æ resenhas
TUDO MUDOU PARA
QUE NADA MUDASSE:
A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS
Manoela Rossinetti Rufinoni
æ resenhas
TUDO MUDOU PARA QUE NADA MUDASSE:
A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS
Manoela Rossinetti Rufinoni
a
A leitura de A Cidade e a Lei:
legislação, política urbana e territórios
na cidade de São Paulo, de Raquel
Rolnik, analisa o percurso adotado pela
autora no estudo histórico sobre a
construção da legalidade urbanística na
cidade de São Paulo. A partir das
ambigüidades entre o discurso legal e a
produção real do espaço urbano, a
autora desvela as intrincadas relações
que permeiam as decisões legais,
aspectos de uma realidade política
presente na legislação urbana de
diversas cidades brasileiras. A leitura
da obra hoje, após a elaboração do
último Plano Diretor, permite que
analisemos
a
repercussão
e
continuidade dos mesmos processos
evidenciados pela autora.
The critical reading of The city and the
law: legislation, urban policy and
territories in the city of São Paulo, by
Raquel Rolnik, analyzes the way
adopted by the author in the historical
study on the construction of the urban
legality in the city of São Paulo. From
the ambiguities between the legal
speech and the real production of the
urban space, the author shows the
intricate relations that makes the legal
decisions, aspects of a political reality
present in the urban legislation of
others Brazilian cities. The reading of
that book today, after the elaboration
of the last City Master Plan, makes
possible
the
analysis
of
the
repercussion and continuity of the same
processes evidenced by the author.
Palavras-chave: Legislação urbana, história
urbana, São Paulo
Key words: Urban legislation, urban history,
São Paulo
æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07
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TUDO MUDOU PARA
QUE NADA MUDASSE:
A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS
Manoela Rossinetti Rufinoni
Em A Cidade e a Lei 1 , Raquel Rolnik analisa a história da legislação
urbanística em São Paulo a partir das relações entre o discurso
legal oficial e os aspectos econômicos, políticos e sociais que
incidem na produção real do espaço urbano. Neste percurso,
evidencia o papel da legalidade na construção e produção do
espaço da cidade por meio de abordagens diferenciadas dos
tradicionais estudos sobre São Paulo.
A construção dessa legalidade urbanística é “desmontada” de modo
a esclarecer que a sua maior representatividade no processo de
formação da cidade não é a estrita regulamentação expressa em
seus artigos. Muito além da definição de atos permitidos ou
proibidos, a lei estabelece fronteiras e pactos territoriais invisíveis;
a sua incidência ou negligência seleciona territórios urbanos e os
classifica e rotula de acordo com referências culturais mais
complexas.
1
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Fapesp, Studio Nobel,
1997. (The city and the law: legislation, urban policy and territories in the city of São Paulo (1886-1936). New York, 1995. Tese
(Doutorado) – History Department, New York University.
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Dessa forma, ao incidir ou não incidir em determinado espaço, ao
ser obedecida ou ao ser ignorada, a lei sinaliza aspectos culturais
responsáveis por sua criação e pelas formas de sua aplicação.
A exposição da autora busca evidenciar que a legislação urbana
não determina a produção da cidade a partir da aplicação de
moldes e padrões ideais. Na realidade, a maior parte do espaço
construído não é regulado pela legislação e sim pelo diálogo que
esta estabelece com a atividade imobiliária real, cujos
compromissos econômicos, políticos e sociais – não expressos em
nenhuma lei – determinam incisivamente uma geografia de
contrários, de espaços abarcados pela lei ou alheios a ela.
Tais “contrários”, no entanto, são desmascarados pela autora na
exposição histórica que revela a formação desta legalidade. Mais do
que territórios “opostos” (dentro e fora da lei, legal e ilegal...),
evidenciam-se espaços construídos a partir de dualidades que não
se contrapõem e sim se complementam. Desse modo, a autora
procura romper com a tensão entre o legal e o ilegal demonstrando
que, na história da construção da ordem urbanística paulistana, os
processos que determinaram fronteiras e territorialidades distintas
operaram de acordo com a mesma lógica de negociações. A
legalidade urbana, portanto, é concebida como um instrumento de
barganha: não é uma imposição e sim um campo de disputas,
formulada de modo a permitir o jogo de interesses políticos e
sociais.
