æ resenhas TUDO MUDOU PARA QUE NADA MUDASSE: A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS Manoela Rossinetti Rufinoni æ resenhas TUDO MUDOU PARA QUE NADA MUDASSE: A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS Manoela Rossinetti Rufinoni a A leitura de A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo, de Raquel Rolnik, analisa o percurso adotado pela autora no estudo histórico sobre a construção da legalidade urbanística na cidade de São Paulo. A partir das ambigüidades entre o discurso legal e a produção real do espaço urbano, a autora desvela as intrincadas relações que permeiam as decisões legais, aspectos de uma realidade política presente na legislação urbana de diversas cidades brasileiras. A leitura da obra hoje, após a elaboração do último Plano Diretor, permite que analisemos a repercussão e continuidade dos mesmos processos evidenciados pela autora. The critical reading of The city and the law: legislation, urban policy and territories in the city of São Paulo, by Raquel Rolnik, analyzes the way adopted by the author in the historical study on the construction of the urban legality in the city of São Paulo. From the ambiguities between the legal speech and the real production of the urban space, the author shows the intricate relations that makes the legal decisions, aspects of a political reality present in the urban legislation of others Brazilian cities. The reading of that book today, after the elaboration of the last City Master Plan, makes possible the analysis of the repercussion and continuity of the same processes evidenced by the author. Palavras-chave: Legislação urbana, história urbana, São Paulo Key words: Urban legislation, urban history, São Paulo æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 2 de 19 TUDO MUDOU PARA QUE NADA MUDASSE: A CIDADE E A LEI 10 ANOS DEPOIS Manoela Rossinetti Rufinoni Em A Cidade e a Lei 1 , Raquel Rolnik analisa a história da legislação urbanística em São Paulo a partir das relações entre o discurso legal oficial e os aspectos econômicos, políticos e sociais que incidem na produção real do espaço urbano. Neste percurso, evidencia o papel da legalidade na construção e produção do espaço da cidade por meio de abordagens diferenciadas dos tradicionais estudos sobre São Paulo. A construção dessa legalidade urbanística é “desmontada” de modo a esclarecer que a sua maior representatividade no processo de formação da cidade não é a estrita regulamentação expressa em seus artigos. Muito além da definição de atos permitidos ou proibidos, a lei estabelece fronteiras e pactos territoriais invisíveis; a sua incidência ou negligência seleciona territórios urbanos e os classifica e rotula de acordo com referências culturais mais complexas. 1 ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Fapesp, Studio Nobel, 1997. (The city and the law: legislation, urban policy and territories in the city of São Paulo (1886-1936). New York, 1995. Tese (Doutorado) – History Department, New York University. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 3 de 19 Dessa forma, ao incidir ou não incidir em determinado espaço, ao ser obedecida ou ao ser ignorada, a lei sinaliza aspectos culturais responsáveis por sua criação e pelas formas de sua aplicação. A exposição da autora busca evidenciar que a legislação urbana não determina a produção da cidade a partir da aplicação de moldes e padrões ideais. Na realidade, a maior parte do espaço construído não é regulado pela legislação e sim pelo diálogo que esta estabelece com a atividade imobiliária real, cujos compromissos econômicos, políticos e sociais – não expressos em nenhuma lei – determinam incisivamente uma geografia de contrários, de espaços abarcados pela lei ou alheios a ela. Tais “contrários”, no entanto, são desmascarados pela autora na exposição histórica que revela a formação desta legalidade. Mais do que territórios “opostos” (dentro e fora da lei, legal e ilegal...), evidenciam-se espaços construídos a partir de dualidades que não se contrapõem e sim se complementam. Desse modo, a autora procura romper com a tensão entre o legal e o ilegal demonstrando que, na história da construção da ordem urbanística paulistana, os processos que determinaram fronteiras e territorialidades distintas operaram de acordo com a mesma lógica de negociações. A legalidade urbana, portanto, é concebida como um instrumento de barganha: não é uma imposição e sim um campo de disputas, formulada de modo a permitir o jogo de interesses políticos e sociais. O recorte temporal adotado é o período entre 1886, data da promulgação de um Código de Posturas Municipais pioneiro no que tange à regulamentação urbanística, e 1936, data da primeira æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 4 de 