UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA LITERATURA, CINEMA E JORNALISMO: MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E GUERRA NO ROMANCE E NO FILME O TEMPO E O VENTO E NOS JORNAIS O POVO E A FEDERAÇÃO Laísa Veroneze Bisol Frederico Westphalen, outubro de 2014. Laísa Veroneze Bisol LITERATURA, CINEMA E JORNALISMO: MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E GUERRA NO ROMANCE E NO FILME O TEMPO E O VENTO E NOS JORNAIS O POVO E A FEDERAÇÃO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Luana Teixeira Porto, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Frederico Westphalen, outubro de 2014. UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LITERATURA COMPARADA A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertação de Conclusão de Curso LITERATURA, CINEMA E JORNALISMO: MEMÓRIA, VIOLÊNCIA E GUERRA NO ROMANCE E NO FILME O TEMPO E O VENTO E NOS JORNAIS O POVO E A FEDERAÇÃO elaborada por Laísa Veroneze Bisol Como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Letras 3 COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________________________ Profa. Dra. Luana Teixeira Porto – URI (Presidente/Orientadora) ______________________________________________________ Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto – URI ______________________________________________________ Prof. Dr. Flavi Lisboa Filho – UFSM Frederico Westphalen, outubro de 2014. Aos meus pais, Altair Bisol e Beatriz Bisol. “Se o conhecimento não se transformar em amor, se o amor não se transformar em vida, permaneceremos eternamente caricaturas”. Padre José Kentenich AGRADECIMENTOS “Sonho que sonhamos só, é só um sonho, sonho e nada mais. Sonhos que sonhamos juntos, deixam de ser sonhos só”. (Jorge Marino). Sabendo que somente o que provém do humano não basta para suportar todas as dificuldades e superar todos os obstáculos e tampouco se faz suficiente para transbordar a verdadeira felicidade, agradeço a Deus Pai, e a querida Mãe Três Vezes Admirável de Schoenstatt, meu porto seguro, luz da minha vida. A todos os que sonharam, junto comigo, para que o sonho se concretizasse. Aos que apoiaram, auxiliaram, acompanharam, ouviram, ou torceram, ainda que de longe: muito obrigada! Ao meu pai, Altair Bisol, que mesmo às vezes sem compreender em plenitude o que eu tanto escrevia, acompanhou cada etapa, interessando-se, perguntando, incentivando, me abençoando e, especialmente, vivenciando junto comigo cada passo desta caminhada, assim como fez durante toda a minha vida. A ele, que é meu grande exemplo. A minha mãe, Beatriz Bisol, que por muitas vezes escutou as minhas angústias, sendo aquela que esteve diariamente ao meu lado, preocupada com as minhas madrugadas sem dormir e até deixando a televisão ligada em volume baixinho para eu ter “companhia” no silêncio noturno. Ela que se alegra e vibra e que acreditou sempre, junto comigo. As minhas irmãs Myrian Bisol Hoff e Márcia Bisol, por terem sido minhas inspirações desde criança, exemplos de luta e pilares de apoio em vários momentos da vida. Elas que eu, ainda com pouca idade, via saírem para ir à universidade e assim pensava, naturalmente, que era isso que um dia eu faria também. Agradeço, ainda, ao meu cunhado Alexandre Hoff, que é parte muito importante da nossa família e sempre foi um incentivador nas minhas escolhas. Ao meu sobrinho e afilhado Lucas Eduardo Hoff, que, mesmo ainda pequenino, é um dos maiores motivos da minha felicidade, trazendo força quando ela termina, trazendo paz quando tudo parece obscuro, trazendo alegria para a minha vida, um verdadeiro anjo que Deus enviou para a nossa família. 7 A professora Luana Teixeira Porto, que mais do que orientadora deste trabalho, foi uma das maiores incentivadoras da minha caminhada rumo a esta e outras conquistas. Uma pessoa que além de riquíssimos saberes acadêmicos, transmite, com muita humanidade, ensinamentos para a vida, sendo, durante este processo, muitas vezes, o impulso para que eu ouse ir sempre além. Aos amigos e amigas que estiveram ao meu lado para ouvir e apoiar, que convidaram para momentos de descontração a fim de que eu revigorasse as forças para retomar os estudos, por me ouvirem, ou, simplesmente, por entenderem minhas ausências. Por acreditarem em mim. Pela torcida, pela companhia, pelo incentivo, pelos sorrisos. Pricila Fernandes Pflüger, Mariana Della Méa Correa, Fhaira Meyer, Jéssica Furini do Amarante, Letícia Sangaletti, Heloise Cherentin Santi, Bruna Frizon, Vanessa Scopel, de modo especial a vocês, muito obrigada. A Invernada Artística do CTG Rodeio da Querência por, através de seus componentes, ter me proporcionado momentos valiosos de arte, inspiração, aprendizagem e entretenimento. A todos os colegas de trabalho que passaram pelo setor de Comunicação da URI – FW, durante este tempo, incentivando e se alegrando comigo em cada etapa completada. Agradeço, particularmente a Jeane da Luz, que se emocionou quando fui selecionada e preocupou-se sempre, apoiando e acreditando; André Forte, o “queridão”, pelas conversas, risadas, troca de ideias e por ter contribuído para o êxito no registro fotográfico da pesquisa com os jornais; Philipe Portela; Silvana Kliszcz; Caroline de Oliveira; Pamela de Almeida, Taiane Boligon, Jéssica Furini, Valencio Marcolin. A cada um, que de sua maneira, acompanhou este processo, muito obrigada. Aos professores do Mestrado em Letras: Ana Paula Teixeira Porto, Denise Almeida da Silva, Lizandro Carlos Calegari, Luana Teixeira Porto, Maria Thereza Velozo e Silvia Niederauer, que deram a base para que tudo fosse possível, especialmente àqueles que sempre incentivaram de perto esta caminhada, auxiliando, cada um ao seu modo, para o crescimento acadêmico e pessoal que, sem dúvida, obtive neste tempo. Agradeço, de modo particular, a professora avaliadora da banca de defesa que faz parte do Programa de Pós-graduação da URI, Ana Paula Teixeira Porto, e ao professor Flavi Ferreira Lisboa Filho, da Universidade Federal de Santa Maria, pelas valiosas contribuições ao trabalho. 8 Às colegas do mestrado, pelas conversas e trocas de saberes e ideias. Aos professores da graduação em Jornalismo, Cássio Tomaim, Débora Freire e Fernanda Pedrazi, que auxiliaram com palavras de incentivo e sugestões de bibliografias para estudo. Ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, na pessoa dos seus funcionários, tão atenciosos e prestativos, pelo aporte para a pesquisa dos jornais do século XIX. À Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, por possibilitar esta conquista através do ensino de excelência. Muito obrigada! 9 RESUMO Este trabalho aborda o modo como as temáticas da violência e da guerra são representadas em diferentes discursos de ordem ficcional e não-ficcional com o intuito de verificar qual a memória histórico-social é constituída a partir destas narrativas. Para tanto, selecionamos as revoluções Farroupilha e Federalista, ocorridas no Rio Grande do Sul, e desta forma podemos também estabelecer as relações entre os temas e a questão do orgulho relativo à tradição gaúcha. Os objetos de estudo desta dissertação permeiam três séculos de representações, sendo: os jornais O Povo e A Federação, publicações jornalísticas – não-ficcionais –, do século XIX, tempo em que ocorreram as revoluções; a obra literária escrita por Erico Verissimo O tempo e o vento, mais especificamente a primeira parte da trilogia, O Continente, que no século XX abordou estas questões; e, ainda, o filme O tempo e o vento, de direção de Jayme Monjardim, longa produzido no século XXI, baseado na obra de Verissimo. A partir dos estudos acerca da representação e da memória e especialmente após as análises dos textos que compõem o corpus da pesquisa, constatamos que os três discursos abordam a problemática de uma maneira muito sutil, legando à memória histórico-social versões pouco reflexivas em torno das guerras ou episódios violentos. Os periódicos, por representarem partidos, emitem uma opinião exclusiva sobre os temas, enquanto o livro de Verisssimo proporciona uma dualidade de situações e, o filme de Monjardim superestima outros elementos em detrimento da problemática da violência. Palavras-chave: Representação. Memória. O tempo e o vento. O Continente. O Povo. A Federação. 10 ABSTRACT This paper addresses how the themes of violence and war are represented in different discourses of fictional and non-fictional order in order to verify which is the historical-social memory formed from these narratives. We selected the Farroupilha and the Feredalist revolutions, that occurred in Rio Grande do Sul, and this way we can also establish the relationships between the themes and the issue of pride on the gaucho tradition. The objects of study of this dissertation permeate three centuries of representations, being: the newspapers O Povo and A Federação, journalistic publications - nonfiction – from the 19th century, time when the revolutions occurred; the literary work written by Erico Verissimo O tempo e o vento, specifically the first part of the trilogy, O Continente, which in the 20th century addressed these issues; and also the movie O tempo e o vento directed by Jayme Monjardim, feature film produced in the 21st century, based on the work of Verissimo. From the studies of representation and memory and especially after the analysis of the texts that make up the corpus of the research, we noticed that the three discourses address the issue in a very subtle way, bequeathing to the historical-social memory little reflective versions around wars or violent episodes. The periodicals, as representing parties, emit a unique view on the topics, while the Verisssimo’s book provides a duality of situations and the Monjardim’s movie overestimates other elements to the detriment of the problematic of violence. Keywords: Representation. Memory. O tempo e o vento. O Continente. O Povo. A Federação. 11 LISTA DE IMAGENS IMAGEM 1 – PRIMEIRA EDIÇÃO DO JORNAL O POVO IMAGEM 2 – JORNAL A FEDERAÇÃO IMAGEM 3 – PAISAGEM TRADICIONALISTA NO FILME O TEMPO E O VENTO IMAGEM 4 – MORTE DO ÍNDIO PEDRO IMAGEM 5 – DUELO ENTRE CAPITÃO RODRIGO E AMARAL IMAGEM 6 – ENCONTRO DE BIBIANA, JÁ IDOSA, COM A ALMA DO CAPITÃO 12 SUMÁRIO A GUERRA E A VIOLÊNCIA NO RIO GRANDE DO SUL NO DISCURSO ARTÍSTICO E JORNALÍSTICO: UMA PROPOSTA DE LEITURA ................................ 13 1 REPRESENTAÇÃO E MEMÓRIA DA GUERRA E DA VIOLÊNCIA ..................... 27 1.1 Conceito de representação .............................................................................. 27 1.2 Construção da memória ................................................................................... 36 1.3 Representação da guerra e da violência no discurso ficcional e nãoficcional .................................................................................................................... 47 2 A GUERRA E A VIOLÊNCIA NO DISCURSO JORNALÍSTICO DO SÉCULO XIX 55 2.1 A imprensa escrita do século XIX .................................................................... 55 2.2 A referenciação à guerra e à violência no discurso de O Povo .................... 66 2.3 A referenciação à guerra e à violência no discurso de A Federação ........... 83 3 GUERRA, VIOLÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO FICCIONAL DO ROMANCE O TEMPO E O VENTO ........................................................................................... 100 3.1 O romance O tempo e o vento ....................................................................... 100 3.2 Imagens das guerras....................................................................................... 110 3.3 Leitura da violência e memória da narrativa ................................................. 139 4 A IMAGEM DA GUERRA E DA VIOLÊNCIA NO DISCURSO FICCIONAL DO FILME O TEMPO E O VENTO ................................................................................ 151 4.1 O tempo e o vento: cinema, história e vida social ....................................... 151 4.2 A espetacularização da violência na narrativa fílmica ................................. 161 4.3 A glamourização da guerra e a memória histórico-social das revoluções gaúchas .................................................................................................................. 171 DIÁLOGOS E DIVERGÊNCIAS .............................................................................. 187 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 192 A GUERRA E A VIOLÊNCIA NO RIO GRANDE DO SUL NO DISCURSO ARTÍSTICO E JORNALÍSTICO: UMA PROPOSTA DE LEITURA Dentre temas que fazem parte do imaginário e da cultura brasileira, a guerra e a violência são tópicos que podem ser apontados como constantes na história social do Brasil. Talvez por isso e, certamente pela sua intensidade, tais temas são também abordados amplamente nos diversos discursos ficcionais e não-ficcionais e atuam como objetos de reflexão nas artes, como na pintura, na fotografia, no cinema e na literatura. Desta forma, podemos encontrar a representação destes dois tópicos que fazem parte da história da humanidade em diversas narrativas ficcionais da cultura brasileira. A criminalidade e a violência generalizada aparecem, por exemplo, no livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, que mais tarde também se tornou base para produção cinematográfica, com o longa de mesmo nome, dirigido por Fernando Meirelles. O discurso de Cidade de Deus evidencia temores e brutalidade em uma favela do Rio de Janeiro, através de uma história que, embora fictícia, baseia-se em fatos reais descritos por um jornalista que habitava o local e narra episódios que trazem à tona temas como a criação das favelas, a violência, inclusive com as crianças, o tráfico de drogas e o cotidiano dos habitantes do lugar, que vivem cercados pelo medo, pelos conflitos e pela morte. Ao considerarmos a literatura sulrio-grandense, dentre os diversos exemplos, temos Simões Lopes Neto com os Contos Gauchescos, que têm como cenário o pampa rio-grandense e a exaltação do espírito heroico do povo, especialmente em tramas discursivas envolvendo a Revolução Farroupilha. Um desses contos, “Duelo de Farrapos”, presente na obra Contos gauchescos & lendas do Sul, narra um grande duelo, entre Bento Gonçalves e Onofre Pires, famosas figuras da história do Rio Grande do Sul, batalha esta que resultou na morte de Pires, trazendo um discurso que apresenta uma violenta batalha, em que as diferenças entre as personagens culminaram em golpes de espada e muito sangue. Já nas artes plásticas citamos como exemplo os painéis do pintor brasileiro, Candido Portinari, Guerra e Paz que, sendo produzidos entre 1952 e 1956, representam, através de expressões de sofrimento, a guerra e violência, imagens chocantes que, para além da estética, permitem repensar as situações daquela 14 época, mas também proporcionando uma releitura de episódios de sofrimento vivenciados atualmente pela sociedade. A denominada fotografia comprometida do brasileiro Sebastião Salgado também se enquadra nas artes se considerarmos que o fotógrafo utiliza-se deste recurso a fim de desenhar, com luz, mazelas sociais. As impactantes imagens clicadas por Salgado representam os mais diferentes tipos humanos e seu sofrimento. Exemplo disso são as fotografias da mina de Serra Pelada, registradas em 1986, em que são evidentes as cenas de briga entre trabalhadores e militares, e, ainda, as imagens em Kilumba - Ruanda, 1994, que apresentam os corpos empilhados pelo trator do exército francês. Tais situações se fazem conhecidas através destes registros e, assim, possibilitam a visão de mundo sob a perspectiva daqueles que sofrem. Em relação à abordagem das artes em torno da temática da violência, de modo específico, ora de forma mais crítica, ora de forma mais referencial, cabe fazer alusão à pesquisa de Jaime Ginzburg (2013), que aponta a grande importância do debate sobre este tema que permeia a sociedade. Segundo o autor, a violência não é justificável em nenhuma hipótese e, através da análise do discurso literário, tornase possível, por exemplo, refletir sobre o que motiva as personagens a agirem de forma violenta. Ginzburg exemplifica esta possibilidade de reflexão através da obra História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges, que reúne contos em que as personagens cometem atos questionáveis, apresentando figuras malignas que, por exemplo, cometem homicídio e não sentem culpa por isso. Ginzburg comenta a respeito destas narrativas: O fato de o livro reunir um conjunto de figuras malignas aponta para a pergunta exigente: por que, em diversos pontos do mundo, em diferentes épocas, surgem seres humanos capazes de realizar os mais variados horrores contra outros seres humanos? Se, por um lado, o painel sugere uma generalização, colocando uma pergunta sobre até onde vai a especificidade dos personagens dotados de habilidade para o mal, por outro, o livro particulariza a análise, tentando perscrutar o problema das motivações, isto é, das demandas que levam a atitudes destrutivas. (GINZBURG, 2013, p. 15-16). Embora o autor se refira à possibilidade de reflexão promovida por uma determinada narrativa, o mesmo pode ser estendido a toda produção literária que possui uma função para além do entretenimento, ou seja, um texto que ao tratar 15 sobre violência, não apenas faz referência, mas tem o poder de suscitar uma análise acerca das motivações e outros questionamentos a respeito de determinadas ações violentas. Considerando a probabilidade de discussão acerca de episódios que permeiam a história social do país, tomando a guerra como exemplo, entendemos as manifestações artísticas como detentoras de um poder de transformação dos modos de pensar. Nesse sentido, José Antonio Segatto (1999) afirma que, diferentemente dos estudos sociais nos quais os fatos são expostos como realmente são, a fim de transmitirem a realidade acerca dos acontecimentos, a forma artística é capaz de recriar, ou seja, os episódios são reinventados, escritos/expressos de tal maneira que possam construir uma imagem capaz de provocar diferentes percepções. A representação de fatos através de obras de arte pode trazer elementos que, embora não façam parte de fatos reais, proporcionam novos modos de pensar a respeito dos temas abordados. Diante dessa reflexão acerca da importância da obra de arte para suscitar novas percepções, recorremos à perspectiva de Antonio Candido (2000, p. 18), que propõe um questionamento fundamental: “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte”? E ainda, “qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”. O autor instiga-nos a pensar sobre o modo como as obras de arte são expressão da sociedade, mas também de que forma elas são sociais, engajando-se em proporcionar a leitura de um conteúdo que possa produzir efeito sobre os receptores, “modificando sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais” (2000, p. 19). Este seria o grande valor da obra de arte: poder não somente transmitir um episódio social, mas oportunizar alguma consequência positiva. Ainda conforme o autor, entre os motivos de produção de uma obra, é necessário verificar se ela pode ou não tornar-se um bem coletivo, visando às aspirações sociais. A fim de investigar de que maneira isso pode ocorrer nas narrativas ficcionais, nossa proposta é discutir se, na produção literária e cinematográfica da obra O tempo e o vento, de Erico Verissimo e Jayme Monjardim, respectivamente, podemos encontrar a possibilidade de reflexão acerca das motivações e consequências da violência e da guerra, e, a partir da leitura destas duas manifestações artísticas sobre um tema comum, desvendar qual é a memória suscitada por elas, considerando os seus contextos de produção. 16 Se, nas artes, a guerra e a violência têm sido evidenciadas, é ainda oportuno verificar se essa abordagem é exclusiva do campo expressivo ou se recebe representação em outro cenário. Como se trata de fatos, episódios que fazem histórica e até culturalmente parte do país e, neste trabalho, evidenciando os acontecimentos do Rio Grande do Sul, a violência e a guerra são também postas em pauta como informação, enquanto factuais, pela narrativa jornalística. Se na contemporaneidade a mídia informa sobre acontecimentos violentos e narra as situações de conflitos, no século XIX não era diferente. São, hoje, os noticiários impressos da época, documentos históricos que tornam possível o resgate de detalhes sobre os acontecimentos. Sobre este aspecto, Ginzburg (2013) aponta que o psíquico humano não suportaria as notícias sobre guerras e genocídios se os sujeitos fossem tocados emotivamente para reagir diante daquilo que é exposto. Este pressuposto instiga-nos a observar a grande quantidade de informações acerca de temáticas violentas que são diariamente expostas pelos canais jornalísticos dos mais diferentes veículos e tipos midiáticos. A este respeito Yves Michaud (1989, p. 51) afirma que “as imagens da violência contribuem de modo não desprezível para mostrá-la como mais normal, menos terrível do que ela é”, de certa forma anestesiando aquilo que se apresenta como real, mas que os indivíduos não podem suportar. Por muito tempo, permeou-se a ideia de um jornalismo imparcial, sem quaisquer tipos de interferência na transposição escrita dos fatos. Contudo, hoje se considera que o repórter que presencia os acontecimentos ou os investiga escreve de acordo com as suas percepções acerca dos fatos. Além disso, os veículos jornalísticos contam com seções de opinião, como editoriais e colunas, que podem gerar reflexão em torno dos episódios ocorridos e narrados naquela determinada ocasião. Ao considerar o que é transmitido ao público, Eliseo Verón (1983) afirma que não importa tanto aquilo que é dito, mas a forma como é enunciado. Ou seja, ao selecionar algumas informações em detrimento de outras, ouvir uma fonte em vez de outra ou mesmo transpor o texto de uma determinada maneira ou em espaços específicos, pode haver elementos que modificam também o modo de recepção: “O que o enunciador diz, as coisas que supostamente ele fala, constituem uma dimensão importante no contrato de leitura” (VERÓN, 1983, p. 218). É justamente este contrato de leitura que vai criar o “vínculo entre o suporte e seu leitor” (VERÓN, 17 1983, p. 218), e o receptor do texto vai interessar-se pelo que lhe é transmitido e talvez refletir sobre aquilo que é posto, ao passo em que firma este contrato. Diante destas premissas e considerando sobretudo a factualidade transmitida através do discurso jornalístico, pretendemos averiguar se os jornais do século XIX publicados no Rio Grande do Sul provocam uma afirmação deste contrato de leitura, e, se a partir daquilo que oferecem em seus discursos, trazem também elementos reflexivos e colaborativos na construção das percepções acerca da guerra e da violência, ao passo em que permeiam a memória histórica e social. Ao refletir sobre a representação da guerra e da violência, cabe ressaltar a importância de debater sobre estes elementos enquanto fatores indiscutivelmente presentes na história social e cultural do país e, consequentemente, do Rio Grande do Sul. Transpostos de forma ficcional ou não-ficcional, discursos sobre estes episódios formam, de acordo com Ginzburg (2012), a composição de uma memória social. “O que deve ser lembrado, o que deve ser lido?” (GINZBURG, 2012, p. 220), questiona o autor. As experiências históricas vivenciadas pelos brasileiros podem ser simplesmente relembradas ou podem provocar algum tipo de inquietação, na busca por transformar uma dada realidade. Ao citar Richard, Ginzburg (2012, p. 221) afirma: “O passado é constantemente reinterpretado, em um trabalho sempre incompleto. A memória coletiva não é ‘depósito fixo de significações inativas’, consenso estabelecido à força, mas resultado de constantes reescritas de ‘hipóteses e conjecturas’”. Desta maneira, considerando a representação da história gaúcha, como nos referimos, cabe destacar a relevância dos processos de escrita e leitura de diferentes discursos, já que os fatos não são somente descritos, mas reinterpretados de acordo com cada um dos envolvidos no processo artístico. Ginzburg (2012) destaca que, considerando a literatura como parte da memória coletiva social, torna-se necessário avaliar de que maneira a imagem de violência é repassada através desta narrativa. Deste mesmo modo, entendendo o discurso jornalístico como documento histórico de informações factuais, também podemos perguntar qual é a imagem de guerra e violência transmitida a partir deste discurso. A fim de verificar esses aspectos, partiremos da consagrada obra literária O tempo e o vento, escrita por Erico Verissimo e publicada pela primeira vez em 1949. A trilogia formada pelos livros O Continente (1949), O Retrato (1951) e O arquipélago (1961) retrata aspectos da história sul-rio-grandense e também 18 brasileira e é permeada, ainda, pela formação da fictícia família Terra Cambará, que vivencia inúmeras vezes a violência e as guerras ocorridas no referido território. Ao considerarmos a importância do tema, que tantas vezes povoa o imaginário gaúcho, enquanto possibilidade de reflexão social, selecionamos para estudo esta importante saga da literatura brasileira. Devido ao amplo espaço de tempo em que a narrativa se desenvolve, optamos por selecionar duas das guerras mais famosas que envolveram o Rio Grande do Sul e que são retratadas ao longo do discurso literário de Verissimo: a Farroupilha e a Federalista. Ambas revoluções aconteceram no século XIX, período em que também analisamos a presença da violência, constante na vida das personagens do escritor nesta obra. A fim de obtermos com mais completude a imagem da violência e da guerra que é mostrada ao público receptor, utilizamos também como objeto de estudo outras duas categorias discursivas: jornalismo e cinema. Pretendemos descobrir de que maneira a narrativa em torno das guerras aparece em uma produção nãoficcional e, para tanto, analisamos jornais do século XIX: O Povo, que circulou de 1838 a 1840, com retratos da Revolução Farroupilha, e A Federação, que circulou entre 1884 e 1937, abordando, de 1893 a 1895 fatos acerca da guerra Federalista. A partir da leitura destes jornais, podemos visualizar de que forma os fatos eram relatados ao público leitor que vivenciava aquele período e em que medida o discurso propiciava reflexão e a construção de uma memória histórica e social acerca desses episódios. Já no cinema, temos a recente produção de Jayme Monjardim, O tempo e o vento. Lançado em 2013, tratando-se de uma produção do século XXI, o longa baseia-se na obra de Verissimo e traz mais uma vez a perspectiva de violência e guerra. O filme apresenta, ainda, a possibilidade de descobrir de que forma se dá a representação do herói gaúcho e, a partir desta análise, também poderemos discutir de que maneira a produção fílmica proporciona reflexão acerca dos temas abordados. Ao estudarmos cada um destes objetos, que perpassam pelos três séculos – jornal, enquanto factual no século XIX; literatura, enquanto publicação do século XX; e cinema, enquanto produção do século XXI –, poderemos, finalmente, responder às questões: Como se constrói a representação das guerras Farroupilha e Federalista em discursos ficcional e não-ficcional produzidos sobre a história social do Rio 19 Grande do Sul? E ainda, que perspectiva de memória sócio-histórica é construída em cada um desses discursos? Na busca por respostas a esses problemas de pesquisa, esta dissertação tem como objetivo principal refletir sobre a representação das guerras Farroupilha e Federalista e da violência em discursos ficcionais e não-ficcionais, associando a narrativa ao contexto histórico sul-rio-grandense, verificando a memória sóciohistórica construída em cada um destes discursos. Além disso, o estudo tem como objetivos específicos: apontar traços formais e estilísticos dos discursos ficcional e não-ficcional que abordam a história social do Rio Grande do Sul no século XIX, tomando como objeto de análise o discurso jornalístico, literário e cinematográfico; avaliar o posicionamento crítico dos discursos jornalístico, literário e cinematográfico sobre a violência e as revoluções Farroupilha e Federalista no Rio Grande do Sul; discutir a construção da memória sócio-histórica em cada um dos discursos em relação às duas guerras abordadas nas obras; e comparar o modo de representação de dois episódios da história social gaúcha em três discursos de natureza expressiva distintas, a fim de discutir a função social destes textos na abordagem da violência e da guerra. Considerado os problemas de pesquisa e os objetivos da investigação, o trabalho insere-se na linha de pesquisa: Literatura, História e Memória, do curso de Mestrado em Letras da Universidade Regional Integrada – URI, já que permeia os três campos, analisando discursos literário e histórico a fim de, a partir da comparação de narrativas ficcionais e não-ficcionais, entender a construção da memória social a partir das imagens de guerra e violência apresentadas. Ao contextualizar este estudo, cabe ainda explicitar as motivações para realizá-lo. Literatura, jornalismo e cinema são áreas que se aproximam. Todas essas modalidades de expressão comunicam fatos – reais ou fictícios – proporcionando ao receptor diversas possibilidades de leituras, dos mais variados temas, que podem causar reflexão, apatia, humor, conhecimento ou, simplesmente, permitir o acesso a diferentes informações. A Literatura, enquanto expressão artística e ficcional, é também responsável por humanizar, conforme aborda Antonio Candido (1995). E a narrativa literária possibilita ao leitor diversas formas de interpretar as histórias, que podem vir carregadas de diferentes sentidos, permitindo a reflexão acerca dos temas. O cinema, também enquanto ficção pode desempenhar papel semelhante, uma vez que, imageticamente, apresenta histórias com um roteiro elaborado, 20 personagens e ambientação, que juntos levam a determinadas interpretações a respeito das temáticas abordadas. Ainda que um roteiro de cinema busque adaptar uma obra literária para a sua produção, por se tratar de um novo produto cultural, trata-se de uma releitura diante do assunto escolhido. O filme O tempo e o vento, de Jayme Monjardim, pode ser considerado justamente uma releitura da obra de Verissimo e, uma vez que se refere a uma produção recente, ainda não foi amplamente discutida, evidenciando mais um motivo importante para a sua análise1. Considerando ainda para esta investigação o discurso que provém do jornalismo, é importante lembrar que, neste caso, o principal objetivo se dá pela informação, a veiculação de um episódio verídico, buscando, em maior medida, a imparcialidade. Embora por muito tempo tenham se idealizado publicações jornalísticas apenas como transmissão ou narração de fatos, competindo aos expectadores a função de decodificar e formular opiniões sobre o assunto, hoje sabemos que a reflexão sobre os temas abordados está presente já nos textos criados e, normalmente, isso se dá através de diversas vozes: do jornalista, com sua visualização do fato unida a tudo aquilo que traz consigo de experiências de vida e culturais; de suas fontes entrevistadas; e também, a do leitor. Se o jornalismo, em sua não-ficcionalidade reflexiva, e literatura e cinema, enquanto produtos ficcionais ocasionadores de reflexão chegam ao público capazes de não somente informar ou entreter, e ao considerar que todas estas áreas retratam episódios da vida cotidiana ou histórica – reais ou não –, podemos, então, afirmar que se trata de obras que se aproximam ou talvez possam ainda se complementarem. Desta forma, é possível que comparemos uma produção a outra, buscando observar de que maneira as temáticas são abordadas em cada uma delas e, para além disso, em que medida são fomentadoras de um pensar que contribua para a construção de uma memória voltada para o bem social, sem que o público receptor seja necessariamente o mesmo para as três diferentes produções. A literatura, o jornalismo e o cinema podem, portanto, abordar um mesmo assunto, cada qual com a sua especificidade de transmissão e decodificação de 1 O enredo do filme O tempo e o vento, dirigido por Jayme Monjardim, também foi exibido em formato de minissérie, no início de 2014, na Rede Globo, que é coprodutora do longa. Dividida em três capítulos, a história da minissérie aparece com mais detalhes do que no cinema, apresentando personagens e situações que, muito provavelmente em função do tempo de duração, são omitidos no filme. O tempo e o vento, literatura, já havia sido base para uma minissérie de mesmo título, exibida em 25 capítulos também na Globo, no ano de 1985. As minisséries não serão objeto de análise neste trabalho. 21 informações. Uma das temáticas encontradas em ambas as áreas é a história do Rio Grande do Sul, permeada muitas vezes por episódios de guerras e conflitos que são rememorados e, inclusive comemorados. Estes acontecimentos aparecem também através da pintura, poesia, dança e outras expressões artísticas que continuam a retratar de diferentes maneiras os feitos gaúchos, muitas vezes considerados heroicos. Considerando esta perspectiva, observamos que ainda há muito a ser estudado e analisado acerca do modo como estes fatos se apresentam e por que continuam presentes nas narrativas, com abordagens quase sempre semelhantes. Neste trabalho, optamos por considerar dois períodos históricos: as guerras Farroupilha e Federalista, uma vez que se trata de grandes marcos na história do Rio Grande do Sul e ainda hoje são retratadas de diversas maneiras, que incluem, uma semana voltada a comemoração de uma da primeira guerra citada. Ambas as revoluções aconteceram no século XIX, período em que surgiam e se solidificavam jornais para retratar aqueles fatos violentos, documentos que nos servem, hoje, como referências por terem retratado fatidicamente a história sul-riograndense. A obra de Erico Verissimo, O tempo e o vento, escrita no século seguinte, utiliza-se da ficção para narrar a história da formação do Rio Grande do Sul e, na primeira parte da trilogia O Continente, temos a narrativa de personagens fictícios que vivenciaram estas duas guerras, que por sua vez são verídicas. Ainda no século seguinte, XXI, apresenta-se uma releitura do O tempo e o vento, desta vez no cinema, através do longa de mesmo título, que é baseado na obra de Verissimo e, portanto, também remete a estas revoluções. Desta maneira, a partir deste trabalho, pode surgir uma nova percepção em torno do modo como a imagem da guerra, da violência foi construída ao longo destes três séculos através das narrativas de ficção e não-ficção. O estudo das abordagens poderá suscitar, ainda, o entendimento sobre a maneira como as produções ficcionais e não-ficcionais produzem significado crítico, desempenhando ou não uma função social causadora de reflexão, especialmente acerca da guerra e da violência e suas consequências. Neste sentido, poderá ser possível, ainda, produzir uma nova reflexão sobre o papel das narrativas enquanto meios de transmissão de informações, já que atuam não somente como objeto informativo ou de entretenimento, mas sim como provocadoras de um novo pensar e novas opiniões. 