O recorte temporal adotado é o período entre 1886, data da
promulgação de um Código de Posturas Municipais pioneiro no que
tange à regulamentação urbanística, e 1936, data da primeira
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anistia de imóveis irregulares na cidade. O período escolhido
abarca momentos históricos e políticos cruciais para a formulação
dessa ordem urbanística, desde o final do Império até o início do
período getulista. Apesar de abordar com maior profundidade esse
período específico, a autora extrapola o recorte para circunscrever
historicamente as análises elaboradas. Desse modo, busca as
origens dos princípios legais estudados ao abordar as bases
jurídicas de tradição portuguesa, anteriores à promulgação da Lei
de Terras, em 1850 e, de maneira análoga, prossegue suas
análises até o momento da publicação do livro em 1997, com
intuito de evidenciar as permanências dos processos históricos
analisados na prática urbana do final do século XX.
Ao discorrer sobre os antecedentes da Lei de Terras, Rolnik
destaca a origem remota das controvérsias – e diálogos... – entre a
forma inscrita na lei e a forma definida pela prática, no que
concerne à apropriação do espaço urbano. A definição do regime de
propriedade urbana pautado na concessão de sesmarias,
regulamentação presente nas ordenações protuguesas dos séculos
XV e XVI, é um dos principais aspectos legais que repercurtiu na
formulação da posterior ordem urbanística, e de suas “dualidades”.
A concessão de sesmarias, vigente até 1822, condicionava a posse
da terra ao seu uso produtivo. As terras, consideradas de
propriedade da Coroa e consignadas à Ordem de Cristo, eram
concedidas àquele que a cultivasse, mediante pagamento de dízimo
à Ordem. No entanto, a burocracia do processo e a inacessibilidade
para a maioria da população, faziam da concessão de sesmarias ou
de datas (espécie de sesmaria urbana), um mero instrumento
legal. Logo, a posse efetiva da terra acontecia independente da
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concessão formalizada pela Coroa ou Câmara. Estabelecia-se o
domínio por meio da ocupação e do uso produtivo, como pregava a
lei, mas sem a formalização oficial. Neste momento, a autora
evidencia a dualidade legal presente nas bases da lei de
propriedade urbana no Brasil: a coexistência de um sistema oficial
de concessão, acessível a poucos, e a realidade de posse informal,
legitimada pela lei, porém “extra-oficial”.
A promulgação da Lei de Terras, em 1850 2 , que define a
legalização da posse por meio da compra devidamente registrada,
circunscreve novos parâmetros para a ocupação urbana: a terra
passa a assumir o estatuto de mercadoria. Rolnik destaca que a
regulamentação e a consequente monetarização da terra surgem
atreladas às transformações políticas e econômicas que evidenciam
novos interesses em jogo. A partir da segunda metade do século
XIX, anuncia-se um processo de transformação no destino dos
investimentos das elites e nas fontes acumuladoras de riquezas.
A Lei de Terras, portanto, surge concatenada aos interesses
políticos e econômicos que evidenciam a necessidade de cunhar
novas regras para o jogo. Os novos moldes de posse territorial são
estabelecidos lado a lado aos contemporâneos sistemas de
acumulação de capital. Por um lado, o caminho em direção à
abolição apontava a necessidade de transpor a acumulação de
riqueza, antes baseada na posse de escravos, para outros bens e
investimentos – e o acúmulo de terras prestava bem este papel.
Por outro lado, a chegada dos primeiros imigrantes subvencionados
pelo governo impunha a necessidade de disciplinar o regime de
2
C.f.: BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850.
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posse da terra. Ao contrário do escravo, o trabalhador assalariado
poderia ocupar territórios e ameçar a supremacia das elites.
Assim, novos pactos territoriais são estabelecidos. A nova lei
representa mudanças na forma de ocupação dos espaços urbanos.
A separação entre propriedade e ocupação faz surgir a figura do
loteamento e do arruamento, ou seja, ordenações no desenho de
ruas e lotes antes da ocupação efetiva. Se no tecido colonial a
posse do chão acontecia no momento da edificação, sem
demarcações prévias, após a Lei de Terras, os limites precisos
passam a ser primordiais pois aos mesmos atribuir-se-á um valor e
um registro. Dessa forma, a cidade se redefine territorialmente a
partir do valor da terra. Grupos sociais distintos disputam o espaço
urbano, condicionando a fixação de valores no mercado imobiliário
e a distribuição de benfeitorias públicas.