19 anistia de imóveis irregulares na cidade. O período escolhido abarca momentos históricos e políticos cruciais para a formulação dessa ordem urbanística, desde o final do Império até o início do período getulista. Apesar de abordar com maior profundidade esse período específico, a autora extrapola o recorte para circunscrever historicamente as análises elaboradas. Desse modo, busca as origens dos princípios legais estudados ao abordar as bases jurídicas de tradição portuguesa, anteriores à promulgação da Lei de Terras, em 1850 e, de maneira análoga, prossegue suas análises até o momento da publicação do livro em 1997, com intuito de evidenciar as permanências dos processos históricos analisados na prática urbana do final do século XX. Ao discorrer sobre os antecedentes da Lei de Terras, Rolnik destaca a origem remota das controvérsias – e diálogos... – entre a forma inscrita na lei e a forma definida pela prática, no que concerne à apropriação do espaço urbano. A definição do regime de propriedade urbana pautado na concessão de sesmarias, regulamentação presente nas ordenações protuguesas dos séculos XV e XVI, é um dos principais aspectos legais que repercurtiu na formulação da posterior ordem urbanística, e de suas “dualidades”. A concessão de sesmarias, vigente até 1822, condicionava a posse da terra ao seu uso produtivo. As terras, consideradas de propriedade da Coroa e consignadas à Ordem de Cristo, eram concedidas àquele que a cultivasse, mediante pagamento de dízimo à Ordem. No entanto, a burocracia do processo e a inacessibilidade para a maioria da população, faziam da concessão de sesmarias ou de datas (espécie de sesmaria urbana), um mero instrumento legal. Logo, a posse efetiva da terra acontecia independente da æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 5 de 19 concessão formalizada pela Coroa ou Câmara. Estabelecia-se o domínio por meio da ocupação e do uso produtivo, como pregava a lei, mas sem a formalização oficial. Neste momento, a autora evidencia a dualidade legal presente nas bases da lei de propriedade urbana no Brasil: a coexistência de um sistema oficial de concessão, acessível a poucos, e a realidade de posse informal, legitimada pela lei, porém “extra-oficial”. A promulgação da Lei de Terras, em 1850 2 , que define a legalização da posse por meio da compra devidamente registrada, circunscreve novos parâmetros para a ocupação urbana: a terra passa a assumir o estatuto de mercadoria. Rolnik destaca que a regulamentação e a consequente monetarização da terra surgem atreladas às transformações políticas e econômicas que evidenciam novos interesses em jogo. A partir da segunda metade do século XIX, anuncia-se um processo de transformação no destino dos investimentos das elites e nas fontes acumuladoras de riquezas. A Lei de Terras, portanto, surge concatenada aos interesses políticos e econômicos que evidenciam a necessidade de cunhar novas regras para o jogo. Os novos moldes de posse territorial são estabelecidos lado a lado aos contemporâneos sistemas de acumulação de capital. Por um lado, o caminho em direção à abolição apontava a necessidade de transpor a acumulação de riqueza, antes baseada na posse de escravos, para outros bens e investimentos – e o acúmulo de terras prestava bem este papel. Por outro lado, a chegada dos primeiros imigrantes subvencionados pelo governo impunha a necessidade de disciplinar o regime de 2 C.f.: BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 6 de 19 posse da terra. Ao contrário do escravo, o trabalhador assalariado poderia ocupar territórios e ameçar a supremacia das elites. Assim, novos pactos territoriais são estabelecidos. A nova lei representa mudanças na forma de ocupação dos espaços urbanos. A separação entre propriedade e ocupação faz surgir a figura do loteamento e do arruamento, ou seja, ordenações no desenho de ruas e lotes antes da ocupação efetiva. Se no tecido colonial a posse do chão acontecia no momento da edificação, sem demarcações prévias, após a Lei de Terras, os limites precisos passam a ser primordiais pois aos mesmos atribuir-se-á um valor e um registro. Dessa forma, a cidade se redefine territorialmente a partir do valor da terra. Grupos sociais distintos disputam o espaço urbano, condicionando a fixação de valores no mercado imobiliário e a distribuição de benfeitorias públicas. As determinações legais do final do século XIX pretendem gradativamente transformar o espaço público em um novo cenário da nova vida pública, “um cenário limpo e ordenado que correspondia à respeitabilidade burguesa com a qual a elite do café se identificava” 3 . Neste sentido, surgem limitações legais quanto à construção de cortiços nas áreas mais valorizadas da cidade, notadamente no centro, com o claro intuito de afastar a população pobre. Tais políticas urbanas encontravam apoio seguro nas idéias higienistas e sanitaristas que consideravam pobreza, doença, promiscuidade e imoralidade, causas e efeitos indissociáveis. 