22 A partir da análise de alguns textos de jornais do século XIX, também poderemos contribuir para este período da história do jornalismo, tanto no relato dos fatos em si, mas, de modo mais específico, na formação e veiculação do discurso de jornal utilizado naquela época. Com a análise de fragmentos de O tempo e o vento, se viabilizará uma nova leitura desta obra consagrada, que, embora já tenha sido objeto dos mais variados estudos, ainda apresenta elementos a serem descobertos ou redescobertos na perspectiva da guerra e violência, dados históricos que podem promover valores positivos ou negativos, guiando os leitores não somente ao conhecimento de fatos através de personagens fictícias mas, de modo singular, pela forma como o receptor poderá entender estes episódios a partir de sua leitura. De maneira semelhante, ao analisar O Tempo e o Vento enquanto produção cinematográfica poderemos entender de que maneira a narrativa fílmica contribui atualmente para fins reflexivos sobre guerra e violência, enquanto detentora do um poder de atingir grandes públicos e atuar como promotora de uma memória coletiva. Finalmente, através da análise destes três produtos: o jornalismo enquanto narrador de informações e os discursos literário e fílmico, enquanto ficção, podemos identificar de um modo mais completo, como se dá a representação das revoluções Farroupilha e Federalista e o modo como se abordam episódios violentos ao longo destes três séculos. Para isso, toamos como processo metodológico a forma de pôr em diálogo obras de natureza artística diferentes, tendo em vistas os pressupostos da Literatura Comparada. Produzir um trabalho que coteje obras de natureza distinta requer a busca por uma metodologia de investigação que autorize uma aproximação de objetos diferentes em termos de forma, estrutura, função. Tendo em vista que essa proposta de pesquisa busca comparar a representação da guerra em dois jornais do século XIX, O Povo e A Federação, uma obra literária, O tempo e o vento, de Erico Verissimo, uma obra fílmica, também chamada O tempo e o vento, dirigida por Jayme Monjardim, entendemos que as proposições da Literatura Comparada são oportunas para a definição da metodologia de estudo. Segundo Tânia Carvalhal (2003) o comparatismo consiste em confrontar duas ou mais literaturas, e a comparação pode permear também outras áreas, através da interação de textos com outros, literários ou não: 23 Se a especificidade da literatura comparada era assegurada por uma restrição de campos e modos de atuação, hoje essa mesma especificação é lograda pela atribuição à literatura comparada, da possibilidade de mover-se entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, exigidos pelos objetos que coloca em relação. (CARVALHAL, 2003, p. 35). Sendo assim, vemos que, peregrinando pelas mais diversas áreas, o comparatismo abre um grande campo de possibilidades no que diz respeito a entender os textos na medida em que se cotejam diferentes discursos. Neste sentido, a mesma autora afirma, também, que a intertextualidade é “procedimento indispensável à investigação das relações entre textos” (2003, p. 19). Tendo como pressuposto os estudos de Carvalhal (2003), ao compararmos os discursos que permeiam o campo da literatura, jornalismo e cinema, poderemos explorar de modo mais completo a forma como a violência e a guerra são representadas através destas narrativas, uma vez que não somente o ato de comparar é o ato mais significativo como, principalmente, os resultados obtidos a partir desta comparação. A visão de Carvalhal sobre o comparatismo entre duas obras de expressão diferente já havia sido abordada por Henry Remak (1994), quando o crítico norteamericano apontou ser preciso assegurar que “comparações entre a literatura e outra área que não a literatura sejam aceitas como ‘literatura comparada’” (1994, p. 180), mas com a ressalva que este outro campo seja coerente ao objeto estudado, ou seja, a comparação entre discursos das mais diversas áreas é totalmente válida quando realizada de forma a contribuir com o entendimento da literatura em si, mas também de diversos assuntos que permeiam o cotidiano social. Considerando, então, que o comparatismo entre discursos jornalístico, literário e fílmico é uma atividade possível na área da Literatura Comparada, é necessário explicitar os critérios que conduziram a escolha pelos objetos de investigação. Inicialmente, entendemos a necessidade de ampliação de estudos articulados sobre literatura, cinema e jornalismo, tendo em vista que os dois primeiros, estão muito próximos por se tratarem de discursos ficcionais e, ainda, considerando que as produções cinematográficas utilizam-se da literatura para o desenvolvimento destas novas narrativas que serão oferecidas ao público. Já o jornalismo, embora se trate de discurso não-ficcional, também atua representando situações, narrando histórias, mesmo que de personagens verdadeiras, a fim de contar fatos. Estes diferentes tipos de explanação de acontecimentos podem 24 interligar-se e serem comparados entre si, especialmente, se considerarmos obras de ficção que remontam episódios históricos através de personagens que não existiram. Já é sabido que literatura e cinema se aproximam, ao passo em que jornalismo e literatura também têm andado muito juntos, e, da mesma maneira, as produções cinematográficas, enquanto produto midiático, também estão muito próximas à comunicação jornalística. Neste sentido, escolhemos a obra O tempo e o vento, consagrada na literatura. Esta produção artística é reconhecida por contar a história do Rio Grande do Sul através da trajetória de duas famílias gaúchas, com personagens fictícias. Ao relembrar esta história, a obra apresenta as mais diversas guerras e episódios violentos que permearam o Estado e ocorreram durante muitos anos. Com a proposta de analisar a representação destes episódios, de modo particular, as revoluções Farroupilha e Federalista, encontramos em O Continente aspectos que remontam esta história através das personagens criadas por Erico Verissimo. É preciso considerar, ainda, que a obra resultou em uma produção cinematográfica de título homônimo que atualiza estes mesmos episódios, sendo transmitida nos dias atuais, filme este que também será objeto de análise deste trabalho. E ainda, a fim de verificar de que forma temos a imagem de guerra e violência em narrativas nãoficcionais realizamos a leitura crítica dos jornais O Povo e A Federação, que retratam o mesmo período, porém, sem a criação de personagens. Em O Povo, que circulou entre 1838 e 1840, analisamos os textos noticiosos, também de opinião e, ainda, de caráter poético, comumente publicados nos jornais da época. Em A Federação, jornal cuja existência se deu entre 1884 e 1937, analisamos textos veiculados no período da Revolução Federalista, de 1893 a 1895, através de discursos que se pretendem de gênero noticioso, além de outras formas de narrativas já utilizadas nesta época, como avisos, declarações oficiais e piadas. Os textos de ambos os jornais foram escolhidos quantitativamente de forma equânime ao considerar as datas de publicação, a fim de não evidenciar um ou outro período. A escolha deu-se de maneira aleatória, contudo, com a pretensão de buscar discursos que contribuam, em maior medida, com o esclarecimento dos principais problemas de pesquisa deste estudo. Desta maneira, realizaremos, neste trabalho, uma análise de diferentes textos sobre um mesmo episódio, avaliando a representação da violência e de duas guerras, em obras distantes temporalmente, já que, temos como objetos de 25 pesquisa: os jornais do século XIX, período em que os fatos ocorreram e foram narrados através do discurso não-ficcional; o livro O Continente, publicado no século XX, proporcionando, desta vez com viés ficcional, uma releitura acerca dos mesmos ocorridos; e, por fim, um filme veiculado no século XXI, que, baseado na obra literária, atualiza todas estas percepções. É preciso destacar, ainda, a relevância destas obras enquanto aceitação do público e também como constituintes da memória social. Ao analisarmos o discurso dos jornais do século XIX, poderemos ter acesso ao rico conteúdo que nos serve hoje, como documentação histórica, já que os textos presentes nos periódicos eram justamente, escritos a fim de informar sobre os acontecimentos daquela época. Conforme comentamos anteriormente, O tempo e o vento é uma obra consagrada na literatura, que perpassa pelos bancos escolares e, de modo geral, pelos apreciadores da leitura, esta obra, que justamente representa aqueles fatos que eram informados nos jornais, embora se utilizando de personagens e espaços fictícios. De modo semelhante, o filme, de mesmo título, foi um grande recorde de bilheteria, atingindo um grande público que leu, ou não, a obra completa e que conhece, ou não, o histórico de guerras e violência em solo rio-grandense, possibilitando interpretações e (re)interpretações diante destes episódios. Entendendo, portanto, a relevância destas obras, a necessidade de aprofundamento destes estudos e as muitas possibilidades ainda não exploradas de pesquisa em torno destes três discursos diferentes sobre um mesmo tema, consideramos que, com base em análise e comparação entre essas obras, teremos uma proposta metodológica eficiente para atingirmos os objetivos aos quais nos propomos no desenvolvimento desta pesquisa. Para isso, estruturamos o trabalho em cinco capítulos. No primeiro, abordamos teorizações acerca da representação, além da memória da guerra e da violência. Para tanto, discorremos acerca do conceito de representação, a construção da memória, e a representação da guerra e da violência nos discursos ficcional e não-ficcional. No segundo capítulo, realizamos a apresentação do romance e, na sequência, desenvolveremos uma reflexão sobre a imagem perpassada na obra em torno das revoluções Farroupilha e Federalista, além de uma leitura da violência e memória na narrativa. Já o terceiro capítulo é destinado à imagem da guerra e da violência do discurso ficcional do filme O tempo e o vento, em que trazemos à tona a proposta da produção cinematográfica, a 26 questão da glamourização da guerra, a espetacularização da violência e a memória histórico-social das revoluções gaúchas, consentidas a partir da narrativa fílmica. O quarto capítulo desta dissertação é destinado à narrativa não-ficcional, em que abordamos a guerra e a violência no discurso jornalístico do século XIX, em um primeiro momento apresentando as características da imprensa daquela época e, posteriormente, verificando os jornais O Povo e A Federação, a fim de identificar de que forma se dá a referenciação à guerra e à violência no Rio Grande do Sul através daqueles periódicos do século XIX. Por fim, o quinto capítulo está voltado às diversas considerações a respeito dos estudos realizados ao longo deste trabalho, apontando diálogos e divergências entre os discursos analisados. 1 REPRESENTAÇÃO E MEMÓRIA DA GUERRA E DA VIOLÊNCIA 1.1 Conceito de representação Se existem situações acontecendo, momentos que marcam historicamente as sociedades e tantos fatos cotidianos que permeiam individual ou coletivamente a vida das pessoas, não haveria como deixar tudo esquecido, sem a possibilidade de registros ou resgate de situações que configuram uma memória. As narrativas, por exemplo, sejam elas de origem literária, cinematográfica, jornalística, ou outras, atuam como uma possibilidade de resgatar acontecimentos através de sua representação, trazendo presente aquilo que já aconteceu e fazendo conhecer determinados fatos. Considerando os dicionários de língua portuguesa, o estudioso Gustavo Blázquez (2000, p. 170), afirma que a representação constitui-se, entre outros fatores, no ato de “tornar presente” aquilo que era ausente, sendo a imagem que “representa um objeto ou um fato”, atuando com a possibilidade de interpretação. Essas considerações permitem-nos constatar que, além de simplesmente trazer à tona alguns fatos, representar possibilita, também, uma nova forma de interpretação, especialmente se considerarmos que discursos são produzidos em espaços e contextos diferentes do que aqueles em que o leitor se encontra. Sendo assim, a representação pode ser uma forma de proporcionar um melhor entendimento acerca do mundo em que vivemos e das situações que marcam a história. Tendo isso em vista, podemos pensar o papel da representação no campo das artes. Representar, através de objetos artísticos, significa remontar a realidade? A representação assume, necessariamente, um caráter mimético? Como discutir a representação diante da obra literária? São muitas as reflexões desenvolvidas acerca da representação. Na área da literatura, Platão e Aristóteles foram os primeiros a abordar a ideia de representação, associando-a à noção de mimesis. Platão (1997) entende a ideia como real e a literatura enquanto cópia desta realidade. Para o filósofo, esta prática poderia, inclusive, ser prejudicial à construção humana das pessoas, considerando o grande efeito das palavras, que poderiam ser prejudiciais quanto mais poéticas fossem as narrativas. Entretanto, o filósofo não 28 concebe o ato da criação literária enquanto a reprodução exata de uma situação, mas sim como uma imitação de ideias e realidades, que não é fiel ao verdadeiro. Ainda na perspectiva platônica, um grande poeta deve conhecer profundamente o assunto ao qual discorre, reconhecendo aquele tema como se fizesse parte de tal situação. Diante desta dificuldade em conhecer tão intensamente sobre o assunto ao qual se escreve, encontramos em Platão: O autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores. [...] Sendo assim, a imitação está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado não passa de uma sombra. (PLATÃO, 1997, p. 324-325). A representação, portanto, considerado o pensamento platônico, estaria sempre limitada ao grau de conhecimento do autor, não sendo possível uma imitação do real em sua totalidade. Para o filósofo, a própria criação do mundo está atrelada a uma imitação da natureza, considerando o universo das ideias. Desta maneira, para Platão, aquele que escreve não imita a realidade em si, mas uma imitação deste real, ou seja, o mundo físico representado através da arte, já poderia se configurar como uma segunda imitação. Ao considerar o entendimento mimético de Platão, analisamos também a concepção de Aristóteles (2006), que conceitua a mimesis como imitação, podendo ser entendida, ainda, como verossimilhança. Diferente de Platão, Aristóteles compreende como sendo possível a arte enquanto representação do mundo, uma vez que abandonado o universo das ideias. Diante disso, Paul Ricoeur (2000, p. 65), afirma que “de Platão a Aristóteles o conceito de mimesis sofreu uma alteração considerável”, considerando, justamente, a impossibilidade de imitação da natureza, uma vez que o fazer artístico perpassa pela diferença e, “não seria possível, do mesmo modo, haver imitação das ideias, pois o fazer é sempre produção de uma coisa singular” (RICOEUR, 2000, p. 66). Tendo o conhecimento dessas diferenças entre o pensamento dos filósofos, percebemos que o ato de imitar, para Aristóteles, poderia assumir forma de diversas maneiras, seja “por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto” (ARISTÓTELES, 2006, p. 23). A fim de entender melhor a maneira como se dá esta representação através da teoria aristotélica, que 29 se diferencia da platônica, iniciaremos por verificar que as artes se relacionam com a realidade ao passo em que se considera natural ao homem o fato de imitar. Na mesma linha, o autor constata que a mimesis se configura, justamente, a partir da imitação do humano, tomando este enquanto ser concreto oriundo da matéria natureza, e, desta forma, as representações acontecem em torno daquilo que é palpável, não sendo possível, neste sentido, a imitação das ideias. Contudo, o autor trata da representação de forma que o real possa ser incrementado pela voz da narrativa: É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distiguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. (ARISTÓTELES, 2006, p. 43). Nesta reflexão, Aristóteles trata a respeito da poesia, entendendo que esta se configura como superior à história, já que a primeira teria um caráter mais filosófico e universal, proporcionando outros aspectos a respeito de cada um dos acontecimentos, ainda que sejam imitações, enquanto que a segunda se deteria a identificar aquilo que é particular, os fatos em sua essência. Seguindo na perspectiva aristotélica quanto à diferenciação entre estas duas formas de representação e considerando a função da história enquanto transmissora de episódios, Luiz Costa Lima (2006) comenta que a ficção não está apenas na literatura, mas no cotidiano das pessoas; contudo, objetos ficcionais não fazem parte do objetivo da narrativa histórica. Partindo desse pressuposto, podemos considerar a ideia de que, entre as funções da narrativa histórica enquanto não-ficcional, estaria a função de narrar episódios, sem a necessidade de incrementá-los com outros elementos do campo ficcional. O historiador Dominique Vieira Coelho dos Santos (2011) debate sobre esse aspecto, destacando que as diferenças entre literatura e história permeiam o fato de o historiador apresentar acontecimentos que não dependem do seu imaginário, mas que foram concebidos por outras pessoas que fizeram parte dos acontecimentos, na medida em que, na literatura, é permitido criar situações e personagens que não buscam formas de referenciação no empirismo. Ao considerar a cultura grega em torno da mimesis, abordada nas teorias platônica e aristotélica, Luiz Costa Lima (2003, p. 79) conclui que é na arte que a 30 mimesis se concretiza, tendo como base a experimentação com o outro para “saberse, nesta alteridade, a si mesmo”. Sendo assim, as relações entre aquele que escreve e o objeto de sua narrativa são fundamentais para a construção desta realidade representada através da ficção. Ainda de acordo com o mesmo autor, repensar o conceito de mimesis na sua concepção pelos gregos permite o entendimento de que estes conceitos são indispensáveis para o entendimento das artes. Conforme afirma Lima: A teorização grega da mimesis supõe a concepção prévia das relações entre linguagem e realidade, assim como esta supõe, um conjunto específico de condições sociais. O que vale dizer, como qualquer outra teorização, os fundamentos desta não são discerníveis se não compreendermos a que interesse responde. (LIMA, 2003, p. 31). Esta afirmativa enfatiza a ideia de que, para entender como se dá a representação hoje, é necessário recorrer a estas fontes filosóficas as quais citamos, uma vez que, desde a sua origem, a questão da imitação pelas narrativas ficcionais acontece por esta união da linguagem e aquilo que é transposto/representado através dela. Tendo como base a origem dos estudos sobre representação, consideramos também oportuno verificar como se estabelece a ideia de mimesis na modernidade, e, para tanto, servimo-nos da perspectiva de Antoine Compagnon (1999, p. 97), que, ao traçar um panorama sobre o significado da representação, indica que ler buscando a realidade é “enganar-se sobre a literatura”, ou seja, ainda que uma obra literária remeta a acontecimentos históricos factuais, ela não pode exprimir o real em sua totalidade, e este tampouco se configura como um objetivo da literatura. Compagnon (1999, p. 104) discute a teoria de Aristóteles sintetizando a mimesis como a “representação das ações humanas pela linguagem”, interessando seu arranjo narrativo, que parte da imitação dos indivíduos. Sob este aspecto, Rejane Pivetta de Oliveira (2003) afirma que a mimesis traria consigo uma essência humana, sendo uma forma de representar anseios e empecilhos para os quais os indivíduos buscam respostas. Dessa forma, a imitação não seria reduzida ao imediatismo dos fatos, uma vez que o processo de captar a realidade perpassa por uma seleção em que o narrador define aquilo que é mais relevante sobre as situações antes de transpassá-las para o discurso artístico. 31 Citando Lukács, Oliveira (2003) traz a ideia de que através da mimesis é possível que se crie uma consciência do universo, já que a imitação não seria simplesmente uma cópia da realidade, mas, sim, uma representação transformadora e geradora de conhecimento. A autora ainda destaca que manter uma obra como atual e de interesse do público depende da “sobrevivência das condições objetivas que lhe deram origem, o que faz com que seu conteúdo possa ser reconhecido” (OLIVEIRA, 2003, p. 189). A partir dessa afirmação, podemos constatar que, se os narradores simplesmente transpuserem os fatos como realmente são, as ideias podem se perder no espaço em que se atualizam informações, enquanto que, ao provocar reflexão, os discursos podem se manter atualizados, causando encantamento mesmo muito tempo depois da publicação da obra, conforme indica Oliveira. A partir destas constatações, entendemos que, se a narrativa literária, assim como outras artes de ficção, abordasse apenas os acontecimentos como eles são, buscando unicamente a reprodução de uma realidade, não teria razão de ser, uma vez que já existem narrativas voltadas apenas para descrever a história e o real, estando, na literatura, uma função diferenciada. Ainda assim, mesmo nas narrativas que se pretendem apenas informativas, não é possível encontrar a exatidão completa dos fatos ocorridos, já que as percepções do autor influenciam no momento da descrição dos acontecimentos. As artes ficcionais, por carregarem a possibilidade do imaginário, daquilo que está além, são capazes de produzir significados que não se constroem somente pela percepção dos fatos, mas sim pela possibilidade de reflexão, de trazer também aquilo que poderia ter acontecido, como nos apresenta a teoria aristotélica. Isso quer dizer, ao passo em que se desenvolve um discurso, recriando momentos, apresentando outras possibilidades de situações, há também uma grande probabilidade de comparação entre o real, proporcionado pelo discurso histórico, e o fictício das artes, promovendo uma nova noção e entendimento de situações que permeiam o cotidiano e a memória social. Este anseio de resgate dos acontecimentos, através da representação, é explicada por Erich Auerbach (1976, p. 12): “A necessidade de construir textos autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual”. É a partir deste desejo que perpassa pela necessidade de 32 resguardar a memória que se formam os textos que representam. Ponderando o papel do narrador nesta construção, Auerbach comenta: Assim, por exemplo, aqui, onde o escritor atinge a impressão mencionada colocando-se a si próprio, por vêzes, como quem duvida, interroga e procura, como se a verdade acêrca da sua personagem não lhe fôsse mais bem conhecida do que às próprias personagens ou ao leitor. Tudo é, portanto, uma questão da posição do escritor diante da realidade do mundo que representa; posição que é, precisamente, totalmente diferente da posição daqueles autores que interpretam as ações, as situações e os caracteres das suas personagens com segurança objetiva [...]. (AUERBACH, 1971, p. 470). Tomando este pensamento como pressuposto, compreendemos que todo o ato de representação, inicia com um anseio e perpassa por um narrador que reconhece esta necessidade, entende os fatos e escreve sobre esta realidade, dando a conhecer, ou, salvaguardar o mundo e suas situações. Com perspectiva semelhante, Walter Benjamin (2000) traça uma diferenciação nas formas de comunicar os fatos. Além do discurso ficcional, o autor debate a representação não pelo viés histórico, mas através do jornalismo. Segundo Benjamin (2000, p. 107), as narrativas não possuem a “pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente como a informação o faz, integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência”, proporcionando ao leitor sinais transmitidos pelo narrador daquele texto. Podemos compreender, dessa maneira, mais uma vez, a importância do narrador no ato de enunciar algum episódio. Embora não seja o objetivo simplesmente traduzir um fato como ele acontece – e isto sequer se faria possível em se tratando de produção artística –, histórias que representem, em alguma medida, fatos históricos são de suma importância para que se possa verificar uma nova versão do que poderia ter sido realizado. Além disso, estas produções suscitam outras maneiras de interpretar determinadas circunstâncias, tornando os indivíduos mais críticos, ao passo em que estabelecem conceitos diferentes sobre uma realidade semelhante. Por outro lado, Benjamin (2000, p. 106) afirma que, “se fosse a intenção da imprensa fazer com que o leitor incorporasse à própria experiência as informações que lhe fornece, não alcançaria seu objetivo”, pois os jornais, segundo o autor, 33 isolam os acontecimentos da ideia de afetar a experiência do público. Desta forma, o teórico acrescenta: Os princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade e, sobretudo, falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para esse resultado, do mesmo modo que a paginação e o estilo lingüístico. [...] A exclusão da informação do âmbito da experiência se explica ainda pelo fato de que a primeira não integra à “tradição”. Os jornais são impressos em grandes tiragens. Nenhum leitor dispõe tão facilmente de algo que possa informar a outro. (BENJAMIN, 2000, p. 106-107). O resultado ao qual o autor se refere é justamente a impossibilidade de um texto meramente informativo atingir a experiência dos leitores. Podemos entender aqui este termo enquanto experimentação de uma reflexão ou de produção de sentimentos a partir do texto lido, diferente do que ocorre na narrativa ficcional. Também nesta discussão de Benjamin, torna-se possível atentarmos para a reprodução de materiais em larga escala. Ao passo em que a massa toma conhecimento de inúmeras informações, simplesmente factuais, ou seja, que representam acontecimentos sem, talvez, suscitar a interpretação mais aguçada, também o diálogo em torno das problemáticas se torna mais escasso. A representação, dessa maneira, é válida quando não se pretende apenas transmitir o ocorrido, mas, também, buscar proporcionar elementos capazes de produzir nos indivíduos a consciência de modificação de pensamento e de realidades. Ao analisarmos a forma como a representação acontece em diferentes discursos, podemos nos questionar a respeito do modo como as informações recebidas interferem nos receptores. Recorremos a Aristóteles (2006), que ao tratar sobre a narrativa de ficção, exemplifica o modo como a construção de um texto pode ocasionar diferentes percepções naqueles que o leem. O filósofo afirma, em seus escritos, que não é conveniente, por exemplo, construir narrativas sobre indivíduos que causam mal, tendo um final feliz e próspero, sendo recíproco para o caso contrário. A maneira como se conduzem as histórias e personagens podem suscitar sentimentos naturais ao homem e, portanto, a reflexão. É desta forma, que a narrativa ficcional pode trazer as histórias de modo que provoquem algum tipo de inquietação àqueles que recebem e decodificam a mensagem transmitida. Nesta mesma linha, Oliveira (2003, p. 191) reflete que “o mundo refigurado na obra serve de orientação para a vivência receptiva, e isso depende da atividade 34 do receptor, de estabelecimento da identidade entre conteúdo e forma”. Sendo assim, tudo aquilo que envolve uma narrativa, desde o modo como é constituída, até a maneira como reconstrói uma dada realidade, possibilita esta nova perspectiva acerca dos fatos, cabendo também ao receptor o papel de identificar as possibilidades de leitura. Assim, conforme Oliveira, a mimesis atuaria como uma lacuna, garantindo a formulação de sentido: Não se pode tratar a mimese isolada de sua recepção, pois, em última instância ela é produtora de um efeito que só se concretiza no ato da leitura. Há, no ato mimético, uma intencionalidade configuradora de uma experiência que diz respeito ao estar do homem no mundo e está precisamente na leitura a possibilidade de dar significado a essa experiência. (OLIVEIRA, 2003, p. 182). Ainda que se possa tratar de uma imitação da realidade, os discursos não falam por si só, necessitando que um receptor possa realizar as leituras e interpretálas de acordo com as suas vivências. Sem o ato de leitura, a mimesis de qualquer obra artística não se caracteriza, pois perceber determinada realidade representada só é possível através da identificação, ou seja, pela leitura, que vem precedida por tudo o que o receptor traz de experiências de sua cultura e da comunidade em que vive. A este respeito, Compagnon (1999) adianta que pode haver ruídos entre o autor, sua obra e a decodificação da mensagem transmitida, e este é um dos motivos que podem colocar os leitores em segundo plano quando se trata de interpretação artística. Contudo, sabemos que quem atribui sentido à obra é justamente aquele que a decodifica. O autor também se refere ao leitor como muito mais interessado em compreender a si mesmo do que a própria obra. Desta maneira, percebemos que, muito além do ato de criação, que perpassa pela imitação da realidade, está a particularidade inerente àquele que lê, capaz de, a partir da leitura e construção de ideias em torno do que lhe foi apresentado em termos de representação, possa não somente entender o mundo, mas a si mesmo. Para ampliar os apontamentos sobre representação, recorremos a Stuart Hall (2003, p. 179), que apresenta este ato como “sistemas de significado pelos quais nós representamos o mundo para nós mesmos e para os outros”. Desta maneira, e ainda segundo o autor, as práticas sociais são materializadas de forma que se 35 tornam presentes, representadas para aqueles que representam, e para os receptores da releitura de determinados fatos. Tomaz Tadeu da Silva (2000) aborda esta questão através da concepção pós-estruturalista, entendendo a representação expressa através da materialização “por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um filme, de um texto, de uma expressão oral” (SILVA, 2000, p. 90). Nesta perspectiva, representar não perpassaria apenas pela ideia do real. “A representação é, como qualquer sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder” (SILVA, 2000, p. 91). A partir desta consideração, reafirmamos a ideia de que a representação seja através da literatura, do cinema ou do jornalismo, enquanto texto não-ficcional é capaz de atribuir um novo sentido aos fatos narrados, possibilitando um novo entendimento em torno daquilo que aconteceu e posteriormente é reconstruído. Sendo assim, notamos a importância do enunciador no ato de selecionar as informações e o modo como irá transmiti-las, já que “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade” (SILVA, 2000, p. 91), ou seja, a constituição da memória social perpassa também pelo detentor deste poder, quer dizer, aquele que representa os acontecimentos através desta materialização. Com estas ideias, retomamos as reflexões de Hall (2003), que relaciona a representação com a ideologia ao passo em que considera as ideologias como “sistemas de representação materializados em práticas” (HALL, 2003, p. 180), corroborando o pressuposto de que as ações representadas contribuem para a formação ideológica. Além disso, as manifestações artísticas, por serem mediadoras da realidade, mas, principalmente, por serem capazes de reconstruir situações, personagens e conceitos, podem ser grandes aliadas do progresso dos indivíduos enquanto capazes de refletir e criar problemáticas que podem auxiliar na modificação das futuras realidades a serem representadas. Oliveira (2003, p. 206) assinala justamente que a consciência prática da literatura, por exemplo, é “possibilitar o contato do humano consigo mesmo, na sua humanidade ilimitada, o que é negado tanto na realidade empírica como nos discursos científicos”. 36 Consideramos, então, que todas as formas de representação são portadoras de um importante sentido, seja através da exposição da realidade em si, pela história, ciência ou por meios jornalísticos, por exemplo, ou ainda através das manifestações artísticas, que podem permitir a reflexão, talvez a um nível mais elevado, já que pelo imaginário e reconstrução da realidade, deve suscitar, em maior medida, a humanização. E diante desta perspectiva, não podemos deixar de remeter a Antonio Candido (1995, p. 243), que destaca a literatura enquanto “fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade”. Isso quer dizer que é, através de manifestações literárias/artísticas, que o indivíduo pode, além de adquirir novos saberes, refletir, afinar emoções e repensar sobre o senso de beleza. Ainda conforme Candido, “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (1995, p. 243). Se uma obra é capaz de contribuir para a humanização no sentido de repensar o mundo, podemos destacar a ideia que a define como imitadora da realidade, ao passo em que revigora os acontecimentos deste mundo a ser compreendido, a fim de gerar novas formas de decodificação das mensagens e reflexão em maior medida. Esses discursos, enquanto registros de uma representação social, podem caracterizar-se enquanto parte constituinte da memória de um povo, como poderemos melhor compreender na seção seguinte. 1.2 Construção da memória Para representar os fatos e situações, quem escreve precisa recorrer à memória, seja ela advinda de suas próprias experiências ou unida a fatores externos que possibilitam a imitação da realidade através dos discursos. A partir disso, quem recebe, decodifica e reflete acerca das narrativas, tem mais um elemento constitutivo de sua própria memória, que se une à do autor para criar novos significados. 37 Isto quer dizer que, embora um fato histórico seja representado, a fim de materializar a memória de determinados acontecimentos, diferentes perspectivas podem tomar forma, uma vez que o passado une-se com as experiências atuais. Diante disso, Walter Benjamin (1994, p. 224) afirma que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de perigo”. Desta maneira, compreendemos que a memória representada nas narrativas registra os fatos, mas é acrescida de informações atualizadas de acordo com o tempo de agora. A memória construída a partir daquilo que se tem como registro, portanto, não tem como ser unicamente individual. Ela perpassa, em maior medida, pela lembrança e construção de muitos envolvidos, desde a participação nos acontecimentos à transformação em narrativa e, sobretudo, naquilo que se constrói em sociedade para a formulação de identidades. A constituição da memória se dá, conforme Maurice Halbwachs (2006), a partir das nossas lembranças unidas à percepção do presente. O mesmo autor destaca que há duas formas de organização das lembranças, uma delas, centrada no próprio indivíduo com suas percepções, que seria a memória individual, e outra, inserida em uma sociedade, com ideias compartilhadas, configurando-se na memória coletiva: Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que a memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. (HALBWACHS, 2006, p. 69). Neste sentido, e ainda segundo o estudioso, “nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas também na de outros” (HALBWACHS, 2006, p. 29). Assim, a memória não se forma apenas acerca das lembranças e percepções individuais, mas a partir da união de diversas vozes que fazem parte da constituição de sentido. Estes colaboradores na constituição da memória podem ter vivenciado os fatos ou serem transmissores das informações que receberam nos grupos com os quais convivem. Entretanto, as recordações presentes hoje só se 38 tornam possíveis uma vez que consideradas as vivências atuais. Tendo em vista esta perspectiva, entendemos que não há como remeter ao passado sem a percepção das circunstâncias vivenciadas hoje, uma vez que estas tornam possíveis as referências daquilo que já aconteceu. A memória individual, portanto, forma-se através da inserção dos indivíduos em grupos que compartilham as mesmas lembranças. Halbwachs (2006) acrescenta ainda que, na memória, o destaque se dá para as recordações das experiências dos membros de um mesmo grupo, que resultam na própria individualidade ou com os grupos mais próximos, e que a constituição da memória acontece pela experiência particular, e se a memória individual é um elemento acerca da memória coletiva, mesmo entre pessoas que compartilhem as mesmas lembranças, pode haver diversidade na interpretação sobre os acontecimentos. Maurice Halbwachs (2006) ainda distingue dois tipos de memória, uma chamada de interior ou interna, que seria a pessoal, e a outra exterior, configurada como memória social. Esta segunda se aproximaria da ideia de memória histórica, embora este autor não aprecie muito este termo, em função das diferenças entre história e memória, sendo a história, responsável pela compilação e arquivo dos fatos em si, cabendo à memória resguardar a sequência dos acontecimentos e suas respectivas reflexões. À medida que consideramos que a memória pode ser exterior, entendemos também que nem todas as recordações advêm de vivências particulares, podendo, conforme as ideias do autor, ser transmitidas através de outrem, por meio de testemunhos ou de acontecimentos evidenciados através de jornais, livros ou outros elementos que contribuem para a memória de muitas pessoas, ainda que não tenham vivenciado as situações, mas souberam a partir destes dados. Neste sentido, o crítico afirma: [...] Sou obrigado a me remeter inteiramente à memória dos outros, e esta não entra aqui para completar ou reforçar a minha, mas é a única fonte do que posso repetir sobre a questão. Muitas vezes não conheço tais fatos melhor ou de modo diferente do que acontecimentos antigos, ocorridos antes de meu nascimento. Trago comigo uma bagagem de lembranças históricas, que posso aumentar por meio de conversas ou de leituras – mas esta é uma memória tomada de empréstimo, não é a minha. (HALBWACHS, 2006, p. 72). 39 Dessa maneira, ainda que indivíduos não tenham participado ativamente de momentos marcantes ou até mesmo históricos, é possível que esta memória seja resgatada e imbuída entre as suas experiências, uma vez que são diversas as formas de se ter acesso às informações que podem, inclusive, tornar-se importantes para grupos ou a uma nação, a ponto de tornarem-se tradição e incluírem estes mesmos indivíduos em determinados costumes através da identificação com aqueles fatos. O mesmo autor indica que é habitual atribuir a si mesmo ideias, reflexões e sentimentos que não partem do individual, mas que foram difundidas pelo grupo do qual fazem parte. Nas palavras de Halbwachs, “Estamos em tal harmonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos outros” (HALBWACHS, 2006, p. 64). Deste modo, expressões que aparentemente têm cunho pessoal, muitas vezes podem ter sido retiradas da leitura de narrativas que contribuíram para a formação de determinada memória. Por este motivo, talvez, sejam explicados, por exemplo, os cultos às guerras, em que os protagonistas das batalhas às vezes são apresentados como heróis e a violência aparece como um grande feito. De outro lado, esta memória pode vir com apreensão pela dor causada a partir dos conflitos. Em ambos os casos, embora os indivíduos não tenham presenciado os fatos, mas os descobriram através de testemunhos, documentos, jornais ou livros, é como se a memória pertencesse a eles mesmos, como se de fato tivessem vivenciado aquela situação, o que poderia explicar, por exemplo, a tradição que se constrói a partir destes episódios. Ainda de acordo com Halbwachs (2006), para que a memória das pessoas complemente a dos outros, é preciso que as lembranças tenham alguma relação com o passado daqueles que têm acesso a elas, não estando as informações totalmente alheias a sua vivência social ou cultural. Diante disso, o autor acrescenta que a história de uma nação pode ser um resumo daquilo que modificou a vida daquelas pessoas, mas que a memória é constituída particularmente pelos habitantes. Nesta mesma reflexão, cabe ressaltar que uma das formas de transmissão destas recordações de fatos históricos que acabam por tomar memória coletiva é através das narrativas ficcionais. Halbwachs (2006) afirma que aqueles romances que tratam acerca da construção da história de uma família não precisam remeter 40 exatamente à época a qual os acontecimentos se desenvolvem, já que não perderiam a sua essência ao transportá-los para outro período. Por outro lado, podemos entender que a história de uma família pode ser construída, justamente, a fim de remeter a fatos históricos, podendo uma obra sob este viés resgatar acontecimentos e contribuir para a construção da memória. Sob esta perspectiva, José Saramago (1990) supõe os motivos pelos quais o romancista decide utilizar-se da história para escrever: Duas serão as atitudes possíveis do romancista que escolheu, para a sua ficção, os caminhos da História: uma, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidora duma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada, leva-lo-á a entretecer dados históricos não mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predominante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista inconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância narradora. (SARAMAGO, 1990, p. 17). Ao remetermos à seção anterior deste capítulo, podemos concordar com a citação de Saramago, ao passo em que a representação de fatos históricos perpassa pela imitação da realidade e vem, ainda, munida de um aparato de reflexões e suscitando novos modos de pensar. Os fatos históricos podem se fazer conhecer através do romancista ou de outros interlocutores que constroem suas narrativas sob outros aportes artísticos, propiciando não somente esta possibilidade de humanização, mas também contribuindo, em grande medida, para a constituição da memória coletiva, já que, mesmo evidenciando o lado ficcional, as obras podem ser transmissoras de muitas lembranças e significados acerca de diferentes episódios que fazem parte de um grupo ou nação. O autor também discute a relação história e memória, considerando a primeira um dos meios possíveis para chegar à construção da memória dos indivíduos. Conforme Nora, “O nascimento de uma preocupação historiográfica é a história que se empenha em emboscar em si mesma o que não é ela própria, descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um esforço para se livrar dela” (NORA, 1993, p. 10). Neste sentido, o estudioso acredita que, embora conceitualmente história e memória sejam diferentes, elas se entrelaçam à medida que a história se encarrega de executar uma função na memória social, resgatando acontecimentos e, portanto, contribuindo para a constituição destas lembranças. 