As determinações legais do final do século XIX pretendem
gradativamente transformar o espaço público em um novo cenário
da nova vida pública, “um cenário limpo e ordenado que
correspondia à respeitabilidade burguesa com a qual a elite do café
se identificava” 3 .
Neste sentido, surgem limitações legais quanto à construção de
cortiços nas áreas mais valorizadas da cidade, notadamente no
centro, com o claro intuito de afastar a população pobre. Tais
políticas urbanas encontravam apoio seguro nas idéias higienistas e
sanitaristas que consideravam pobreza, doença, promiscuidade e
imoralidade, causas e efeitos indissociáveis.
3
ROLNIK, op. cit., p. 35.
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Raquel Rolnik analisa a dualidade na repercussão legal das idéias
sanitaristas, procurando destacar a constituição de um campo de
diálogos e interesses. Por um lado, o sanitarismo fornece a teoria
que subsidia a “limpeza” das áreas urbanas que se pretende
valorizar; por outro, incentiva a produção de habitações populares
salubres como um investimento lucrativo, porém em áreas
previamente determinadas: “os avanços da técnica urbanística
permitem garantir as condições higiênicas e moralmente
defensáveis e, simultaneamente, fazer investimentos urbanos
altamente lucrativos” 4 . Tais iniciativas evidenciam as origens de
um zoneamento urbano mascarado. Embora a idéia de zoneamento
só viesse integrar a legislação paulistana em 1972, a prática de
ocupação promovida pela lei já incorporava essa diretiva no início
do século XX. A mesma questão é evidenciada pela autora com
relação aos bairros residenciais de luxo.
Os bairros residenciais exclusivos, construídos desde o final do
século XIX, representaram uma mina de ouro para os
empreendedores imobiliários: grandes lotes, grandes recuos e altos
preços que definiam um território social precisamente delimitado.
Para garantir o sucesso de tais territórios de exclusão, foram
aprovadas leis específicas para essas áreas demarcando uma
característica muito evidente na construção da legalidade urbana
em São Paulo: a lei como instrumento de garantia e proteção dos
territórios das elites, determinando uma geografia social precisa.
Paralelamente, uma sucessão de leis definiram uma linha
imaginária que separava o chamado perímetro urbano, dentro do
4
Idem, p. 44.
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qual deveriam ser respeitados recuos e parâmetros construtivos, e
o “resto”, chamado de zona rural, onde não era obrigatório seguir
tais orientações, ou seja, onde a lei não precisava chegar. Dentro
do perímetro urbano ficavam as habitações das elites, o comércio,
fábricas não incômodas; fora dele, habitações populares e toda
construção ou ocupação considerada “indesejável”. Aqui ficam
novamente claras as dualidades legais defendidas pela autora. A lei
demarca os territórios da riqueza e da pobreza, incentivando a
ocupação das bordas da zona urbana pelos pobres, bem longe dos
bairros ricos. Neste território “extra-oficial”, onde a lei não precisa
agir, tampouco chegavam os serviços e melhoramentos públicos,
abundantes nos bairros exclusivos.
Dessa maneira, a chamada “legalidade” urbana foi “construída a
partir de um padrão único e supostamente universal, que
genericamente correspondia ao modo de vida das elites
paulistanas” 5 , definindo fronteiras que condenam usos e
apropriações territoriais alheias a tais padrões. Rolnik esclarece: “O
direito urbanístico, enquanto discurso e processo, funciona como
mecanismo de criação de um espaço (ainda que imaginário)
definidor de limites, domínios e hierarquias.” Tais limites não se
restringem à intervenção física; aos mesmos associam-se
significados sociais e políticos precisos. Mais uma vez, deste modo
determinados “territórios” são considerados indesejados e a
sucessão de leis segue em direção a seu expurgo ou
entrincheiramento dentro de limites suportáveis e não visíveis.
5
Ibidem.
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Neste processo, são estigmatizadas e desqualificadas as ocupações
estranhas ou ameaçadoras do padrão estabelecido: os territórios
negros oriundos da cidade colonial, os bairros de operários
imigrantes, os redutos de usos “não apropriados” como a
prostituição.
