Trabalho proposto para Mesa Redonda:
A arte, o orifício, o ofício e o artifício da escrita: pontuações sobre o Sinthome
Luciana Brandão Carreira Del Nero1.
Resumo:
Escrever não com simples palavras, mas com palavras (tornadas) objeto, faz do texto
clariceano um depósito de dejeto por excelência. Portadora de uma escrita umedecida
pelo simbólico, é vã sua tentativa de capturar A palavra: escapando-lhe pelas mãos, restalhe cerzir o objeto com as próprias. O Real, emudecido por completo, sentencia a
impossibilidade da língua ser-toda, uma vez esta enquistada pela silenciosa letra. A esse
respeito, a produção literária de Ferreira Gullar também nos demonstra
tal
particularidade. Ambos testemunham a inelutável necessidade de escrever, cujo estilo
permite situá-los no âmbito dos escritores que, ao produzirem Literaturas-litoral, por
meio de sua obra constituiram um Sinthome. Tal literatura seria, assim, determinada pela
tensão de um impossível de se dizer e, o ofício do escritor, a possibilidade de algo disto
ser dito. Tornada condição inexorável à manutenção da vida, escrever faz-se o artifício
diante do real d´alíngua. Disto fará conceber-se uma autoria e a conseqüente percepção
de um estilo.
Palavras-chave: Corpo, Sujeito, Linguagem, Escrita, Sinthome.
Psiquiatra e Psicanalista. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em Psicologia Clínica pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Professora do Departamento de Saúde
Especializada da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Endereço: Rua dos Pariquis,
n.2999, sala 1205. Cremação. Belém-PA. CEP: 66040-320. Telefones: (91) 3229-1987;
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A arte, o orifício, o ofício e o artifício da escrita: pontuações sobre o Sinthome- Luciana Del Nero.
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A arte, o orifício, o ofício e o artifício da escrita: pontuações sobre o Sinthome
Luciana Brandão Carreira Del Nero.
ℒacan, em RSI, formula a concepção de um quarto elemento na estrutura da
cadeia significante. Acrescentando-se aos três já conhecidos, este quarto fio teria a função
de promover à cadeia sua estabilização, proporcionando-lhe um novo enlace. Esta,
tomada agora enquanto estrutura quaternária, detém o Sinthome: nó concebido na
intenção de situar o sujeito frente ao gozo produzido a partir do confronto com a
inexistência da relação sexual.
Sabemos, a possibilidade de algum saber sobre a verdade não-toda, ou seja, de
alguma significação deste Real pulsional que é o furo nele mesmo, depende da maneira
pela qual a cadeia é consistida por tal nó e dos enlaçamentos em torno do que escapa ao
Simbólico, o objeto. Portanto, ao definir o Sinthome enquanto o quarto fio que dá
consistência a nodulação RSI, Lacan o relaciona à função do significante Nome-do-Pai.
Concebendo a nomeação como um ato, ressalta o trauma proferido pelo Pai enquanto o
fundamento da linguagem: a nomeação funda posto que faz corte significante e nodula
RSI, borromeanamente2.
Em interessante artigo, Chatel (CHATEL, M, 2002) discute a idéia da teoria da
metáfora paterna fazer com que a nomeação estivesse implícita enquanto ação do
Simbólico, uma vez que a operação do Nome-do-Pai coincidia com este. No entanto, a
autora destaca o fato de metáfora e nomeação paterna não serem sinônimos3, como bem
insinua Lacan em RSI. Segundo Chatel, a hipótese segundo a qual o Sinthome repara um
ponto de malogro na estrutura em todo sujeito, torna explicita a necessidade da função do
Nome (que é nomear, distinguir) como diferente da função da metáfora (que é a de
fabricar algum sentido).
Lembremos que é da inscrição do traço mais irredutível do significante paterno que
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... uma vez que não há primazia de um registro em detrimento do outro e, na ventura de
um desbordamento, o desenlace de qualquer dos registros acarreta na desarticulação
completa da cadeia, cadeia esta por sua vez significante.