41 Nora (1993, p. 12) ainda traz a seguinte reflexão: “a história tornou-se uma ciência social e a memória um fenômeno puramente privado. A nação-memória terá sido a última encarnação da história-memória”. Neste sentido, podemos nos questionar em que medida as narrativas jornalísticas, enquanto pertencentes das ciências sociais, e as obras de ficção, que muitas vezes remetem-se à história, poderiam, então, atuar com os dois papeis: tanto no sentido da conservação histórica dos fatos como no imaginário social, através da constituição da memória dos seus integrantes. O que atualmente é chamado de memória já é história como indica Nora (1993). Ou seja, aquilo que gera uma lembrança tem também necessidade de documentação histórica, esta, que pode aparecer de diferentes maneiras. Além de somente ser propagada pelos historiadores em obras didáticas, esta memória em forma de registro pode perfeitamente estar unida às obras ficcionais, como na literatura e no cinema, e ainda, em produções jornalísticas que, no momento da publicação visam à atualidade e instantaneidade, mas que, na sequência dos dias e anos, transformam-se em meios para resgate de informações importantes acerca de determinados acontecimentos. “Na mistura, é a memória que dita e a história que escreve”, destaca Nora (1993, p. 24), reflexão que nos auxilia, hoje, a compreender melhor esses fenômenos. Ainda buscando entender de que forma a memória está representada nas obras literárias, recorremos aos estudos de Jaime Ginzburg (2012), que discute, entre outros fatores, a abordagem do cânone brasileiro acerca da memória, principalmente ao repassar informações sobre fatos violentos. “O que deve ser lembrado, o que deve ser lido? O que tem valor, o que é literariamente importante?” (GINZBURG, 2012, p. 220), estes são questionamentos que iniciam o capítulo escrito pelo autor e intitulado “A Violência Constitutiva e a Política do Esquecimento”, e nos fazem também refletir, hoje, sobre qual é o verdadeiro cânone no sentido de resguardar a memória, mas, principalmente, quais são as narrativas munidas por ideias capazes de fazer pensar sobre questões particulares e sociais, uma literatura que perpassa, de longe, uma de suas funções, que é o entretenimento, para através dos fatos que resguarda, causar inquietações e problematizar situações a fim de que seja possível aos indivíduos serem mais humanizados a partir daquelas leituras. Ao abordar o cânone, o Ginzburg (2012) discute quais os elementos levam os pensadores a escolher uma obra como parte deste acervo privilegiado, uma vez 42 que as obras consideradas melhores contribuirão para a memória social e seus valores influenciarão os critérios de valores de outros. Ainda que se refira àqueles que selecionam os livros, esta reflexão nos instiga a pensar, também, sobre quais fatores contribuem para que determinadas obras se perpetuem, não somente por fazerem parte do cânone literário, mas porque historicamente já estão imbuídas na preferência e memória da nação. A afirmação de Ginzburg (2012, p. 221) segundo a qual “a sustentação do cânone funciona como política da memória, apontando para o que deve ser lido e lembrado” pode ser atualizada no sentido de outras narrativas que surgem a partir daquilo que já é estabelecido como parte do cânone. Exemplo disso são as conceituadas obras literárias que, posteriormente, e às vezes, muito tempo depois de serem publicadas, além de ainda fazerem parte das leituras e reflexões do público, são base para narrativas cinematográficas, como acontece, por exemplo, nos objetos de nosso estudo, em que a obra literária O Tempo e o Vento é adaptada para a narrativa fílmica, através do longa de mesmo título. Vemos, assim, o cinema, apoderando-se do cânone, para auxiliar na perpetuação da memória social ao considerar um tema muito relevante, como a guerra e a violência, e sabendo que ainda é possível gerar debate ou por tratar-se de um meio artístico que representa histórias, baseando-se na sua estética e apreciação do público. Além destas hipóteses, é preciso considerar que a narrativa cinematográfica pode, ainda, servir-se das obras literárias canônicas para instituir uma releitura a respeito dos fatos narrados, trazendo novos elementos ou, até mesmo, modificando aqueles que estavam descritos na literatura, já que, por tratarse de uma narrativa diferenciada, não tem a necessária obrigatoriedade de ser fiel ao texto original. O cinema pode, também, ratificar a ideia de que alguns romances merecem mais destaque do que outros, justamente porque, ao levar determinadas obras às telas, uma gama de outras histórias são excluídas. Ao considerarmos a importância da memória – mesmo que adquirida através de outrem – não tendo os indivíduos participado do processo de acontecimentos que proporcionam rememoração –, entendemos que, se episódios são perpetuados através dos tempos, seja de forma testemunhal, como através de obras literárias, outras artes, ou ainda, através das ciências sociais, é porque se trata de assuntos pertinentes à vida social. Se permeiam, então, a memória de grupos, estes acontecimentos podem não simplesmente trazer recordações, mas, além disso, 43 promover reflexão, desejo que modificar uma dada realidade, baseando-se nos fatos do passado. Ainda que a memória, muitas vezes, transforme-se em tradição, cabe pensar quais são as situações cultuadas, quais foram os ícones daqueles episódios e em que esses acontecimentos contribuem para a construção do que se tem hoje em termos de sociedade e posicionamento crítico enquanto indivíduos que buscam o melhor para os grupos aos quais estão inseridos. Considerando aquilo que é abordado com frequência no meio artístico e as obras que se perpetuam no cânone, Ginzburg (2012) afirma que constantemente o passado é reinterpretado. Citando Richard (1999), o autor afirma que a memória coletiva não perpassa por um amontoado de significações que já não são ativas, mas, sim, que esta memória resulta de constantes novas formas de percepção. A cada novo elemento que surge sobre um determinado assunto, portanto, os indivíduos têm uma nova oportunidade para averiguar os fatos sob perspectivas diferentes, considerando que também as novas produções acerca das mesmas temáticas devem adequar as suas narrativas conforme as necessidades e indagações do seu tempo. Quando a memória é remetida a situações que foram traumáticas para a sociedade ou, para um grupo social, por exemplo, é possível que se percorram alguns caminhos, dentre estes, a fuga da verdade que circunda determinada experiência, ou, a recordação do fato a fim de torná-lo diferente na atualidade, mesmo que somente enquanto reflexão. Theodor Adorno discorre acerca de uma neurose que envolve este passado, considerando que há “sentimentos profundos em situações que não os justificam; ausência de sentimentos em face de situações de maior gravidade” (ADORNO, 1995, p. 30). Partindo desta premissa, cabe considerarmos de que maneira episódios de guerra e violência, que são consideradas situações graves, podem gerar na memória social um sentimento de omissão, em detrimento de uma busca pela justificativa para tanto sofrimento causado. Uma explicação para isso podemos encontrar também em Adorno, quando o autor refere-se à violência enquanto anseio de esquecimento, embora isso não seja possível: “O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo” (ADORNO, 1995, p. 29). Por permanecer na memória individual e coletiva, é que se dá a necessidade de 44 refletir o modo como fatos violentos serão abordados, com vistas a contribuir com uma perspectiva de entendimento mais humanizadora, uma vez considerada a omissão dos indivíduos ou, ainda, a rememoração de um histórico de guerra. Neste sentido, Adorno (1995, p. 48) contextualiza que “a elaboração do passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito, reforçando sua auto-consciência e, por esta via, também o seu eu”. Sendo assim, o modo como os fatos do passado são trazidos à atualidade, o esclarecimento proporcionado por meio da literatura ou do cinema, por exemplo, pode ser justamente a contribuição para a formação da memória se faz pela compreensão da gravidade de algumas situações do passado. Desta maneira, “quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma nova lei objetiva de desenvolvimento” (ADORNO, 1995, p. 33), isso significa que a memória social pode se desenvolver no sentido humanitário e reflexivo ao passo em que a gravidade do que está no passado seja transposta ao hoje de forma a contribuir com este objetivo. Pensando a literatura brasileira e a construção de uma memória social que constrói, Ginzburg (2012) entende que é preciso pensá-la sob a perspectiva da violência, que reflete em alguns casos traumas históricos de nossa história social. O autor aponta como notável a presença da violência nos diferentes gêneros e períodos literários brasileiros. Nessa perspectiva, apresentar um posicionamento de forma crítica, segundo este autor, significa ir ao cerne do problema: “Se considerarmos a História da Literatura Brasileira como uma parte fundamental da memória coletiva de nossa sociedade, temos de avaliar com clareza a presença e a relevância das representações da violência” (GINZBURG, 2012 p. 222). Neste trecho, o autor já apresenta uma importante temática a ser debatida pelas manifestações artísticas. Se a memória coletiva contribui para a formação social, então um tema pertinente como a violência merece ser destacado de forma que se possa indagar sobre as motivações pelas quais ela acontece e como se dá esta realidade e sua interpretação no meio em que vivemos hoje, assim como poderia ocorrer com outros temas como guerra, traição, família, adoção, incesto e tantos outros. Considerando as abordagens da literatura, enquanto facilitadora da construção da memória coletiva, o autor constata: 45 Uma obra literária, dependendo da postura intelectual de seu autor, de suas condições de produção e circulação, e das características de seu público, pode fazer coro ao pensamento dominante ou tomar uma atitude crítica; pode ser conservador ou demonstrar indignação; pode atribuir a si um papel social ou cumprir exigências de mercado. Considerando esses fatores, pode ser mais lido e lembrado, ou mais esquecido; pode ser incluído no patrimônio cultural de uma memória coletiva ou ser abandonado no vácuo. (GINZBURG, 2012, p. 224). Ao verificarmos a importância da postura literária para gerar um posicionamento crítico e tornar-se uma narrativa que contribua com o crescimento humano ou, em contraponto a isto, tensionar as tendências mercadológicas, podemos considerar o conceito de Indústria Cultural, termo originalmente construído pelos sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer, da Escola de Frankfurt, em 1947, e citados também por Ginzburg, (2012; 2013). A Indústria Cultural refere-se à produção em massa, àquilo que se produz visando à venda para o grande público e, com isso, a possibilidade de agregar valor econômico, estando apenas preocupada em agradar aqueles que compram, “dedicada ao conforto do consumidor, à satisfação no contato com o produto” e “realizado de acordo com os princípios do imediatismo” (GINZBURG, 2013, p. 93). Uma obra de arte enquadrada neste viés, portanto, trataria apenas de suprir necessidades superficiais do público, como distração, contato com o imaginário e até relaxamento da mente. Contudo, conforme indica o mesmo autor, obras assim acabariam abandonadas, uma vez que não entrariam em conflito com quaisquer tipos de diferenças sociais. Por outro lado, quando se trata de narrativas que são munidas de posicionamento crítico, que trazem indignação frente às injustiças, e outros tantos problemas sociais, preocupando-se muito mais em provocar indagações e reflexões do que estar inserida na lógica do mercado de venda, estas sim são as obras que permearão a memória coletiva, contribuindo, em maior medida, para atender aos interesses da sociedade. Muito mais do que entretenimento e contato com a fábula, muitos dos leitores hoje, sejam de obras literárias ou de outras narrativas, como cinema ou mídia, têm, a necessidade de resgatar a memória de situações que marcaram a história de suas famílias, de pessoas que fazem parte do mesmo nicho social, ou, ainda, por serem acontecimentos que se deram – e ainda acontecem – nos locais onde vivem. Mais do que simplesmente saber sobre estes fatos, os indivíduos são capazes de reinterpretá-los conforme a mudança de tempo e contexto, utilizando-se 46 desta memória que parte do coletivo para atribuir significado à própria identidade, justamente a fim de entender o porquê das situações como acontecem hoje e, de que forma, estas também farão parte da memória coletiva. Dessa maneira, discursos que permitem rememorar o passado com senso crítico voltado para a atualidade podem não somente fazer refletir, como também, em dada medida, modificar costumes. Nesta perspectiva, podemos citar o autor Geoffrey Hartman (2000), que entende a memória utilizada nas narrativas não somente como póstuma à experiência, mas também como propiciadora da mesma experiência. Isso quer dizer que, ao passo que a memória difunde de fato um sentido através de discursos, permite aos indivíduos mais do que simplesmente tomar conhecimento, mas, de certa forma, vivenciar aquelas circunstâncias e é isso que contribui majoritariamente na formulação de um senso crítico. Com perspectiva semelhante, retomamos a reflexão de Ginzburg (2012, p. 355), que afirma que as imagens do passado contribuem para as decisões a serem tomadas no presente, podendo o pesquisador, recuperar os fatos históricos para além de simplesmente reproduzi-los, mas a fim de gerar reflexão: “A política da memória não é apenas um problema de interpretação do passado, é também um referencial para orientação das ações do presente”. Desta forma, a possibilidade de representação de fatos passados é entendida como uma forma de compreender aquilo que já foi vivido, o que ocorre do presente e ainda o que será vivenciado no futuro. Neste sentido, as interpretações sobre a violência e a guerra a serem observadas em diferentes discursos, mostram como podemos compreendê-las e enfrentá-las ou aceitá-las. Acerca desta definição, entendemos que o papel da memória está muito além de formar grupos afins ou resguardar o passado, mas é uma das formas de atingir a atualidade e fazer pensar sobre o que se tem hoje, e o que se terá no futuro, oportunizando novas ações diante de episódios semelhantes àqueles que já aconteceram. Diante desta perspectiva, podemos verificar, a partir da próxima seção deste capítulo, de que forma a abordagem da guerra e da violência pode ser representada em diferentes discursos, a fim de entender, quais são as diferentes possibilidades de escrita e leitura destes textos. 47 1.3 Representação da guerra e da violência no discurso ficcional e nãoficcional Dentre os tantos acontecimentos que permeiam a memória social no contexto brasileiro, dois deles são históricos, já culturalmente estabelecidos e frequentadores não somente da memória, como da vida de inúmeros grupos. São estes: a guerra e a violência, elementos que já estão imbuídos na sociedade como algo do cotidiano, mas, que, logicamente, não fazem parte de uma vida almejada. Embora conceitualmente se tratem de temas diferentes, já que guerra remete mais especificamente às lutas e aos conflitos práticos, e a constituição da violência permeia diferentes campos da condição humana, desde físico ao psicológico, nas mais diferentes formas de tortura e opressão, os dois assuntos podem ser abordados concomitantemente. Isso porque estão associados no sentido que toda a guerra tem como pano de fundo a violência e todas as formas de violência podem ser consideradas guerras diárias, em maior ou menor proporção, ainda que não se estabeleça um acordo para que isso aconteça. Ao estudar sobre esses temas, consideramos proposições de Ginzburg (2013), que enfatiza o assunto sob a perspectiva de que ainda há muito a ser discutido diante de toda a violência que habita o mundo de hoje. Embora se realize uma análise de imagens de guerra e violência de muito tempo atrás, ao considerar toda a discussão realizada em torno da memória, estes acontecimentos, como grandes guerras e episódios violentos, embora perpassem muitos anos, continuam sempre como parte das lembranças dos indivíduos e, de acordo com a forma como são abordados, podem também contribuir para a formação de uma identidade social a partir da memória que resgata e estabelece os fatos. O crítico citado destaca que a violência já é estabelecida juntamente com a construção histórica, e, cabe refletir, ainda, que ela é causada por seres humanos e suas motivações, mesmo que nenhuma delas seja cabível o suficiente para justificar qualquer ato cometido contra outra pessoa. Ao pensar a violência enquanto parte da história, Ginzburg (2013, p. 9) recorda a Segunda Guerra Mundial, tempo que reuniu circunstâncias extremas de desumanização. “A história do Brasil é constituída de modos violentos, desde a colonização, a escravidão, passando pelas ditaduras até o 48 presente”, destaca o autor, demonstrando que a guerra, é uma das formas de violência institucionalizada. Sigmund Freud (1932) já abordava sobre o assunto, quando escreveu que os conflitos humanos geralmente são resolvidos através da violência, e que um rápido olhar acerca da história da humanidade revela uma imensidão de conflitos entre duas ou mais comunidades, unidades, cidades, raças, nações, impérios e outros, mas sempre com a força advinda das armas: “Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes” (FREUD, 1932, p. 35). A partir desta provocação de Freud, podemos nos questionar: quais seriam os resultados positivos de uma guerra, se, ao final, pelo menos um dos lados estará completamente aniquilado? Embora as guerras se originem pelos mais diferentes motivos e interesses, os atuantes são seres humanos, na busca pela sua sobrevivência e dos grupos aos quais faz parte. A fim de buscar respostas, o autor acrescenta: [...] Quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar - uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. (FREUD, 1932, p. 39). Ao considerarmos este fragmento escrito por Freud, mais uma vez admitimos a força dos combates que permearam a história das nações. Guerras que influenciaram na memória de seus lutadores, ora considerados heróis, ora fracassados, e que de geração em geração perpassaram a imagem de terror e sofrimento causada pelos conflitos que deixaram suas marcas na memória social como um todo. A violência, existente na guerra ou, se de outro modo, isolada, existe nos mais diferentes moldes. Ginzburg (2013) cita algumas das formas de violência que podem ser simbólicas, psicológicas, por intimidação, humilhação, remetendo, ainda, à desumanização e hostilidade: “trata-se de uma palavra que é chamada para falar frequentemente de situações difíceis de descrever, de extremo horror, de níveis de sofrimento que não deveriam existir”. (GINZBURG, 2013, p. 10), mas que acabam se tornando comuns entre os indivíduos. E o mesmo autor questiona: “por que isso é 49 um fenômeno comum?” (GINZBURG, 2013, p. 11). Ao passo em que já está institucionalizada como parte da memória social, a violência acaba por não causar mais estranhamento, é como se a humanidade ficasse alheia a esta discussão, uma vez que os fenômenos de guerra e violência são, inexplicavelmente, inerentes à humanidade. Destacamos, entretanto, que mesmo com a absorção quase que indiferente das mais variadas formas de violência, estes elementos não estão somente presentes na vida das pessoas enquanto ato ou enquanto memória. Estes temas são recorrentes nas mais diferentes narrativas, sejam elas ficcionais ou nãoficcionais. Cabe questionarmos em que medida os discursos acerca destas temáticas contribuem para a construção de uma memória coletiva que não simplesmente tome conhecimento e aceite os acontecimentos como eles são, mas que tenham anseios por, pelo menos, buscar soluções que possam contribuir com o presente e futuro da humanidade. O autor, ao tratar sobre as representações através do cânone literário, pondera o seguinte: Se o cânone brasileiro, em suas configurações escolares e acadêmicas mais conhecidas, estabelecesse como pressuposto o impacto traumático das experiências de barbárie brasileiras, é possível que uma série de valores éticos e estéticos fossem discutidos em nova perspectiva. O modelo de periodização, pensando as obras prioritariamente em termos estilísticos padronizados, sendo pautada no idealismo romântico ou no positivismo, mantém o ambiente ideológico estabilizado. (GINZBURG, 2012, p. 220). Desta maneira, entendemos ser possível que, através de narrativas ficcionais, sejam proporcionadas ao leitor novas formas de visualização de determinados acontecimentos, ao passo que o interlocutor tem a possibilidade de escolher qual é a maneira que deverá abordar os fatos, suscitando, em maior ou menor medida, o senso crítico, e perpassando valores aos quais se torna possível fazer surgir uma nova perspectiva em torno das situações de horror. Em 2013, ao debater a violência na literatura, o mesmo autor esclarece que, embora cite este tipo de narrativa como exemplo, outros gêneros textuais também podem ser discutidos à luz da mesma reflexão. Desta maneira, percebemos que a ampla abordagem de Ginzburg em torno da representação de episódios violentos ou 50 de guerras pode também ser utilizada para o melhor entendimento de discursos como o cinematográfico e o jornalístico. Neste estudo, que avalia a forma como estes elementos são expostos nos textos, Ginzburg afirma que “o pacifismo está em descrédito na atualidade” (2013, p. 8). Podemos nos perguntar, a partir disso, se as narrativas são capazes de estimular os leitores a terem uma nova percepção acerca deste universo, considerando que, na medida em que a violência não se justifica por nenhuma hipótese, então, haveria lugar para a paz em meio a este mundo. O autor apresenta a existência de uma vinculação entre as percepções que temos em torno do campo artístico e a forma como se organizam as percepções cotidianas. Sendo assim, a imagem artística da violência e da guerra poderia contribuir não apenas para a interpretação das obras, mas, sobretudo, para “definir critérios de relacionamento com outros seres humanos e tomadas de decisão” (GINZBURG, 2013, p. 25), colaborando, assim, para novas ponderações com relação a estes temas, que não devem ser considerados como normais à sociedade. Ainda de acordo com o pesquisador, um escritor pode escolher trabalhar com a temática da violência como um espetáculo ou confrontar o problema a partir da sua representação. Entretanto, a presença da violência nas obras de arte nem sempre atua com uma perspectiva humanizadora. Diferente disso, conforme explica Ginzburg, fatores negativos aparecem na obra, mas a solução final é positiva, ficando em evidência em detrimento da problemática. “Certos momentos de violência, longe de serem indesejáveis, são interessantes para a composição do conjunto” (GINZBURG, 2012, p. 28), enfatiza o autor, instigando a refletir se o formato como este tema aparece, é realmente satisfatório no sentido de fazer refletir ou, de outro modo, se a resolução dos conflitos quase que instantaneamente acaba por suprir os anseios do leitor que circundam mais na obtenção de valores positivos do que na construção de uma nova interpretação sobre aquilo que é negativo e como pode ser modificado. Considerando a forte presença da violência na história da humanidade e também a grande frequência com que a temática aparece nos mais diferentes discursos, é pertinente também verificarmos de que maneira estes elementos são abordados em narrativas não-ficcionais, como no jornalismo, que se propõe, em primeira instância, a informar correta e verdadeiramente sobre os fatos. Antes de iniciarmos essa discussão, cabe ainda pensarmos o quanto as notícias sobre guerra e violência acabam causando, por vezes, mais curiosidade ao 51 público que deseja saber como tudo aconteceu, do que a possibilidade reflexões e atitudes, ainda que o impacto da informação exista. Ginzburg (2013) atesta que, se as pessoas tivessem a tendência a reagir de forma intensa às notícias sobre guerras e destruições, o psíquico poderia não suportar, já que a quantidade de informações a este respeito ultrapassa a condição humana, podendo levar o psicológico ao colapso, e isso explicaria o porquê de os indivíduos se manterem, de certa forma, apáticos às informações sobre o horror da violência e da guerra. Também Walter Benjamin aborda a questão com perspectiva semelhante: Quanto maior é a participação do fator de choque em cada uma das impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência. (BENJAMIN, 2000, p. 111). É como se o ser humano agisse para se proteger daquilo que pode ferir as suas experiências ou permear negativamente em sua memória e, por isso mesmo, escolhe consciente ou inconscientemente se ocupar de determinados problemas. Aqueles que causariam impactos maiores, como o choque, podem ser ignorados ou averiguados de forma superficial, justamente, para evitar que façam parte de determinado núcleo, individual ou social, reforçando a ideia de que a problemática da violência faz parte do outro. Retornando à reflexão de Ginzburg (2013, p. 81), observamos que as páginas policiais dos jornais sempre têm inúmeras notícias sobre violência e, ainda, algumas “situações supostamente se justificam na imprensa, outras não”. Receberiam justificativa os fatos considerados “violência legitimada”, quando para “fazer justiça” ou atribuídos ao sistema policial, incumbido por determinadas atitudes. Seja legitimada ou não, a violência é, como já dissemos, diariamente transmitida pela mídia. Ao considerarmos os pressupostos de Muniz Sodré (1992), vemos que a violência cresce no país diretamente com o aumento populacional nos centros e com a degradação das condições de vida desta população, que perpassa por deficiência alimentar, de saúde, educação, desemprego e outros. Estes fatores, por si só, já seriam suficientes, enquanto critérios de noticiabilidade, para serem veiculados através dos canais midiáticos, sendo eles impressos, digitais ou locucionados pela televisão ou rádio. 52 Contudo, importa-nos não somente o motivo da divulgação, que também percorre o caminho do fazer conhecer, mas, principalmente, o modo como esta violência e as imagens da guerra são abordadas pela mídia, enquanto narrativa nãoficcional. A pesquisadora deste tema Kathie Njaine (2013, p. 71), afirma que, embora os veículos de comunicação brasileiros normalmente apresentem a temática de 2 maneira descontextualizada e sensacionalista , “há exceções que buscam as raízes do problema e as possíveis soluções”. Diante disso, podemos perceber que, se há um jornalismo que divulga os fatos de forma a fazer refletir, então é de fato possível que também, através da narrativa não-ficcional, estes temas possam humanizar, dependendo do modo como são abordados. E acerca da abordagem midiática dos fatos, Sodré (1992) afirma que há muito a ser refletido quando se entende a imprensa enquanto historiografia do cotidiano, considerando a escolha ao noticiar sobre um local ao invés do outro e refletindo se o modo de abordagem dos fatos se transforma em alimentação da violência, ao invés de buscar combatê-la. O autor não quer dizer, porém, que a mídia atua unicamente como reprodutora de ideologias dominantes, mas também não ignora a ideia de que existem veículos de imprensa munidos por uma “cultura transnacional do espetáculo”. Diante deste contexto, o autor ainda acrescenta: Mas a extensão e a generalização das análises baseadas nessa presumida ‘invasão informativa’ costumam redundar em simplificações, por se apegarem à superfície do fenômeno. A superficialidade do fato de que a mutação cultural profunda – a passagem de um modelo para outro – não é função da quantidade informativa ou da novidade inscrita dos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa, mas das alterações no modo de organização do espaço social e nas relações que os sujeitos mantêm com o real. Tais alterações podem ser violentas. (SODRÉ, 1992, p. 20) Quando se fala sobre jornalismo imparcial, embora este conceito já esteja caindo em desuso, a referência é para um produto informativo que não seja carregado de opiniões que favorecem apenas alguns grupos, mas que possa trazer relevantes dados que demonstrem as versões de todos os lados envolvidos nos fatos. Ao buscar a objetividade, não significa que os meios de comunicação devam 2 O sensacionalismo na imprensa acontece quando, antes da informação verdadeira, precisa e causadora de reflexão, a notícia carrega um apelo emocional, superestimando acontecimentos, geralmente violentos, não no sentido de provocar crítica social, mas de sanar curiosidades, através de, por exemplo, imagens de horror e do sofrimento alheio. 53 ficar alheios aos acontecimentos do mundo. Pelo contrário, uma vez que o repórter tem a possibilidade de acompanhar muitas vezes in loco situações de guerra e violência tem também este a responsabilidade de utilizar do poder de divulgação da linguagem a fim de contribuir com o engajamento social, ao passo em que os leitores possam pensar nas possíveis soluções para os conflitos apresentados. Neste sentido, Carlos Alberto Vicchiatti (2005, p. 04) destaca que o jornalista preocupado com o bem social compreende que é integrante desta mesma sociedade, esta que precisa de um profissional da comunicação que seja pluralista, “aquele que tenha condições de enxergar algo a mais, além daquilo que a realidade apresenta” e, sendo este “consciente de seu papel social, já que é um formador de opinião”. O autor afirma ainda que esta preocupação perpassa por trabalhar os fatos sempre com a verdade, mas, mais do que isto, promover a justiça e o senso de igualdade social. Com perspectiva semelhante, Njaine (2013) afirma que, ao invés de a mídia ser entendida como fomentadora da violência, deve prevalecer o sentido da capacidade de atuar como um instrumento de controle das atitudes que podem ou não serem tomadas pelos órgãos competentes para a resolução desses problemas sociais. Ainda conforme a autora, não há hoje um consenso sobre o modo como a violência é abordada pelos veículos midiáticos. Diante desta afirmativa, podemos supor que, talvez, a concordância em torno do assunto não se estabeleça em virtude de uma disparidade no modo como estas informações são veiculadas através deste discurso não-ficcional, sendo alguns órgãos de imprensa comprometidos em proporcionar uma reflexão em torno da temática enquanto outros agem como meros transmissores dos acontecimentos, com ou sem a totalidade de suas verdades. A autora também traz à tona o modo como se faz a cobertura jornalística para posterior divulgação destes fatos: Em geral há uma carência de melhor qualificação dos repórteres envolvidos [...]. Ao exercer a profissão, o jornalista produz a velha prática de tratar o fenômeno a partir do fato violento em si, desconsiderando as causas e o contexto. O quadro tende a ser mais problemático nas redações que mantêm a figura do repórter policial ou nas chamadas editorias de polícia. Normalmente, esses profissionais dependem muito de fontes policiais, já que consideram central para seu trabalho os furos de reportagem. (NJAINE 2013, p. 74). 54 Ainda que preocupado em transmitir a veracidade dos fatos, o que é muito importante independente da pauta abordada pelo repórter, também se faz necessário que os profissionais envolvidos na veiculação dos fatos sejam devidamente qualificados para ir um pouco além do simples noticiário, mas formular uma narrativa que possa ir ao encontro dos interesses sociais, uma vez que possa considerar os porquês das situações de conflitos e, especialmente, seu contexto, a fim de provocar inquietação na sociedade que adquire mais um item para acrescentar na parte sangrenta memória coletiva. A autora citada atesta ainda que “não cabe atribuir à imprensa e à televisão a responsabilidade de conter a violência e suas manifestações. Entretanto, isso não isenta os meios de comunicação de cumprir sua função pública” (NJAINE 2013, p. 88), enfatizando mais uma vez a possibilidade de o jornalismo, em maior medida do que noticiar, contextualizar os acontecimentos a fim de contribuir para o bem e reflexão dos sujeitos que fazem parte da sociedade. Considerando as reflexões estabelecidas neste capítulo, é oportuno destacar que a representação dos fenômenos sociais através das narrativas, que podem ser ficcionais ou não-ficcionais, está ligada à formação da memória social coletiva. Os episódios de guerra e violência, constantemente abordados em discursos de ambas as faces, são grandes problemas sociais que, ao serem representados através das manifestações artísticas, ou do jornalismo, embora muitas vezes não o façam, podem vir munidas por contextualizações maiores sobre os temas, proporcionando, em maior medida, possibilidades de envolvimento social enquanto reflexão e possíveis atitudes com vistas a modificar realidades. 55 2 A GUERRA E A VIOLÊNCIA NO DISCURSO JORNALÍSTICO DO SÉCULO XIX 2.1 A imprensa escrita do século XIX O início da imprensa escrita no Brasil se deu justamente no século em que aconteceram as duas guerras que investigamos neste trabalho. Em 1808, surge a Gazeta do Rio de Janeiro, com vistas a divulgar as informações oficiais provenientes do poder real. Nesses primeiros registros de publicações jornalísticas, o discurso era constituído com vistas a transmitir as falas oficiais do comando político, conforme explica a historiadora Marialva Barbosa (2010). O desenvolvimento da imprensa seguiu, nesse primeiro período, tendo a política como base da produção editorial dos periódicos. Nessas primeiras publicações, não se primava pela noção de imparcialidade, de outra forma, “os jornais amplificam as discussões, construindo ideias dominantes num jornalismo de viés exclusivamente opinativo” (BARBOSA, 2010, p. 25). Além disso, segundo a mesma autora, no início do século XIX, são priorizados os temas sensacionais, sendo as “guerras, conflitos e as novidades de um mundo em crise” (BARBOSA, 2010, p. 38) os mais abordados pelos periódicos, principalmente com o objetivo de atrair leitores, já que estes eram os assuntos que mais despertavam o interesse público, o que sugere um jornalismo com caráter mercadológico. De acordo com a estudiosa, o poder do discurso jornalístico já se averiguava nesse período, considerando que as notícias se tornavam pautas de rodas de conversas em cafés, livrarias e, inclusive, sociedades secretas, grupos que se formavam justamente a fim de fomentar essas discussões. A partir disso, consideramos a teoria do Agendamento ou Agenda-Setting, que demonstra o conceito da veiculação jornalística como capaz de manter um diálogo com o público. Ou seja, A mesma produção que surge de uma necessidade por um acontecimento, uma história, ou local, e depois de escrita e publicada, é capaz de pautar o assunto de uma comunidade. McCombs (2009), um dos autores que formulou essa teoria, afirma que as pessoas compreendem grande parcela da realidade social através daquilo que é disponibilizado pela mídia e, a partir disso, elas expõem suas opiniões. Se o jornalismo desta primeira metade do século XIX era basicamente opinativo, então podemos considerar que o discurso transmitido através dos jornais, por ser efetivamente parcial, poderia predominar também enquanto opinião pública. 