A legalidade e suas dualidades na demarcação e dissolução de
territórios configuraram mercados imobiliários, eixos de valorização
do solo e áreas prioritárias para a implementação de melhorias
públicas. Tal mercado caracterizou-se através da história por sua
dupla face: “Por um lado, são mais valorizadas as localidades
capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de
ocupação; por outro, valorizam-se os espaços altamente
diferenciados ou exclusivos.” 6 Dessa forma, para as classe
abastadas, a lei garantia, a partir do final do século XIX, a
exclusividade e qualidade dos bairros de luxo. Continuidade
observada anos mais tarde, quando os empreendedores da Cia City
associam-se às concessionárias de serviços públicos na garantia de
tais benfeitorias. Por outro lado, o crescimento demográfico, o
grande número de imigrantes e de trabalhadores assalariados
configurava outra demanda, bastante diferenciada da anterior,
porém igualmente lucrativa.
Com o Código Arthur Saboya, de 1929 7 , soma-se a esse quadro
um novo segmento do mercado imobiliário, a verticalização. Rolnik
faz um novo paralelo entre as dualidades estabelecidas pela prática
da lei: ao mesmo tempo em que o Código estabelece critérios e
restringe a verticalização somente para o centro da cidade, não
6
7
ROLNIK, op. cit., p. 101.
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 3427, de 19 de novembro de 1929.
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oferece alterações significativas com relação à aplicação de
parâmetros construtivos para o “resto” da cidade, alimentando o
crescimento horizontal dos subúrbios. A possibilidade de abrir
arruamentos privados sem autorização municipal – uma brecha na
lei que não se preocupava com especificidades no que tange aos
subúrbios – permite a livre ocupação dessas áreas definindo
novamente os citados limites invisíveis. Este espaço onde a lei não
precisa incidir, formado por “ruas particulares”, também não
recebe melhoramentos públicos. No próprio contrato das
companhias fornecedoras de serviços (luz, água, esgotos) estava
previsto um perímetro de atuação, definido como urbano: “o que
estava dentro era rapidamente valorizado; o que estava fora,
automaticamente excluído” 8 , ou seja, inexistiam para a
municipalidade.
Para Rolnik, o modelo de política imobiliária da primeira República
apoiou-se nessas dualidades: interesses privados, como os
empreendedores da Cia City, infiltrados no poder público e de mãos
dadas com as concessionárias de serviços garantem a rentabilidade
de loteamentos luxuosos; em contrapartida, o crescimento
horizontal da cidade real, sem regulamentação precisa, detentor
das maiores densidades demográficas, não usufrui dos serviços
públicos. Ou seja, os territórios populares não representaram
interesse para as políticas da República Velha.
Evidenciam-se, pois, as facetas políticas da legislação urbana, além
dos aportes econômicos (preponderantes?) e culturais. A partir da
Revolução de 1930, as classes médias e trabalhadoras passam a
8
ROLNIK, op. cit., p. 148.
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ser vistas como interlocutores políticos e o instrumento do voto
passa a influenciar os mecanismos públicos de intervir na cidade. O
povo agora deverá fazer parte das preocupações do poder público,
não “apenas” como ameaça à salubridade e à vida civilizada,
elementos aos quais estava associado na virada do século.
Esse modelo privatista e as relações políticas que o criaram entram
em crise na década de 1920. Durante toda a República Velha, o
governo era exercido pela elite dos fazendeiros de café. O povo era
considerado apenas como mão-de-obra e não possuía nenhuma
expressão política. A República trazia consigo o ranço de relações
patriarcais seculares, claramente expressas na maneira com que
procuravam moldar a cidade segundo seus valores. A
representação eleitoral era limitada e suspeita pois o voto não era
secreto e sim mediado por relações hierárquicas, baseadas em
laços de obediência, lealdade e promessas de oportunidades.
Rolnik demarca o período entre 1926 e 1930 como a transição
entre o modelo político da República Velha e o modelo de Estado
intervencionista, que se dirigirá às massas por meio de um discurso
nacionalista. No que tange às políticas urbanas, busca-se o
fortalecimento do papel do Estado na regulação dos serviços
públicos, antes nas mãos das concessionárias. O poder público
encarrega-se de grandes projetos urbanos que procuravam
assimilar o crescimento ilimitado da cidade, como o Plano de
Prestes Maia.
O Código de Obras em vigor, no entanto, contradizia a lógica dos
planos urbanísticos: para a lei, o território operário continuava na
penumbra dos parâmetros considerados oficiais.
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Outro aspecto de crucial importância sobre a construção da
legalidade urbana em São Paulo, anteriormente evidenciado sobre
outros enfoques, é a relação entre a parcela urbana construída na
lei e a construída fora dela. Segundo a autora, já na década de
1920 urbanistas alertavam para o fato de a cidade clandestina ser
maior do que a oficial; realidade permitida e talvez até
impulsionada pela própria legislação... ou por suas lacunas.
