. Dado 7: ChácaPe PH começa corrigindo a ortografia de “Titulu” para “Titulo,” o que mostra o que ocorre em dois anos de exercício da leitura/escrita. Que nome ele dá para a sua chácara? ChácaPe. Por quê? Esse nome sintetiza duas informações vitais para o novo texto: a chácara que pertence a Pedro (o primeiro nome de PH). E o que ele faz do ponto de vista fonológico e ortográfico? Mantém o ritmo da palavra chácara – a tonicidade e o número de sílabas – e a aglutina à primeira sílaba de seu primeiro nome – grafando com letra maiúscula –, o que resulta na personalização do modo como designa a sua propriedade. E que propriedade é essa? É aquela que ele conhecera por oca- . 31 . sião de seu passeio de bicicleta com o pai e que pertencia a um banqueiro muito rico. Uma pessoa rica que tem uma propriedade no campo constrói uma casa muito grande – com muitos aposentos e área de lazer – integrada à natureza e tem vários empregados para serviços internos e externos. Para manter todo esse luxo é preciso ganhar muito dinheiro, preferencialmente, em moeda forte – o dólar. E onde se ganha em dólar? Em multinacionais. PH termina a descrição de sua propriedade apresentando seus dois cachorros, Lessi e Nike, misturando o PB com o que sabe de inglês. E quanto ao desenho? PH mantém a topografia original: a casa, a árvore, a cerca e o lago, mas sofistica com cores e detalhes a sua propriedade de homem bem-sucedido: desenha um guarda-sol e um peixe no lago; desenha pessoas se divertindo e cachorros andando pela propriedade. O conhecido by-alguma coisa, que revela uma marca, geralmente reconhecida pelo público, torna-se “FEITO POR PH”, com a data e a hora da criação. Muitas crianças, no entanto, não têm a chance de freqüentar uma escola que dá sentido à escrita e por isso são comumente diagnosticadas como portadoras de uma patologia que não apresentam e à qual passam a corresponder. Crianças com esse tipo de história escolar participam semanalmente do Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho), no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, onde se procura realizar um trabalho que resgata o(s) sentido(s) da leitura e da escrita. Os dados a seguir mostram como essas crianças podem atuar criativamente como escreventes/leitores quando lhes é dada essa chance, a despeito das supostas patologias a elas atribuídas. . 32 . Apresentamos uma atividade, conhecida pelo nome de “jogo do dicionário”. Trata-se de uma brincadeira coletiva que começa pela escolha de uma palavra desconhecida de todos os participantes. A pessoa que comanda o jogo copia uma das definições dessa palavra encontradas no dicionário em uma tira de papel que, em seguida, será misturada às demais definições escritas/construídas por cada jogador e colocadas, todas, em um recipiente. Em seguida, são lidas todas as definições e cada participante escolhe a que julga ser a do dicionário. Ganha o jogador que tiver escrito a definição mais votada, no caso de não ser a do dicionário, ou a pessoa que comandou a brincadeira, no caso de a definição do dicionário ter sido a mais votada. Ao final de cada rodada a definição mais votada é comparada com a do dicionário para que todos possam conhecer o sentido da palavra em questão. Dado 8: Genetriz Veja, a seguir, o que MP, JL e BB escrevem a propósito da palavra genetriz (substantivo feminino que significa “aquela que gera; a mãe”): MP Genetriz: sm De origem francesa significa figura geométrica como: circulo, triângulo, retângulo, quadrado, etc... . 33 . JL genetriz R: Substantivo feminino que vem do latim genetrum e significa choque Energetico de arrepiar os cabelos BB genetriz gente pessoa é famosa O que se pode dizer a propósito das definições criadas pelas crianças? Todas elas têm características de um verbete de dicionário, quer pelo tipo de definição, quer pela forma de apresentação. MP insere o sentido da palavra no universo da geometria, motivado pela terminação da palavra (- triz); JL mostra conhecimento da representação de uma palavra em latim (genetrum) e define a palavra de modo inesperado e bem-humorado; BB decompõe a palavra em duas formas que correspondem a dois sentidos (gente e atriz). Todos apresentam uma definição compatível com as que se podem encontrar em um dicionário e todos demonstram uma reflexão sobre a língua que falam/escrevem. . 34 . Apresentamos, a seguir, mais um verbete, desta vez para a palavra xué (substantivo masculino que significa “peixe teleósteo (...) dos rios São Francisco e Jequitinhonha, estriado e de tamanho pequeno”). Dado 9: Xué MP Xué: sm De origem do guarani significa água pura JL XUE = DO LATIM: 1 DA FAMILIA DO XULÉ. 2 CHEIRO MUITO RUIM Da mesma forma, as definições de MP e JL correspondem a uma definição própria do dicionário. MP relaciona a forma da palavra – pequena, escrita com a letra “x” – com palavras de origem indígena e se inspira no som da palavra para relacioná-la a um certo sentido (água pura); JL apresenta duas definições, demonstrando ter compreendido que a uma palavra podem corresponder vários sentidos, a depender do uso que dela se faz. Além disso, JL serve-se da sonoridade da palavra para construir sua primeira definição (xulé) que, por sua vez, o leva a evocar um segundo sentido (cheiro muito ruim). . 