56 É neste período também, em que se prolifera a quantidade de periódicos em circulação, que os temas políticos geram discussões até mesmo entre um jornal e outro e, a formalidade dos textos é quase inexistente, conforme comenta Barbosa: [...] Os insultos verbais presentes em profusão nesses periódicos fazem parte de uma longa linhagem narrativa, na qual a quebra da normalidade presumida, a inclusão de temas sensacionais e o apelo às fórmulas retóricas são fundamentais para a conquista do público. Por outro lado, ao fazerem dos insultos e das chacotas, dos xingamentos e das bravatas o tema fundamental da imprensa, os jornais se incluem na ordem do dia, sendo objeto das conversas e dos casos que se contam pela cidade. Com isso, incluem-se quase que compulsoriamente entre as necessidades de um público que se alastra. (BARBOSA, 2010, p. 49). Embora possa parecer em desacordo com o que conhecemos sobre modos de noticiar os acontecimentos hoje, é preciso considerar que esta forma de comunicar exposta pela autora deve ser entendida como textos que faziam sentido naquela época e, portanto, ao analisarmos os jornais selecionados, devemos levar em conta o contexto de produção daquelas publicações. Embora, na atualidade, a grande maioria dos jornais noticiosos sejam – ao menos explicitamente –, independentes de partidos políticos ou causas específicas, no período em que se instauravam as guerras os jornais eram criados e pertenciam à situação ou à oposição, atribuindo valores e opiniões de acordo com interesses categoricamente expostos. Tanto o contexto influencia nos modos de escrita que a história do surgimento, desenvolvimento e novas fases da imprensa foram processos que se deram juntamente com fatos importantes de cada uma das fases. A revolução portuguesa de 1820, por exemplo, motivou um movimento em prol da liberdade, este que propiciou consequências favoráveis à imprensa brasileira, conforme afirma Nelson Werneck Sodré (1999), que é um dos maiores historiadores do país. Em um período em que a censura era predominante, começou-se a tratar do direito à liberdade de imprensa, instituída em Portugal em julho de 1821 e no Brasil em setembro do mesmo ano, embora saibamos que a censura não tenha sido eliminada em sua totalidade por esta ocasião, apenas sendo modificado o modo de censurar. A liberdade de imprensa foi amplamente discutida durante todo este século. 57 É ainda na primeira metade do século XIX que a imprensa é conjugada com a literatura (SODRÉ, 1999, p. 191), o que podemos chamar de jornalismo literário. Artigos de opinião com linguagem mais metafórica, crônicas, partes de romances eram publicados nos jornais, muitas vezes, com intuito de emitir ideias sobre fatos que ocorriam. Sodré (1999) enfatiza que, sendo assim, muitas vezes o jornalista assumia papel de literato ou político, confundindo as funções. O mesmo autor cita alguns exemplos, como o romance Memórias de um Sargento de Milícias, em que Manuel Antônio de Almeida, através do pseudônimo “Um Brasileiro”, publicava os folhetins, sem pretensões literárias. Neste sentido, o estudioso da história da imprensa comenta que os letrados faziam imprensa e também teatro, sendo que, na primeira, era possível divulgar as criações literárias mais do que os impulsos políticos, mas difícil no teatro, já que as cenas passavam pelo crivo do Conservatório. Alencar, que já era romancista conhecido e também editor-chefe do jornal Diário do Rio de Janeiro, pôde protestar através das colunas do periódico a censura que Asas de um Anjo sofreu no teatro. Ainda considerando as modificações na imprensa de acordo com o contexto histórico e cultural, temos uma nova fase no século XIX, iniciada por volta de 1880 quando os jornais assumem uma nova proposta, conforme apresenta Barbosa (2010). Os periódicos passam a se modernizar e primar pela melhoria nas publicações havendo um aperfeiçoamento também na forma de distribuição dos impressos. O que não se modifica, entretanto, é o modo como as informações veiculadas continuam a pautar as discussões da população, já que se ampliam o número de leitores e o hábito de ler. De acordo com Barbosa, “As leituras estão também nos cafés, nos espaços de trabalho, nas salas de visitas das casas. Leituras diversas de uma sociedade já imensa no mundo da impressão” (BARBOSA, 2010, p. 118). Da mesma forma com que o hábito da leitura foi se tornando mais intenso durante o século XIX, também a imprensa escrita foi se popularizando. Embora seu surgimento tenha sido tardio no país, como afirma Ilka Stern Coben (2008), durante o século XIX é praticamente incontável o número de publicações, tendo como características marcantes a viabilidade de periodicidade e duração. Contudo, este fator se explica também pelo fato de as publicações possuírem, em seu cerne, as raízes políticas e, desta forma, a atividade jornalística se desenvolvia, muitas vezes 58 “a partir de grupos de interesse que viam na imprensa um meio de propagação de suas ideias e aspirações” (COBEN, 2008, p. 104). Assim, conforme iam sendo veiculadas as publicações, outras, de oposição acabavam surgindo, aumentando, desta maneira, a quantia de jornais em circulação. Ademais, outro fator que não se alterou para a segunda metade do século XIX foi a preferência dos leitores pelas temáticas conflituosas. Normalmente, as tragédias do cotidiano, as mazelas que mostram a dimensão da ação humana, pintadas em tintas fortes, e que são responsáveis diretas pela popularidade dos periódicos, ampliam o público desses impressos em níveis impensáveis anteriormente. (BARBOSA, 2010, p. 118). Esta afirmação da historiadora nos instiga a refletir sobre o porquê de as tragédias serem a preferência entre os leitores durante todo o século, questionamento que reafirma as motivações no que diz respeito a analisar o modo como os discursos eram constituídos nos jornais daquela época, quando os textos referiam-se à violência e as revoluções Farroupilha e Federalista, que nos propomos a estudar neste trabalho. Ainda considerando o modo como se constitui o discurso jornalístico na segunda metade do século XIX no Brasil, temos os jornalistas mais engajados com a questão da fiscalização dos poderes públicos, visando denunciar e estabelecer a voz dos oprimidos, conforme comenta Barbosa (2010). A fim de propiciar uma diferenciação em relação aos momentos anteriores, a autora apresenta a ideia de “povo”, ou seja, é o momento em que o discurso dos jornais volta-se, em maior proporção, aos leitores que serão defendidos através dos textos. Desta maneira, se a imprensa escrita do século XIX tem início com foco na transmissão de informações sobre o poder público, e na segunda parte deste mesmo período, ela permanece política, mas, com viés mais mercantil, já que o público passa a ser considerado de forma mais profícua no momento da veiculação das informações. Diante destas modificações no modo de divulgar as informações através dos jornais publicados em diferentes épocas, Richard Romancini e Cláudia Lago comentam: 59 Assim, um aspecto de transição (iniciada de modo mais acanhado no próprio Segundo Reinado) é este: de uma imprensa pouco estruturada como negócio ao jornalismo como empresa; de outro lado, o modelo de jornal opinativo tenderá a ser, ao longo da primeira fase da República, substituído pelo jornal da informação. (ROMANCINI; LAGO, 2007, p. 76). Ainda que os impressos sigam a linha editorial criada pelo proprietário daquele veículo de comunicação, seja ele de cunho privado ou governamental, nesta segunda fase vemos uma tentativa de não exibir categoricamente as opiniões, mas, de outra forma, noticiar aquilo que é de interesse público com vistas à difusão da informação por si só. Cabe, todavia, analisarmos se estes modos de fazer jornal impresso e sua transição também foram realidades no território gaúcho. Considerando as informações que temos acerca do modo como se desenvolveu o jornalismo no Brasil no século XIX, podemos, então, especificar como o discurso ocorria no Estado do Rio Grande do Sul, neste mesmo período, uma vez que os temas a serem analisados fazem parte deste contexto, assim como os jornais que veicularam informações sobre aqueles acontecimentos. Vimos, anteriormente, a questão da transição entre uma fase e outra do jornalismo impresso no século XIX. Se observarmos o período em que ocorreu cada uma das revoluções que foram representadas, notaremos que cada uma delas faz parte de uma destas fases, o que pode indicar uma mudança no discurso textual considerando a representação de cada um destes episódios. A imprensa vai se consolidando no país e desenvolvendo-se a partir dos acontecimentos marcantes. Romancini e Lago (2007) afirmam que as revoluções, na primeira metade do século XIX, pautaram esse processo. A imprensa, por sua vez, teve papel importante, considerando não somente a veiculação de informações na época, mas também para poder documentar os acontecimentos a fim de que hoje tenhamos acesso. Se a imprensa escrita chega ao Brasil em 1808, é somente em 1827 que toma forma no estado gaúcho, através do jornal O Diário de Porto Alegre. Esta origem está atrelada justamente à Revolução Farroupilha, já que neste período se articulavam ideias a respeito e o presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Salvador José Maciel, era um dos patrocinadores do periódico lançado. Conforme o estudioso da história do jornalismo no Rio Grande do Sul, Francisco Rüdiger (1993), os jornais tiveram grande influência nesta época: 60 [...] Não se constitui exagero afirmar que a imprensa foi o bastidor intelectual da Revolução Farroupilha. Nas páginas dos jornais se gestaram as idéias que radicalizaram o processo político e levaram ao movimento. Porém, não convém superestimar o papel da imprensa no seu desencadeamento [...]. As folhas em circulação contribuíram para coordenar as estratégias dos contendores, mas não tinham o poder de persuasão suposto pelos interessados em sua censura. (RÜDIGER, 1993, p. 15). A partir da afirmativa do comunicólogo podemos inferir que embora os jornais tivessem grande importância na veiculação de informações, fossem elas inéditas ou para reforçar ideias, os textos não poderiam influenciar diretamente os leitores como se acreditava em tempos de Teoria Hipodérmica3. Embora interferissem no imaginário social, não podemos concluir que os dizeres estampados nas folhas dos jornais modificariam diretamente os modos de pensar ou agir, embora pudessem contribuir, em alguma medida, na construção ou consolidação de opiniões. O mesmo autor ainda relata que os periódicos tinham a predominante função de difundir ideologias, sendo a circunstância política, muito mais do que os conceitos de jornalismo, que ditavam o nascimento de jornais, bem como sua continuação e fechamento. Ademais, neste período os proprietários dos jornais não eram os políticos, mas outros profissionais que reuniam duas funções. “A tecnologia era primitiva, podendo-se editar um jornal com velhos prelos de madeira, movidos manualmente, e material tipográfico de segunda mão” (RÜDIGER, 1993, p. 16). E é neste contexto de produção jornalística em que nasceu a imprensa rio-grandense, já com vistas à divulgação dos acontecimentos pré-revolução dos farrapos. O princípio do Jornalismo impresso gaúcho, portanto, deu-se através de personagens que, segundo Rüdiger (1993) compreenderam as demandas políticas e difundi-las a partir dos periódicos, embora, por restringirem sua função muito mais à direção dos jornais, não tinham total preocupação com os conteúdos que transmitiam. Neste sentido e de acordo com o mesmo autor, os jornais tinham basicamente a função de veicular literatura política, sendo inexistentes os modelos 3 De acordo com Mauro Wolf (1992) a Teoria Hipodérmica, pelo modelo de Lasswell, baseia-se no conceito estímulo-resposta, ou seja, ao receber uma informação, imediatamente o público tem uma reação ao estímulo. Esta teoria caiu em desuso, considerando que cada indivíduo é único, com suas percepções, unidas as ideias desenvolvidas através do contexto em que está inserido, as pessoas com quem convive, etc, tendo a possibilidade de interpretar, à sua maneira, aquilo que lhe é exposto. 61 de redações conhecidas na atualidade. As matérias eram produzidas externamente ao contexto do periódico e os responsáveis iam acrescentando, posteriormente, notas informativas, sendo os espaços restantes preenchidos com anúncios e transcrições literárias. Se a política era fator de maior motivação para o surgimento e periodicidade dos jornais, as lutas políticas estimularam o crescimento da imprensa. Sodré (1999) comenta que a Revolução Farroupilha, iniciada em 1835, logo após o surgimento da imprensa, continuou a absorver as preocupações do governo e, já nesta época, os governantes passaram a comprar os jornais dos seus fundadores, a fim de veicularem as suas ideias de maneira mais direta. Ainda segundo este autor, o departamento mais importante da imprensa naquela época esteve ligado aos movimentos que surgiam e, em cada província, com a suas características, os jornais revelaram resistência ao conservadorismo, denunciando aspectos das lutas políticas, marcando sua influência através de pregações, ideias e mobilização de opiniões. Nesse contexto, deflagra-se a Revolução Farroupilha e entre jornais que findaram-se e outros que surgiram, emerge, em meio à guerra, O Povo, periódico que analisamos no decorrer deste trabalho. Neste jornal, conforme Sodré (1999), as páginas apresentavam as escabrosidades da revolução, noticiando sobre o que ocorria do litoral à campanha, estendendo-se ainda de Porto Alegre a Piratini (município onde surgiu o jornal) e desde ali até Caçapava, sendo instrumento de grande colaboração histórica, assim como outros jornais: Sem a leitura de O Povo, que circulou de 1838 a 1840, de O mensageiro, que circulou de 1835 a 18836, de O Americano, que circulou de 1842 a 1843 e uns poucos mais, a história farroupilha é incompleta. Nessas folhas, impressas quase sempre sob condições extremamente difíceis, o movimento ficou espelhado, em todos os seus traços, os gerais e os particulares. (SODRÉ, 1999, p. 131). Esta preposição do autor reafirma a importância da atuação da imprensa escrita, não somente enquanto propulsora da difusão de informações na época em que os acontecimentos se estabeleciam, mas, especialmente, considerando a documentação histórica, ou seja, o resguardar desta história através dos detalhes, 62 contados por aqueles que de maneira mais próxima vivenciaram aquelas situações. Neste sentido, destacamos a igual acuidade da produção e existência destes periódicos no que se refere a contribuição para a constituição da memória históricosocial. Embora não investiguemos, neste estudo, a questão da recepção, podemos, através dos discursos perceber de que maneira os textos não ficcionais dos períodos das revoluções, contribuíram na formação e estabelecimento desta memória coletiva. O Povo deixou de circular quando os imperiais ocuparam Caçapava. Não somente este, mas outros periódicos fechavam em tempos de guerra pela dificuldade de manterem-se. Segundo Sodré (1999), a sucessão de lutas e situações de extrema violência motivaram o quase desaparecimento da imprensa, embora, no norte do país, esta situação tenha sido mais evidente do que no sul, em que alguns impressos continuaram a circular, porém com irregularidade. A imprensa teve seguimento no Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX conceituada por Rüdiger (1993) com característica político-partidária, momento em que os pasquins4 foram tornando-se cada vez mais um problema para o governo, que nesta época passou a relacionar-se de maneira mais próxima com a imprensa, conforme verificamos na seguinte reflexão: [...] A classe política transformou a imprensa em agente orgânico da vida partidária. Após a Revolução, não foram poucos os tipógrafos que conquistaram cargos políticos, de modo que logo a propriedade de um jornal se tornou meio de ascensão política. A consolidação dos partidos políticos que se esboçou nessa época paulatinamente institucionalizou esta prática. (RÜDIGER, 1993, p. 24). Se os tipógrafos, donos dos jornais, passaram a conquistar cargos na política, podemos compreender que aquilo que era escrito nos jornais deste período tinham interesses para além do governo enquanto situação, além de oposições e muito mais à frente da informação por si só. As ideias em destaque nos impressos poderiam estar ainda muito voltadas aos interesses particulares e políticos de seus proprietários. 4 Publicações em formato menor contendo, segundo Sodré (1999) uma linguagem violenta, com invasão à vida particular e acusações às condutas. Informativo que chegou a ser dominante na imprensa. 63 Também neste período os partidos passaram a encarregarem-se de criar suas próprias empresas e lançar novos jornais, conforme explica Rüdiger (1993), e, dessa forma, os políticos passaram a ocupar os lugares dos tipógrafos no comando das redações. Assim a imprensa começa a ser vista e formada justamente enquanto empresa, já com fins também comerciais. A partir de 1860, de acordo com o exposto pelo mesmo autor, os setores agrícola e comercial se desenvolvem fomentando crescimento econômico e demográfico, possibilitando o surgimento de indústrias e a modernização do estado rio-grandense, favorecendo, por consequência, também o desenvolvimento da imprensa. Os jornais foram perdendo a característica artesanal para a utilização de tecnologias que aprimoraram, inclusive, a qualidade gráfica. Rüdiger também comenta que a tiragem aumentou muito, chegando a média de 2 mil exemplares, melhorando também a forma de distribuição já que houve evolução no processo de entrega do correio e melhoria nas estradas. Contudo, as tiragens não acompanharam o aumento da população, uma vez que a falta de escolarização e baixo poder aquisitivo foram fatores que dificultaram a venda, sendo que os custos de produção permaneciam. “Entretanto, as preocupações econômicas não estavam na ordem do dia. A manutenção dos periódicos não constituía um problema financeiro, mas um problema político” (RÜDIGER, 1993, p. 27). O autor refere-se ao lançamento de jornais que não visavam a lucratividade, mas a formação da opinião pública, obrigando os jornais a agirem como partidos, época em que a imprensa esteve fortemente ligada à questão da abolição da escravatura, sendo responsável, inclusive, por muitas das alforrias. Essa realidade seguiu até o final do século XIX e a imprensa deste período foi também descrita por Sodré: [...] O que mais se fazia, naquela fase, era precisamente discutir, pôr em dúvida, analisar, combater. Combater a pretensa sacralidade das instituições: da escravidão, na monarquia, do latifúndio. E a imprensa tinha, realmente, em suas fileiras, grandes combatentes, figuras exemplares, como homens de jornal e como homens de inteligência ou de cultura. (SODRÉ, 1999, p. 233). O combate instaurado através dos jornais deu-se também entre um periódico e outro, ou seja, a imprensa da situação divulgava as suas ideias, mas também havia os jornais dos opositores, conflitando as informações. De acordo com 64 Rüdiger (1993, p. 31) “a folha que pontificou não apenas na imprensa republicana, mas no próprio panorama do jornalismo político-partidário rio-grandense foi A Federação”. Assim poderemos verificar, se o objeto em análise neste trabalho possui estas características e, a partir delas de que modo representou a questão da Revolução Federalista, sendo um jornal gerenciado pelos republicanos, ou seja, a situação. Este jornal, lançado em 1884, teve, segundo Rüdiger (1993, p. 31), “significativo papel na articulação do movimento republicano da Província, assumindo desde o princípio o cunho de órgão de combate e propaganda”, sendo a diretoria de A Federação destinada a Júlio de Castilhos, que, segundo o mesmo autor, foi o responsável pela criação de novas concepções no jornalismo, especialmente “o conceito prático de que a imprensa não precisa limitar-se a registrar os acontecimentos políticos, pois que pode modificar seu curso” (RÜDIGER, 1993, p. 31), ideia que provocou opiniões contraditórias, mas também a receptividade do público, o que possibilitou a criação de espaço para intervenção normativa da imprensa: O jornalismo não é uma força passiva, embora partidariamente engajada, do processo de formação da opinião pública, mas um fator ativo de modelagem pública da própria opinião. [...] A Federação constituía então a correria de transmissão da política governamental, facilitando as articulações partidárias numa época em que eram difíceis as comunicações. (RÜDIGER, 1993, p. 31-32). É inegável a importância desse periódico como um elemento inovador no sentido jornalístico, enquanto fomentador da opinião pública, embora considerando um partido político. Citando Fontoura (1958), Rüdiger apresenta A Federação como um jornal diferente dos demais, desenvolvidos em meio ao tumulto dos improvisos, havendo um cuidado maior na construção do texto, que era revisado pelo chefe do partido que às vezes fazia suas modificações. Este jornal chegou a 10 mil exemplares, mas posteriormente decaiu, junto com o partido. A partir de 1930, conforme explica o mesmo estudioso, A Federação tornou-se órgão oficial do Partido Republicano Liberal, mas, em 1937, o jornal foi extinto oficialmente com a proclamação do Estado Novo. 65 A partir dos dados levantados acerca da história da imprensa no Brasil e no Rio Grande do Sul, de modo especial nos períodos em que nos propomos a estudar neste trabalho, é necessário que pensemos, ainda, no modo como devem ser percebidas, hoje, as representações daquela época. Nesta perspectiva, Barbosa (2010, p. 13) afirma: “os parâmetros que possuímos de notícia, de fato jornalístico e das relações desses impressos com as múltiplas temporalidades que emergem das narrativas influenciam os conceitos que empregamos em relação aos periódicos do século XIX e, sobretudo, muitas de nossas interpretações”. Embora o modo de fazer jornalismo tenha se modificado ao longo dos tempos, o que não muda é a utilização dos veículos de comunicação impressos como sendo um tipo de documentação, que guarda a história e a memória de um determinado período e população. Diante disso, a mesma autora declara que os jornais retêm o excêntrico: “Aprisionando o acontecimento num suporte de excepcionalidade, reproduz-se sob a forma de letras impressas a memória do que é excepcional” (BARBOSA, 2010, p. 131). Entendemos, desta forma, que é possível encontrar nestes jornais não apenas a história por si só, mas pormenores, que podem nos dizer outras coisas mais. E é sob esse aspecto que também é atribuída à imprensa a ideia de poder, conforme ressalta a pesquisadora. Responsáveis por selecionar o que é transcrito, os jornalistas detêm esta gerência da memória construída a partir do que é veiculado, atuando como o “senhor da memória e do esquecimento” (BARBOSA, 2010, p. 131) e eternizando, ou não, acontecimentos e os detalhes por traz deles. Posto isso e por entendermos o modo como se desenvolveu a imprensa escrita do século XIX, poderemos, com mais propriedade, analisar, a partir da próxima seção deste capítulo, os periódicos que nos propomos: O Povo, a fim de averiguar de que maneira a Revolução Farroupilha foi representada, e O Federalista, para analisar o modo como a Revolução Federalista foi abordada e, além disso, em ambos, como a violência tomou corpo através dos textos. 66 2.2 A referenciação à guerra e à violência no discurso de O Povo O jornal O Povo circulou no Rio Grande do Sul de 1838 a 1840. Foram três anos de publicações baseadas, quase que exclusivamente, nos fatos da Revolução Farroupilha, ocorrida no Estado gaúcho de 1835 a 1845. Este periódico é, entre outros, um documento muito importante na representação deste período histórico. Selecionamos este jornal em detrimento dos demais, pela representatividade histórica e ainda por estar inserido em um espaço de tempo que perfaz o que seria a metade da guerra dos farrapos. O documento pesquisado é uma coletânea de todas as edições de O Povo, reunidas inicialmente pelo Museu Julio de Castilhos – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. A encadernação, feita em 1930, é apresentada como sendo parte da grama de documentações interessantes para o estudo da Revolução Farroupilha e o exemplar pesquisado encontra-se no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria – RS. A apresentação é escrita em 30 de março de 1930 e, embora tenha sido relatada quase 100 anos após a publicação, através deste texto inicial podemos entender quais os objetivos contidos nas publicações. O enunciador comunica que o volume que contém os jornais O Povo divulga “preciosos papeis que possúe attinentes á historia do famoso decennio, 1835-1845, que comprehende o período de duração da chamada GUERRA DOS FARRAPOS” (O POVO, 1930, s/n)5. O texto de apresentação reforça ainda mais uma vez a certeza da contribuição deste periódico, referenciando-o como uma preciosa documentação no estudo desta parte da história regional: “O POVO, JORNAL POLÍTICO, LITERARIO E MINISTERIAL DA REPUBLICA RIOGRANDENSE, enfeixou em suas columnas, em largo periodo de tempo, os mais valiosos subsídios do memoravel decennio” (O POVO, 1930, s/n). Além de tratar o período da Revolução Farroupilha como sendo dez memoráveis anos, o apresentador dos jornais caracteriza o redator do periódico: Luiz Rossetti, um italiano que, embora seja estrangeiro, assim com outros “se identificou com as cousas da nossa terra, luctando e morrendo em sangrento recontro” (O POVO, 1930, s/n). O narrador deste texto inicial já exalta a publicação e seu escritor 5 Os fragmentos dos jornais serão reproduzidos exatamente na forma como foram publicados, obedecendo à linguagem da época. 67 enquanto parte de um contexto em que morrer lutando pela terra é sinal de orgulho e heroísmo. A apresentação segue com referência a Domingos José de Almeida, ministro que fazia parte da redação. Ao todo foram 160 exemplares de O Povo, sendo 45 publicados quando a produção do jornal era em Piratini e os demais já no município de Caçapava, quando a sede do Governo se transferiu para aquele local. Analisaremos, neste trabalho, 14 edições do periódico, escolhidas aleatoriamente, mas, com o intuito de buscar os textos mais diferenciados entre si, a fim de poder comparar os discursos. O texto de apresentação dos periódicos também afirma que os estudiosos da revolução podem ter grande proveito do material em se tratando das “memorias commemorativas do magno acontecimento, cuja data centenária está a barter=nos ás portas”. (O POVO, 1930, s/n) Às vésperas de completar os 100 anos do início da guerra, o narrador que informa sobre o periódico comenta a importância dos jornais enquanto guardiões da memória daquele tempo, contudo, refere-se a este período enquanto passível de comemorações. As páginas de O Povo apresentam um jornalismo muito diferente do que temos conhecimento na atualidade. Os textos não apresentam um padrão de objetividade e tampouco trazem o lead6 como um pilar, quase que indispensável aos textos que noticiam assuntos factuais, até porque o discurso deste periódico não parece querer simplesmente transmitir fatos ao leitor, mas, sim, proporcionar toda uma reflexão acerca daquilo que é apresentado. O jornal é indiscutivelmente opinativo, e não se pretende diferente, já que em todas as edições, antes de iniciarem os textos, podemos ler, além da data, do nome e do Slogan: Jornal político, literário e ministerial da República Rio-grandense – o que já o emoldura em uma linha discursiva –, também a informação: “Este Periodico he propriedade do Governo”. Também ao início de cada edição vemos o aviso de que as publicações serão às quartas-feiras e aos sábados e que o periódico pode ser adquirido na casa do redator ou através de assinaturas. 6 Expressão jornalística para denominar o modo como se iniciam os textos noticiosos. É o ato de responder, objetivamente, às questões: o quê, quem, como, quando, onde e por que. 68 Imagem 1 – Primeira edição do jornal O POVO Fonte: O Povo, 1838. Crédito: Laísa Veroneze Bisol 69 O discurso de O Povo é construído, principalmente, através de seções que se intitulam manifestos, com opiniões do governo ou outros articulistas convidados, comunicados, notícias, também opinativas, moral, com textos que vangloriam feitos gaúchos, além de portarias, poesias, sonetos, pensamentos, correspondências, atas, ofícios, e informes como, por exemplo, as listas atualizadas dos oficiais do exército. Em todas as publicações deste periódico há um espaço destinado à frase: “O poder que dirige a revolução, tem que preparar os animos dos Cidadaós aos Sentimentos de fraternidade, de modéstia, de igualdade e desinteressado e ardente amor da Patria. Joven Italia. Vol. V.” Considerando que se trata de um jornal do governo, este que é o poder que está à frente da Revolução Farroupilha, entendemos que a proposta do periódico é, através de seus textos, estimular a comunidade aos sentimentos citados pela frase de abertura do bissemanário. Um pouco contraditório, talvez, pensarmos que fraternidade seja um valor cultivado em meio a uma guerra, considerando as constantes lutas com os oponentes, que buscam a exterminação do outro para a vitória da situação. Além disso, ao avaliarmos o conceito atual de modéstia, perceberemos que um povo que protagoniza batalhas em função do “ardente amor pela pátria”, pode não ser, ao menos em sua totalidade, modesto. Todavia, precisamos considerar a possibilidade de que, naquele período, a interpretação desta expressão tenha sido feita de outro modo. A frase de abertura do jornal é citada também logo no início do primeiro texto publicado, em 1º de setembro de 1838, sob o título de “Prospecto”, sendo argumento sobre as motivações que guiarão a redação do periódico. Na sequência, o redator se propõe a explicar a expressão utilizada: 70 Devemos nos identificar o poder que rege a guerra, e tentar todos os meios lícitos para lhe adquirir maior probabilidade de huma decisiva victoria. Procurar com todas as nossas forças propagar entre o Povo doutrinas essencialmente democraticas, sendo aquellas das quaes depende a salvação, e a felicidade da Republica. Tal he a missão que a nossa consciencia imperiosamente nos ordena nas circunstancias. Quem se propor á outro fito além deste, teria a nosso ver, mal concebido o espírito de huma guerra de insurreiçáo. A oposição aos atos do Governo, quando o Governo he consolidado, e os regulamentos da paz substituídos aos Decretos da guerra; quando cada cousa tem que reger-se pela soberana vontade do Povo, entáo náo sómente he util, mas torna-se necessaria para advertir a Naçáo, ou das usurpaçóes do poder, ou da incapacidade dos governantes, a fim de que Ella possa promover, e obstar males, de que está ameaçada; mas quando se tenta destruir os obstaculos que embaraçáo o fim da revolução, e se considera que para vencer o inimigo he necessária huma extrema vigilancia, huma atividade incansavel, e huma celeridade extraordinaria áfim de conhecer-se seus movimentos; dar providencias as necessidades que disto se seguem, e vigiar promptamente, e em tempo sua execução. (O POVO, 1838, ed 1, p. 1). Neste trecho que inaugura o jornal O Povo, fica claro o anseio do governo e, consequentemente, do periódico que o representa, a busca pela vitória da revolução, que poderá chegar através de muitas lutas. Ao passo em que aborda a questão da democracia como valor regente do governo, a matéria explicita a necessidade de todos estarem a favor daqueles que estão no poder. Embora pregue a democracia, o discurso deste primeiro texto do periódico também atribui valor positivo apenas aos que estão em concordância com o governo vigente, levando também ao leitor as ideias sobre como agir diante da guerra instaurada. O texto segue, mais adiante, tratando sobre o quanto seria perigoso censurar um governo que está lutando com vistas a conquistar a independência da nação. Para reafirmar esta questão o narrador argumenta: Quando se trata dos destinos da Patria, qualquer meio licito é santo, qualquer arma impunhada pelo valeroso que se offerece victima consagrada, he abençoada de Deos, que sòmente concede a palma da Victoria aos que insurgem firmemente resolvidos a obtel-a. (O POVO, 1838, ed 1, p. 1). Já a abertura do jornal O Povo demonstra o ideal de guerra justificável. Embora haja mortes e outras atrocidades em decorrência das batalhas, há, para os enunciadores deste discurso, um objetivo maior para que tudo aconteça. O texto apresenta, inclusive, a ideia de guerra santa, de Deus abençoando e concedendo 71 benefícios àqueles que de fato lutam, utilizando as armas adequadamente quando em benefício de uma questão. Cabe refletirmos, de que maneira, a utilização de uma arma, com a finalidade de destruição, pode ser considerada uma maneira de elevar a santidade. Ainda no sentido religioso, este primeiro discurso remete ao ofício do jornalista, atribuindo-lhe qualidades como “sublime” e “luminoso”, sendo, o profissional desta área, responsável por ser um educador e, ainda, comparando a profissão com a vocação sacerdotal. Sob esta perspectiva, era conferida, ao enunciador do jornal, a responsabilidade de, com extrema fidelidade aos fatos, instruir a população sobre os acontecimentos, muito mais do que apenas anunciálos. Ou seja, aquilo que era publicado no jornal tinha o intuito de atingir diretamente os leitores, na mesma medida em que o redator seria o grande responsável pelo pensamento criado ou pelo que passaria a pautar as conversas e ações. Ainda nesta edição, temos a primeira matéria noticiosa do jornal, intitulada “Necrologia”. Este texto narra a morte de Francisco Xavier Ferreira, que foi preso e estava muito doente na prisão, vindo a falecer pouco tempo após ter sido transferido a hospitais. Confirmando o conceito de um jornal com tom literário, a matéria inicia com palavras carregadas de expressividade: Hum outro nós foi arrebatado! – O riso maligno do tyrano, sua perfida alegria nos diz assaz qual he a perda que temos tido – qual era o temor que a ilustre victima, se bem que sepultada em hórrido cárcere lhe inspirava. [...] O septuagenario metido n’hum Leito, sofrendo a dór de sua enfermidade mortal, ameaçaria o Governo? – Ou seria que este Governo quizesse com isto apartar de si a axprobaçaó do homem justo, que tanto peza ao malvado? – [...] Dous Meirinhos e quatro Permanentes para acompanhar hum velho de setenta annos em agonia? .. E Deus não vos envolverá na sua colera? E o Povo que vossa barbaria deshonra deixará ainda para hum sò momento nas vossas maós seu poder? Ah! naó. Pode tardar; mas o dia virá em q’elle se desperte. Conseguistes adormecer esse Povo; com tudo naó esperai que vossos crimes fiquem sempre impunes. [...] E vos RioGrandenses aproveitai as lições que com estes factos vos daó vossos tiranos! Naó desperdiçai no silencio inuteis gemidos: naó expargi istereis lagrimas sobre as pedras que encobrem as cinzas de vossos mártires! Affiai vossas armas! vingai os ultrages; e escutai o grito que do fundo de seu tumulo elles vos mandão. (O POVO, 1838, ed 1, p. 2 – 4). O redator indigna-se com o governo brasileiro por desconfiar que um homem idoso e enfermo pudesse causar ainda algum tipo de atrito, mantendo-o sob 72 observação de soldados, e tardando a proporcionar atendimento médico. Entretanto, a matéria isenta-se de que o Estado Rio-grandense também faz parte da guerra podendo ter cometido atitudes iguais ou muito semelhantes a descrita na matéria, especialmente se considerarmos que a alegria do tirano, exposta pelo enunciador, também é expressa quando um republicano vence uma batalha, tendo que, para isso, até mesmo matar uma outra pessoa. Mas o redator não questiona apenas o poder, discute até mesmo a ação de Deus sobre tal situação, rogando que um dia aconteça algo semelhante com aqueles que tomaram esta atitude, contradizendo os ideais pacíficos, que mencionara. Este discurso demonstra, ainda, a questão que abordamos, anteriormente, acerca da notícia não apenas enquanto informativa, mas com vistas à instruir a população. O texto encerra indicando que os gaúchos tirem uma lição do ocorrido. Se a repulsa foi tão grande contra os atos cometidos ao idoso que viera a falecer, o conselho deveria, então, vir munido de pregações de paz. Mas não é o que ocorre, o redator orienta que, ao invés de chorar pelos que já morreram, sem resultado algum, a população deve afiar as armas e vingá-los, completando, assim, o ciclo violento da guerra. Na segunda edição de O Povo, publicada na quarta-feira, 05 de setembro de 1838, o periódico apresenta como primeiro texto o título “Manifesto - do Presidente da República Rio-Grandense em Nome de seus Constituintes”, artigo que seguirá em continuidade por mais duas edições – no sábado, 08, e na quarta-feira, 12. Neste primeiro, vemos a ideia de tornar o Rio Grande do Sul independente do restante do país: “Desligado o Povo Rio-Grandense da Communháo Brasileira reassume todos os direitos da primitiva liberdade; usa destes direitos imprescriptiveis, constituindo-se Republica Independente [...]” (O POVO, 1838, ed. 2, p. 1). O ideal de liberdade está presente neste trecho do discurso, mas, em praticamente todas as edições do jornal, endossa o objetivo do governo gaúcho e a justificativa da guerra. São utilizadas, ainda, expressões positivas para caracterizar o estado sulino, como “bom senso”, “amor da ordem”, “moderação que causa inveja e admiração ao Brasil”. Estes fatores podem ser atribuídos a constante preocupação em exaltar o território, reforçando a imagem rio-grandense enquanto causadora de orgulho para os habitantes deste local que devem, segundo esta perspectiva, seguir lutando pela terra. Se o orgulho perfaz esta ligação de Estado superior, que pode ser melhor separado do restante do país, que possui heróis dispostos a lutar por esta terra, então, mais uma vez a ideia de modéstia se desconstitui. 