Situação inusitada que chega a criar dificuldades no emprego dos
termos para a descrição do fato: a autora refere-se à “cidade nãooficial”, ou à cidade “à margem da lei”, para denominar essas
extensas áreas construídas além do considerado perímetro urbano.
Mas esta “cidade” possuía uma legislação aplicável? Estava “fora da
lei” ou simplesmente não existia para a lei? A lei de 1923,
corroborada pelo Código Arthur Saboya, criou a possibilidade de
construção de ruas particulares sem a necessidade de plantas e
aprovações, e é sobre esta possibilidade que a cidade se expande.
Logo, a pouca regulamentação existente permitia a ocupação
“desordenada”, a lei “regulamentava” o laissez-faire.
Após 1930, o prefeito Anhaia Mello, intelectual defensor da gestão
“científica” da cidade, propõe medidas que procuram regulamentar
essa questão. Após várias propostas foram incorporadas mudanças
no Código Arthur Saboya com o intuito de atribuir o estatuto de
legalidade aos loteamentos antes inexistentes para a lei.
No novo Código, de 1934 9 , o conceito de “lotes situados em sítios
longínquos” foi subsitituído por “lotes situados ao longo de ruas ou
9
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Ato n. 663 de 10 de agosto de 1934.
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passagens sem melhoria pública” 10 . Novos limites, portanto, são
definidos: potencialmente qualquer localidade poderia receber
melhoramentos de infra-estrutura. Porém, o julgamento de quais
regiões receberiam o “favor” caberia à Diretoria de Obras Públicas,
órgão responsável por tais solicitações. Dessa forma, estabelece-se
um novo pacto territorial entre as classes dominantes e os demais
grupos sociais:
A velha ordem não se transformava para incorporar diferentes
formas de ocupação do espaço; ela apenas seletivamente tolerava
exceções à regra. Ao serem reconhecidas as exceções, ‘ganhavam’ o
direito de receber investimentos públicos, infra-estrutura e serviços
urbanos. As maiorias clandestinas entravam, então, na política
urbana, devendo um favor para aqueles que as julgaram
11
admissíveis.
Assim, os melhoramentos urbanos, a cidadania, é concedida como
uma relação de doação do Estado para o povo, ato benevolente
que pressupõe uma retribuição: “As melhorias obtidas pelos bairros
irregulares seriam retribuídas através do voto” 12 . A continuidade
desta política pode ser observada no Ato 1123 de 30 de junho de
1936, uma espécie de anistia para o terriório popular. Por meio de
artigos ambíguos, o decreto permitia a concessão de legalidade
para qualquer construção.
Esta ambiguidade não era um deslize e sim uma possibilidade de
gerar barganha, funcionando como forma de recrutamento político
do povo. O Estado é o árbitro absoluto e institui a legalidade a
partir de um mecanismo de concessão que espera a retribuição.
10
ROLNIK, op. cit., p. 168.
Idem, p. 169.
12
Idem, p. 170.
11
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Direitos do cidadão, democracia e voto – modernidades
incorporadas a um sistema antigo que permite a mudança, desde
que moldável aos seus objetivos.
As dualidades permanecem. Se por um lado anisitiavam bairros
populares, por outro consolidavam uma política de zoneamento
urbano com a clara incumbência de proteger os bairros ricos. “Os
dois tipos de política urbana estavam associados: quando a cidade
popular era anistiada, a cidade burguesa precisava se defender” 13 .
Neste processo, a estratégia das elites era clara: continuar
controlando seu espaço na cidade a partir da proteção de um
território de exclusividade.
A anistia e o zoneamento seletivo compunham os dois lados da
mesma moeda; eles representavam uma estratégia de política
urbana em São Paulo que deitou raízes tão profundas que
praticamente não ocorreram inovações legislativas até o final da
década de 60. Sua fundação teve a marca do compromisso
estabelecido na revolução de 1930: as massas chegaram ao poder
sem autodeterminação, subordinadas a um Estado populista e
protecionista, e as elites se deslocaram sem, no entanto, perder o
seu lugar. Isso quer dizer: tudo mudou para que nada mudasse. 14
O jogo de interesses permanece até o final do século XX. A Lei de
Uso e Ocupação do Solo, de 1972 15 , consagra o contraste entre o
ultra-regulamentado e o “resto” da cidade.