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LACAN, Seminário RSI, particularmente as lições de 15-04-75 e de 13-05-75.
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se induzirá a metáfora originária, que por sua vez subsidiará toda e qualquer construção
metafórica ulteriormente. Ao inscrever o traço do significante (que ainda não representa o
sujeito falante, mas o nomeia e indica o real da falta do Outro, radicalmente inominável),
a nomeação confere a possibilidade do inominável do abismo tornar-se significável. E a
significação do abismo, esta resulta em conferir-lhe uma certa distância, protegendo o
sujeito das raias do impossível de se dizer.
Nestes termos, o imaginário é a dimensão do humano que proporciona uma
mediatização frente o Real e, na iminência do sujeito sucumbir aos preceitos do Outro, a
abolição subjetiva em decorrência disto é postergada. Assim, a ficção daí forjada
determina uma certa fixação, necessária a constituição do sujeito... afinal, a verdade tem
estrutura de ficção justamente por ela mostrar uma coisa que não é Acoisa realmente:
“manifestar o indizível é criar”, já escreveu Clarice Lispector. (LISPECTOR, C, 1988 )
Portanto, a escansão promovida pela letra implica em distinguir o Real do
Simbólico mantendo-os, porém, nodulados. Uma vez distintos, a letra assegura uma
ponte que os ligue e que os mantenha em relação, permitindo com isso, um acesso ao
Real por via Simbólica. A partir daí é que se pode cernir o gozo, bordejando-o, e vir a se
fazer apelo ao Imaginário. A possibilidade de se construir um Semblante, depende, então,
de uma borda constituída e de uma nodulação consistida. O jogo do Fort-Da nos mostra
isto. Com a repetição do ato —e o escrever enquanto Sinthome situa-se nesta lógica—, o
sujeito tende a efetuar o enlace de uma compulsão à repetição primária com o ganho de
prazer inerente aos processos inconscientes e a bordejar o furo, fazendo-o consistir.
Ressaltemos: o ilimitado do abismo traga o sujeito e o devora. A esse respeito, a
dramática condição de criar é conferida ao humano enquanto o que lhe resta a fazer:
forjar, intermitentemente, algo que represente a falta radical da disparidade entre pulsão e
seu objeto. Às voltas com o imaginário, produz-se ficção, expressão dessa falta. Afinal,
nos diz Ferreira Gullar:
“Nós estamos num mundo explicado, é impossível viver num mundo sem
explicação, se enlouquece. Então, a explicação nos equilibra, nos protege e nos
empobrece. Porque o mundo é mais que a explicação do mundo. Nós necessitamos
da explicação, sem a qual é impossível viver. Então, permanentemente, o espanto
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do poeta resulta que o tecido explicador do mundo se rompe e o mundo revela sua
inexplicabilidade. E isso faz com que a aventura humana nunca se esgote porque
exatamente na limitação do homem está a sua possibilidade”. (GULLAR, F., 2003,
p.30)
Tal ficção, enquanto resposta construída, ensejará sempre o equívoco; mas aí está
a possibilidade do sujeito escapar de uma alienação mortífera, posto que é na
impossibilidade de uma coincidência, de um encontro do desejo ao seu objeto, que
desdobrar-se-á, infinitamente, a cadeia significante. O desencontro, ou o encontro de
soslaio com o Real, mantém os delicados fios da cadeia nodulados. Clarice Lispector
mais uma vez tão bem nos diz disso:
“Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há
desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase
não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse
quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco
face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de
aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de
infinitamente outro nessa vida de que te falo. E eu vivo de lado- lugar onde a luz
central não me cresta”. (LISPECTOR, C., 1998, p.64)
Conclamando ao ato, é na esguelha do saber que a letra faz o Sinthome aparecer e
perfazer-se: solução ao ser para além das significações geridas pelo significante,
pontuando o sítio da necessária torção, a fim de falicizar o gozo Outro e “não
comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida”. De través, onde a
sideração não cresta por completo, a letra- Sinthome assinala o Real, trespassando-o e
restituindo à estrutura o nó, reiterando a “única forma de suportar a vida em cheio”.