73 Neste mesmo artigo, são evidenciados os motivos que causam descontentamento aos gaúchos, como que para justificar as batalhas: Naó nos pagou o Governo Imperial o que se nos tirou a titulo de compra, ou de empréstimo, e muito menos resarcio as nossas perdas, occazionadas por um estado de cousas de que só elle era culpado. [...] A carne, o couro, o sebo, a graixa, além de pagarem nas Alfandegas do Paiz o duplo do dizimo de que se propuséraó aliviar-nos, exibiaó mais quinze por cento em qualquer dos Portos do Imperio. [...] Pagavamos todavia ointenta reis de dizimo dos couros e mais vinte por cento sobre o preço corrente, nós que já iamos vencidos na venda destes gêneros, pela concurrencia dos nossos vizinhos, nos mercados geraes. (O POVO, 1838, ed 2, p. 2). Embora a Revolução Farroupilha tenha iniciado há três anos, o texto jornalístico segue tratando dos motivos pelos quais a guerra se faz, talvez para reforçar à população o anseio pela vitória, simplesmente para informar os desentendidos ou, ainda, como meio de justificar as atrocidades que, possivelmente se desenrolavam em função da guerra, mas que não são noticiadas no periódico. Nesta mesma edição, assim como em outras, há as seções interior, com outras notícias do Estado, e Exterior, com matérias a respeito de outros estados como Rio de Janeiro e Bahia, sempre com viés político e alguns relatos de outras revoltas que aconteciam neste mesmo período. No jornal O Povo também eram veiculadas algumas informações referentes às batalhas que faziam parte da guerra. Contudo, o viés destas informações sempre permeia a exaltação do estado gaúcho, seja criticando os imperiais pelos atos violentos cometidos contra os republicanos, seja pela vitória sobre os inimigos. Podemos notar esta perspectiva no texto intitulado “Pedras Brancas”, publicado em 22 de setembro de 1838: O inimigo depois da inutil tentativa de surpresa feita ao Tenente Coronel Fortunato Brandaó, querendo eff ituar a sua retirada, foi novamente acommettido nas imediações do Passo do Ribeiro pelo Capitaò José do Amaral Ferrador [...]. A escaramuça foi bastante renhida, e nos fisemos a perda de alguns homens; porem elle alem de dez feridos inclusive o famigerado Francisco Pedro de Abreu, deixou tres mortos sobreo campo, e o subalterno Theodoro José da Costa em nosso poder. (O POVO, 1838, ed. 6, p. 4). 74 A notícia apresenta, de maneira orgulhosa, uma das vitórias dos soldados do Rio Grande do Sul. A morte de alguns dos combatentes é encarada como algo natural – e na realidade é mesmo inerente à guerra –, entretanto, neste texto não há nenhuma referência importando-se com as vidas que se perdem, há, apenas, um “porém”, relatando que, embora alguns soldados tenham morrido, foram deixados inimigos feridos e mortos, além de um presidiário, fato que vem para justificar as mortes do lado republicano, sendo atribuída à batalha valores vantajosos a fatos de horror. Na mesma edição, uma portaria escrita e assinada por José da Silva Brandão trata sobre a libertação de presos, justificando a atitude como uma afronta aos insultos feitos à humanidade: O Governo da República Rio-Grandense sempre firme nos principios philantropicos que há adaptado, e em recordação do Fausto Dia 20 de Setembro de 1835, manda que sejam soltos os Officiaes e Cadetes, e assim mais os Soldados, seus camaradas, que foraó prisioneiros na Batalha do memorável 30 de Abril ultimo em Rio Pardo; permitindo-lhes regressar ao seio de suas familias. (O POVO, 1838, ed. 6, p. 6). O mesmo periódico que trata com orgulho o aprisionamento de um inimigo exalta os feitos rio-grandenses por soltar oficiais que haviam sido presos anteriormente, apontando, mais uma vez, a contradição dos discursos, fato que acaba sendo inerente a um informativo que se propõe parcial, acentuando apenas uma versão dos fatos. Esta ideia destoa do contexto objetivo proposto para o processo discursivo do jornalismo, pois representa apenas uma parcela da sociedade, reproduzindo e enfatizando os ideais propostos por ela, sem, contudo, opor-se ou suscitar diferentes opiniões sobre os temas veiculados. Embora em diversas edições seja evidenciado o orgulho pelos feitos considerados heroicos nas guerras, há também artigos opinativos que anseiam pela paz, embora apresentem meios violentos para chegar a este objetivo. Na edição 27 de O Povo, em 1º de dezembro de 1838, encontramos o título “A guerra do RioGrande – Meios de a terminar”: 75 A primeira condição essencial para extinguir a revolta do Rio-Grande he a reuniaó de bastante força, tanto de Terra como de Marina, naó só para combater os rebeldes com vantagem, mas também para estabelecer um systemade ocupação militar e Policia [...]. (O POVO, 1838, ed. 27, p. 1). A proposta do texto era trazer meios de terminar com a revolução, já que tantas atrocidades ocorrem em virtude da guerra, entretanto, a solução identificada pelo redator é justamente a ampliação do número de soldados, para a realização de novas batalhas com vistas sim ao término da revolta, mas com a vitória através da destruição do inimigo. As ideias opostas aparecem novamente quando observamos que, na mesma edição, há um outro espaço discursivo que trata o Rio Grande do Sul enquanto contrário às guerras: Se fossemos partidistas da guerra, das conquistas, das glorias militares, se naó antepozessemos a paz e meios de moderaçaó á força e meios extremos, pediriamos ao Governo Imperial que aproveitasse o ensejo que lhe offerecem a guerra do General Santa Cruz, o bloqueio da Esquadra Franceza e a guerra civil do Estado Oriental, naó para forçar o seu Governo a naó favorecer os rebeldes do Rio-Grande, mas para tornar aquella Republica ao que já foi – parte integrante do Imperio, - e assim terminar de uma vez todas as difficuldades que Ella oppóe ás medidas empregadas pelo Brasil para extinguir a revolta. (O POVO, 1838, ed. 27, p. 2). Se de fato o governo da República Rio-Grandense não concordava com as guerras, preferindo outras formas de resolução dos conflitos, então os motivos elencados anteriormente, pelo mesmo jornal, não seriam suficientes para eclodir a revolução. Sendo assim, observamos que as opiniões se modificam no decorrer das publicações e, às vezes, até mesmo em uma mesma edição deste bissemanário. Na publicação de 5 de dezembro do mesmo ano, há uma seção “Exterior: O Nacional Monte Video, Novembro 11 de 1838. Introduçaó”, em que é reproduzido um artigo intitulado “Paz domestica”, sendo os autores, através deste escrito, caracterizados por possuírem os “mais puros, e ardentes dezejos”. Um dos trechos apresenta o seguinte: 76 Acabamos de medir nossas forças: nosso braço por ventura pôde supplantar hum tirano; e o povo tornou invenciel no campo da batalha – Porem elle naó pelejou pelo prazer de pelejar: elle naó possue este prazer só próprio dos Caribes: elle naó derrama o sangue de seus filhos sem huma dor intensa: elle não se sacrifica sem hum fito nobre, e elevado. Peleja e sacrifica-se por sua Liberdade, por sua Soberania, por sua dignidade, e por sua gloria [...]. (O POVO, 1838, ed. 28, p. 1). Trata-se, neste contexto, da reprodução de um discurso que vangloria a República Rio-grandense, e o faz justamente através da citação de feitos considerados heroicos, mais uma vez, através de lutas. A liberdade é novamente exaltada como motivo para guerrear e, mais do que isso, o fragmento apresentado enfatiza a ideia do orgulho, não somente de pertencimento ao solo gaúcho, mas, mais do que isso, a glória pessoal em derramar sangue e sacrificar-se por um ideal. O conceito de dignidade humana, que seria o mérito do que é correto, e também unida à questão da integridade, aparece neste texto jornalístico a partir de um outro fundamento, estando diretamente ligada à questão da guerra. Digno seria, portanto, na perspectiva deste jornal, aquele que está pronto a combater o inimigo e lutar por sua terra, independente do que seja preciso fazer para isso, já que, quando o sangue é derramado por um ideal maior, o fato se justifica, ainda que seja necessário sofrer conforme percebemos no fragmento exposto. E sobre o sofrimento, o próprio Bento Gonçalves de pronuncia na edição de 09 de janeiro de 1839 de O Povo, quando escreve aos leitores a respeito da mudança do governo para o município de Caçapava: “Rio Grandenses! Nossa Posiçaó ainda he melindroza porem hum pouco de soffrimento mais, e o Continente será livre , a Patria será salva. – Viva a Naçaó Rio-Grandense! – Vivaó os briozoz defensores da Liberdade!” (O POVO, 1838, ed. 38, p. 1). O anúncio do líder parece vir em tom de motivação, estimulando a esperança, a alegria de pertencimento que será ainda maior após um pouco mais de esperas e angústias, é como se a felicidade tão almejada fosse possível somente atrelada ao sofrimento mencionado, que é, inclusive, originário da guerra. Em 06 de março de 1839, O Povo começa a circular a partir de Caçapava, e abaixo do slogan que o identifica traz ainda as palavras: Liberdade, Igualdade e Humanidade. Agora o ideal de liberdade está impresso em cada uma das edições do 77 periódico, assim como “humanidade”, difícil de se conceituar em meio a um contexto em que é necessário – e possível –, matar para poder conquistar os anseios do governo. Entretanto, através do discurso adotado pelo jornal, é possível compreender que, ao menos pela representação discursiva, ansiava-se por esta humanização: Ufanos de nossa calculada inacçaó os Imperiaes haviaó adoptado hum plano de campanha que muito convinha aos sentimentos de Humanidade que nos dirigem mesmo na terrivel necessidade da guerra. Ja effetuado nos pouparia o desgosto de sermos obrigados a acometter cidades que abrigaó todavia Rio-Grandenses que amamos. Porem se continuassemos a conservar nos taó perto de suas posiçóes, o Presidente Eliziario nunca se animaria á avançar. (O POVO, 1839, ed. 46, p. 2). Embora o texto traga a humanização enquanto desejo e caracterize a guerra enquanto “terrível necessidade”, deixa evidente que o humano volta-se apenas para aqueles que estão a favor dos ideais do governo e, como consequência, deste periódico, já que a melancolia se dá pela obrigação de invadir locais onde também existem gaúchos, entretanto, para que se cumpram os objetivos, esta é uma angústia que se faz tão necessária quanto a guerra que se estabelece. Em sentido semelhante, a questão das mortes para o cumprimento de objetivos é novamente abordada em 9 de março de 1939 sob o título “O Povo”: A guerra de extermínio principiou. O sangue correo. Saó fielmente executadas as ordens do Regente em nome do 2º Pedro. A maioria da Camara Quatriennal tem visto cumprir-se os seus dezejos. Graças lhe sejaó dadas! Vasco Amaro, Joaó Antunes Pinto, Antonio Balhego, o estrangeiro José Zerboni, e mais outros cujos cadaveres por mutilados naó poderaó ser reconhecidos, e que por conseguinte julgamos ser símplices passageiros, cahiraó primeiras victimas do farioso delirio que renunciou a toda honra, que abdicou toda a ideia de moral. “Custe o que custar, diz o Luzo Governo imperial, lancemos na infamia a Naçaó Brasileira, evoquemos sobre Ella as maldições da Humanidade, cubramos nós mesmos de delicto, naó importa, com tanto que esse Povo rebelde , esses republicanos ouzados, ao menos pelo terror volvaó cutravez a resignar se debaixo de nossa bandeira oppressora.” (O POVO, 1839, ed. 47, p. 3). 78 Não somente cumprir com a missão a que foram confiados, os soldados que morrem na guerra são nomeados pelo discurso jornalístico deste jornal como verdadeiros heróis. O texto trata de pessoas que de tão cruelmente acometidas pela violência das batalhas, não são passíveis ao menos de reconhecimento, uma vez que os corpos são mutilados. Entretanto, não se fala da tristeza destas perdas, tampouco se faz referência a estas situações enquanto originárias da guerra que se sucede, isso já é posto, no discurso, como elementos intrínsecos do contexto. O que se enfatiza é a questão da honra com que lutaram. Além disso, o mesmo periódico que defende a questão da humanização, em vez de posicionar-se, em maior medida, ao término dos conflitos, deseja que o mesmo que aconteceu com os seus representantes se confirme também com os inimigos e este desejo é explícito pelo texto do jornal, quando no discurso é manifesto o desejo de que o terror se abata sobre os oponentes. De outra forma, uma circular de José da Silva Brandão, publicada da edição número 48, de 13 de março de 1939, há uma crítica a sulinos que teriam traído o Estado: "Tendo alguns miseraveis; indignos do Título glorioso de Cidadaós Republicanos Rio-Grandenses; incorrido no horroroso crime de alta traição a Patria já´servindo de Espias [...] auxiliando poderosamente os roubos” (O POVO, 1839, ed. 48, p. 2). A partir deste fragmento, podemos ter duas principais interpretações: a primeira delas é que, antes de narrar o ato, o escritor do discurso já previne que aqueles dos quais se vão falar não são dignos de serem gaúchos, considerando como uma glória o pertencimento a este estado, e, por isso, a detenção de uma honra inviolável, ao passo em que um grupo quebra as regras, ao ser denunciado passa a ser excluído do seleto público rio-grandense, já que são julgados como traidores. Contudo, há uma afirmação, neste mesmo texto, da imperfeição do povo, ou seja, não somente heróis fazem parte da Revolução, mas também outras personalidades que são consideradas más, porque roubam, algo que não é lícito. Notamos que, ao longo das publicações, poucas são as vezes que se emitem conceitos negativos a pessoas que pertencem ao Estado do Rio Grande do Sul, e quando ocorre, é mais brevemente e, no mesmo texto, justificando que são exceções, que sua maioria preza pela terra. Esta exaltação ao povo gaúcho é tão intensa que outros articulistas, de fora do país, parecem incluírem-se neste espírito. Um exemplo disso aparece na edição de 24 de agosto de 1839, em que O Povo 79 veicula um texto na seção “Exterior”, vindo de Montevideo. No discurso, o redator exalta os gaúchos pela forma como lutam na guerra: Recordando os fatos da Republica Rio-Grandense, durante os quatro annos de luta, naó se pode deixar de admirar a constante moderaçaó e generosidade, com que os Republicanos se portaráo sempre com seus inimigos vencidos. Fortes com seus direitos, e com a maioria de votos de seus concidadãos, elles desdenharão sempre valer se daquelles meios extremos, que nas revoluções se fazem com horror das almas senciveis; mas que huma lei fatal empoem como deveres. Valerozos nas batalhas, generosos e humanos no enthuziasmo da victoria, como aquelles que peleijáo, não contra homens seus semelhantes, se naó contra os instrumentos da tyrania huma vez que estes já naó existem, naó vem nos vencidos mais qoe a seus irmãos, a quem perdoando huma culpa da qual outros são responsaveis, os devolvendo ao seio de suas famílias; naó exigindo delles se náo sua palavra de honra de naó tornarem a impunhar as armas contra a Republica durante a presente guerra com o imperio. (O POVO, 1839, ed. 95, p. 2). Ao percebermos apenas o conteúdo desta reprodução enquanto informação, poderíamos, talvez, encontrar algumas respostas no que diz respeito à valoração do povo gaúcho, já que são apresentados como bons, como humanos, soldados que acreditam na palavra dos inimigos antes de impor-lhes as armas e que utilizam-se de meios mais amenos nas batalhas. Todavia, é preciso considerar o discurso enquanto reafirmação de uma ideia a ser transmitida, primeiro, porque é preciso que através do que é dito se forme ou se consolide determinada ideologia, embora não se saiba como, de fato, agiam aqueles que lutavam. Ainda diante disso, é possível questionarmos de que maneira, em um conflito de guerra, um soldado possa matar o seu oponente de uma maneira menos agressiva e, após isso, com sensibilidade, moderação e generosidade, comemorar vitórias, comemorar que o lado oposto conta com mais mortos do que o grupo vencedor. Em 1º de junho de 1839, é publicado um Soneto no jornal, a exemplo de outras edições que também exploraram o gênero da poesia, sempre com o conteúdo voltado às revoluções: 80 Soneto. Dedicado ao Sr. Barros, ministro da guerra por ocasiaó de sua viagem. Cabo de paz, deshonra da milícia. Bestaó de nome, de apelido Rago. Vai te entregar sem bóia ao fondo pego, E aos certames de Marte sem pericia! O officio de matar requer malicia, Muito estudo requer annos de emprego; To que hes n’hom, e n’outro inerte e cego, Vás dar provas de orgulho, e de estultícia. Filhos; netos de heróes ás armas dados, Saó esses bravos, que o rancor separa. E tu, bisonho, entre taes soldados!!! O’ da Patria infeliz desgraça amara! Que seos destinos sejaó confiados A’ hum pobre Capitaó de meia cara! .... (Do Cidadaó Nr. 51). (O POVO, 1839, ed. 71 p. 1). Predominantemente, o que se publicava em O Povo, neste período, eram artigos tendenciosos, sempre com viés político e revolucionário, fato que podemos verificar também no soneto publicado que, embora se trate de uma produção textual diferenciada, tem a mesma característica discursiva das demais. Contudo, na década de 40 começam surgir outras matérias, como artigos econômicos e dicas sobre agricultura informando, por exemplo, como preparar o trigo antes de semear. Neste período surge também a coluna “Variedades” seção sempre bastante sucinta, com assuntos diversos, muitas vezes sobre religiosidade. Há ainda, espaço para rir, como uma espécie de piada, intitulada “Anedocta interessante” que conta a história de uma jovem republicana que para se divertir com as amigas que a visitavam abriu um livro e começou a ler alguns trechos, ouvidos também por uma idosa, que era hóspede na residência. Por não ter compreendido em pleno sentido o que a jovem lia, a senhora interrompeu-a: A tal Ignez “falla de mais ! Por isso, he que botaráo a D. Pedro para fora do Brasil, e agora fizeráo esta revoluçáo para fazerem o mesmo ao filho, só para lhe tirarem a coroa.” As outras Senhoras quando tal ouvirão desataraó arrir como perdidas, e a boa da velha, fieou muito paga de si suppondo ter dito huma admiravel sentensa. (O POVO, 1840, ed. 576, p. 4). O modo como o jornal direciona o discurso apresenta a figura feminina como despolitizada, aquela que não entende muito bem sobre o que acontece na guerra, mas, ainda assim, está inserida no contexto. Ainda que a anedota desvie a narrativa tensa dos textos sobre as revoluções ela continua tratando sobre o mesmo tema. O jornal apresenta, desta forma, uma realidade daquele contexto, é como se todos os 81 habitantes estivessem, a cada instante, pensando na revolução, sendo o assunto que pauta todas as conversas e interações. Mas esses textos diferenciados, em termos de gênero, não modificaram o foco do periódico, que seguiu publicando os boletins em predominância. Da mesma forma, neste último período de Revolução, o discurso não parece abalar-se, permanecendo o mesmo viés de escrita que notamos anteriormente, conforme podemos observar no 10º boletim de Caçapava: “desejo do roubo e do sangue, de que saó os sedentos consistiu a hum grumpo de cerca de cento e cincoenta salteadores capeteneado pelo facínora Juca Cypriano [...] (O POVO, 1840, ed. 154, p. 1). O trecho, que se refere aos soldados da oposição, apresenta-se, como de costume, lotado de expressões que diminuem a imagem dos adversários perante os leitores. O mesmo ocorre no artigo do major – chefe geral da Polícia, Antonio Vicente da Fontoura em 08 de abril de 1840, quando o líder, além de menosprezar o oponente, exalta a terra e os feitos dos lutadores do Rio Grande: O Solo sagrado da Patria, onzaó tallar nossos commons inimigos! Sua desesperação, e naó sua sudacia, he que os facina. [...] Gloria dos valentes que de todos os Angulos da Republica acodem persupezos ao combate [...] Ao combate, a gloria voemos; guerra, e morte aos tyrannos escravos! Guerra, e Guerra, para depois termos paz. Viva a Naçaó Rio-Grandense ! [...] (O POVO, 1840, ed. 152, p. 4). Além das constatações já citadas, acerca do modo como se idolatra a terra, já que o policial refere-se a esta como sagrada, e dos soldados gaúchos, já que os caracteriza como valentes, destinando glória a eles, neste fragmento do artigo ainda fica mais uma vez evidente a situação de guerra enquanto primordial para a existência da paz, que deve ser merecida, após os eventos conflituosos. Além disso, o chefe da polícia dá “viva” à nação, da mesma forma como ocorreu em outras manifestações ao longo do jornal, como forma de veneração ao Estado, mas também, de estímulo para a comunidade sulina. Uma vez analisados alguns dos textos publicados no jornal O Povo, podemos ainda constatar que o periódico estava em conformidade com o estilo de publicações da época, uma vez que, segundo Barbosa (2010), naquele tempo o jornalismo era unicamente de opinião, como ocorre neste impresso que verificamos, 82 já que o discurso é parcial e eleva, em todas as edições, a questão do orgulho pelo Estado gaúcho e, ainda, o apoio ao governo rio-grandense. Mais do que isso, o impresso em questão visa a instruir a população, já que as matérias são escritas quase sempre munidas de reflexões e, inclusive, orientações aos leitores, confirmando o que é descrito na primeira edição do próprio jornal, que o redator deveria assumir um papel de educador e até mesmo, de sacerdócio. Entretanto, podemos verificar, ainda, qual o pensamento que se promovia, ou buscava promover, a partir destas verdades transmitidas por este veículo de comunicação Se os jornais surgiam para difundir ideologias, acontecimentos políticos e informações de guerra, O Povo cumpriu este papel, utilizando-se muito mais da política do que dos conceitos jornalísticos para veicular as informações, conforme nos apresenta Rüdiger (1993). De leitura não muito facilitada, pelas falhas na impressão e pelo modo como as palavras eram escritas naquele período, o jornal assumia características literárias em sua linguagem, bem como explicou Sodré (1999), mas, mais do que isso, foi pautado, quase que exclusivamente pelos acontecimentos da Revolução Farroupilha, confirmando sua importância no entendimento circunstancial daquele período. Todavia, precisamos separar o que era informação e o que se tratava de ideologias. A questão da violência aparece em O Povo somente atrelada às guerras, não sendo noticiados outros episódios violentos que por ventura ocorressem fora do contexto de batalhas. Já a Revolução, por muitas vezes foi descrita de modo que podemos compreender os horrores promovidos a partir dos combates, sem que necessariamente o discurso aponte para os fatos enquanto sendo barbáries. Ademais, há uma via única na transmissão destes fatos: o Estado rio-grandense como superior, os gaúchos como figuras que se orgulham do seu estado e homens valentes, heróis, que defendem esta terra acima de tudo. Uma vez desenvolvidas as reflexões acerca do modo como a Revolução Farroupilha e a violência foram representadas através das páginas de O Povo, identificamos, na próxima seção deste capítulo, como o discurso representativo se construiu décadas depois, quando A Federação circulou no Estado para informar a respeito da Revolução Federalista. 83 2.3 A referenciação à guerra e à violência no discurso de A Federação A Federação foi um jornal diário editado em Porto Alegre e veiculado de 1884 a 1937, inicialmente era formatado para divulgar as ideias do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), sendo que, a partir da década de 30, do século XX, tornou-se Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Sul. A fim de analisarmos o modo como a Revolução Federalista foi representada através do discurso jornalístico desenvolvido por este periódico, verificaremos nove das edições publicadas entre 1893 e 1895, período em que a guerra foi estabelecida no Rio Grande do Sul, alastrando-se também pelo restante do país. As publicações são escolhidas aleatoriamente, mas, com o intuito de buscar os textos mais diferenciados entre si, a fim de poder comparar os discursos. Neste recorte de tempo, o jornal trouxe sempre abaixo do seu nome o slogan “Orgam do Partido Republicano”, já deixando muito claro o posicionamento adotado nos textos veiculados através deste veículo impresso de comunicação. A propriedade do jornal esteve, neste período, no nome de Eduardo Marques, sendo o responsável pelo noticiário, João Maia e o diretor de redação Pedro Moacyr. Em 1895 o cargo de diretor de redação passa a ser de Pinto da Rocha. Imagem 2 – Jornal A Federação Fonte: A Federação, 1895. Crédito: Laísa Veroneze Bisol 84 Em 1893, já se passaram cinco décadas desde as últimas publicações de O Povo, há, portanto, modificações consideráveis no modo de fazer jornalístico desta época, ainda que alguns aspectos continuem sendo semelhantes entre os dois periódicos, conforme poderemos verificar ao findar desta análise. Em A Federação, encontramos uma variedade maior de seções, com informações sobre diversos assuntos e não somente de cunho político, embora este prevaleça, junto com as publicações a respeito da guerra. Entretanto, há também notícias sobre municípios, religião, acidentes, situações do cotidiano e outras. Confirmando o caráter mais comercial que aparece nos jornais ao final do século XIX, A Federação possui um largo espaço voltado à publicidade, com os mais diferentes anúncios de compra e venda de serviços e produtos, muitas destas publicações em formato de “Classificados”, embora sem esta dominação, mas bem como conhecemos nos jornais publicados hoje. Além disso, há espaços destinados a declarações oficiais, seção livre, editais, avisos marítimos, leilões, telégrafos, nomeações do exército, agradecimentos, registros mortuários (inclusive sobre suicídios), notas da polícia, além de outras seções esporádicas. Os Folhetins também estão presentes nas páginas de A Federação, na maioria das vezes com histórias sobre romances e casamentos, com narrativas fictícias, notadamente construídas para o público feminino, e que não terminam em uma edição, mas têm seguimento nas próximas, até concluir o enredo e iniciar uma nova narrativa. Mas as principais, mais longas e elaboradas matérias sempre ocupam a primeira página do jornal, algumas vezes tendo continuidade na lauda seguinte. Sob o título “Ordem do dia”, seguem textos, normalmente com informações acerca da Revolução Federalista. Além disso, manchetes com expressões, como “combate”, “horrores” e “vitória”, são encontradas ao longo do impresso, que apresenta fatos políticos e de guerra, muitas vezes, em mais de um discurso em uma mesma edição. Iniciaremos a análise por uma das “Ordens do dia”, publicada em 1º de abril de 1893, no jornal A Federação. O texto aparece com uma introdução em que o redator explica que, ao chegar à cidade de Bagé, uma expedição republicana que foi levantar o cerco diante dos federalistas na ocasião em que o general da Brigada, João Baptista da Silva Telles, enviou informações acerca dos acontecimentos e também exaltando os feitos dos soldados: 85 Me é grato cumprir agora o dever de louvar as forças pela ordem, disciplina e moralidade que souberam manter durante todo o tempo da expedição, tornando-se dignas de apreço público, pela comprehensão exacta dos seus deveres, revelada sobejamente n’esses dias de marcha, durante os quaes tive occasião de observar o civismo, a abnegação e a boa vontade com que todos se prestam agora ao serviço da Patria, esforçando-se pelo restabelecimento da ordem publica n’este Estado, perversamente perturbada pelo intuito ignóbil dos inimigos, de esphacelal-a por meio dos crimes e das crueldades que têm commettido com maior desplante, tornando-se por isso merecedores do desprezo da Republica e da maldicção do povo. (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p.1). A fim de vangloriar ainda mais aqueles que lutaram a favor dos republicanos, o narrador cita os nomes de diversos deles. No trecho do texto que citamos, podemos perceber que se há, por parte da população daquele período, a ideia de que os representantes nas batalhas eram heróis, existe também um discurso que preserva e difunde esta imagem. O general refere-se aos soldados como exemplos de grandes homens, atribuindo-lhes características positivas e apresentando-os como verdadeiros representantes do povo, já que lutam por ele. O discurso apresentado ainda parece instigar a revolta contra os inimigos, através do desejo de maldição e a mensagem explícita de que é preciso desprezar aqueles que têm ideias contrárias ao governo ao qual o jornal representa. Ainda na mesma página, o general do comando das forças estacionadas no Livramento, Izidoro Fernandes de Oliveira, também escreve uma ordem do dia, reforçando sua posição junto ao governo, sempre na defesa da situação. No texto, o general refere-se aos oponentes como “homens sem alma” e “anemicos de idéias nobres” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p.1). O líder ainda menciona que estará sempre pronto a lutar, empenhando a sua palavra de soldado republicano. O discurso encerra com palavras de ânimo, de busca por proporcionar entusiasmo: “Viva a Republica! Viva a Nação! Viva o exercito nacional! Viva o governo da União! Viva o governo rio-grandense!” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p.1). Neste discurso, também podemos notar uma mensagem quase que subliminar aos leitores: é preciso que estejam prontos para a luta, que sejam exemplos e que o entusiasmo seja parte do cotidiano. Ao referir-se aos federalistas como povo sem alma, o articulista já não exalta o Rio Grande do Sul como um todo, uma vez que exclui uma parcela da população, considerando-a como pessoas que não são boas. Trata-se de 86 um anseio por unificar o Estado apenas com aqueles que estão a favor do ideal da república. Os dois textos que citamos são assinados por personalidades que fazem parte da guerra e não da redação do jornal, ou seja, poderiam se tratar apenas de artigos de opinião. Entretanto, ainda na mesma página, há uma notícia publicada pelos redatores do jornal, também tendenciosa e igualmente parcial. A matéria é apresentada sob o título “Banditismo em São Borja” fala de “horrorosos attentados cometidos pelo federalismo” e do “dinheiro arranjado” que entregavam ao capitão após a “violencia carnal” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p. 1). São adjetivos que deixam evidente a posição do jornal – que já se intitula como pertencente ao governo republicano –, e o faz através de um discurso que não se preocupa em atenuar as ideias, expressando este direcionamento em sua totalidade. O itálico para informar que o dinheiro foi arranjado parece posto com um viés irônico, já que os assaltos eram frequentes durante as guerras. A matéria segue da seguinte maneira: Não parou ainda o vandalismo. – Violentaram familias , cujos nomes encobrimos para não ferir o decoro e respeito que votamos a essas victimas do banditismo. [...] As que não tinham olhos sulcados pelas lagrimas, estavam desvairadas. Por mais negro que seja o quadro pintado na imaginação, ainda não se tem chegado á verdade. [...] Segundo depoimentos, o plano era, uma vez reunidas as duas columnas, - seguirem para Santiago, ahi praticarem as mesmas selvagerias e depois marcharem para S. Borja, na mesma correria vertiginosa de crimes, destruírem tudo que fosse de republicanos. (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p.1). O texto carrega expressões que conotam a dor das pessoas atingidas pelo inimigo, entretanto, não se questionam quando o ataque é dos republicanos para com os federalistas. Também não podemos confirmar se as informações apresentadas são plenamente verídicas, embora devemos presumir que sim, por tratar-se de um periódico oficial de um partido que representa o Estado; além disso, as informações são vagas, pois não há precisão ao citar quem são as famílias atingidas e tampouco quais foram as fontes que deram os depoimentos a respeito das intenções do grupo federalista. Ainda na mesma edição, há outra matéria intitulada “Horrores inauditos” que apresenta fatos violentos, mas, desta vez, 87 identificando as pessoas que foram acometidas. Este terceiro texto trata a respeito de notícias acerca de atentados dos federalistas no sul do Estado: Inocentes creanças de 5 annos degolladas, mães de familia violentadas sucessivamente por magotes de vinte e mais sicários, que, depois de saciados os seus bestiaes transportes, deixam suas victimas immoladas, dísticos insultuosos nas paredes das casas, nos quaes a sanha feroz dos monstros extravasa em torpes insultos todo o fel e lama de suas almas [...]. Na casa de Fidencio da Luz ao arroio do Itapuatiá, na distancia de uma legua escassa e contigua á estrada, há as seguintes casas devastadas: Na de Fidencio da Luz, 9 assassinatos, inclusive o de uma creança de 5 annos e duas mulheres [...] Na da viuva Maria Antonia Martino, saque e devastação [...]. (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 75, p.1). Este fragmento não demonstra somente a repulsa aos federalistas, como nos informa, muito diretamente, a respeito dos horrores da guerra: são crianças mortas, mulheres violentadas, casas destruídas e saqueadas. Esse é o legado de uma Revolução, que, independente de quem ataca mais ou menos, deixou, ao seu final, 10 mil mortos, não somente em batalhas, mas em situações como as apresentadas no discurso de A Federação. Em nome de uma ideia, os representantes de cada um dos lados cometem atrocidades, que pouco são consideradas pelo discurso jornalístico em termos de sofrimento humano, o que se sobressai, nos textos apresentados, é a busca por culpados, com o intuito de denegrir a imagem do inimigo, mais do que promover sensibilização em torno do que as famílias precisam suportar. Ocorre que isso acaba sendo natural para a época, tanto que sabedores de todos esses fatos e com tantas famílias destruídas, há comemorações quando uma batalha é vencida, mesmo que haja outros tantos feridos e mortos. Este aspecto pode ser visualizado na matéria “Viva a Republica!”, veiculada na edição de A Federação com data de 06 de maio de 1893. O texto relata a vitória dos republicanos na batalha ocorrida em Inhanduí: “Eis-nos vencedores! As armas republicanas em operações contra a invasão federalista, estão cobertas de louros e mergulhadas na mais sagrada das alegrias! [...]” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 103, p. 1). O discurso refere-se a uma comemoração alegre a partir de uma vitória que se deu através de armas, texto publicado no mesmo jornal que há pouco mais de um 88 mês tinha criticado o modo violento como os inimigos haviam procedido. Na mesma matéria, verificamos o seguinte trecho: Tres annos de lutas heroicas, pacientes, sublimes, inexprimiveis! Tres annos de promptidão ao lado do estandarte da Republica, para não deixal-a morrer nas mãos dos velhos aventureiros [...] tres annos, aggravados pela ultima e recente crise da violação barbara de nosso territorio por extrangeiros e renegados, pela deshonra das familias rio-grandenses [...] tres annos gloriosos [...] garantindo a Republica, salvando a Patria, resgatando a dignidade e as tradições do legendario Rio Grande! [...]. Era preciso lutar até vencer ou morrer, era preciso esquecer familia, interesses, casa, commodidade se pegar em armas para repelir o extrangeiro e os renegados. A invasão federalista nos encontrou promptos a vencer pela Republica ou morrer com ella. (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 103 p. 1). O modo como as palavras são dispostas e os argumentos se constroem parecem não tratar-se de discurso jornalístico. Muito pouco há em termos de informação no fragmento que lemos, o que se apresenta, são frases munidas de ideologias, de orgulho, de felicidade advinda de uma vitória. Mais uma vez o grupo republicano é tratado como heroico, e parece faltar adjetivos para caracterizar o quanto as lutas foram significativas ao passo que o redator as menciona como “inexprimíveis”. Enquanto a guerra se passa e muitas são as degradações em função dela, os anos em que a Revolução acontece são descritos como gloriosos. Onde estaria a glória para as pessoas que perderam seus pertences, suas casas e, principalmente, pessoas da família? A resposta a esta interrogação é posta no discurso. Para o partido republicano e o jornal que o representa, a glória está no resguardo das tradições gaúchas, é como se os anseios de mudança dos representantes do federalismo atingissem o orgulho pelo território. O trecho que analisamos ainda trata a respeito de vida e morte, da necessidade de esquecer a família em favor das armas, das lutas, a fim de afastar os manifestantes. O mesmo discurso apresenta como valor fundamental esta terra, já que há duas opções, vencer para salvá-la ou, preferir morrer em nome dela. Os pensamentos são representados de forma que hoje, façamos uma releitura entendendo que a família, a casa e outros fatores importantes eram deixados em segundo plano. Caberia, portanto, questionarmos quais os motivos destas paixões tão intensas em favor das lutas e da terra gaúcha. Uma possível resposta talvez 89 esteja justamente nos constantes e repetidos discursos apresentando o heroismo daqueles que lutam por ela, textos que difundem ideias e pautam as rodas de conversa nos mais diferentes locais, conforme podemos verificar quando apresentamos o modo como se dava o jornalismo naquele século. A vitória que citamos foi tão expressiva aos republicanos deste periódico que, além da matéria apresentada, há, na mesma página, um grande quadro com os dizeres: “Boletim d’a Federação – Grande Victoria”. Ali é publicada uma carta recebida pelo presidente Júio de Castilhos, escrita pelos generais Hypolito e Rodrigues Lima, neste espaço o narrador rende vivas e glórias à República recordando, inclusive, da Revolução Farroupilha: “As glorias de Inhanduhy celebradas pelos farrapos de 1835 reverdeceram hontem [...]