radar transições 1941-2015 Jornalista de corpo e alma Deixou-nos Daniel Ricardo POR JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS Era um exemplo de dedicação, ou mesmo devoção, ao jornalismo; de consciência e empenhamento profissional; de competência e gosto por editar textos, e por ensinar, em particular os mais novos, tanto ao nível da Escola como da prática; de disponibilidade para os trabalhos e os combates dos organismos ligados à classe e a estas matérias. Trabalhava na VISÃO desde o seu início, pertencendo por isso à sua equipa fundadora, mas já vinha, desde 1981, de O Jornal, que a nossa revista substituiu. Sempre teve funções de responsabilidade, atualmente a de editor executivo do gabinete editorial, que assumia por inteiro, com exigência e rigor. E trabalhava, pro bono, de forma obsessiva, naqueles organismos. Tinha 73 anos e continuava a ser assim, mesmo depois de diagnosticado um cancro do pulmão, de ter feito quimioterapia (durante a qual continuou sempre a trabalhar) e sido operado. Chamava-se Daniel Ricardo e morreu na madrugada da passada sexta-feira, 13, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Nesse hospital voltara a ser internado, com uma infeção, alguns dias atrás, pouco mais de 48 horas apenas após ter regressado a casa de um primeiro internamento. Nesse curto regresso, anunciara-nos, desgostoso: «O médico ainda não me deixa ir trabalhar, como eu queria. Diz que preciso de algum tempo de descanso. Mas espero voltar para a semana.» Não voltou, deixando um vazio nesta nossa e sua casa, entre os camaradas e os amigos. As últimas vezes em que foi possível falar com o Daniel, apesar do estado em que se encontrava, as suas preocupações eram sempre as mesmas. A saber: como estava a revista e quando poderia regressar ao trabalho, o que desejava ardentemente fosse no mais curto prazo; como ia o Curso de Pós-Graduação em Jornalismo Multiplataforma da Universidade Nova com a Impresa (proprietária da VISÃO), de que era um dos coordenadores, professor e responsável pelos estágios; e como ia a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, de que em representação dos seus pares há 13 anos era ativíssimo membro, um dos três do secretariado da comissão permanente. Daniel (Caldas Gomes) Ricardo nasceu em Lisboa, a 5 de maio de 1941, filho de um oficial do Exército e de uma professora de música. Em Lisboa fez a escola primária e o liceu, este primeiro no Camões, depois no Pedro Nunes e no Passos Manuel, onde teve o seu primeiro jornalinho, o Initia. Aluno da Faculdade de Direito de Lisboa, curso que abandonou no quarto ano a favor do jornalismo, participou militantemente na vida associativa e nas lutas estudantis do início dos anos 60, sendo o secretário-geral das (alegais...) Inter-Pedagógicas, que organizaram o I Festival de Cinema Didático. Entretanto colaborara no afamado Juvenil do Diário de Lisboa e num programa para jovens, Nova Vaga, da Rádio Renascença – que, é claro, durou poucos meses. Em 1965, Daniel Ricardo (DR) foi chamado para a tropa e em 1968 26 v 19 DE FEVEREIRO DE 2015 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - [email protected] - 188.81.3.91 (19-02-15 06:11) 2 1 3 4 Uma vida cheia 1. Na redação da VISÃO 2. Na apresentação dos Se7es de Ouro, do jornal Se7e, de que foi diretor-adjunto 3. N'A Capital. 4. Com Cáceres Monteiro, primeiro diretor da VISÃO, seu amigo desde 1968 (ficou lá até 69, mas sem ir para a guerra) entra para a redação do novo vespertino A Capital. Foi o princípio de uma carreira, e o início de uma paixão, que só terminaria com a sua morte. Entretanto casara com Maria Manuel Calvet de Magalhães, com quem viria a ter quatro filhos e quatro netos. Em A Capital, ainda antes do 25 de Abril, DR integrou a chefia de uma redação em que brilhava um grande repórter, Manuel Beça Múrias, e a que pertencem outros jovens, como o nosso querido e saudoso camarada Cáceres Monteiro, primeiro diretor da VISÃO, e Luís Almeida Martins. Os três da equipa fundadora, em 1975, de O Jornal, um projeto único, propriedade dos jornalistas, ao qual Daniel – que