35 . Quais as razões para se incluir uma atividade como essa no contexto do CCazinho? Vários objetivos motivam os investigadores na escolha de uma atividade; neste caso, destacamos os seguintes: introduzir o uso do dicionário, tendo em vista que todas essas crianças/jovens apresentam instabilidades ortográficas próprias do início do processo de aquisição da escrita/leitura e por ser um material de consulta útil para qualquer escrevente; P possibilitar o contato com um gênero de discurso particular que tem características próprias e requer, para sua compreensão, o domínio de vários conhecimentos: metalingüísticos (categorias gramaticais e morfológicas), semânticos (múltiplos sentidos), etimológicos e disciplinares, todos referidos por meio de abreviaturas específicas; P observar o modo como cada sujeito explora uma situação de uso da linguagem escrita pouco conhecida/usada por ele. P . 36 . ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ ■ MAS, AFINAL, O QUE ESTÁ EM JOGO NA SALA DE AULA? E m todas as atividades apresentadas – um dia sem números na vida de PH; como vivem PH, TS e outros brasileiros; o julgamento do Lobo Mau; a ChácaPe; o jogo do dicionário – tanto o cérebro quanto a linguagem foram utilizados de forma diferenciada. Por quê? Tanto pelas atividades que as professoras/investigadoras propõem – que prevêem uma estreita relação entre escola e vida – quanto pelo modo como cada aluno as resolve, considerando sua história particular. É dessa relação – atividade proposta e soluções encontradas – sustentada pela interação que se dá entre professor/investigador e alunos e alunos entre si, que resulta um trabalho produtivo com a leitura, a escrita, o oral, o desenho e todos os conhecimentos que aí circulam e que são bem aproveitados em um ambiente de aprendizagem. Assim, o trabalho do cérebro é desencadeado quando o sujeito está atento, envolvido psíquica e afetivamente, inserido em práticas sociais que lhe dizem respeito, quando então o sujeito em questão pode perceber, associar, julgar, planejar, comparar, inferir, decidir, sonhar, brincar e, também, ler, escrever, calcular, desenhar, falar. . 37 . Neste fascículo escolhemos, preferencialmente, dados de uma mesma criança (PH) para ilustrar o trabalho conjugado do cérebro e da linguagem, por algumas razões: a) para mostrar que é fazendo/escrevendo/lendo/imaginando/desenhando que o aluno aprende a fazer, escrever, ler, imaginar, desenhar. Isso também se aplica ao professor: é no exercício diário e interativo com os alunos que se aprende a planejar atividades que não têm respostas previamente estabelecidas; intervir nas soluções dos alunos como um adulto que sabe mais sobre aquele conteúdo específico e detém um conhecimento técnico sobre o que é ler, escrever, calcular, aprender, etc., mas que ao mesmo tempo é capaz de considerar o ponto de vista de cada aluno, visando ao refinamento das respostas; avaliar o efeito das intervenções realizadas sobre o trabalho dos alunos e, conseqüentemente, avaliar tanto o progresso deles quanto a eficácia de seus procedimentos pedagógicos; b) para mostrar o percurso longitudinal da relação da criança com a escrita, que, por um lado, não é diferente do de outras crianças e suas histórias de escrita, mas que se particulariza em função da própria vida da criança, por outro. É entre o público e o privado que essa aprendizagem se constrói; c) para instigar a pensar nas soluções possíveis de outras crianças diante das mesmas situações, como mostramos com o desenho de TS. Cada sujeito, a partir de suas vivências e escolhas, pode – dentro de certos limites impostos pela cultura, pela língua, pelas circunstâncias em jogo – reinterpretar e produzir outros sentidos, o que afasta a possibilidade de se esperar como certa ou errada uma única solução (como bem mostram os sujeitos que freqüentam o CCazinho: MP, JL e BB). Essa diversidade de interpretações e de soluções é que pode tornar a escola um lugar de aprendizagem ativa. . 38 . Para terminar, chamamos a atenção para o fato de que ensinar a ler e a escrever vai muito além de ensinar a relacionar sons a letras e formas a sentidos. Um texto informa o leitor sobre alguma coisa – um fato, uma notícia, uma descoberta, um sentimento, uma invenção, um sonho, etc. – e ainda sobre o escrevente: seus valores, crenças, história, ideologia, etc. Muitas vezes a escola se fixa na forma (e na norma) como o aluno representa o conteúdo informativo, deixando escapar outras possibilidades de leitura do texto em que se inscreve o escrevente. Esse é o caso do texto escrito por MP (Dado 10) e das investigadoras Ipn e Imc, em um dos encontros do CCazinho, quando o grupo se dedicou a fabricar fantoches para escrever uma história sobre eles. Dado 10: O froguês . 