. Eramos 4.000 e batemos completamente 6.000 [...] Foram esmagados nos flancos e centro e retiraram-se em precipitada fuga, aproveitando a noute” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 103, p. 1). Após estas e outras palavras de animação acerca do modo como os inimigos foram derrotados aparece um convite para que todos os amigos da República se reunissem ao fim da tarde em frente a sede do jornal para comemorar “a esplendida victoria das armas republicanas” (A FEDERAÇÃO, 1893, ed. 103, p.1). A partir disso, notamos também que não é apenas da atualidade a reunião de grupos que rememoram as guerras, como ocorre na Semana Farroupilha, em que os gaúchos relembram a Revolução de 35. Mesmo enquanto os combates ainda aconteciam, eram realizados festejos com comemorações alusivas às vitórias, conforme relatou o discurso do periódico. Porém, não apenas os triunfos eram relatados em A Federação. Na edição de 05 de janeiro de 1894 o diretor de redação, Pedro Moacyr, assina a matéria que conta sobre uma derrota republicana. O texto inicia com uma frase afirmando que, uma vez autorizado, o jornal explicará os fatos do combate em Rio Negro. O narrador inicialmente discorre sobre a ida dos republicanos até Bagé, a fim de perseguir os federalistas. O redator explica que o grupo republicano possuía entre 600 e 700 homens, e que os inimigos estavam escondidos com uma grande vantagem em relação a eles. Ao saírem do esconderijo, apareceram, conforme o discurso do jornal, 3 mil soldados federalistas, afirmativa que vem com intuito de justificar o porquê da derrota. Podemos notar que o discurso é construído com muito cuidado, com o intuito de não promover uma imagem negativa do partido, ainda que não tenham vencido a batalha, isto pode ser constatado a seguir: 90 Podendo correr e salvar-se, o inclyto defensor de Sant’Anna preferiu sacrificar-se e não abandonar o campo da lucta. Sempre intrépido, quiz morrer, mas não recuar. Mandou que sua pequena e abnegada força fizesse alto, dispol a em ordem de batalha e durante tres dias a fio resistiu com o mais espantoso denodo aos assaltos do inimigo, seis vezes superior em numero ! N’esse memorável encontro, a legião republicana operou prodígios de valor e disciplina, causando os mais terriveis estragos nas fileiras federalistas e ensinando aos covardes como é que se morre contente pelo triumpho de uma Idea legitima, de uma grande principio patriotico! (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 4, p. 1). De acordo com o fragmento, é perceptível no discurso do jornal que morrer lutando é mais valorosamente considerado do que viver e precisar fugir do inimigo. Embora se saiba da derrota, os argumentos são postos com a finalidade de valorizar os feitos republicanos. Há a justificativa de um número bem maior de soldados oponentes e, além disso, o engrandecimento das atitudes dos republicanos, considerados, pelo redator, disciplinados e corajosos já que, mesmo em menor número, causaram estragos para com os inimigos. É como se o narrador tentasse, mesmo na derrota buscar motivos para que os soldados fossem valorizados e que o orgulho não fosse ferido e, para legitimar este fato, afirma que morrer pela pátria é algo positivo, que os deixaria contentes. Estes fatores indicam uma valorização da guerra, colocando episódios bárbaros em um patamar de exaltação. De acordo com Ginzburg (2012), é diante de ações violentas e solo cheio de sangue que muitos povos acreditam construir sua glória. E esta situação não é combatida pelo discurso, pelo contrário, é fortalecida a partir das ideias expostas. A fim de prosseguir com a justificativa por terem saído em desvantagem do combate, o narrador explica que ao terceiro dia acabaram completamente as munições: “Não restava mais um cartucho para defender a Republica e o sagrado solo rio-grandense da turba sanguinolenta dos aventureiros [...]. Tiveram os valentes soldados do marechal Isidoro de render-se” (A FEDERAÇÃO, 1984, ed. 4 p. 1). O texto apresenta ainda a atitude dos inimigos como negativa por terem se posicionado em desacordo com as leis de guerra e de humanidade, ferindo, desta forma, o “generoso coração rio-grandense” (A FEDERAÇÃO, ed. 4, 1983, p. 1). A matéria segue apresentando situações de extremo horror, como degolações, 91 amontoados de corpos semivivos para serem queimados, além de citar outras atrocidades dos federalistas para com os republicanos. Não houve a menor piedade para aqueles bravos rio-grandenses [...] Quantos não deixaram familia, mãi, filhos, entes estremecidos, indirectamente sacrificados, mergulhados no lucto pela sanha do bandido sebastianista! Correu sangue a jorros. O solo querido do Rio Grande ensopou-se d’esse sangue fertilisante, que gotta por gotta reclama a revanche. [...] Agora, porém, o caso mudou de figura e os torvos degolladores do coronel Pedroso e dos nossos infelizes amigos esperam o troco da moeda, que cunharam em sangue. Hão de ser vencidos, custe o que custar. (A FEDERAÇÃO, ed. 4, 1983, p. 1). A dualidade de ideias permanece no discurso: fala-se sobre o sofrimento de pessoas que perderam seus familiares, do luto que ficou após o sangue derramado em solo gaúcho, mas, o anseio é pela revanche, por fazer o mesmo com os inimigos, independente do quanto isso custe. Ao agir da mesma maneira, haverão outras tantas perdas e outras torrentes de sangue, como se o valor das pessoas fosse medido pelo partido ao qual pertencem, ou seja, quando fazem parte dos ideais comuns, há a compaixão pelo sofrimento mas, se pertencem ao grupo inimigo, este sentimento é inexistente. Na edição de 14 de março do mesmo ano, há uma outra publicação que demonstra este aspecto que analisamos. Sob o título “Louvores”, é publicada uma nota advinda do quartel de Bagé que cumprimenta a ordem de soltados do republicano coronel comandante da guarnição Carlos Maria da Silva Telles: “As agruras suportadas pelo seu diminuto pessoal serviam para exaltar-lhe até o heroismo no desempenho de sua nobre e santa missão : como soldados disciplinados– defender a Patria, como simples cidadãos– a Republica.” (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 61, p. 1). Enquanto, no discurso do jornal, a vitória dos inimigos em um ataque representa o sofrimento das famílias atingidas, quando o feito é do lado da situação é considerado heroico, e a missão é intitulada santa, já que os soldados defendem a pátria. Corroborando com estas ideias, há, nesta mesma edição do periódico a matéria intitulada “Desillusão: A’ famillia Silva Telles”. É um texto quase romanesco, com expressões bastante metafóricas e carregadas de sentimento, um discurso que 92 abrange, inclusive, diálogos recriados, como se fosse uma ficção, contudo, retrata uma história verídica sobre a vida de uma esposa em suas esperas pelo marido que ia lutar. “– Tu lhe darás muitos beijinhos, abraçarás muito o teu papae, não é, meu bello anjinho?” [...] “– Mamãe, mamãe, ima carta; será do papae”? (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 61, p. 1). Estes são alguns dos diálogos presentes neste texto que conta ainda o modo como eram as chegadas e partidas deste esposo que, em um de seus retornos, chega leso pela guerra: “Junto ao heróe ferido está a esposa e estão os filhos ; seu coração está despedaçado por mil cruciantes dores” (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 61, p. 2). Porque retornou ferido da guerra, que foi para lutar e defender sua terra, o soldado é considerado um herói pelo discurso deste impresso. O artigo segue contando sobre o desespero e esperança da mulher pedindo que os médicos façam tudo para salvá-lo e, diante desta situação, o narrador apresenta outros argumentos: Que importa um braço ou uma perna de menos, se a alma, o caracter, a honra, a seu nome immaculado, atravessarão incólumes as rajadas asperas da vida. Se a pátria perde um soldado, que se invalidou ao hastear a bandeira da victoria ; se a familia que via seu chefe vigoroso e inrepido, o recebe mutilado; essa mesma invalidez, essa mesma mutilação, é um padrão da gloria conquistada, é a marca dos guerreiros cruzados, batendose pela causa santa. (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 61, p. 2). O ferido, por ter lutado ao lado republicano, é considerado com a honra imaculada. Por não mais poder lutar, em função de perder um de seus membros, o texto já justifica que embora o soldado seja perdido, ganha-se mais um herói, que representará também para a família um grande exemplo. Sem questionar sobre suas dores ou angústias, o discurso trata o fato inclusive como positivo, argumentando que a invalidez e mutilação representam uma conquista, por uma causa que, mais uma vez, é denominada como sendo santa. O meio jornalístico, neste trecho que vemos, estaria posicionando-se, mais uma vez, a favor da guerra, esta que, através de suas consequências, devolve soldados considerados grandes exemplos para a pátria e para os demais. Posteriormente, ao relatar que o homem morreu, mais uma vez o texto refere-se a ele como glorioso. O redator também faz referência a dor da família e a infelicidade da esposa, que poderia ser ainda maior se não tivesse os 93 filhos, entretanto, continua exaltando o ocorrido: “Quão cara te custou a victoria, nobre soldado ! A patria te chora ainda! ...” (A FEDERAÇÃO, 1894, ed. 61, p. 2). A temática da violência é explorada no jornal também fora dos campos de batalha, contudo, não são muitas matérias que abordam a temática que aparece, em maior medida, quando são relatadas as atrocidades da própria Revolução. No ano de 1894 encontramos, publicada no dia 7 de março, edição 55, uma narrativa de violência que não remete à guerra. Trata-se da matéria “Menino Assassino”, que é a reprodução de uma publicação do jornal Tribuna do Povo, de Uberaba – Minas Gerais. O texto fala sobre o espancamento de um garoto, que cheio de medo pegou um machado e feriu alguns dos agressores, cometendo um assassinato e apresentando-se às autoridades logo após. Embora não seja especificada a idade dos envolvidos nestes atos violentos o texto faz entender que se tratavam de jovens garotos, e ressalta que um grupo costumava utilizar-se de um dos meninos como se fosse um brinquedo para suas agressões. Em um contexto de guerra, a violência fica estabelecida e entronizada naqueles que ainda não estão nos campos de batalha, mas, ainda assim, lutam, como se ataques e assassinatos fossem situações banais. Observamos também que foi uma notícia reproduzida de um fato que ocorreu muito distante do local onde A Federação circula, mas, o cenário violento, proporciona o entendimento que a informação condiz com os interesses do público leitor. A autora Leticia Cantarela Matheus (2011), que discorre acerca das narrativas do medo em veículos jornalísticos, ressalta que o medo auxilia na interpretação da história e, desta forma, observar os temores de um povo em determinado momento e lugar ajuda a compreender aquela realidade. Os medos pautados nos textos do jornalismo são, segundo a estudiosa, imprescindíveis para entender a inter-relação das pessoas e seu tempo histórico. Esta afirmativa reforça a ideia de que o contexto de guerra e violência era tão fortemente vivenciado pela população da época que notícias como esta poderiam ser aplicadas ao contexto, ainda que a situação não tenha ocorrido com pessoas próximas ao local de circulação do jornal. É como se uma cultura do medo estivesse estabelecida, um medo que, todavia, já está tão institucionalmente inserido naquela sociedade que pouco causa estranhamento. A Revolução Federalista segue até agosto de 1895, ano em que A Federação começa a publicar inúmeros informativos do Senado e, no mês de julho, as matérias, anúncios, boletins, são quase que exclusivamente fazendo referência à 94 morte de Floriano Peixoto. Já em 20 de julho de 1895, mês que está às vésperas de terminar a Revolução Federalista, e já com o jornal sob direção de redação a cargo de Pinto da Rocha, o redator Evaristo do Amaral assina a matéria intitulada “Em Casa de pobre...”, fazendo alusão à máxima de que alegria em casa de pobre dura pouco, assim como a alegria dos federalistas que confabulavam sobre a proximidade da paz, considerando o desmoronamento da autonomia rio-grandense: “E’ a paz, dizem elles, a paz que vem estabelecer a confraternisação interrompida ; a paz que vem recompor as finanças brechadas, a paz que vem munida do condão maravilhoso de despir o lucto da sociedade para vestil-a de ponto em branco. Ah! Mas não ! A paz de que tratam os follicularios e os revoltodos, empenhados em trazer ma ores difficuldades á Republica, não é a paz virtuosa dos bem intencionados, é uma audaz e astuciosa trapaça, uma grande traição. A paz que elles querem adivinha-se pela forma como fallam; não é a paz que venha a cooperar na cimentação do regimen republicano e do principio da auctoridade e do respeito ás instituições autonomicas do Estado; [...] A paz que elles querem é uma cathegorica declaração de guerra. Ah! Querem a guerra em nome da paz? Querem que o regimen de revoltas seja constante no Republica? Querem estraçalhar então o Rio Grande do Sul em eterna lucta civil? E tudo tendo nos labios fementidamente, hypocritamente, a palavra – paz! [...] Sim, a paz, venha a paz porém com a querem o presidente da Republica, o congresso nacional, o presidente do Estado e o partido republicano. Tudo o que não fôr isso não será a paz, por cernto. As alegrias do federalismo e de seus achegos, suppondo que a paz se faça com sacrificio do poder publico e da autonomia do Estado, durarão muito pouco. São como as alegrias em casa do pobre... (A FEDERAÇÃO, 1895, ed. 170, p.1). O texto parece distinguir os tipos de paz. Se a paz for proposta pelos federalistas, ela não é positiva, segundo o redator. Após todas as lutas e tantos feridos, a paz só terá validade, no discurso do jornal, se for através dos ideais republicanos, fora a isso, é preferível que a guerra siga. Este é um princípio inerente à revolução, nenhum dos lados quer entregar-se como derrotado e, portanto, não aceita as propostas dos outros. Contudo, é sabido que neste período os federalistas já estavam com as forças enfraquecidas, poucos soldados e munição, e a Revolução já estaria, portanto, vencida pela situação, que enfatiza que a paz somente poderá existir baseada nas condições propostas por eles. Na edição de 22 de julho de 1895, o jornal se manifesta acerca de uma suposta proposta do Governo brasileiro sobre a reorganização do Estado. Conforme o texto publicado, isto seria o mesmo que conceder a vitória dos revoltosos. 95 “Acceitar a reorganisação do Estado como clausula da paz, é subscrever o programa de Silveira Martins. Foi com esta bandeira que elle iniciou a revolução. [...] A victoria legal republicana está, pois, consummada em toda a linha” (A FEDERAÇÃO, 1895, ed. 171, p. 1). Este trecho opinativo demonstra que não há possibilidade de negociação, é como se tudo precisasse ser resolvido unicamente através da guerra, senão a Revolução iniciada perderia o seu sentido. Podemos, aqui, relembrar o que Freud (1932) afirmou a respeito de situações de conflitos, que terminam quando um dos lados é aniquilado. E este parece ser o anseio representado neste jornal, a menos que a paz se estabeleça com a predominância das ideias republicanas. Em 29 de agosto, com a Revolução já encerrada, A Federação publica um texto com o título “Em nome da lei”, divulgando que a paz está instituída no Rio Grande do Sul e que o governo acabara de proclamá-la através de uma mensagem direcionada ao Congresso, remetendo documentos referentes às negociações. Está feita a paz. A nação inteira festeja o magno evento, e a alma republicana enche-se de patrioticos júbilos, máxime depois que o governo trouxe ao reconhecimento da Nação a maneira correcta, altiva, nobre e patriótica porque chegou á almejada solução victoriosa. [...] A paz, precisamos repetir sempre, em homenagem á verdade histórica, à fé republicana, á memoria dos gloriosos mortos nas renhidas pelejas pela Republica e cuja lembrança opprime de saudades as expansões festicas, não foi a consequencia de um convenio de egual para egual, ou um tripudio sobre os sacrificios feitos e sobre os manes dos combatentes. Oh! Nunca! A paz foi a consequencia natural do insucesso dos rebeldes, levados, de derrota em derrota, pelo heroismo de todos os defensores da Republica. Si ha vergonhas n’ella façam-se as necessarias distinções e a vergonha será para aquelles que promoveram a lucta, não para os que a debellaram e venceram, sagrados hoje pela gratidão nacional. (A FEDERAÇÃO, 1895, ed. 204, p. 1). O jornal celebra a paz que se está estabelecida, porém sem o entusiasmo com que, por exemplo, anunciavam as vitórias diante de batalhas contra os inimigos, que rendiam até comemorações coletivas. A paz e a vitória da guerra é atribuída, também, àqueles que morreram em prol deste objetivo. Mais uma vez, o heroísmo daqueles que defenderam a República são exaltadas, em um contexto marcado pela derrota dos inimigos, concretizada, justamente, pelas mortes e destruições, os heróis, portanto, são os causadores deste contexto. 96 Em agosto de 1895, quando a guerra já terminou, a edição 206 de A Federação, do dia 31 de agosto, publica na página 1 uma nota com o título “Correrias”: “No Serro Chato continuam os federalistas a arrebanhar tudo e em todas as direções, havendo tiroteios” (A FEDERAÇÃO, 1985, ed. 206, p. 1). Se a notícia for verídica, temos uma ordem de soldados descontentes com o desfecho da Revolução, que seguem cometendo atrocidades, simplesmente pelo descontentamento, já que o resultado não será modificado. Da parte do jornal, não há explicações ou reflexões negativas diante do ocorrido, a notícia é veiculada, finalmente, a título de informação. Após as análises de textos veiculados no jornal A Federação, podemos compreender alguns fatores importantes na identificação da maneira como as representações se estabeleciam através do discurso daquele periódico. Inicialmente, consideramos as ponderações de Barbosa (2010) e Rüdiger (1993), acerca do modo como os jornais se modernizaram na segunda metade do século XIX. Especialmente comparando com O Povo, notamos que o jornal da Revolução Federalista já é diário, não bissemanal como o de 35, e que a qualidade gráfica é, sem dúvida, muito superior, tornando o processo de leitura de acesso mais facilitado. O modo de escrita também já é bem diferente, com as palavras dispostas de uma maneira mais clara e concisa e um cuidado muito maior na escrita do texto. Como já vimos em Barbosa (2010), o que não se altera nos dois períodos de veiculação de ideias através dos jornais é o fato de as informações serem sempre motivo de discussões entre a sociedade e, de os leitores preferirem as temáticas conflituosas. Sendo assim e, sabendo que, portanto, A Federação, pautava as conversas e, talvez as ideias da população, cabe aprofundarmos a questão do quanto a parcialidade era inerente a este periódico. Não haveria como ser diferente, já que abertamente o jornal pertencia ao governo republicano. Contudo, este fator poderia destoar do que se tinha em termos de jornalismo no país naquele período já que, segundo Barbosa (2010), a ideia nesta época era dar voz aos oprimidos, fiscalizando o poder público, já sem demonstrar enfaticamente as opiniões, diferente do que ocorre no periódico analisado, que prima, antes de tudo, pelas ideias republicanas, as quais representa. Contudo, vimos nos estudos de Rüdiger, que no Rio Grande do Sul, a situação era de fato diferenciada, já que existiam jornais que possuíam como foco a formação da opinião pública, através das ideias políticas transmitidas pelos textos. É deste contexto que se aproxima A Federação, que 97 embora não se limite a difundir as ideias políticas, publicando também outras temáticas, tem, sempre na página principal, o enfoque na questão do partido e, principalmente, na guerra, difundindo sempre positivamente a atuação do grupo republicano. Os horrores da Revolução são veiculados constantemente através das páginas deste jornal, e os discursos adotam inúmeras expressões voltadas ao heroísmo dos combatentes, às ações em favor da pátria que, mesmo causadoras de destruições – nunca expostas em detalhes pelos textos –, eram caracterizadas como gloriosas, sendo a guerra, quando lutada em nome do Estado e, principalmente dos ideais da República, considerada pelos redatores como sagrada. Ao findar das análises dos dois jornais, é possível verificarmos a forma como se constrói a memória social a partir destes veículos que, neste sentido, se aproximam muito. O período mais problemático para se concretizar a objetividade no jornalismo é aquele permeado por guerras, segundo Stephen Cviic (2003), um dos repórteres que realizou a cobertura da guerra do Iraque. E o primeiro problema em ser objetivo, segundo o autor, é ter acesso às fontes e visualizar as situações dos dois lados. Sendo assim, entendemos que os jornais O Povo e A Federação não ansiavam por serem objetivos já que não possuíam a pretensão de demonstrar duas ou mais versões, mas exclusivamente aquele que apoiavam, já que ambos se tratavam de jornais que representaram o governo, em cada uma das revoluções. Quando falamos de O Povo, esta constatação é notória, já que os jornais daquela época inclusive pretendiam-se opinativos. Todavia, já em 1880, a realidade dos jornais passa a ser outra, e, conforme cita Barbosa (2010), esta é uma fase em que a imprensa começou a primar pela neutralidade, representando o pensamento social, identificando, através de suas páginas impressas, a “verdade absoluta” (BARBOSA, 2010, p. 131). Não é o que A Federação pretende. Aliás, falar em verdade absoluta em jornalismo é utopia, tendo em vista que cada jornalista possui a sua versão da verdade e a transmite, de diferentes maneiras, perfazendo este diferencial até mesmo na hora da escolha das palavras a serem utilizadas, fontes a serem entrevistadas e outros tantos fatores. Contudo, há maneiras de buscar proporcionar que ambos os envolvidos tenham voz ativa, minimizando a questão da total parcialidade. O discurso abordado pelos jornais analisados eleva as revoluções como sagradas, os combatentes como heróis, o Estado do Rio Grande do Sul como 98 glorioso e superior aos demais e, o seu partido, como supremo. Há exaltações a tudo o que se refere aos interesses do governo que sustem cada um dos periódicos. Quando um fato negativo aparece, em seguida é amenizado, com justificativas que vêm para suprir os porquês das falhas. Cviic (2003, p. 18) explica que, em uma guerra, “o sucesso de um lado é o fracasso do outro” e, em nenhuma hipótese, os jornais se permitem publicar algo que possa se aproximar de uma derrota, maximizando as vitórias e diminuindo ou inclusive omitindo insucessos do seu lado. Com ataques constantes aos oponentes, sem medir as palavras destas enunciações, ambos os impressos, de acordo com a linguagem de cada época, pretendem orientar e estimular o povo que pensem da mesma maneira e, portanto, esta é a memória social que pretendem suscitar. Ao relembrarmos o que apresenta Hartman (2000) acerca da memória, veremos que se a construção da memória se dá enquanto experiência, ou seja, ao ler as páginas de O Povo e A Federação e notar a representação das revoluções através deste discurso, percebemos que mais do que simplesmente tomar conhecimento, o leitor poderá, de alguma maneira, vivenciar aquela situação e, a partir disso, aplicar seu senso crítico. Mas isso hoje, ao verificar o sentido dos textos quase dois séculos depois. Se as guerras e a violência engendrada por elas pautaram os jornais por se tratarem dos principais acontecimentos de cada uma das épocas, é correto, inclusive de acordo com os critérios de noticiabilidade, que estas matérias fossem difundidas amplamente. Entretanto, segundo Sodré (1992), cabe refletir sobre o modo como estas representações foram feitas. Se os jornais eram de propriedade do governo, obviamente as informações veiculadas eram voltadas aos interesses do mesmo, porém, ao discutirmos a importância do jornalismo enquanto importante canal de formação de opiniões, entendemos que os textos poderiam ter sido escritos de uma forma menos enfática, permitindo aos leitores criar uma percepção diferente daquela abordada, caso o pensamento fosse contrário. Percebemos, ao longo desta análise, a linha tênue entre o sensacionalismo e a omissão. Fatos são exaltados enquanto outros sequer aparecem. As dores causadas pela violência das guerras são vistas e traduzidas sempre de uma mesma forma: são meios de formar heróis e de conquistar vitórias. Chantal Rayes (2003), que também esteve na cobertura da guerra do Iraque, afirma que a mídia, muitas vezes, segue a lógica mercantil, e é o que de fato podemos verificar atualmente, 99 mas, no século XIX, observamos que a lógica dos veículos de comunicação baseava-se no partido e nas vaidades. Em uma matéria jornalística, os fatos podem ser postos, conforme Matheus (2011, p. 60), com vistas a utilizar o medo como uma “medida de controle social”. É o que parece acontecer nos periódicos do século XIX, não o medo, mas, principalmente, a superestima das ideologias, tendem a buscar este controle, e a maneira como os fatos são expostos parece instigar ao temor apenas da vitória do oponente, e, de nenhum modo, o temor pela vida ou pelas dores, pois estas são vistas como positivas ao considerar os objetivos destas lutas. A perspectiva abordada por Barbosa (2010, p. 132) encaixa-se nesta questão: “ao construírem identidades, os periódicos referendam ideias que também são correntes entre escritores, jornalistas e demais intelectuais [...] há a transformação dessas ideias em documentos-memória”. Nos jornais analisados jornalistas, articulistas, líderes, escritores esporádicos, todos compactuam uma mesma ideologia e a difundem através de discursos que se complementam ou, pelo menos, equivalem-se na questão das opiniões. A repetição destas informações congruentes articula a formação da memória social do seu tempo e, uma vez documentados, resguardam esta memória para as gerações posteriores. Entretanto, a memória perpassada não difunde uma visão crítica sobre a guerra. Embora apresente fatos trágicos decorrentes das batalhas, os textos não os apresentam como consequências negativas de uma revolução, publicando as informações de maneira unilateral e, sendo assim, constituindo uma memória que envolve apenas uma versão dos acontecimentos. Ao entendermos de que forma as revoluções Farroupilha e Federalista e a violência são expressos nos discursos dos dois jornais, época em que de fato ocorreram, podemos discutir o modo como os mesmos elementos aparecem através das narrativas ficcionais produzidas posteriormente aos fatos, iniciando pelo romance de Erico Verissimo, O tempo e o Vento, escrito no século seguinte às revoluções que tomamos como base para análise. 100 3 GUERRA, VIOLÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO FICCIONAL DO ROMANCE O TEMPO E O VENTO 3.1 O romance O tempo e o vento Composta por sete livros, a trilogia O tempo e o vento foi escrita pelo autor gaúcho Erico Verissimo, que nasceu na cidade de Cruz Alta, em 17 de dezembro de 1905 e faleceu em novembro de 1975, em Porto Alegre7. Balconista de armazém, bancário, sócio de farmácia e professor foram algumas das profissões que antecederam a prática da grande vocação de Verissimo, que, desde cedo, dedicava-se à leitura e passou a escrever seus primeiros textos escondido. Em 1930, já morando em Porto Alegre, o autor se dispõe a viver da profissão de escritor e passa a ter constantes contatos com autores renomados. Sua estreia na literatura se deu com o conto “Ladrão de gado”, publicado na Revista do Globo, da qual se tornaria redator. Em 1932 é publicado seu primeiro livro de contos, Fantoches, e, em 1933, já publica o primeiro romance, Clarissa. Os famosos Música ao longe e Um lugar ao sol foram publicados em 1936, ano em que também lança seu primeiro livro infantil: As aventuras do avião vermelho. Um de seus grandes sucessos, Olhai os lírios do campo, foi lançado em 1938, tendo grande repercussão internacional. A convite do Estado norte-americano, em 1941 Verissimo passou três meses nos Estados Unidos proferindo conferências. Esta estadia rendeu o livro Gato preto em campo de neve. No tempo em que esteve naquele país, o autor foi testemunha de um suicídio, em que uma mulher se atirou do alto de um edifício, o que, em 1943, inspira seu livro O resto é silêncio. Em 1947 Erico Verissimo iniciou a saga O tempo e o vento, que só concluiu integralmente em 1962, embora a ideia do tema já lhe acompanhasse desde 1939, e os primeiros escritos tivessem surgido em 1941. Com o objetivo inicial de escrever apenas um volume, de aproximadamente 800 páginas, a obra percorreu 15 anos de seu trabalho, ultrapassando 2.200 páginas, divididas em O Continente, que remonta 7 As informações acerca da vida e obra de Erico Verissimo foram retiradas do site oficial do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, cujo endereço é http://www.estado.rs.gov.br/erico e também a partir de dados contidos na Bibliografia do autor na obra O tempo e o Vento, 3ª edição da Companhia das Letras. 101 a história do Rio Grande do Sul entre 1745 e 1895, O Retrato e O Arquipélago, que descrevem fatos ocorridos entre 1895 e 1945. Conforme comenta a estudiosa do tema Maria da Glória Bordini (2004), o primeiro volume foi intitulado O Continente após algumas alterações feitas por Verissimo. A ideia inicial da obra surgira no desfecho de O Resto é Silêncio, quando o autor visualizou a cena inicial da família Terra Cambará, quando pensava em desenvolver um romance cíclico acerca da formação sul-rio-grandense. “O título inicial foi Caravana e o primeiro esboço deu-se em 1941, como plano geral da obra. [...] A idéia era tratar cada seção como um conto ou novela, dando-lhe um fechamento individual” (BORDINI, 2004, p. 67). Percebendo a grandiosidade do tema, o autor dividiu a narrativa que configurou-se em uma obra que narra dois séculos de história, indicando a formação do estado gaúcho e também perfazendo o caminho de grandes guerras que aconteceram em solo rio-grandense e, tudo isso, acrescido pelas situações que marcaram a vida de toda a geração da fictícia família Terra Cambará. A história de O tempo e o vento é contada através de um narrador onisciente e seletivo. Ao passo em que descreve muito detalhadamente acerca dos acontecimentos de diversos espaços e tempos, é uma voz que aparece também como reflexiva, admitindo os pensamentos das personagens que fazem parte do romance e trazendo algumas ideias próprias a respeito dos episódios. Cabe ressaltar que, na última obra que compõe a trilogia, O Arquipélago, é desvendado que o narrador desta história é uma das personagens, Floriano Terra Cambará, que conta o percurso da família. Ainda assim, não se trata de um discurso tendencioso, em que o narrador descreve apenas a realidade da qual pertence. Embora a saga de sua família esteja em evidência, o narrador de O tempo e o vento apresenta a saga de outra família, a dos Amaral. A linguagem utilizada na obra é formal, quando na voz do narrador, mas, entre os diálogos das personagens, é permeada pelo regionalismo, sendo marcada por expressões típicas do Rio Grande do Sul, o que também evidencia o contexto de produção da obra. Embora seja linear, já que os fatos são representados cronológica e logicamente, com começo, meio e final, o enredo do romance apresenta uma ruptura nesta linearidade ao considerarmos que os episódios de “O Sobrado” são intercalados ao longo do texto, em um tempo diferente daquele que está sendo apresentado, com outra geração de personagens. Entretanto, ao considerarmos 102 apenas os capítulos do Sobrado, vamos igualmente encontrar uma linearidade na construção, como podemos constatar também através do estudo de Regina Zilberman: O romance abre e fecha com uma moldura, o cerco do Sobrado ao final de junho de 1895, com seu ritmo próprio e independência em relação ao conjunto do texto. Dentro dessa moldura desenvolvem-se os vários segmentos, cada um com início, meio e fim, contendo, portanto, vida própria e autonomia no âmbito da totalidade da obra. (ZILBERMAN, 2004, p. 29). Esta autonomia também pode ser verificada em relação às personagens. Entretanto, como a trilogia descreve o percurso de muitas gerações de uma mesma família, a obra requer muita atenção para entender os parentescos das personagens que estão surgindo. Contudo, todos são descritos, especialmente em suas características psicológicas, proporcionando uma compreensão acerca das atitudes e pensamentos de cada um deles. A respeito da estrutura de O Continente, Zilberman (2004, p. 29) afirma que em nenhum momento tem-se a ideia de uma narrativa inconclusa: “a começar pelo fato de a biografia de todas as personagens se encerrar, em termos de necessidade narrativa, com o término dos episódios”, ou seja, as personagens são descritas, em sua maioria, desde o nascimento, até o percurso adulto, e sua morte. O primeiro volume, O Continente (1949), que será abordado mais detalhadamente no decorrer deste capítulo, traz o surgimento do Rio Grande do Sul e a formação das primeiras cidades, como a fictícia Santa Fé, através das famílias Terra, Caré, Cambará e Amaral. Esta obra – dividida com os seguintes subtítulos: “O Sobrado I”, “A fonte”, “O Sobrado II”, “Ana Terra”, “O Sobrado III”, “Um certo capitão Rodrigo”, “O Sobrado IV”, “A teiniaguá”, “O Sobrado V”, “A guerra”, “O Sobrado VI”, “Ismália Caré” e “O sobrado VII” –, inicia com os conflitos nos Sete Povos das Missões, ameaçados pela execução do Tratado de Madri, assinado entre portugueses e espanhóis para a entrega do local colonizado pelos jesuítas. Outros conflitos são citados neste primeiro tomo, como a Guerra do Paraguai, a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista, última grande guerra civil do século XIX. Entre as batalhas e a formação sul-rio-grandense, histórias de amor também estão evidenciadas nesta primeira parte da trilogia. Dentre estas, destacamos o romance de Pedro Missioneiro, que, após deixar os Sete Povos das Missões, é 103 encontrado ferido por Ana Terra, na estância em que a moça reside. Após adquirir a confiança da família, o índio permanece auxiliando nos afazeres da estância e se aproxima de Ana Terra que inicialmente procura resistir ao desejo que sente pelo índio Pedro, mas entrega-se ao missioneiro e fica grávida. Ao descobrir a gravidez da filha, Maneco Terra e seus filhos matam o índio. Com o passar do tempo e um grande ataque dos castelhanos à estância dos Terra, os sobreviventes Ana, juntamente com seu filho, também nomeado Pedro, e sua cunhada, esposa do falecido irmão de Ana Terra, partem em busca de um local para recomeçarem suas vidas, chegando à cidade de Santa Fé, onde se estabelecem e se dá a continuidade da família Terra. Outra história amorosa, sempre permeada pelos vestígios da guerra, que se apresenta em O Continente acontece entre Bibiana (filha de Pedro Terra e neta de Ana Terra) e o capitão Rodrigo, figura sedutora que vivenciou muitas guerras e lutou em diferentes batalhas. As dicotomias de amor e traição, afeto e descaso, presentes na vida deste casal, permeiam grande parte da narrativa deste livro de O tempo e o vento. Rodrigo, que reconhece em Bibiana seu grande amor, muitas vezes abala-se emocionalmente ao recordar com saudades das batalhas nas quais lutou, de seus divertimentos e feitos tidos como heroicos, e, por este motivo, mais de uma vez deixa a mulher e o filho Bolívar para viajar, jogar, beber e encontrar-se com mulheres extraconjugalmente. É neste espaço de tempo que é representada a Revolução Farroupilha, guerra que dá fim à vida de Capitão Rodrigo. Ainda nesta primeira peça discursiva de O tempo e o vento, temos a história de amor do filho de Bibiana e Rodrigo, Bolívar, que se casa com a doentia Luzia, moça que tem estranho gosto pelo sofrimento alheio. A vida conflituosa que leva ao lado da esposa tem fim quando Bolívar é morto em frente a sua casa, por desobedecer às ordens dos Amaral, chefes daquela cidade. Trazendo já na genética o gosto pelas lutas e reivindicações, filho de Bolívar e neto de Bibiana, Licurgo Terra Cambará também cresce em Santa Fé e lidera a continuidade da eterna inimizade da família com os Amaral, ao passo em que também aparece como abolicionista e republicano durante os acontecimentos que traçam a Revolução Federalista. A narrativa tem prosseguimento com os outros dois volumes que compõem O tempo e o vento. A segunda parte da trilogia, O Retrato (1951), apresenta os anos finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Bisneto do capitão Rodrigo, Rodrigo Terra Cambará aparece como um republicano insatisfeito, 104 apaixonado pelas causas populares e é a personagem que vivencia episódios do Estado Novo no Brasil e tem o desejo de modernizar a cidade de Santa Fé. A obra também apresenta a queda social de Santa Fé, e o período das duas grandes Guerras Mundiais. Já a terceira e última narrativa, O arquipélago (1961), discursa sobre os novos conflitos que permeiam a trajetória da família Terra Cambará, que encerra sua saga na última parte da obra. Este livro traz, ainda, a modernização do Brasil, do Rio Grande do Sul e da fictícia cidade de Santa Fé, além das memórias de conflitos e guerras, como a revolução de 1923. A partir desta breve explanação acerca dos livros que compõem O tempo e o vento, é possível distinguir a necessidade de uma seleção de textos para a análise mais aprofundada acerca dos episódios de guerra e violência que permeiam a narrativa, a fim de perceber qual é a memória social formada a partir destes discursos e, tendo em vista a grande quantidade de informações que perfazem dois séculos de história. Desta maneira, torna-se necessário explanar quais foram alguns dos critérios que nos motivam a pautar esta pesquisa no primeiro texto da trilogia. O Continente retrata a formação do Rio Grande do Sul, tendo representado entre os enfoques as duas guerras que nos propomos a abordar, a Farroupilha e Federalista, a partir da narrativa de personagens fictícias que vivenciaram estas revoluções. Além disso, O