3 ROLNIK, op. cit., p. 35. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 7 de 19 Raquel Rolnik analisa a dualidade na repercussão legal das idéias sanitaristas, procurando destacar a constituição de um campo de diálogos e interesses. Por um lado, o sanitarismo fornece a teoria que subsidia a “limpeza” das áreas urbanas que se pretende valorizar; por outro, incentiva a produção de habitações populares salubres como um investimento lucrativo, porém em áreas previamente determinadas: “os avanços da técnica urbanística permitem garantir as condições higiênicas e moralmente defensáveis e, simultaneamente, fazer investimentos urbanos altamente lucrativos” 4 . Tais iniciativas evidenciam as origens de um zoneamento urbano mascarado. Embora a idéia de zoneamento só viesse integrar a legislação paulistana em 1972, a prática de ocupação promovida pela lei já incorporava essa diretiva no início do século XX. A mesma questão é evidenciada pela autora com relação aos bairros residenciais de luxo. Os bairros residenciais exclusivos, construídos desde o final do século XIX, representaram uma mina de ouro para os empreendedores imobiliários: grandes lotes, grandes recuos e altos preços que definiam um território social precisamente delimitado. Para garantir o sucesso de tais territórios de exclusão, foram aprovadas leis específicas para essas áreas demarcando uma característica muito evidente na construção da legalidade urbana em São Paulo: a lei como instrumento de garantia e proteção dos territórios das elites, determinando uma geografia social precisa. Paralelamente, uma sucessão de leis definiram uma linha imaginária que separava o chamado perímetro urbano, dentro do 4 Idem, p. 44. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 8 de 19 qual deveriam ser respeitados recuos e parâmetros construtivos, e o “resto”, chamado de zona rural, onde não era obrigatório seguir tais orientações, ou seja, onde a lei não precisava chegar. Dentro do perímetro urbano ficavam as habitações das elites, o comércio, fábricas não incômodas; fora dele, habitações populares e toda construção ou ocupação considerada “indesejável”. Aqui ficam novamente claras as dualidades legais defendidas pela autora. A lei demarca os territórios da riqueza e da pobreza, incentivando a ocupação das bordas da zona urbana pelos pobres, bem longe dos bairros ricos. Neste território “extra-oficial”, onde a lei não precisa agir, tampouco chegavam os serviços e melhoramentos públicos, abundantes nos bairros exclusivos. Dessa maneira, a chamada “legalidade” urbana foi “construída a partir de um padrão único e supostamente universal, que genericamente correspondia ao modo de vida das elites paulistanas” 5 , definindo fronteiras que condenam usos e apropriações territoriais alheias a tais padrões. Rolnik esclarece: “O direito urbanístico, enquanto discurso e processo, funciona como mecanismo de criação de um espaço (ainda que imaginário) definidor de limites, domínios e hierarquias.” Tais limites não se restringem à intervenção física; aos mesmos associam-se significados sociais e políticos precisos. Mais uma vez, deste modo determinados “territórios” são considerados indesejados e a sucessão de leis segue em direção a seu expurgo ou entrincheiramento dentro de limites suportáveis e não visíveis. 5 Ibidem. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 9 de 19 Neste processo, são estigmatizadas e desqualificadas as ocupações estranhas ou ameaçadoras do padrão estabelecido: os territórios negros oriundos da cidade colonial, os bairros de operários imigrantes, os redutos de usos “não apropriados” como a prostituição. A legalidade e suas dualidades na demarcação e dissolução de territórios configuraram mercados imobiliários, eixos de valorização do solo e áreas prioritárias para a implementação de melhorias públicas. Tal mercado caracterizou-se através da história por sua dupla face: “Por um lado, são mais valorizadas as localidades capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação; por outro, valorizam-se os espaços altamente diferenciados ou exclusivos.” 6 Dessa forma, para as classe abastadas, a lei garantia, a partir do final do século XIX, a exclusividade e qualidade dos bairros de luxo. Continuidade observada anos mais tarde, quando os empreendedores da Cia City associam-se às concessionárias de serviços públicos na garantia de tais benfeitorias. Por outro lado, o crescimento demográfico, o grande número de imigrantes e de trabalhadores assalariados configurava outra demanda, bastante diferenciada da anterior, porém igualmente lucrativa. Com o Código Arthur Saboya, de 1929 7 , soma-se a esse quadro um novo segmento do mercado imobiliário, a verticalização. Rolnik faz um novo paralelo entre as dualidades estabelecidas pela prática da lei: ao mesmo tempo em que o Código estabelece critérios e restringe a verticalização somente para o centro da cidade, não 6 7 ROLNIK, op. cit., p. 101. C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 3427, de 19 de novembro de 1929. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 10 de 19 oferece alterações significativas com relação à aplicação de parâmetros construtivos para o “resto” da cidade, alimentando o crescimento horizontal dos subúrbios. A possibilidade de abrir arruamentos privados sem autorização municipal – uma brecha na lei que não se preocupava com especificidades no que tange aos subúrbios – permite a livre ocupação dessas áreas definindo novamente os citados limites invisíveis. Este espaço onde a lei não precisa incidir, formado por “ruas particulares”, também não recebe melhoramentos públicos. No próprio contrato das companhias fornecedoras de serviços (luz, água, esgotos) estava previsto um perímetro de atuação, definido como urbano: “o que estava dentro era rapidamente valorizado; o que estava fora, automaticamente excluído” 8 , ou seja, inexistiam para a municipalidade. Para Rolnik, o modelo de política imobiliária da primeira República apoiou-se nessas dualidades: interesses privados, como os empreendedores da Cia City, infiltrados no poder público e de mãos dadas com as concessionárias de serviços garantem a rentabilidade de loteamentos luxuosos; em contrapartida, o crescimento horizontal da cidade real, sem regulamentação precisa, detentor das maiores densidades demográficas, não usufrui dos serviços públicos. Ou seja, os territórios populares não representaram interesse para as políticas da República Velha. Evidenciam-se, pois, as facetas políticas da legislação urbana, além dos aportes econômicos (preponderantes?) e culturais. A partir da Revolução de 1930, as classes médias e trabalhadoras passam a 8 ROLNIK, op. cit., p. 148. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 11 de 19 ser vistas como interlocutores políticos e o instrumento do voto passa a influenciar os mecanismos públicos de intervir na cidade. O povo agora deverá fazer parte das preocupações do poder público, não “apenas” como ameaça à salubridade e à vida civilizada, elementos aos quais estava associado na virada do século. Esse modelo privatista e as relações políticas que o criaram entram em crise na década de 1920. Durante toda a República Velha, o governo era exercido pela elite dos fazendeiros de café. O povo era considerado apenas como mão-de-obra e não possuía nenhuma expressão política. A República trazia consigo o ranço de relações patriarcais seculares, claramente expressas na maneira com que procuravam moldar a cidade segundo seus valores. A representação eleitoral era limitada e suspeita pois o voto não era secreto e sim mediado por relações hierárquicas, baseadas em laços de obediência, lealdade e promessas de oportunidades. Rolnik demarca o período entre 1926 e 1930 como a transição entre o modelo político da República Velha e o modelo de Estado intervencionista, que se dirigirá às massas por meio de um discurso nacionalista. No que tange às políticas urbanas, busca-se o fortalecimento do papel do Estado na regulação dos serviços públicos, antes nas mãos das concessionárias. O poder público encarrega-se de grandes projetos urbanos que procuravam assimilar o crescimento ilimitado da cidade, como o Plano de Prestes Maia. O Código de Obras em vigor, no entanto, contradizia a lógica dos planos urbanísticos: para a lei, o território operário continuava na penumbra dos parâmetros considerados oficiais. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 12 de 19 Outro aspecto de crucial importância sobre a construção da legalidade urbana em São Paulo, anteriormente evidenciado sobre outros enfoques, é a relação entre a parcela urbana construída na lei e a construída fora dela. Segundo a autora, já na década de 1920 urbanistas alertavam para o fato de a cidade clandestina ser maior do que a oficial; realidade permitida e talvez até impulsionada pela própria legislação... ou por suas lacunas. Situação inusitada que chega a criar dificuldades no emprego dos termos para a descrição do fato: a autora refere-se à “cidade nãooficial”, ou à cidade “à margem da lei”, para denominar essas extensas áreas construídas além do considerado perímetro urbano. Mas esta “cidade” possuía uma legislação aplicável? Estava “fora da lei” ou simplesmente não existia para a lei? A lei de 1923, corroborada pelo Código Arthur Saboya, criou a possibilidade de construção de ruas particulares sem a