O zonemanento urbano define fronteiras precisas que demarcam o
valor do solo e suas significações sociais. As leis que
13
Idem, p. 173.
Idem, p. 174.
15
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7805, de 01 de novembro de 1972.
14
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regulamentavam os bairros luxuosos do começo do século, por
exemplo, foram incorporadas à lei de zoneamento na definição de
Z1, zona exclusivamente residencial de baixa densidade.
Outro aspecto apresentado pela autora é a discussão da construção
da legalidade para além da idéia de plano urbanístico. Nomes como
Anhaia Mello difundiram a idéia de plano urbano como processo
capaz de abarcar a totalidade das questões que compõem a cidade,
superando os conflitos no processo de sua produção. Diversos
planos que se seguiram apresentam a idéia de uma cidade
regulada na prancheta, por meio de levantamentos e minuciosas
tabelas e cronogramas.
O Plano Urbanístico Básico, de 1968 16 , e o PDDI, de 1971 17 ,
seguem esta diretiva. Os interesses que alimentam a aplicação
desses intrumentos, no entanto, “mudam mas permanecem”:
enquanto urbanistas empolgam-se com planos abstratos, os
empresários do ramo imobiliário preocupam-se com os coeficientes
de edificabilidade e os políticos cunham novas possibilidades de
barganha com as populações da periferia. Com maiores ou
menores similaridades, tais pactos permaneceram tanto durante a
ditadura quanto após a redemocratização, assumindo outras faces
ou disfarces.
Nos trechos finais do livro, a autora sinaliza possibilidades de
mudança nas regras do “jogo”. Apresenta a idéia de elaboração de
um novo plano diretor que tivesse por base a cidade real, e não o
desejo de moldar uma cidade ideal – conteúdo do discurso
16
17
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Plano Urbanístico Básico de São Paulo. São Paulo: PMSP, Secretaria de Obras, 1969.
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7688 de 30 de dezembro de 1971.
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municipal na década de 1990 – como um novo caminho para o
debate sobre a construção da legalidade urbana... Novos caminhos
que mantêm, no entanto, os liames dessa tradição histórica de
moldáveis permanências. Os processos evidenciados na leitura
ultrapassam interpretações datadas e se fazem presentes no
desenrolar dos fatos, dez anos mais tarde.
Analogamente às permanências e mudanças que permearam a
história da legalidade urbanística paulistana, o Plano Diretor
Estratégico do Município de São Paulo, de 2002 18 , sugere-nos a
recorrência
à
dualidades
semelhantes.
Permanecem
os
instrumentos de negociação, agora revestidos de roupagens mais
apropriadas. O povo como interlocutor político é chamado a opinar;
a gestão democrática e participativa assegura a suposta
participação popular nos processos decisórios e reitera os objetivos
dos antigos instrumentos políticos que esperavam retribuição.
Outros instrumentos regulamentados na nova lei, como a outorga
onerosa e a transferência do direito de construir, ilustram
dualidades semelhantes àquelas evidenciadas pela análise histórica
de Rolnik.
Com o intuito de “dinamizar o mercado imobiliário”, são prescritas
exceções à regra, trocas legais que garantem a possibilidade de
negociação.
Outro artigo prevê ainda a possibilidade de modificar índices e
características de parcelamento, uso e ocupação do solo, em áreas
predeterminadas, mediante contrapartida dos beneficiários.
18
C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 13.430, de 13 de setembro de 2002.
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Independente das possíveis críticas ou defesas dos instrumentos
adotados, suas intenções e metas, prevalece a observação
inequívoca dessas continuidades históricas e culturais. Em suma,
as regras transformam-se para garantir antigas conquistas,
privilégios ou parcerias, a velha política de “leopardos” 19 .
19
Referência ao filme italiano O LEOPARDO, (Il Gattopardo), de 1963. Baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi Di
Lampelusa.
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REFERÊNCIAS
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na
cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1997.
____________. The city and the law: legislation, urban policy and territories in
the city of São Paulo (1886-1936). New York, 1995. Tese (Doutorado) –
History Department, New York University.
BRASIL. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras).
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SOBRE A AUTORA
a
Manoela Rossinetti Rufinoni – Arquiteta e urbanista (FAU Mackenzie, 1997), Mestre
(2004) e Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela
FAU-USP. O presente ensaio foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. email: [email protected]
æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07
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