Enquanto artifício, o Sinthome é solução frente ao malogro da linguagem e salva o ser da
voragem.
Afinal, quando Lacan, no Seminário 23, indica que a identificação ao Sinthome é
o que há de melhor ao sujeito no final de análise, é justamente por fazerem-se equivaler o
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irredutível deste à função do pai. Portanto, uma vez que a natureza do objeto o condena à
eterna repetição, o Sinthome seria o modo particular com o qual o sujeito reiteradamente
inscreve tal função, na lida eterna com o resto que o assola: função de nomear o ponto
real onde o gozo do Outro é entrevisto, nomeação necessária à manutenção da cadeia
significante, do falasser e da vida. O sujeito deixa de ter um sintoma e passa a ser o seu
Sinthome4. Aliás, vale ressaltar que Joyce não era louco porque era artista: é o que propõe
Lacan sobre a função da escrita enquanto Sinthome em James Joyce.
Clarice Lispector apresenta de maneira privilegiada isto que mantém a pulsação
de um nome constituído pelo ato de escrever. Demonstra-o através de sua obra que, tal
como em James Joyce, constitui-se um Sinthome. Indissociável daquilo que a sustém, a
escrita nestes termos manifesta o Traço unário, de um sujeito correlato ao resto que se lhe
escapa, constante na repetição de um estilo. A escrita do nome e o resto, nas palavras de
Clarice, “... eram sempre organizações de mim mesma. Agora sei, ah! Agora eu sei. O
resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o
meu nome. E acabei sendo o meu nome” (LISPECTOR, C., 1988). Uma letra como
indício de um estilo que ela faz cintilar na cadeia significante, uma letra tornada
Sinthome.
Tal literatura seria, assim, determinada pela tensão de um impossível de se dizer e,
o ofício do escritor, a possibilidade de algo disso ser dito. Tornada condição inexorável à
manutenção da vida, escrever faz-se o artifício diante do real d´alíngua e testemunha a
fundação da mesma: escrita instauradora de uma promessa, via aberta à dialética do ser e
do sentido. A esse respeito, o depoimento de alguns dentre aqueles que expressam e
demonstram o acima subscrito:
“A literatura, que me prometia uma resposta para o enigma da vida, lembrava-me
a morte, com seu mundo de letras pretas impressas em páginas amarelecidas.
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Ao saber lidar com os restos que restam e que dizem de uma marca índice de seu modo
particular de insistir com que os restos permaneçam restando, o sujeito faz Sinthome.
Nessa guinada, pela via de seu Sinthome, o sujeito rebate o gozo e testemunha a
transmissão de uma verdade inelutável: o real da não-relação sexual e do furo inerente a
língua. Furo este solidário ao não-saber, pela letra bordejado.
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Compreendi que a poesia devia captar a força e a vibração da vida ou não teria
sentido escrever. Nem viver. Mergulhei assim numa aventura cujas conseqüências
eram imprevisíveis -Ferreira Gullar”.( GULLAR, F., 2006, p. 148)
“ Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci
para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. (...) A
palavra é o meu domínio sobre o mundo... cada vez que vou escrever, é como se
fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade
de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e
escrever- Clarice Lispector”. (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2004, p.68)
Nas palavras do poeta, percebe-se o fazer ao qual o sujeito não se pode subtrair,
posto em ato por via da escrita. A imprevisibilidade conseqüente ao não-saber do saber
inconsciente, funda o ser na linguagem, lançando-o à venturosa busca pela palavra
catalizadora da vibração da vida, incessantemente.
A escrita não deixa mentir a Verdade d´alíngua: ela é não-toda, e o dom da fala
permite apenas um meio-dizer. O esforço humano pelo acesso à significação do Real,
subordina-se ao imaginário que, por sua vez, depende da circunscrição das bordas do
primeiro. Escrever é uma necessidade, claramente nos diz Clarice Lispector. À ela,
literalmente o que para todos corresponde ao escrever das bordas corporais, de onde o ser
se apóia e fala.