39 . Na história intitulada “Aprendendo a entender”, MP se revela uma criança de seu tempo, que domina o universo de um conhecido desenho animado atual. Inventa um sapo que fala “froguês” e que vai ao restaurante do Bob Esponja para comer um hambúrguer de mosca e vitamina de barbatana de golfinho e tubarão. Ocorre que o froguês precisa ser traduzido por seu melhor amigo, o Aladim. No texto, MP inclui conhecimentos do mundo infantil (Bob Esponja e Aladim); seleciona nomes adequados ao gosto do sapo, mostrando um domínio maior da convenção ortográfica (“hamburguer” de mosca, vitamina de barbatana de golfinhos e tubarão); da pontuação e do ritmo (travessão para marcar a fala dos personagens, dois-pontos para especificar o nome do restaurante, ponto de exclamação); conhece também uma forma de finalizar a história, servindo-se da palavra “fim”. O título que MP dá à história – “Aprendendo a entender” – leva a pensar que às vezes é preciso um tradutor/intérprete para se fazer entender. E por que MP é sensível a essa questão? Porque ele mesmo nem sempre é compreendido e precisa que alguém lhe sirva de intérprete: mesmo falante, não consegue se fazer compreender como gostaria. Sendo filho de pai carioca e mãe mineira, e estudando em uma escola do interior de São Paulo, MP apresenta uma instabilidade na produção da consoante vibrante em posição intervocálica4 como se estivesse à procura de um modo próprio de produzir esse som, despertando em seu interlocutor uma reação similar à de não-compreensão. A história que MP inventa se apresenta como um lugar de conforto (que acolhe e contém a sua própria história espelhada na história do Frogui) e de conflito (que o faz confrontar com seu sofrimento de ser um menino diferente em um mundo de supostos iguais). 4 Como é o caso do som da letra “r” em palavras com barata e careta. . 40 . Um texto, portanto, pode revelar para além do escrito. No caso do texto de MP, o que se observa é que ele não tem problemas com a aquisição e o uso da escrita, mas sim com o modo como se apresenta como falante do PB, o que repercute na sua vida escolar e social a tal ponto de a escola rotulá-lo como um aluno com problemas de aprendizagem. O importante, no entanto, é que a própria escrita se configura como um ambiente propício para que ele enfrente suas dificuldades. Esperamos ter mostrado, por meio dos dados apresentados, que a escola deve se abrir para o inusitado e o inesperado, para que o aluno possa, de fato, ganhar autonomia no aprendizado da leitura, da escrita e de conteúdos. É a isso que a vida convoca e é isso que a escola pode ajudar o aluno a construir. . 41 . anotações . 42 . anotações . 43 . anotações . 44 . anotações . 45 . anotações . 46 . anotações . 47 . Títulos da coleção “Linguagem e Letramento em Foco” A criança na linguagem: a fala, o desenho e a escrita - Zelma R. Bosco Meus alunos não gostam de ler... O que eu faço? - Marisa Lajolo Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? - Angela B. Kleiman Aprender a escrever (re)escrevendo - Sírio Possenti Multilingüismo: divisões da língua e ensino no Brasil - Eduardo Guimarães O trabalho do cérebro e da linguagem: a vida e a sala de aula - Maria Irma Hadler Coudry, Fernanda Maria Pereira Freire Línguas indígenas precisam de escritores? Como formá-los? - Wilmar da Rocha D'Angelis O índio, a leitura e a escrita: o que está em jogo? - Marilda do Couto Cavalcanti, Terezinha de Jesus M. Maher Letramento e tecnologia - Denise B. Braga, Ivan L. M. Ricarte Manual básico de letramento digital - Denise B. Braga, Ivan L. M. Ricarte, Carolina Bottosso de Moura, Luiz Henrique Magnani, Rodrigo Martins Sabiá Línguas estrangeiras no Brasil: história e histórias - Carmen Zink Bolognini, Ênio de Oliveira, Simone Hashiguti Títulos da série “Trocando em Miúdos a Teoria e a Prática” Narrar, desenhar, brincar... fazendo a diferença na Educação Infantil - Zelma R. Bosco; Silvana Perottino (colaboradora) Reescrita de textos - Sugestões de trabalho - Sírio Possenti, Jauranice Rodrigues Cavalcanti, Fabiana Miqueletti, Gisele Maria Franchi (colaboradora) Os falantes e as línguas - Multilingüismo e ensino - Eduardo Guimarães, Carolina de Paula Machado, Gabriele de Souza e Castro Schumm, Luciana Nogueira, Simone de Mello de Oliveira Cérebro e linguagem “em ação” na sala de aula - Maria Irma Hadler Coudry, Fernanda Maria Pereira Freire Formando escritores indígenas - Wilmar da Rocha D'Angelis Nos bastidores de cursos de formação de professores indígenas - Marilda do Couto Cavalcanti, Terezinha de Jesus M. Maher Práticas na sala de aula de línguas estrangeiras - Carmen Zink Bolognini Você, eles, nós leitores na sala de aula - Márcia Razzini (em preparação) . 48 .