necessidade de plantas e aprovações, e é sobre esta possibilidade que a cidade se expande. Logo, a pouca regulamentação existente permitia a ocupação “desordenada”, a lei “regulamentava” o laissez-faire. Após 1930, o prefeito Anhaia Mello, intelectual defensor da gestão “científica” da cidade, propõe medidas que procuram regulamentar essa questão. Após várias propostas foram incorporadas mudanças no Código Arthur Saboya com o intuito de atribuir o estatuto de legalidade aos loteamentos antes inexistentes para a lei. No novo Código, de 1934 9 , o conceito de “lotes situados em sítios longínquos” foi subsitituído por “lotes situados ao longo de ruas ou 9 C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Ato n. 663 de 10 de agosto de 1934. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 13 de 19 passagens sem melhoria pública” 10 . Novos limites, portanto, são definidos: potencialmente qualquer localidade poderia receber melhoramentos de infra-estrutura. Porém, o julgamento de quais regiões receberiam o “favor” caberia à Diretoria de Obras Públicas, órgão responsável por tais solicitações. Dessa forma, estabelece-se um novo pacto territorial entre as classes dominantes e os demais grupos sociais: A velha ordem não se transformava para incorporar diferentes formas de ocupação do espaço; ela apenas seletivamente tolerava exceções à regra. Ao serem reconhecidas as exceções, ‘ganhavam’ o direito de receber investimentos públicos, infra-estrutura e serviços urbanos. As maiorias clandestinas entravam, então, na política urbana, devendo um favor para aqueles que as julgaram 11 admissíveis. Assim, os melhoramentos urbanos, a cidadania, é concedida como uma relação de doação do Estado para o povo, ato benevolente que pressupõe uma retribuição: “As melhorias obtidas pelos bairros irregulares seriam retribuídas através do voto” 12 . A continuidade desta política pode ser observada no Ato 1123 de 30 de junho de 1936, uma espécie de anistia para o terriório popular. Por meio de artigos ambíguos, o decreto permitia a concessão de legalidade para qualquer construção. Esta ambiguidade não era um deslize e sim uma possibilidade de gerar barganha, funcionando como forma de recrutamento político do povo. O Estado é o árbitro absoluto e institui a legalidade a partir de um mecanismo de concessão que espera a retribuição. 10 ROLNIK, op. cit., p. 168. Idem, p. 169. 12 Idem, p. 170. 11 æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 14 de 19 Direitos do cidadão, democracia e voto – modernidades incorporadas a um sistema antigo que permite a mudança, desde que moldável aos seus objetivos. As dualidades permanecem. Se por um lado anisitiavam bairros populares, por outro consolidavam uma política de zoneamento urbano com a clara incumbência de proteger os bairros ricos. “Os dois tipos de política urbana estavam associados: quando a cidade popular era anistiada, a cidade burguesa precisava se defender” 13 . Neste processo, a estratégia das elites era clara: continuar controlando seu espaço na cidade a partir da proteção de um território de exclusividade. A anistia e o zoneamento seletivo compunham os dois lados da mesma moeda; eles representavam uma estratégia de política urbana em São Paulo que deitou raízes tão profundas que praticamente não ocorreram inovações legislativas até o final da década de 60. Sua fundação teve a marca do compromisso estabelecido na revolução de 1930: as massas chegaram ao poder sem autodeterminação, subordinadas a um Estado populista e protecionista, e as elites se deslocaram sem, no entanto, perder o seu lugar. Isso quer dizer: tudo mudou para que nada mudasse. 14 O jogo de interesses permanece até o final do século XX. A Lei de Uso e Ocupação do Solo, de 1972 15 , consagra o contraste entre o ultra-regulamentado e o “resto” da cidade. O zonemanento urbano define fronteiras precisas que demarcam o valor do solo e suas significações sociais. As leis que 13 Idem, p. 173. Idem, p. 174. 15 C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7805, de 01 de novembro de 1972. 14 æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 15 de 19 regulamentavam os bairros luxuosos do começo do século, por exemplo, foram incorporadas à lei de zoneamento na definição de Z1, zona exclusivamente residencial de baixa densidade. Outro aspecto apresentado pela autora é a discussão da construção da legalidade para além da idéia de plano urbanístico. Nomes como Anhaia Mello difundiram a idéia de plano urbano como processo capaz de abarcar a totalidade das questões que compõem a cidade, superando os conflitos no processo de sua produção. Diversos planos que se seguiram apresentam a idéia de uma cidade regulada na prancheta, por meio de levantamentos e minuciosas tabelas e cronogramas. O Plano Urbanístico