Em maio de 1976, o jornalista José Castello realiza a façanha de entrevistar
Clarice Lispector. Dialogam:
Diz ele: – “Por que você ainda escreve?
Clarice retruca: – A sua pergunta me insulta apesar de você não querer me insultar
(...) Por quê escrevo? Vou lhe responder com outra pergunta: - Por quê você bebe
água?
Castello titubeia: – Por quê bebo água? Porque tenho sede.
Clarice, finalmente: – Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu
também: escrevo para me manter viva”. (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2004, p.73)
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Em sua última entrevista5, ela confessava: “-Quando não escrevo, estou morta (...)
Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar
de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio”.
Mas nem toda passagem à escrita repousaria na tentativa de nodular RSI, bem
como nem todo escrito culminaria na assimilação de um nome próprio, cabendo a
questão, a saber, do porquê o artifício da escrita nem sempre culmina no Sinthome, seu
artefato.
No Seminário 23 Lacan já apontava que tais efeitos não procedem de qualquer
escrever e destaca o fato de nada acontecer à algumas pessoas quando estas simplesmente
escrevem suas memórias: não funciona, diz ele. Assim como não funciona, no entender
de Lacan, o procedimento de uma análise através de um escrito.
Isto porque o escrito que funciona tratar-se-ia da passagem de uma escrita à outra
escrita, importando delimitar o estatuto da letra no que ela opera na língua, seja a partir
da escrita cursiva e sobretudo na escrita literária. Eco desse a “cada vez que vou escrever,
é como se fosse a primeira vez”, numa criação que testemunha a primeira escrita,
renovada a cada ato.
Percebe-se, assim, que através de uma determinada produção literária estes três
termos –corpo, sujeito e linguagem- podem ser tomados como correlatos, devido ao fato
de constituírem-se enquanto instância da repetição de um resto. Deste modo, tal escrita é
admitida como manifestação e testemunho da inscrição do ser na linguagem e, uma vez
que são estas as leis responsáveis pela constituição corporal, o estatuto do corpo pode,
desde aí, também ser cotejado.
Portanto, admitir uma literatura que comporta os restos inassimiláveis do escritor
é considera-la produzida com as carnes deste: se o corpo é o primeiro livro onde se
inscrevem os traços que sustentarão um sujeito, o livro é um pedaço do sujeito que ali
escreve(-se). Disto fará conceber-se uma autoria e a conseqüente percepção de um estilo.
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Entrevista concedida à Júlio Lerner no programa Panorama Especial e levada ao ar
postumamente em 28.12.1977, pela tv Cultura.
A arte, o orifício, o ofício e o artifício da escrita: pontuações sobre o Sinthome- Luciana Del Nero.
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ℬibliografia:
•
CHATEL, M-M. Há um irredutível do pai? In. MOINGT, J. (org). Littoral do
Pai. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2002, p. 19-28.
•
DIDIER-WEILL, A. Lacan e a Clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa, 1995.
•
_________. Invocações. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
•
FREUD, S. Além do princípio do prazer. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1998. v.18.
•
GULLAR, F. In. I Ciranda de Psicanálise e Arte. Publicação da Escola
Lacaniana de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2003.
•
________. Sobre arte, sobre poesia- uma luz do chão. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006.
•
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira. Edição
especial sobre Clarice Lispector, n. 17 e 18, 2004.
•
_______. Seminário 18 (1971): D´un discours qui ne serait pás du semblant.
Publicação não comercial da Associação Freudiana Internacional.
•
_______. Seminário 20 (1972-73): Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.
•
_______. Seminário 23 (1976-77): Le Sinthome. Publicação não comercial
exclusiva para os membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
•
_______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
•
LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
•
________. Um sopro de vida-pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
•
________. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
•
REGO, C. Traço, letra, escrita. Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7letras,
2006.
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