também tinha sido repórter das revistas A Flama e O Século Ilustrado – chegaria em 1981. Após A Capital, em 1975, então militante do PCP, DR transitaria para o Diário de Notícias, e daí para O Diário, em ambos os casos também em cargos de chefias de redação. Quando convidámos o Daniel para a empresa de O Jornal, que já tinha várias publicações, sabíamos das suas qualidades profissionais, de organização e de trabalho – e uma vez mais lhe demos responsabilidades de chefia. A certa altura, a de diretor-adjunto do Se7e, que foi, com êxito, o primeiro semanário português de espetáculos. Claro que haveria inúmeras histórias a contar dos nossos cerca de 34 anos de trabalho juntos. Recordo apenas uma, que me emocionou e dá bem ideia de como o Daniel via o exercício do jornalismo. Uma noite, estávamos a fechar O Jornal, e o Daniel teve um telefonema a dizer que uma filha tivera um problema de saúde ou um acidente que se temia de gravidade. O Daniel lá foi a correr, no estado que se imagina. Mas eram para aí 2 da manhã, e com espanto nosso voltou: estava muito preocupado com a filha, mas «podia ser preciso qualquer coisa...». Ao longo dos anos, DR foi-se tornando, cada vez mais, um estudio- so do jornalismo e seu ensino, do mesmo passo que se especializava na edição de texto. Não consigo imaginar quantos milhares de notícias, entrevistas, reportagens, seriam outra coisa, bem pior, sem a sua «intervenção», ao nível da estrutura e organização da matéria, do ângulo de abordagem, da abertura e/ ou do fecho, da escrita, da simples correção sintática e gramatical. Nem consigo calcular quantas dezenas ou centenas de profissionais e estagiários aprenderam com ele, que ficava anónimo: muitos o lembrarão e reconhecerão, alguns chamando-lhe até mestre. Tudo isto, e aquele gosto por – e pendor para – ensinar, fizeram com que passasse a dar aulas de Jornalismo, primeiro, em 1978, no Ensino Secundário, depois, a partir de 1980, também no Cenjor, a cujo Conselho Pedagógico pertenceu, em ações promovidas pelos próprios media e em universidades, etc. E fizeram com que fosse autor dos livros de estilo de O Jornal e da VISÃO; de (em coautoria com José Jorge Letria) Manual do Jornalista e O Jornalismo Explicado aos Jovens; e, por último, de Ainda bem que me pergunta, o «1.° Manual de Escrita Jornalística editado em Portugal», em 2003, com uma reedição, atualizada e ampliada, em 2013: um livro que só podia ser escrito por quem aliava uma sólida formação teórica, uma exigente prática profissional e uma rica experiência pedagógica. Ao mesmo tempo, DR esteve sempre nos bons combates e nos órgãos de classe dos jornalistas. Como no Sindicato, em que até ao fim pertenceu ao Conselho Geral. Como no Clube de Jornalistas, de que foi um dos fundadores, de que era presidente do Conselho Fiscal e cujos júris dos prémios Gazeta sempre integrou. Como na referida Comissão da Carteira, a que se dedicou de corpo e alma – e quando há uns anos, numa atitude incompreensível, a direção do Sindicato não o incluiu na sua lista, promovemos uma outra, encabeçada por si, que significativamente venceu a eleição por larga margem. Enfim, repito, o nosso Daniel Ricardo foi um jornalista exemplar. Com um papel importante nas redações onde esteve, mormente aqui na VISÃO, que foi aquela em que esteve mais tempo. Pertencendo – permitam que cite o que escrevi no prefácio àquele seu último livro – «ao grupo dos jornalistas ‘não mediáticos’, que não aparecem nas televisões, não assinam grandes reportagens, notícias de estrondo ou textos de opinião. E que, no entanto, desempenham um papel indispensável, e amiúde decisivo, para a qualidade dessas ‘matérias’ jornalísticas, bem como de muitas outras menos ‘vistosas’, mas de que igualmente todos os órgãos de comunicação social se fazem». Um jornalista exemplar, insisto. O que não se pode ser sem, também, as qualidades humanas e o espírito solidário que ele tinha. Vai fazernos, já nos faz, muita falta. 19 DE FEVEREIRO DE 2015 v 27 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - [email protected] - 188.81.3.91 (19-02-15 06:11)