Continente foi a obra utilizada recentemente para a produção cinematográfica, de título O tempo e o vento, de Jayme Monjardim, que atualiza os mesmos episódios retratados no texto literário, sendo transmitida nos dias atuais, filme este que também será objeto de análise deste trabalho. Sendo assim, esta primeira parte da trilogia permite o desenvolvimento de um texto comparatista entre duas manifestações artísticas diferentes. Destacamos também que, embora faça parte da trilogia O Continente é um volume que pode ser lido independentemente dos demais. Regina Zilberman (2004, p. 29) explica que este livro “apresenta uma composição acabada, não parecendo, em nenhum momento, uma narração inconclusa”. Dentre os fatores que contribuem para este fato, conforme descreve a autora, estão a biografia das personagens, que se fundem com o término dos episódios, e a própria estrutura da obra, em sua linearidade, segmentada, apenas, nas seções do Sobrado, que é independente com relação ao conjunto do texto. Nas palavras da pesquisadora, “Ao utilizar o jogo moldura/sequências internas e conferir a cada uma das partes liberdade em relação 105 às demais, o livro impõe a impressão de integridade e fechamento, de narrativa que não carece de continuação” (ZILBERMAN, 2004, p. 29). Contudo, é preciso considerar que, ao analisá-la separadamente, não podemos ignorar o fato de a obra O tempo e o vento ter sido completada 10 anos depois, conforme comenta Flávio Loureiro Chaves (2012). O autor explica que em O Arquipélago será possível notar, de maneira mais clara, que a primeira parte da obra não se trata de um discurso que louva os guerreiros do Rio Grande do Sul, mas, diferente disso, mostrará justamente a degradação de alguns dos ideais daqueles que fundaram a província. Com perspectiva semelhante, a pesquisadora Mara Cristina de Matos Rodrigues (2010, p. 1001) afirma que Verissimo entendia O tempo e o vento como uma forma de “retirar as máscaras dos heróis e dos homens rio-grandenses e humanizá-los”, tornando-os “passíveis de serem perdoados por suas imperfeições e, dessa forma, de serem amados”. O próprio Verissimo, em seu livro de memórias, Solo de clarineta (1995), expõe como um dos motivos inspiradores para o desenvolvimento desta obra o modo não satisfatório com que a história sul-riograndense era ensinada nas escolas. Nesta mesma obra, o autor demonstrou o desejo de desmitificar a história regional: “Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitificála” (VERISSIMO, 1995, p. 289). Os heróis representados em O Continente são, exatamente, aqueles que vivenciam ou mesmo provocam situações violentas e que estão sempre dispostos a lutar, em qualquer que seja a guerra, para poderem conquistar os ideais almejados. A fim de entendermos de que forma são apresentadas estas personagens e, ainda, de que maneira a obra permite uma leitura que desmitifica uma história sulina para dar lugar a uma outra, em que as imperfeições também são aparentes, e antes de apresentarmos as percepções acerca de O Continente, entendemos ser importante contextualizar estas duas grandes revoluções que permeiam a história e a memória sul-rio-grandense. A Revolução Farroupilha aconteceu entre os anos de 1835 e 1845, sendo originária de uma insatisfação do povo do Rio Grande do Sul diante das autoridades imperiais, época em que, segundo a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2003, p. 44), em outras regiões país, também com economia subsidiária, se acumulavam 106 ressentimentos. O estudioso da história sul-rio-grandense, Arthur Ferreira Filho (1965), comenta que a excessiva centralização do poder freava o desenvolvimento das províncias, mas, no caso do Rio Grande do Sul, o anseio pela mudança era ainda mais vigoroso. A revolta eclodiu principalmente em função da economia, uma vez que os gaúchos eram, naquele período, os maiores produtores de charque do país, e, o aumento dos impostos e também do preço final do charque gaúcho descontentou os produtores, já que esta realidade culminou com a concorrência comercial com o charque produzido na região platina (Paraguai, Uruguai e Argentina). Filho (1965, p. 76) afirma que o charque do Rio Grande do Sul, “sobrecarregado de impostos, não suportava a esmagadora concorrência do produto platino nos próprios centros consumidores brasileiros”. Desta forma, os estancieiros sulinos buscaram um acordo com o governo, solicitando medidas que garantissem o monopólio rio-grandense no comércio do produto. O mesmo autor comenta que outros motivos que levavam o descontentamento dos gaúchos eram a situação dos quartéis, com condições precárias de moradia, a falta de estradas, pontes e escolas. Sem sucesso em suas reivindicações, Bento Gonçalves, junto ao grupo que liderava, exigiu que o presidente da província sulina renunciasse. Em 1836, os revolucionários venceram uma das batalhas e, conforme Pesavento (2003), o general farrapo Antonio de Souza Netto proclamou a república, chamada de fundação da República de Piratini ou República Riograndense. Com a união de diversos grupos simpatizantes ao movimento republicano, o governo imperial não conseguiu conter a revolta e cedeu o aumento das taxas para o charque vindo do exterior. Após os farroupilhas terem sido derrotados na batalha de Porongos, em 1844, iniciaram-se as tratativas para findar a guerra e estabelecer a paz. Em 1845, foi firmado o acordo Ponche Verde, conforme apresenta Pesavento: Os farrapos não sofreram uma derrota final nos campos de batalha, apesar de se encontrarem já bastante desgastados. Além disso, foi-lhes oferecida uma “paz honrosa” que atendia os revoltosos em muitas de suas antigas reivindicações. Foi concedido aos estancieiros gaúchos o direito de escolherem o seu presidente de província; as dívidas da República Riograndense seriam pagas pelo governo central; [...] os prisioneiros de guerra seriam soltos, e aqueles que estivessem fora da província poderiam retornar sem receio; seria elevada em 25% a taxa alfandegária sobre a entrada do charque platino no mercado brasileiro; o governo concederia a liberdade dos escravos que haviam servido na revolução como soldados. (PESAVENTO, 2003, p. 64-65). 107 A Revolução Farroupilha, além de ser tema das mais diversas manifestações artísticas, é rememorada ainda hoje, no Rio Grande do Sul, sendo “o acontecimento mais festejado” (PESAVENTO, 2003, p. 7), especialmente no mês de setembro, em que os gaúchos montam acampamentos pelas ruas das cidades e realizam eventos que incluem música, dança, jantares, bailes e outras diferentes festividades. A exaltação pela terra através dos feitos da guerra é ressaltada, inclusive, em discursos oficiais da história, como na abordagem do próprio Ferreira Filho, quando afirma: “E foi êsse espírito farroupilha que, afinal, triunfou, legando aos riograndenses do futuro a glória e a responsabilidade de renome imortal. Farroupilha ficou sendo sinônimo de espartano, tomado êsse termo em seu sentido mais nobre” (FILHO, 1965, p. 93). O pesquisador acredita, ainda, que os farrapos obtiveram incontestável vitória na Revolução. Também no romance de Verissimo analisaremos a representação da Revolução Federalista, que aconteceu entre 1893 e 1895. Esta revolta tratou-se da pretensão de uma parcela da população gaúcha que entendia que o estado do Rio Grande do Sul deveria ter mais autonomia, e isso seria possível através da descentralização do poder da República, que acabara de ser proclamada. Conforme Pesavento (1983, p. 9) esta revolução é “caracterizada por atos de violência e barbárie”. Estes mesmos atos são relembrados, muitas vezes, como motivo de orgulho, inclusive com atribuições heroicas àqueles que participaram das batalhas. A mudança das ocupações políticas durante o governo de Floriano Peixoto, e substituição dos políticos do lado de Deodoro da Fonseca, atingiu o estado gaúcho, gerando uma disputa entre dois partidos políticos, o Republicano Riograndense, que apoiava Júlio de Castilhos, aliado a Floriano, e o Partido Federalista, com ideias contrárias às do governo de Júlio de Castilhos e defensor de um regime parlamentarista. Os republicanos, do lado de Castilhos, eram identificados por um lenço branco e chamados de pica-paus ou chimangos, enquanto que os federalistas, de lenço vermelho, eram chamados de maragatos. Os federalistas revoltaram-se quando Castilhos voltou ao poder e utilizaramse de força armada, visando à deposição do político. Contudo, a ágil reação do governo os obrigou a recuar para Uruguai e Argentina. A reação a este episódio foi a 108 invasão a diversas cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, as quais os federalistas conquistavam através de ataques. Depois de outros diversos conflitos e do enfraquecimento da tropa dos maragatos, foi assinado um acordo de paz, concedendo anistia aos envolvidos na revolução. Conforme Pesavento (1983) os 31 meses de batalhas configuraram-se em uma das mais sangrentas guerras do Brasil, a violência dos confrontos, segundo a historiadora, resultou entre 10 e 12 mil mortes. Esses dois episódios que marcaram a história do Rio Grande do Sul aparecem em O Continente, não exatamente detalhando os conflitos e ideologias, mas, de modo mais particular, demonstrando a situação de personagens que vivenciaram estes acontecimentos. Embora não sendo explicitamente reais, as histórias, dores, medos e angústias das personagens que residem na cidade de Santa Fé, são capazes de constituir uma interpretação sobre como de fato eram e sentiam as reais personagens que vivenciaram as duas revoluções gaúchas. Esta perspectiva da união entre ficção e história é teorizada por Georg Lukács (1966) e nos auxilia no entendimento da abordagem no O tempo e o vento, que apresenta a história, interferindo na vida das personagens, que são ficcionais. Para Lukács: Seu ponto de partida está sempre na apresentação das influências na vida cotidiana do povo por parte das importantes modificações históricas, e na apresentação das modificações materiais e psíquicas provocadas por aqueles nos seres humanos que, sem dar-se conta de suas causas, reagem sem embargo a elas de forma imediata e veemente. Partindo dessa base, elabora as complicadas correntes ideológicas, políticas e morais que por força surgem nessas transformações. (LUKÁCS, 1966, p. 52-53). Considerando este cruzamento de história e ficção e o modo como esta história faz parte da vida das pessoas e, no caso da obra, das personagens fictícias, e especialmente neste trabalho, a partir das guerras que aconteceram no território riograndense, vamos contextualizar em qual espaço da narrativa literária, e através da representação de quais personagens, os conflitos foram inseridos. Iniciamos pela percepção do crítico Serguis Gonzaga (2004), que ao referir-se sobre a obra de Verissimo, afirmou: 109 O projeto do escritor é recriar ficcionalmente a história da formação do Rio Grande do Sul pastoril por meio da trajetória de sucessivas gerações da família Terra-Cambará. Os indivíduos que compõem a família, além de seus dramas pessoais específicos, vivem de maneira privilegiada aos acontecimentos que definem a sociedade sul-rio-grandense. Por exemplo: Ana Terra participa da sangrenta e árdua conquista do território, o capitão Rodrigo liga-se à Revolução Farroupilha, Licurgo tem atuação destacada na Guerra Civil de 1893, dr. Rodrigo Cambará é um dos líderes da Revolução de 1930, etc. (GONZAGA, 2004, p. 375). Neste sentido, vemos que a Revolução Farroupilha aparece em O Continente logo após o casamento de Bibiana Terra e capitão Rodrigo Cambará. Quando este já está cansado de apenas atender em sua venda, ansioso para lutar em uma guerra, eclode a revolução, que o afasta de sua esposa e do filho recémnascido, Bolívar. Uma batalha desta mesma guerra mata Rodrigo. Já a Revolução Federalista aparece em O tempo e o vento quando se apresentam, intercalados entre as demais partes, os sete episódios de “O Sobrado”, que datam situações ocorridas da noite de 24 de junho até a manhã de 1895. A narrativa desta primeira parte de O tempo e o vento é permeada, ainda, por outras guerras e, entre elas, a eterna desavença entre as famílias Terra Cambará e Amaral. Seja por disputas amorosas, diferenças políticas, busca pelo poder ou posicionamentos contrários diante das revoluções, as duas famílias mantêm-se como inimigas, e o resultado da Revolução Federalista, que favorece a posição de Licurgo Terra Cambará é também, simbolicamente, a vitória sobre a “guerra” tecida com os Amaral. Ao considerarmos a narrativa acerca das guerras na obra O tempo e o vento, sabemos que cenas violentas estarão descritas no decorrer do texto. É inevitável que os eventos conflituosos culminem em episódios de dor, atrocidades e mortes. Por outro lado, cabe destacar que não somente durante as guerras a violência se apresenta no romance. O trato com as pessoas, o modo como os mal entendidos se revolvem e a solução para os mais diferentes conflitos de ordem pessoal também têm a violência como pano de fundo, como podemos verificar na descrição de duelos particulares e mesmo em fatos como a morte de Pedro Missioneiro, conforme citamos anteriormente. Outros relatos sobre a maneira como estes episódios são demonstrados no decorrer do texto serão discutidos nas próximas seções deste capítulo. 110 Por apresentar todos estes elementos descritos, em um discurso que narra a formação do estado do Rio Grande do Sul, as guerras que eclodiram neste território e, ainda, histórias de relações interpessoais entre personagens que ajudam a contar estes acontecimentos, O tempo e o vento permite diferentes formas de compreensão, conforme aponta Regina Zilberman (2013) quando faz a apresentação do romance: “[...] possibilita maneiras diversificadas de entendê-lo, multiplicando as possibilidades de dialogar com ele e apreciá-lo” (ZILBERMAN, 2013, p.13), destaca. A estudiosa aponta, ainda, que não se trata de uma obra belicista, ou seja, tendenciosa à guerra, mas, de outra maneira, “sublinha o que essas lutas tiveram de sacrifício, de que é sintomática a vida breve de quase todas as figuras masculinas” (ZILBERMAN, 2013, p. 13). A mesma autora acrescenta que as histórias que “embasam a trama de O Continente são lideradas por homens que lutam nas guerras e combatem o poder até se tornarem parte dele” (ZILBERMAN, 2013, p. 14). Considerando estas reflexões, entendemos que a partir da leitura minuciosa e análise dos episódios de guerra e violência retratados na obra, poderemos verificar mais uma destas possibilidades de diálogo do texto com o público, considerando a memória social. Quais discussões são possíveis, a respeito do tema, a partir da leitura de O Continente? Esta é uma das questões que buscaremos responder na sequência deste trabalho. 3.2 Imagens das guerras O tempo e o vento, ao representar diversas guerras e, em especial, em O Continente, as revoluções Farroupilha e Federalista, foi desenvolvido justamente em meio a um grande conflito: a Segunda Guerra Mundial. Talvez, repensar a humanidade em um mundo em plenas batalhas, fosse uma das pretensões de Verissimo, conforme nos apresenta Bordini: 111 [...] O autor procura, em meio ao clima tormentoso da Segunda Grande Guerra, motivos para crer na humanidade e os encontra, não na materialidade dos testemunhos históricos, mas na imaginação fantasmagórica da bravura que teria sido requerida para que viessem a existir. Esse esforço imaginativo lhe traz alento para, reconciliando suas lembranças de gente rude, simples e corajosa do interior com a vivência da cultura mais sofisticada que se desenvolveu nos centros urbanos, tentar expressar a fundação de seu Estado ficcionalizando as possibilidades que pressentia no horizonte de seu passado. (BORDINI, 2004, p. 75-76). O modo como esta possível percepção de Verissimo influenciou para que se constituíssem os episódios revolucionários apresentados em sua narrativa, poderá ser analisado a seguir, sem a pretensão, contudo, de entender as motivações do autor, mas sim, o discurso literário originado a partir destes fatores. Iniciamos esta investigação recordando um objeto que já representa o rumo discursivo. Um punhal que, aparece logo no início da narrativa, passa de geração em geração e já carrega a simbologia dos temas que permeiam o romance: a guerra, a luta, a violência, os ciclos de combate. O punhal de prata que foi de Pedro Missioneiro, de seu filho Pedro Terra, e chegou à geração de Rodrigo Terra Cambará, bisneto de capitão Rodrigo e Bibiana, é motivo de orgulho de um passado permeado por batalhas e também de segurança na espera do futuro em que, altivamente, o punhal será mais uma vez utilizado. O anseio pela resolução dos conflitos, luta pelos ideais e pelo território percorre as gerações junto com o punhal. Afinal, conforme apresenta Jaime Ginzburg (2013, p. 9), “matar com argumentos como estabelecer fronteiras, ocupar terras, converter, determinar o que é certo, obter condições para salvar a humanidade, conseguir escravos, erguer monumentos ou reunir riquezas” são explicações atribuídas a grandes guerras que visam a estes objetivos. Poder participar deste processo de mortes e conquistas é, para a maioria das personagens de O Continente, motivo de exaltação, de reconhecer uma figura enquanto heroica. Podemos confirmar esta perspectiva através do seguinte trecho da obra: 112 – Na minha família quase ninguém morre de morte natural. Só as mulheres, assim mesmo nem todas. Os cambarás homens têm morrido em guerra, duelo ou desastre. Há um ditado: “Cambará macho não morre na cama” [...]. – Nunca nenhum Cambará macho conseguiu passar dos cinquenta anos”. (VERISSIMO, 2013, p. 245). Esta fala, do capitão Rodrigo Cambará, proferida durante uma conversa com o sacerdote de Santa Fé, o padre Lara, demonstra não somente uma constatação da personagem, mas, principalmente, o orgulho com que anuncia estas palavras. Para o capitão, os grandes movedores da vida estão atrelados aos campos de batalha, ainda que não haja motivos suficientes para isso, como verificamos no seguinte trecho: “Governo é governo e sempre é divertido ser contra” (VERISSIMO, 2013, p. 216), e ainda, vemos ideias semelhantes, quando Rodrigo é questionado pelo padre como seria se tivesse o poder de recriar o mundo: – Vosmecê não ia também acabar com as guerras? Rodrigo por um instante pareceu confuso. Depois respondeu, lento: – Bom... Acabar de todo, não acabava. Porque guerra é divertimento de homem. Sem uma guerrinha de vez em quando ficava tudo muito enjoado. (VERISSIMO, 2013, p. 308). A personagem de O Continente ironiza a guerra. Os conflitos são, para ele, assim como para outras personagens, declaradamente momentos de diversão, sendo que Rodrigo nem ao menos busca motivações fortes para incluir-se em uma guerra, a luta configura-se como um prazer resultante por si só, e não uma missão essencialmente política ou redentora. Para esta personagem, somente o fato de lutar já é importante e suficiente. A partir destas constatações, já é possível conhecer um pouco sobre quem é este certo capitão Rodrigo que apareceu do acaso na cidade de Santa Fé e apaixonou-se, quase que imediatamente por Bibiana, filha de Pedro Terra. É a partir desta mesma personagem – que tem fascínio pela guerra –, que a Revolução Farroupilha é em, em maior medida, representada no romance. Sendo assim, cabe ainda descrever outras características acerca deste “herói” farroupilha, que morre 113 em nome das causas rio-grandenses ou das próprias causas se considerada a morte dentro do casarão dos eternos inimigos da família, os Amaral. Com tom que fascina e ao mesmo tempo irrita, como sua personagem é descrita na obra, Rodrigo chega a Santa Fé chamando a atenção pelo uso da força e através da forma de importar-se sobre o outro com intimidação: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho” (VERISSIMO, 2013, p. 209), evidenciando a violência física enquanto traço característico desta personagem. Tocador de violão e sedutor, de imediato pergunta sobre mulheres e, ao conhecer Bibiana Terra, começa a disputá-la com seu pretendente, Bento, filho de coronel Amaral, que comanda a pequena cidade, fundada pela família. Mas embora consiga se casar com a moça da família Terra, Rodrigo não consegue deixar sua vida forasteira de lado. Diverte-se com mais de uma amante, faz longas viagens nas quais conhece outras mulheres, e pouco importa-se com a estrutura familiar, já que prefere passar as noites bebendo e jogando cartas, como verificamos nos seguintes fragmentos: “Rodrigo pensava na mulher com quem dormira todas as noites que passara no Rio Pardo” (VERISSIMO, 2013, p. 309); “[...] Havia momentos em que Rodrigo perdia a paciência com os filhos. Era quando eles o despertavam à noite com seu choro. – Cala essa boca, filho duma mãe!” (VERISSIMO, 2013, p. 316); e ainda “Rodrigo dividia suas noites entre a mesa de jogo e a casa de Honorina” (VERISSIMO, 2013, p. 318), que era sua amante oficial, a qual o capitão contribuía, inclusive, com os gastos da casa. Estas ações caracterizam mais uma vez as atitudes do capitão enquanto violentas, desta vez, em uma violência simbólica referente ao seu nicho familiar. Contudo, em alguns momentos, parece que a personagem toma consciência da real importância de valores como a família. Quando morre sua filha, durante sua ausência, pois estava jogando e bebendo com os amigos, o capitão reflete: Tinham-no chamado porque a filha estava mal e ele não atendera ao chamado. Uma paixão doida pelo jogo prendera-o à mesa. Já agora ele não sabia como fora capaz de fazer aquilo. Amava a família, não era nenhum monstro, daria um braço, uma perna, um olho, para salvar a vida dos filhos, da mulher, de qualquer amigo. (VERISSIMO, 2013, p. 338). 114 Ao passo em que o leitor pode criar um sentimento de indignação perante as atitudes desta personagem, pouco depois é possível que surja novamente o apreço, a possibilidade de compaixão, o ato quase involuntário de torcida pelo “herói”. Da mesma forma, os próprios amigos de Rodrigo no romance nutrem esta dualidade. O padre Lara, embora saiba de todos os cultivos de falsos valores, que vão contra os ensinamentos da igreja, sente uma grande simpatia pelo capitão. Já o pai de Bibiana, Pedro Terra, que era contrário ao casamento da filha, decepcionava-se cada vez que ouvia os boatos a respeito das atitudes do genro e, inclusive, afastou-se da filha por não admitir as atitudes do marido que ela escolhera. Esta personagem é uma dos poucas do romance que, excetuando a família Amaral, visualiza mais os defeitos do que as qualidades de Rodrigo. Ainda assim, o pai de Bibiana tem algo em comum com o genro: o orgulho por trazer em sua história a participação em muitas guerras. Ainda diante da sedução de Rodrigo, o sacerdote da cidade reflete: “O diacho tinha um encanto tão grande que tornava as outras pessoas difícil não gostar dele. Eu só queria saber – pensava às vezes o vigário – se o Pedro tem mesmo raiva do genro ou se está só fingindo” (VERISSIMO, 2013, p. 340). Da mesma forma, o irmão de Bibiana, Juvenal Terra, acompanhava o sofrimento causado pelo cunhado, mas não conseguia desvencilhar-se da simpatia: “Gostava do cunhado, [...] gostava ‘por demais’ até, mas acontecia que o comportamento do capitão fazia que ele vivesse sobressaltado” (VERISSIMO, 2013, p. 346). Capitão Rodrigo é representado na obra como um homem cansado da vida que leva. A venda que abriu em sociedade com o irmão de Bibiana já não o motivava como quando teve a ideia. Ao casar com a moça por quem se encantara, entendeu que mudaria seu modo de viver, mas o sangue, para ele, heroico, de guerrilha, seguiu correndo em suas veias, motivo que o tornou tão relapso no que diz respeito à família. Este cansaço, anseio de liberdade, e o desejo de combater nas guerras ficam evidentes no episódio em que Rodrigo expulsa um cliente de seu estabelecimento: 115 Atrás do balcão Rodrigo olhava melancolicamente para o trecho de rua que a porta da venda se enquadrava. Via, lá do outro lado, o quintal dos Almeidas e para além dele o campo, verde e batido de sol [...]. Alguém entrou e disse: – Lindo dia! [...] – Fora daqui! – Mas capitão... – balbuciou ele. – Qual capitão qual nada! – Exclamou Rodrigo. – Vá embora, seu cachorro! O outro fez meia volta e saiu da venda quase a correr. Um fogo ardia o peito de Rodrigo, pondo-lhe um formigueiro em todo o corpo. Era uma sensação de angústia, um desejo de dar pontapés, quebrar cadeiras, furar sacos de farinha, esmagar os vidros de remédio e sair dizendo nomes a torto e a direito. (VERISSIMO, 2013, p. 322-324). Toda esta revolta do capitão tinha motivo evidente, a personagem apresentada por Verissimo tinha o mundo como lar, e estar atrás de um balcão já não mais o satisfazia. A alegria de Rodrigo viria novamente mais tarde, quando se iniciariam as expectativas acerca da guerra Farroupilha. Enquanto isso, sentia-se com o orgulho ferido, como se a honra tivesse lhe sido tirada, conforme podemos constatar a seguir: Quando o caboclo lhe pedira “uma réstia de cebola”, ele de repente vira o horror, o absurdo da vida que levava. O cap. Rodrigo Cambará, que fora condecorado com a medalha da cruz dos militares e que possuía uma fé de ofício honrosa; o cap. Rodrigo, que brigara em várias guerras, estava agora reduzido à condição de bolicheiro: era da laia do Nicolau. (VERISSIMO, 2013, p. 324). Para a personagem que citamos, o “absurdo” estaria longe de ser a guerra ou batalhas sangrentas. O grande problema a que o capitão se refere é a vida de calmaria, esta seria enquadrada na imperfeição; se houvesse a guerra, por outro lado, os motivos para viver voltariam. Neste mesmo fragmento, notamos o desprezo do capitão diante do outra personagem, Nicolau, que também é proprietário de uma venda. Nicolau foi o primeiro morador de Santa Fé que acolheu o capitão, destinando uma acomodação em sua casa e, inclusive, fingindo não saber que emprestava a esposa para o divertimento do novo habitante da cidade. As angústias de Rodrigo começaram a se transformar em entusiasmo ao passo que as notícias da proximidade de uma guerra apareciam. Enquanto o padre Lara preocupava-se com a informação, assim como as mulheres e alguns outros 116 poucos habitantes de Santa Fé, o capitão exaltava-se: “Quanto tempo faz que a gente não briga? As espadas e as lanças já estão enferrujadas, e os homens estão ficando molengas” (VERISSIMO, 2013, p. 329). A partir disto podemos constatar, portanto, que a obra propõe uma visão dual sobre a guerra, marcada na diferença de posicionamento das personagens diante dos conflitos: enquanto alguns a temem e não querem que a revolução aconteça, outros torcem para que ela seja uma nova realidade em Santa Fé. Estas imagens contrastantes entre as personagens permitem também ao leitor pensar dicotomicamente a guerra, ora enquanto motivo de orgulho e de cunho heroico, ou, por outro lado, como acontecimentos históricos com consequências devastadoras. O narrador de O Continente não classifica de maneira explícita seu posicionamento enquanto favorável ou contrário à guerra, entretanto, narra especialmente os efeitos negativos provocados pelas ações e pensamentos violentos. Ao considerarmos as perspectivas daquelas personagens que ansiavam pela guerra, podemos lançar a questão: qual seria o motivo de tanto entusiasmo pela proximidade de um conflito, enquanto outros, como o padre, se mantinham aflitos pela história que iria suceder? A perpetuação da ideia de heroísmo, a vontade de lutar pela terra, liberdade, ou, no caso de Rodrigo, o simples fato de sair da rotina, já explicariam tal questão, afinal, como já mencionamos, as batalhas, para ele, eram sinônimo de resolução dos problemas, conforme podemos conferir no seguinte trecho: [...] E depois... Depois viria a guerra. Era mesmo bom que viesse a guerra. Não havia nada melhor que uma guerra para resolver todos os problemas. Conhecia outros homens que quando estavam quebrados pediam a Deus uma revolução assim como sapo pede chuva. Guerra era remédio para tudo. (VERISSIMO, 2013, p. 336). É como se as batalhas fossem inerentes à vida daquelas pessoas que, dificilmente, passaram pela existência, sem terem tido participado de um episódio de lutas. Não se imaginaria outra solução para os problemas do mundo, se não através da violência, da aniquilação de um povo em detrimento de outro, valores que poderiam estar imbuídos à época em que os fatos transcorriam, considerando o longo período da história que a humanidade, de geração em geração, precisou vivenciar as guerras. Esta normalidade diante da guerra, e o gosto pelas batalhas 117 aparece também quando Juvenal Terra, volta, no fim do verão de 1835, com sua carreta de produtos para venda da cidade de Rio Pardo, trazendo as novidades acerca da revolução que se aproximava: O que comentou era alarmante, porque significava guerra. Mas o tom de sua voz, a expressão de seu rosto eram os mesmos que ele tinha quando falava de coisas triviais. [...] – Já se sente cheiro de pólvora no ar – disse Juvenal. – Se alguém acender um isqueiro, tudo vai pelos ares. (VERISSIMO, 2013, p. 342). É neste espaço da cena discursiva que, diante da posição quase irônica de Juvenal a respeito do início de uma revolução, são apresentados na obra os motivos pelos quais, historicamente, a Revolução Farroupilha aconteceu. Verissimo explora a história e a traz para o romance, fazendo conhecer os fatos verídicos em meio à representação ficcional capaz de suscitar reflexões: Ouvira falar de tumultos no Rio Grande e de ameaças de revolta em Viamão. Conversara com muitos charqueadores que estavam irritados com o governo central, que os obrigava a pagar seiscentos réis fortes de imposto por arroba de charque. Os criadores também se queixavam, indignados, de que além da taxa de dez mil-réis por légua quadrada de campo, os quintos que tinham que pagar sobre o couro “eram uma barbaridade”; e se quisessem explorá-lo, Santo Deus, nesse caso o imposto era dobrado! Não se podia fabricar nada que lá vinham os impostos mais absurdos, os dízimos, como se o Rio Grande fosse uma colônia e não uma província do Brasil. Para cúmulo, até as tropas de mulas que os criadores rio-grandenses vendiam para tropeiros de Sorocaba e outros lugares fora do Continente estavam sujeitas a um imposto que era cobrado não no lugar de origem do negócio, mas sim nos mercados onde os muares eram revendidos, de sorte que quem ia beneficiar a arrecadação eram outras províncias. (VERISSIMO, 2013, p. 342-343). Através deste fragmento, podemos perceber que o autor representa a revolta daqueles que estavam descontentes com a situação do Estado, entendendoa como um abandono por parte do restante do país. Não cabe discutirmos se estes seriam motivos suficientes para a eclosão de uma guerra, já que as articulações políticas e a época eram diferentes daquilo que temos hoje e, também, por não debatermos, neste trabalho, a profundidade da história como fato, mas sim, a representação através da obra. Contudo, ao considerar os pressupostos de 118 Ginzburg (2013), que referenciamos no início desta pesquisa, retomamos a ideia de que a violência não se justificaria, nem para a resolução de conflitos, diferentemente do que pensam algumas das personagens de O Continente, principalmente as personagens masculinas, que entendem a revolução como a única maneira de conquistar aquilo que é almejado. Entretanto, o conflito em meio ao conflito aparece mais uma vez na obra quando é retratada a desavença entre os Terra e os Amaral. Às vésperas de eclodir a revolução, o Coronel Ricardo Amaral convocou os vereadores de Santa Fé para informar que a cidade ficaria ao lado do governo, procurando manter a ordem. Pedro Terra, que questionou esta atitude, por entender que os ideais revolucionários mereciam discussão, foi preso imediatamente. Ao saber de tudo isso, capitão Rodrigo mais uma vez manifesta seu apreço por uma confusão: “Começou o fandango! O melhor é a gente ir para casa limpar a garrucha e afiar a espada”. (VERISSIMO, 2013, p. 345). A personagem refere-se à guerra e mais uma vez a define como meio de divertimento, comparada a um fandango. É neste clima de tensão misturada com euforia, de divisão de lados entre os preocupados em manter a ordem e os ansiosos pelas batalhas, que tem início a revolução como é representada neste texto de Verissimo. Contudo, ainda aqueles que buscam esta paz o fazem não por refletirem acerca dos prejuízos de um grande conflito, mas a fim de não criar indisposição com os superiores. No trecho que segue, vemos o momento em que os moradores de Santa Fé recebem a notícia desta guerra: O estafeta do correio que chegou do Rio Pardo em fins de outubro trouxe a grande notícia. Tinha rebentado a revolução e Bento Gonçalves da Silva, chefe supremo das forças revolucionárias, havia atacado e tomado Porto Alegre! O presidente da Província fugira para o Rio Grande e o chefe farroupilha convocara o vice-presidente para assumir o governo. Dizia-se também que toda a Província aderira ao movimento, com exceção de Pelotas, Rio Grande e São José do Norte. (VERISSIMO, 2013, p. 347). E foi em meio a estes atos considerados heroicos que Bibiana (a esposa do capitão Rodrigo), que, neste romance, representa um dos combatentes desta guerra, ficava em casa a cuidar dos filhos e esperar, como já se sabia ser a sina das mulheres da família Terra. Contrária à guerra, especialmente pelo medo de perder 119 seu marido, Bibiana conta sobre a atitude do capitão ao sair guerrear, quando questionada pelo seu irmão Juvenal: “– Como é que estava? Abatido? Bibiana sorriu melancolicamente. – Estava louco de contente. Parecia que ia pra uma festa” (VERISSIMO, 2013, p.346). A afirmativa da personagem, que responde com um sorriso melancólico, evidenciando sua tristeza em constatar a alegria do marido ao sair para fazer parte dos conflitos da revolução, demonstra sua insatisfação contida, já que, em sua condição de mulher e, diante de tanta alegria, não teria possibilidade concreta para se opor a estas atitudes. O Continente apresenta também a dificuldade que as pessoas tinham em receber informações corretas. Em uma cidade recém-fundada, em um tempo em que ainda não se sonhava com tecnologias, demorava muito tempo para que as pessoas soubessem se os seus familiares ainda viviam, se a guerra continuava, se aqueles que esperavam ainda voltariam para suas casas. Esta angústia permeia o texto que representa a aflição daqueles que ficavam, e, ao passo em que se angustiam, as personagens já têm conhecimento dos prejuízos causados por uma revolução e parecem estar conformados com a situação: “– Padre, não quero que meu marido morra. Quero que ele volte. Mas acho que o destino dele é correr mundo. Por isso estou preparada para tudo” (VERISSIMO, 2013, p.351), refletia Bibiana, a esperar pelo capitão, representando a força e coragem feminina e configurando-se como a personagem com as características citadas. Esta espera pelo esposo era tão forte, que chegava a transformar-se em pressentimento. Com a notícia de que as forças revolucionárias chegariam a Santa Fé, enquanto todos estavam atordoados com o que poderia acontecer, a moça esperava pelo capitão, que poderia vir junto aos demais guerrilheiros. Recusando-se a refugiar-se e enviando apenas o filho Bolívar para proteger-se junto ao irmão e a cunhada, Bibiana seguiu na espera pelo capitão, que chegou para acalentar a esposa, de modo tão forte como se a guerra terminasse por ali. Mas após um pequeno espaço de tempo juntos, Rodrigo precisou fazer o que de mais importante tinha que concluir em Santa Fé, que se tratava, na realidade, de tomar o Casarão dos Amaral, como parte da batalha Farroupilha e, mais do que isso, pelo anseio de liquidar com seus inimigos pessoais. E a satisfação por tudo isto se torna mais uma vez evidente no romance: “– Pelo amor de nossos filhos, Rodrigo, tenha cuidado. Ele tornou a beijá-la na testa, nos cabelos, na boca, dizendo: – A vida vale mais do que uma ponchada de onças. A gente passa trabalho numa guerra, mas se diverte 120 muito” (VERISSIMO, 2013, p. 358). Esta exclamação do capitão evidencia, mais uma vez, o quanto estava insatisfeito quando estava na venda ganhando um pouco de dinheiro ao lado da família. Para ele, o brilho da vida voltara à medida que a guerra acontecia. Entretanto, outras personagens do romance encarregam-se de pensar em alternativas à guerra. O padre Lara, procurado por capitão Rodrigo, que queria garantir que o religioso não estivesse no casarão no momento do ataque, sugere: – Vosmecê vai perder muita gente, capitão. Os Amarais são cabeçudos e têm muita munição. – Eu também sou cabeçudo e tenho muita munição. – Por que não espera o amanhecer? Rodrigo deu de ombros. – Pra não deixar a coisa esfriar. – Olhe aqui. Vou lhe dar uma ideia. Antes de começar o assalto, por que vosmecê não me deixa ir ao casarão ver se o coronel Amaral consente em se render para evitar uma carnificina? – Não padre. “Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti”. Não é isso que dizem as Escrituras? Se alguém me convidasse para eu me render, eu ficava ofendido. Um homem não se entrega. (VERISSIMO, 2013, p. 359). Embora uma personagem instigue a pensar em algo que transforme a batalha em paz, o guerrilheiro não se rende, ansioso pela luta. Este fragmento demonstra, ainda, que mais do que o anseio pela batalha, no caso, pela tomada do casarão, está o orgulho de sentir-se um herói, visto que a personagem deixa evidente que não gostaria que lhe avisassem caso o ataque fosse contra ele, pelo contrário, preferiria morrer lutando a entregar-se em qualquer situação, e é exatamente isto que espera do seu oponente, que lute com ele, pois o mais importante, aqui, seria no dia seguinte enviar ao chefe farroupilha a notícia: “Santa Fé é nossa. A Província toda está nas nossas mãos” (VERISSIMO, 2013, p. 359360), afinal, tomar o casarão, de propriedade dos Amaral, governantes de Santa Fé, era o mesmo que conquistar a cidade. Neste caso, a própria morte é aceita, justificada pelos motivos da batalha. É neste episódio fictício acerca da Revolução Farroupilha que o famoso capitão Rodrigo morre, ao lutar com seu inimigo, o coronel Ricardo Amaral, e levar um tiro no peito. Ao comunicarem o padre Lara acerca do falecimento, outra notícia vem primeiro: “– Padre, tomamos o casarão. Mas mataram o capitão Rodrigo –, acrescentou, chorando como uma criança” (VERISSIMO, 2013, p. 360). Embora a personagem sinta profundamente a morte do chefe daquela equipe de lutadores, 121 esta é apenas a informação que ele “acrescentou”, ao comunicar o vigário que o casarão e, assim, a cidade de Santa Fé haviam sido conquistados. É mais uma vez, a morte, como consequência da guerra, representada na narrativa como algo comum, intrínseco ao ato da luta, como está evidente também no trecho: – Perderam muita gente? – perguntou o padre com voz tão fraca que o outro não ouviu e ele teve de repetir a pergunta. – Perdemos seis homens e temos uns quinze feridos. Dos caramurus nem contei. Mas fizemos uns trinta prisioneiros deste primeiro combate até a tomada do casarão (VERISSIMO, 2013, p. 361). A quantia de mortos ou feridos é dita como se a personagem que responde a pergunta estivesse referindo-se a objetos. O que importa, apesar daqueles que morreram ou estão à beira de, é que o plano daquela batalha deu certo. Morrer “peleando” é, para aquelas personagens revolucionárias de O Continente, comprovar o heroísmo, como diz Juvenal Terra no velório do cunhado: “Rei morto, é rei posto” (VERISSIMO, 2013, p. 362). Não há, na narrativa, outros detalhes acerca da Revolução Farroupilha, senão o fato de a Câmara Municipal de Vereadores da fictícia cidade de Santa Fé ter aderido à revolução, já que Bento Amaral havia migrado para o Paraguai com sua esposa e filho. Bibiana, que ficara viúva, não tinha pretensões de entender o que ainda iria acontecer naquela guerra, pois, para ela, “podiam dizer o que quisessem, mas a verdade era que o cap. Cambará tinha voltado para casa” (VERISSIMO, 2013, p. 364), e o que importava não era a guerra, mas sim esta relação entre perda e retorno do capitão, como podemos verificar no seguinte fragmento: Diziam que os imperiais tinham de novo tomado Porto Alegre. Bibiana não sabia nem queria saber se aquilo era verdade ou não. Não entendia bem aquela guerra. Uns diziam que os farrapos queriam separar a Província do resto do Brasil. Outros afirmavam que eles estavam brigando porque amavam a liberdade e porque tinham sido espezinhados pela Corte. Só duma coisa ela tinha certeza: Rodrigo estava morto e rei nenhum, santo nenhum, deus nenhum podia fazê-lo ressuscitar. (VERISSIMO, 2013, p. 363). 