Básico, de 1968 16 , e o PDDI, de 1971 17 , seguem esta diretiva. Os interesses que alimentam a aplicação desses intrumentos, no entanto, “mudam mas permanecem”: enquanto urbanistas empolgam-se com planos abstratos, os empresários do ramo imobiliário preocupam-se com os coeficientes de edificabilidade e os políticos cunham novas possibilidades de barganha com as populações da periferia. Com maiores ou menores similaridades, tais pactos permaneceram tanto durante a ditadura quanto após a redemocratização, assumindo outras faces ou disfarces. Nos trechos finais do livro, a autora sinaliza possibilidades de mudança nas regras do “jogo”. Apresenta a idéia de elaboração de um novo plano diretor que tivesse por base a cidade real, e não o desejo de moldar uma cidade ideal – conteúdo do discurso 16 17 C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Plano Urbanístico Básico de São Paulo. São Paulo: PMSP, Secretaria de Obras, 1969. C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7688 de 30 de dezembro de 1971. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 16 de 19 municipal na década de 1990 – como um novo caminho para o debate sobre a construção da legalidade urbana... Novos caminhos que mantêm, no entanto, os liames dessa tradição histórica de moldáveis permanências. Os processos evidenciados na leitura ultrapassam interpretações datadas e se fazem presentes no desenrolar dos fatos, dez anos mais tarde. Analogamente às permanências e mudanças que permearam a história da legalidade urbanística paulistana, o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, de 2002 18 , sugere-nos a recorrência à dualidades semelhantes. Permanecem os instrumentos de negociação, agora revestidos de roupagens mais apropriadas. O povo como interlocutor político é chamado a opinar; a gestão democrática e participativa assegura a suposta participação popular nos processos decisórios e reitera os objetivos dos antigos instrumentos políticos que esperavam retribuição. Outros instrumentos regulamentados na nova lei, como a outorga onerosa e a transferência do direito de construir, ilustram dualidades semelhantes àquelas evidenciadas pela análise histórica de Rolnik. Com o intuito de “dinamizar o mercado imobiliário”, são prescritas exceções à regra, trocas legais que garantem a possibilidade de negociação. Outro artigo prevê ainda a possibilidade de modificar índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo, em áreas predeterminadas, mediante contrapartida dos beneficiários. 18 C.f.: SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 13.430, de 13 de setembro de 2002. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 17 de 19 Independente das possíveis críticas ou defesas dos instrumentos adotados, suas intenções e metas, prevalece a observação inequívoca dessas continuidades históricas e culturais. Em suma, as regras transformam-se para garantir antigas conquistas, privilégios ou parcerias, a velha política de “leopardos” 19 . 19 Referência ao filme italiano O LEOPARDO, (Il Gattopardo), de 1963. Baseado no romance homônimo de Giuseppe Tomasi Di Lampelusa. æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 18 de 19 REFERÊNCIAS ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1997. ____________. The city and the law: legislation, urban policy and territories in the city of São Paulo (1886-1936). New York, 1995. Tese (Doutorado) – History Department, New York University. BRASIL. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras). SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 3427, de 19 de novembro de 1929. Código de Obras Arthur Saboya. São Paulo: Soc. Technica & Comercial, 1930. SÃO PAULO (Cidade). Ato n. 663 de 10 de agosto de 1934 (Código de Obras Arthur Saboya). SÃO PAULO (Cidade). Plano Urbanístico Básico de São Paulo. São Paulo: Prefeitura do Município, Secretaria de Obras, 1969. SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7688 de 30 de dezembro de 1971 (Plano Diretor do Desenvolvimento Integrado, PDDI-SP). SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 7805, de 01 de novembro de 1972 (Lei de Zoneamento). SÃO PAULO (Cidade). Lei n. 13.430, de 13 de setembro de 2002. Plano Diretor Estratégico 2002-2012. São Paulo: SEMPLA, 2002. CD-ROM. SEMPLA (Org.). Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, 2002-2012. São Paulo: Senac, PMSP, 2004. SOBRE A AUTORA a Manoela Rossinetti Rufinoni – Arquiteta e urbanista (FAU Mackenzie, 1997), Mestre (2004) e Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU-USP. O presente ensaio foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. email: [email protected] æ resenhas - Tudo mudou para que nada mudasse: a cidade e a lei 10 anos depois por Manoela R. Rufinoni - Vol.II N 2 Jun.07 o Página 19 de 19