122 Estas incertezas a respeito dos porquês da revolução auxiliam a compreender que, de fato, as causas pelas quais a guerra acontecia talvez nem fossem o mais importante; pelo menos considerando a obra ficcional, os combatentes lutavam, porque tinham de lutar, independente de quais fossem as motivações, separação da província, liberdade, exploração da metrópole, eram, portanto, mais do que suficientes para que as batalhas acontecessem. A personagem feminina, sempre aflita em suas esperas, ao mesmo tempo que conformada por saber que a vida se dá desta forma, neste trecho descrito reflete que foi justamente esta guerra, em que mal se compreendiam quais eram os motivos pelos quais estava acontecendo, que fez com que ela perdesse seu marido. Outra referência à Revolução Farroupilha ainda aparece em O Continente quando, ao iniciar o segundo tomo da obra, já em 1850, cinco anos após o término da guerra, um juiz chamado Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, natural do Maranhão, muda-se para Santa Fé e lança um Almanaque contando a história, a geografia, fauna, flora e outros diversos elementos da cidade. Nesta publicação, o juiz venera Ricardo Amaral Neto em seus feitos na paz e também na guerra, referenciando que em 1836 “‘baqueou como um bravo, de armas na mão, dentro de sua própria casa, defendendo a legalidade’” (VERISSIMO, 2013, p. 16). Esta recordação, ao findar da guerra, e realizada por uma personagem que tampouco participou dos episódios de batalhas, conota, mais uma vez, a imagem deixada pelos que morreram lutando, que é a representada por heroísmo, morrer, contanto que a arma estivesse a postos, portanto, acabava sendo motivo de orgulho. Ao considerar a Revolução Farroupilha enquanto pano de fundo do romance podemos identificá-la enquanto um cenário permeado pelos mais diferentes sentimentos: enquanto aqueles que identificam-se com a guerra nutrem a euforia, o espírito contínuo de combate e inclusive a diversão promovida pelas batalhas, temos as personagens que permanecem em Santa Fé em um clima que já não é este. Na fictícia cidade criada por Verissimo, encontramos a tristeza, as longas esperas, as mulheres que permanecem na monotonia de um local que silencia a espera de notícias, na maioria das vezes, sobre seus mortos. A morte é, na narrativa, quase mais natural quando pela guerra, do que se fosse por motivo de doença, a morte se justifica em um cenário em que as batalhas têm uma importância maior do que os valores humanos. 123 Enquanto o barulho da revolução permeava o Estado, ainda que simbolicamente, as personagens que, embora questionam as lutas permanecem monótonas, como podemos verificar, por exemplo no seguinte fragmento: “[...] E encontrou Bibiana junto ao fogão ajudando a cozinheira. Bolívar brincava debaixo da mesa e Leonor choramingava no berço” (VERISSIMO, 2013, p. 345). A figura da mulher enquanto funcional para o lar está vinculada ao romance na mesma medida em que para os homens, o correto é estar em meio às batalhas. A angústia sem possibilidade de ação, sentida pelos habitantes de Santa Fé também é expressa através de outro elemento que remete à uma cidade interiorana e permeada por valores institucionalizados, como a religiosidade: “O sino da capela tocou alarma e por alguns instantes deu a Santa Fé uma impressão de fim de mundo. [...] Muitas mulheres choravam e soltavam exclamações; outras, lívidas, estavam demasiadamente assustadas para dizerem o que quer que fosse” (VERISSIMO, 2013, p. 353). Neste trecho podemos perceber que a mesma revolução que para algumas das personagens provoca vitalidade, para outras o efeito é de pânico, de anseio pelo seu fim. O silêncio daqueles que são impotentes para fazer questionamentos chega a abranger toda a cidade, conforme analisamos a seguir: “A praça ficou deserta, as casas fechadas. E o último sol daquela tarde de outono alumiou ruas mortas. Mas pelas frestas das janelas olhos espiavam para fora. De casa em casa, vizinhos trocavam impressões” (VERISSIMO, 2013, p. 355). O silêncio que predomina na cidade de O tempo e o vento confirma a ideia do silêncio mórbido entre os habitantes que seguem a esperar o fim dos eventos conflituosos ou o avanço deles, provocando ainda mais medo, quando o silêncio finalmente se finda: Ouviu um tropel. E três tiros, bem destacados, não muito longe. Devia ir para baixo da mesa? Esconder-se atrás do armário? Era melhor. Mas não fez nada. Foi imóvel, escutando não só com os ouvidos, mas com todo o corpo. Achou que só tinha uma coisa a fazer. Rezar. Começou a dizer: “Ave Maria cheia de graça...”. E seus lábios se moviam, e ela murmurava a oração como se estivesse cochichando ao ouvido da santa. (VERISSIMO, 2013, p. 356) Esta descrição do medo e falta de atitude de Bibiana corroboram com a posição inerte das personagens que apenas discordam da revolução. O valor 124 religioso é expresso por mais esta ocasião como uma possível solução, ao menos espiritual em relação aos temores da guerra. Entretanto, acontecimentos importantes suscitam a esperança em algumas das personagens, isso acontece, por exemplo, logo após o enterro do capitão Rodrigo, que, para alguns dos habitantes daquele local, morreu lutando e, portanto, cumpriu com o seu dever. Juvenal olhava para o casarão de Santa Fé, do qual aos poucos se aproximavam. Os telhados escuros estavam lavados de sol. Havia no ar um cheiro de folhas secas queimadas. Ao redor da vila estava tudo tão verde, tão claro e tão alegre que nem parecia que a guerra continuava. (VERISSIMO, 2013, p. 362). A impressão deixada pela personagem Juvenal é uma fuga em relação aos horrores da revolução. Embora ainda não tenha chegado ao fim, é possível esquecer a guerra por alguns momentos se considerada a esperança de sua finalização ou, mais uma vida que, embora vitimada pela mesma revolução e sinalizada pela tristeza de uma morte, acentua, ironicamente, também a alegria, como se fosse um bom exemplo. Uma vez apresentadas algumas das percepções acerca da representação da Revolução Farroupilha na obra de Verissimo, passamos a verificar de que modo a Revolução Federalista toma forma no romance. Esta revolução aparece em O Continente, nas seções intituladas “O Sobrado”, que estão intercaladas em meio à narrativa linear. Esta guerra é representada na obra, principalmente, através da família Terra Cambará (habitante do Sobrado) que está ao lado dos republicanos e tem como líder Licurgo Cambará, o neto de Bibiana. Além de tecer a guerra federalista, a batalha, na ficção, também é de cunho particular, já que os Amaral (habitantes do Casarão) estão do lado dos federalistas. Este episódio histórico é representado ficcionalmente na obra, iniciando por um fragmento nutrido de metáforas e descrições: Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno na solidão. (VERISSIMO, 2013, p. 21). 125 Como podemos visualizar, o primeiro capítulo destinado ao “Sobrado” já inicia evidenciando as consequências da guerra. A solidão e a comparação da cidade ao cemitério causa-nos a impressão de uma tristeza profunda ocasionada pela guerra, esta que traz consigo o medo, as mortes, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de lado o orgulho e o heroísmo, como poderemos constatar a seguir. Em meio a esta cidade deserta, a preocupação de lutar anda ao lado do anseio por salvar a própria vida: Agachado atrás dum muro, José Lírio preparava-se para a última corrida. Quantos passos dali até a igreja? Talvez uns dez ou doze, bem puxados. Recebera ordens para revezar o companheiro que estava de vigia no alto duma das torres da Matriz. “Tenente Liroca”, dissera-lhe o coronel, havia poucos minutos, “suba pro alto do campanário e fique de olho firme no quintal do Sobrado. Se alguém aparecer pra tirar água do poço, faça fogo sem piedade”. (VERISSIMO, 2013, p. 21). Era a vez desta personagem federalista vigiar o Sobrado e a ordem era enfática, qualquer pessoa que saísse da casa deveria ser morta. Através deste fragmento podemos notar certa ironia que envolve a guerra, já que o local para vigiar e atirar era justamente a torre de uma igreja, lugar onde se prega a paz: “Liroca começou a andar pelo corredor, entre as duas carreiras de bancos. Levava a Comblain debaixo do poncho, como se quisesse escondê-la aos olhos de Nossa Senhora da Conceição” (VERISSIMO, 2013, p. 26). É justamente nesta igreja de onde não se podia ter “piedade” para atirar no inimigo, pois o mais importante era exterminar com quem estivesse contra. Em tempos de revolução, esta piedade não era permitida nem a si mesmo, uma vez que nem um tiro poderia ser pior do que ferir o orgulho: 126 Os segundos passavam. Era preciso cumprir a ordem. Liroca não queria que ninguém percebesse que ele hesitava, que era um covarde. Sim, covarde. Podia enganar os outros, mas não conseguia iludir-se a si mesmo. Estava metido naquela revolução porque era federalista e tinha vergonha na cara. Mas não se habituava nunca ao perigo. Sentira medo desde o primeiro dia, desde a primeira hora – um medo que lhe vinha de baixo, das tripas, e lhe subia pelo estômago até a goela, como uma geada, amolecendo-lhe as pernas, os braços, a vontade. Medo é doença; medo é febre. [...] “Lírio é macho”, murmurou Liroca para si mesmo. (VERISSIMO, 2013, p. 21). A personagem Liroca não tinha opção de escolha, representando outros diversos soldados que eram obrigados, pelos seus superiores, ou pela sua própria honra, a enfrentar os perigos para reafirmar a situação de “macho”, que neste caso, faz referência justamente a um homem que não teme, não foge a uma batalha. “Se alguém viesse buscar água no poço, ele devia fazer fogo” (VERISSIMO, 2013, p. 27). Esta situação que remete a uma pessoa de menor importância na ordem hierárquica dos comandantes da guerra, não é exclusiva dele. Licurgo Cambará, que, em Santa Fé, era o chefe político republicano, também não se permite, em momento algum sentir medo ou tristeza. Tendo transcorrido uma semana que os federalistas haviam tomado a cidade, Licurgo trancou-se em casa com a família e alguns correligionários, oferecendo resistência. Quando o chefe federalista ergueu bandeira branca propondo que as mulheres e crianças se refugiassem na casa paroquial, Licurgo não aceitou: “‘O lugar da minha família é no Sobrado. Daqui não sai ninguém. Não aceito favor de Maragato’" (VERISSIMO, 2013, p. 27), colocando o orgulho acima da proteção de sua família. Enquanto o Sobrado não se entregasse, os revolucionários não poderiam ser considerados os donos de Santa Fé, motivos suficientes para que o líder republicano da cidade não abrisse mão desta decisão em qualquer das hipóteses. Ao passo em que construímos esta percepção, parece-nos que as personagens não aderem à guerra somente por seus grandes ideais, mas sim porque, estando em meio as batalhas, é possível reafirmar alguns valores que, mais uma vez, estão atrelados ao orgulho, não se configurando a guerra, em si, como unanimidade. Em uma conversa sobre guerras, o velho Fandango, que, desde muito tempo, serve aos Cambará, comenta que o “entrevero” é para pessoas jovens: “Alguém diz: – Guerra é que é pra gente moça, companheiro. [...] – Nem sempre 127 quem está na guerra é porque gosta de brigar, menino. Às vezes a gente se mete numa revolução, numa peleia porque tem vergonha. E vergonha não é privilégio de moço”. (VERISSIMO, 2013, p. 374). Este fragmento traz à tona a ideia de que, mesmo aqueles que não gostam de incluírem-se em brigas, em nome deste orgulho acabam tendo de fazê-lo. Já os que são comprovadamente a favor da guerra, também têm nítida esta premissa. Exemplo disso é novamente Licurgo. Com a esposa, Alice, prestes a ganhar um bebê, o líder republicano pensa: “Coitadinho! Vai nascer em tempo de guerra, talvez na hora dum tiroteio. Se for um homem, não haverá momento mais propício” (VERISSIMO, 2013, p. 33). A ideia é que a criança já nasça com este espírito guerreiro, de “macho”. Neste sentido, as outras crianças da casa também já têm a guerra como inerentes à sua existência, como podemos perceber quando um irmão convida o outro para brincar e a resposta se faz: “– De quê? – De revolução. Eu sou republicano e tu é maragato” (VERISSIMO, 2013, p. 203). Também podemos notar o quanto as passagens da guerra estão imbuídas no imaginário das crianças através do pensamento do pequeno Rodrigo, bisneto de Bibiana, que, ao deitar-se, sempre leva o punhal de prata consigo, apertando-o contra o peito: Rodrigo agora está deitado de costas, de olhos fechados, pensando nas muitas coisas que o preocupam. Por que será que os maragatos pararam de dar tiros? Por que estão agora tocando gaita? Daqui a pouco mamãe começa a gritar. Não quero dormir, vou esperar a hora do meu irmãozinho nascer. Botam na cabeça dela o chapéu do papai, o chapelão com o letreiro: “Viva o dr. Júlio de Castilhos!” Então a barriga da mamãe se abre e lá de dentro sai a criança. (VERISSIMO, 2013, p. 39). A partir disso, podemos notar que os pequenos moradores da casa, ainda que muito jovens, já estão totalmente envolvidos com o clima da guerra, inclusive entendendo quem são os aliados e quem são os inimigos. Não é ensinado às crianças, nada que remeta às consequências de uma guerra ou da violência, pelo contrário, é permitido, ainda, que desde pequenos já tenham contato com as armas, como acontece com o punhal, arma que já é considerada motivo de segurança para Rodrigo, que ainda é uma criança. 128 Contudo, há também nas seções de “O Sobrado” aqueles que gostariam que a situação fosse diferente, entendendo os aspectos negativos daquele conflito, como podemos perceber na reflexão de Liroca, que diverge com a do pai das crianças Cambará: “E se a criança nascesse bem na hora dum tiroteio? Mundo louco, guerra louca” (VERISSIMO, 2013, p. 28). Com este fragmento, podemos mais uma vez observar o modo como uma personagem pode trazer um contraponto à valorização da guerra, defendida por outras personagens. Liroca, ao considerar o mundo e a guerra como “loucos”, traz à tona a ideia de que episódios violentos não estão de acordo com a normalidade. Vemos, na sequência, o trecho de uma conversa de Liroca com o guarda que deixaria o posto para ele assumir: – Tomara que acabe duma vez esta revolução – suspirou. – Por quê? – Estou cansado de andar barbudo, piolhento, dormindo na chuva, acordando com geada na cara. Cansado de... – Calou-se de súbito. – Mas é a guerra, Liroca. Animado pela cachaça, que lhe dera um calor bom, Liroca continuou: – Vivo com o estômago embrulhado. O cheiro de sangue e de defunto não me sai das ventas. Sinto-o na água, na comida, na mão, no vento, em tudo. – É a guerra... – repetiu o outro. – Mas é triste. – Triste são os nossos companheiros degolados. Triste é o Gumercindo Saraiva morto. (VERISSIMO, 2013, p. 24). Novamente a guerra aparece como algo inerente àquela sociedade. “Guerra é guerra”, expressão que representa uma conformidade diante dos desastres, seguida por uma percepção quase equivocada das mortes. O fato de os companheiros terem morrido causa tristeza, mas remete à impressão de que as personagens não atribuem as mortes dos seus amigos à guerra que está acontecendo, já que não questionam as perdas enquanto decorrentes dos conflitos. É como se as batalhas fossem algo isolado das suas consequências, tristes são as mortes, mas nem por isso seria melhor que a guerra terminasse, pois este é o sentido dela, como podemos constatar na reflexão feita pela personagem que lidera o partido republicano: “Por que morreram? Pelo seu partido, pelas suas ideias – está tudo muito bem. Lutaram como homens. Mas acontece que sua morte foi inútil, agora que a revolução se aproxima do fim e os federalistas estão perdidos” (VERISSIMO, 2013, p. 30). É como se, em alguns momentos, viesse à tona uma preocupação com a humanidade, no receio de que, talvez, as mortes possam não 129 ter tido validade, entretanto, se morreram por grandes ideias, para a personagem, já existe um motivo. Quando, na narrativa, surgem estas reflexões, parece que a guerra está próxima do fim, entretanto Licurgo não pretende perder a batalha e tampouco entregar a vitória ao seu adversário político e inimigo pessoal de tantos anos, que é o coronel Amaral. Desta forma, ainda que tenha que sacrificar mais pessoas, decide seguir com a clausura no Sobrado: – Acho que a criança vai nascer esta madrugada – murmura Maria Valéria. [...] – Acho que o senhor devia mandar buscar recursos. [...] – Não tem jeito. – Tem, sim. – Qual é? – Peça trégua. Diga que sua mulher vai ter um filho. Os maragatos compreendem. – Os maragatos são uns cobardes. A resposta vem rápida e rascante: – Não são. O senhor sabe que não são. Licurgo fecha-se num silêncio soturno. A cunhada prossegue: – O senhor sabe que eles são tão bons e tão valentes como os republicanos. É a mesma gente, só que com ideias diferentes. – Que é que a senhora entende de ideias? – vocifera Licurgo. Maria Valéria continua imóvel. – Não é preciso gritar. O senhor faz todo esse barulho porque no fundo sabe que não está procedendo direito. [...] – Isto não é negócio de mulher. É de macho. [...] Pois fique sabendo que esta revolução também é negócio de mulher. Nós também estamos defendendo o Sobrado. Alguma de nós já se queixou? Alguma já lhe disse que passa o dia com dor no estômago, como quem comeu pedra, e pedra salgada? Alguma já lhe pediu pra entregar o Sobrado? Não. Não pediu. Elas também estão na guerra. Licurgo faz um gesto de impaciência. – Está bem, prima. Está bem. Mas tudo é uma questão de dias ou de horas. Os federalistas estão perdidos. Amanhã a cidade pode amanhecer livre. – E a Alice pode amanhecer morta. Ela ou o filho. Ou os dois. (VERISSIMO, 2013, p. 31-32). A tentativa da cunhada de convencer Licurgo que sua mulher e seu filho podem morrer não surte efeito. Embora possa pensar que a melhor alternativa seria tentar salvar-lhes, a guerra é mais importante para o chefe republicano do que outras questões. Isto também fica evidente quando os outros refugiados do Sobrado querem encontrar uma solução para um dos homens que foi ferido gravemente: “Milhares de homens têm morrido nesta revolução por causa de suas ideias. A vida duma pessoa não é tão importante assim. Há coisas mais sérias” (VERISSIMO, 2013, p. 200). O chefe republicano também não iria atender às alternativas de uma mulher. Desta forma, recorre ao sogro Florêncio, para perguntar se está agindo mal. Este também tenta explicar a Licurgo que as mortes não devem ser elevadas a um nível acima dos ideais de guerra: “Acho que vassuncê pode estar procedendo bem como 130 chefe político, mas está procedendo mal como chefe de família” (VERISSIMO, 2013, p. 35), e ainda “[...] a vida duma mulher ou duma criança é coisa muito mais importante que qualquer ódio político” (VERISSIMO, 2013, p. 36). Mesmo com as ponderações do sogro, a questão da guerra e da honra tomam conta da personagem republicana, que não lança mão de pedir trégua em benefício de sua família. Para Licurgo, o maior valor para deixar de legado é justamente a imagem de uma batalha vencida e, o exemplo para que as crianças cresçam sabendo que sim, vale a pena lutar: E nunca – pensa Licurgo, olhando para o casarão dos Amarais lá do outro lado da praça – nunca Alvarino Amaral poderá dizer “Perdi a revolução mas tomei Santa Fé e tive o gosto de entrar no Sobrado de chapéu na cabeça e fazer o Licurgo dobrar a espinha” Nunca. Quando no futuro se falar na Revolução de 93, hão dizer: "O Sobrado aguentou um cerco de mais de dez dias e não se rendeu". Toríbio e Rodrigo crescerão ouvindo essa história aprendendo com ela a dar valor à casa onde nasceram - a amá-la, respeitála e defendê-la; e compreendendo acima de tudo que existem na vida dum homem de honra duas coisas sagradas que ele deve fazer respeitar à custa de todos os sacrifícios: a cara e a casa. (VERISSIMO, 2013, p. 173). Esta ideia é tão forte para o chefe republicano que quando, na trama, Licurgo percebe que sua esposa para de gritar e lhe passa pela cabeça que ela e o bebê podem ter morrido, a sua fuga deste pensamento volta-se novamente para a guerra: “– Aposto como a revolução não dura nem um mês. Os federalistas já estão se bandeando pro outro lado do Uruguai” (VERISSIMO, 2013, p. 94). A partir desta fuga de Licurgo quanto aos pensamentos a respeito de sua esposa e filho, notamos que, mais uma vez, evidencia-se a guerra como resolução para os problemas, ainda que estes sejam da própria condição mental de adágios negativos. Através do fragmento que descrevemos, podemos compreender que o fato de pensar na guerra, antes de causar mais angústia, para esta personagem serve como álibi para sossegar a sua alma ou os seus receios. O mesmo acontece quando Licurgo começa sentir a dor da perda de sua filha, que não sobreviveu, e teve de ser enterrada em uma caixa, no porão do Sobrado. Para aliviar seu sofrimento, o chefe republicano imagina que um dia as pessoas irão dizer: “‘Aquele que ali vai é o coronel Licurgo Cambará. Uma fera! Na revolução de 93 os maragatos cercaram o Sobrado, mas ele não se entregou. 131 Sacrificou a filha, a mulher, os amigos, mas não afrouxou. Uma fera!’”, (VERISSIMO, 2013, p. 172). Este pensamento que conforta Licurgo evidencia o quanto, para ele, é mais honroso perder a família do que a guerra, indicando a valorização do conflito enquanto valor supremo para o líder. Ao reportar-se a guerra como superior aos valores familiares e entender que a dor da perda da família, a qual poderia ter evitado, seria acalentada por um comentário que o tornaria um herói de guerra, demonstra, inclusive, uma certa desumanização no que diz respeito às reflexões e atitudes da personagem. Além do acalento na guerra e visando ao futuro reconhecimento, o anseio pela revolução é diversas vezes evidenciado durante a representação da Revolução Federalista em O Continente. Com a proximidade do fim do conflito e a calmaria que vai se estabelecendo pela falta de munição de ambos os lados, o homem que está de plantão diz a Licurgo: “Faz mais de quinze horas que não dou um tirinho” (VERISSIMO, 2013, p. 196), e esta exclamação apresenta o fato de atirar contra alguém ser mais do que uma forma de defesa, como um passa-tempo. Mas é neste momento da trilogia que Licurgo remói, por mais uma vez, seu ódio pelos Amaral, e por instantes culpa-os e não à guerra pela morte de sua filha recém-nascida e por sua esposa estar doente, uma culpa que poderia ser atribuída a ele mesmo, já que não considerou pedir trégua para chamar a ajuda de um médico. Em meio a toda a dor e indecisões em função da falta de informação a respeito do fim da revolução, Licurgo esquece-se também da mulher quase a morrer, ao seu lado, e também da presença da cunhada, para perguntar-se o que estaria acontecendo com Ismália, sua mulher fora do casamento: “A esta hora os malditos federalistas já invadiram os campos do Angico, [...] miseráveis – provavelmente serviram-se à vontade no corpo da rapariga” (VERISSIMO, 2013, p. 198). Semelhante ao que acontecia com capitão Rodrigo, que amenizava os anseios da guerra, tendo casos extraconjugais, o líder republicano, anos depois, também encontra tempo para preocupar-se com a mulher a qual sustenta além de sua família. Remetendo a Rodrigo Cambará, podemos também nos referir a Bibiana, que já idosa em seu quarto continua a esperar, pela morte, por mais perdas, pelo fim da guerra, pelo próprio tempo, a passar: 132 Quando ouviu o primeiro tiroteio, ficou nesta mesma cadeira, esperando e escutando. Quando as balas partiam as vidraças ou se cravavam nas paredes, ela tinha a impressão de estar vendo – não! – de estar ouvindo uma pessoa de sua família ser fuzilada pelos inimigos. Medo não sentiu, isso não. Teve dó. E ódio. Estragarem o Sobrado desse jeito! Mas guerra para ela não é novidade. Tudo isso já aconteceu antes, muitas, muitas vezes. Viu guerras e revoluções sem conta, e sempre ficou esperando. Primeiro, quando menina, esperou o pai; depois, o marido. Criou o filho e um dia o filho também foi para a guerra. Viu o neto crescer, e agora o Licurgo está também na guerra. Houve um tempo em que ela nem mais tirava o luto do corpo. Era morte de parente em cima de morte de parente, guerra sobre guerra, revolução sobre revolução. (VERISSIMO, 2013, p. 40). Temos, através desta referência à velha Bibiana, a representação da guerra enquanto perpetuadora de gerações. Se os episódios conflituosos nascem junto com as crianças, como vimos anteriormente, eles também seguem unidos à saga da família. É novamente a guerra representada como algo comum, já não há mais medo, mas conformidade com a situação que segue em ciclos, até que um deles se encerre para dar início ao próximo. E o fim do ciclo da Revolução Federalista é representado no romance no momento em que Licurgo, finalmente – ao perceber que todos no Sobrado estão famintos e muitos são os doentes, e depois de muita insistência da cunhada Maria Valéria –, decide enviar alguém para trazer um médico que possa cuidar da saúde de sua esposa. Mas, no momento desta decisão, os federalistas se rendem e a tão almejada vitória é do Sobrado: O vigário de Santa Fé, que carrega uma bandeira branca na ponta duma lança. Um dos homens ergue o chapéu no ar e solta um brado; os outros o imitam mas o vento leva-lhes as vozes para longe. – É a nossa gente – diz Jango, excitado. [...] O padre Atílio Romano entrega a bandeira a um companheiro, adianta-se do grupo e, de braços abertos, atravessa a rua. – Graças a Deus! – exclama, de rosto iluminado. - Graças ao bom Deus! Os federalistas abandonaram a cidade antes do dia raiar. As forças republicanas de Cruz Alta já entraram no nosso município! [...] O senhor do Sobrado e do Angico reconhece os companheiros que foram aprisionados pelos federalistas durante o combate pela posse da cidade. Erguem-se no ar espadas, chapéus, lenços e lanças. Viva o Partido Republicano! Viva o coronel Licurgo Cambará! Viva o Rio Grande do Sul! Antero põe o chapéu na ponta duma lança, levanta-o bem alto e, com sua voz estrídula, brada: "Viva o Sobrado!”. (VERISSIMO, 2013, p. 394-395). 133 A vitória do Sobrado, que representa a gerência de Santa Fé, foi conquistada e o esperado reconhecimento também chegou ao seu destinatário. A festa da vitória e do fim da revolução, finalmente foi maior do que a euforia da guerra. Com a cidade livre e a fuga dos federalistas, Licurgo pronuncia: “nenhum canalha botou o pé na minha casa!” (VERISSIMO, 2013, p. 395). A alegria deste momento parece que fez o líder republicano esquecer um dos motivos pelos quais se queria tanto que a paz reinasse naquele dia em específico, que era sua esposa, que permanecia muito doente a espera de auxílio médico, atendimento não possibilitado em meio ao episódio conflituoso que permeava o momento. “Não se esqueça que sua mulher está passando mal. Mande o dr. Winter subir imediatamente” (VERISSIMO, 2013, p. 395), precisou lembrar a cunhada, expressão que nos leva, mais uma vez, à compreensão de que a emoção dos episódios de guerra ainda se sobressaía ante outros fatos, para eles, tanto menos importantes. A Revolução Federalista, como elemento principal das seções de “O Sobrado” aparece em um cenário rico em detalhes que remetem à tradição sulina. O frio, a ventania, o fogão à lenha, o chimarrão, as laranjas, são elementos que aparecem para descrever o local onde a guerra se realiza: “Aquele cheiro de cigarro de palha trazia-lhe à memória recordações agradáveis: os serões do Sobrado nas noites de inverno, mate chimarrão com pinhão quente, conversas amigas, café fumegante com bolos de coalhada...” (VERISSIMO, 2013, p. 28). O mate, enquanto artefato da tradição gaúcha também representa a socialização, a troca de ideias e conversas, já que, normalmente, é compartilhado em um círculo de amigos, podemos verificar, no trecho que segue, a representação tradicionalista unida aos desígnios da guerra. – Bom, tenho de ir andando... – disse, sem nenhuma vontade de subir para o seu posto. O outro troçou: – Tome mais um mate, compadre... Liroca tornou a suspirar: – Muito mate tomei eu naquela casa. – No sobrado? – É. – Casa de pica-pau. – Os Cambarás são gente direita. – Inimigo é inimigo. O chefe deles é quem diz: “Inimigo não se poupa”. (VERISSIMO, 2013, p. 25). 134 A revolução representada em O Continente apresenta a ruptura deste costume entre pessoas que se tornam inimigas a partir dos conflitos. Embora a personagem recorde com tom de saudade o tempo em que convivia com as demais personagens que residem no Casarão de Santa Fé, a inimizade constituída a partir da guerra os afasta e é preciso pensar com frieza. As imagens da Revolução Federalista são transmitidas, também em outros fragmentos, de modo a associar a guerra com elementos representativos do Estado, como verificamos em: “Melhor é ir para perto do fogo, na cozinha. Entra na sala de jantar, que está às escuras. Perto de cada janela acha-se postado um homem, agarrado à sua Comblain.” (VERISSIMO, 2013, p. 34). Unindo-se à imagem sulina representada pelo fogo à lenha que aquece a residência estão as armas, que compõem o cenário assim como os demais elementos. De maneira semelhante, a geada que representa o frio sul-rio-grandense não aparece por si só na narrativa: As vidraças das casas da praça chispam ao sol. Há geada na cara dos mortos, ali na rua, e Licurgo olha para eles com nojo. – Se a gente pudesse mandar enterrar esses cadáveres... – murmura. O atirador boceja. – Quando bate o vento não se aguenta o mau cheiro – diz ele, cuspinhando. (VERISSIMO, 2013, p. 196). Da mesma forma que a geada encobre as ruas, formando o cenário da cidade, a composição deste espaço é marcada pelos corpos daqueles que foram mortos em meio a combates. A presença da morte já está institucionalizada de tal maneira que não há referências a sentimentos de compaixão ou arrependimentos, mas somente à repulsa em função do cadáver. A indiferença é expressa, por exemplo, à medida que o atirador boceja, ao ouvir a referência da pessoa morta em frente à casa. Mas um sofrimento calado, assim como a falta de diálogo para a resolução de quaisquer que fossem os conflitos é bastante evidente na representação da guerra federalista, como também se manifestou na revolução farroupilha. O silêncio permeia a narrativa, os pensamentos das personagens são mais frequentes que suas falas: “Ele sabe exatamente o que Florêncio está pensando [...]. Seria melhor que o velho falasse claro e alto, pois assim ele teria também a oportunidade de desabafar, de dizer-lhe um bom par de verdades” (VERISSIMO, 2014, p. 180). Esta 135 falta de diálogo caracteriza um ambiente conflituoso em um cenário onde as diferenças são resolvidas através de batalhas, como já observamos nos fragmentos anteriores. Assim como o silêncio, outro elemento que permeia a representação da Revolução Federalista é o vento, que dá título à obra. A já idosa Bibiana, em sua eterna espera: “Como o tempo custa a passar quando a gente espera! Principalmente quando venta. Parece que o vento maneia o tempo” (VERISSIMO, 2013, p. 40-41). Esta reflexão da personagem aparece quando ela recorda as tantas vezes que precisou esperar as voltas da guerra: o pai, o marido, o filho e o neto, o que a faz atribuir ao vento também uma característica já herdada pelo sofrimento das mulheres da família: “Noite de vento, noite dos mortos” (VERISSIMO, 2013, p. 100). Uma vez que analisamos de que maneira as revoluções Farroupilha e Federalista foram representadas em O Continente, cabem ainda outras possíveis reflexões formuladas a partir da leitura destes discursos. Primeiramente, recordamos que esta história contada em O Continente apresenta as duas guerras, principalmente, a partir da visão de duas personagens, homens, muito envolvidos com os conflitos, por seus ideais relacionados aos lados que escolheram para combater e, também pelo orgulho de fazerem parte de grandes revoluções, sempre no anseio de aparecerem como heróis, são estes, capitão Rodrigo Cambará, na Revolução Farroupilha e Licurgo Cambará, neto de Rodrigo, na Revolução Federalista. As revoluções são representadas, ainda, neste romance, através da percepção de algumas personagens que questionam os horrores da guerra: mulheres, que perdem seus pais, esposos e filhos nas batalhas, os sacerdotes, que primam pelos valores religiosos, e alguns subordinados, como Liroca, que sentem medo, ainda que não admitam para os demais guerrilheiros. Ao nos referirmos, primeiramente aos dois “heróis” desta primeira obra da trilogia, podemos notar que são inúmeras as semelhanças entre eles, além de pertencerem à mesma família: ambos traem suas esposas, ambos ocupam papel de destaque perante o apreço das pessoas, estando como líderes de seus grupos, ambos são relapsos com as suas famílias em um momento de doença, seja por estarem ocupados com seus interesses pessoais ou por considerarem a guerra mais importante do que outras situações que possam estar se desenrolando em suas casas. 136 Esses fatos podem ser explicados se pensarmos no ciclo que permeia a narrativa. Regina Zilberman (1972, p. 190) destaca: “A noção de permanência, dada pela estrutura de O Continente e que, somada à visão dos trilhos como repetição dos antepassados, anula o tempo histórico”. A mesma autora (1981) acrescenta também que as gerações se unem por laços sanguíneos, que garantem esta identidade. Diante dessas afirmações, podemos constatar que, mesmo com o passar do tempo, e ainda que as gerações sejam diferentes e as revoluções não sejam as mesmas, as personagens perseguem a mesma linha de pensamento de seus antepassados, e isto seguirá no decorrer da trilogia, já que as personagens crianças, como vimos no decorrer desta análise, já estão envolvidas com as guerras e são educadas com vistas a seguirem estes mesmos exemplos. Considerando ainda a maneira como os dois líderes aparecem no romance, vemos que muitas de suas qualidades são exaltadas, principalmente as de Rodrigo, que é representado como alguém por quem as demais personagens não conseguem deixar de gostar, ao considerarem a forma sedutora e até mesmo cômica como o capitão lida com as situações. Ter lutado em diversas guerras, manter círculos de amizade e outras características consideradas inclusive, inexplicáveis pelas próprias personagens, atribuem este apreço por Rodrigo. Entretanto, também são apresentados os aspectos negativos referentes a estas personagens, como se fosse deixada para o leitor a possibilidade de optar por simpatizar ou não com cada um deles. Podemos, a partir disso, recorrer a Flávio Loureiro Chaves (1981, p. 41), que se refere à ficção de Verissimo como suscitadora de uma crítica social: “Ocorre, entretanto, que ela não está radicada na mera transcrição da realidade aparente mas no mundo das personagens e terá de ser apreendida na interpretação de sua dinâmica peculiar”. Ao interpretarmos esta afirmação, podemos entender que essas diferentes maneiras de ler as personagens e suas atitudes, são formas de, a partir da narrativa, surgirem diversas possibilidades de reflexão acerca do tema abordado. Mesmo quando uma personagem entende a guerra como um motivo de alegria e suas lutas como grandes feitos heroicos ou quando a “bravura dos homens é a própria rotina imposta pela constância das guerras”, como cita Moysés Vellinho (1972, p. 110), é possível ao leitor ponderar sobre estas atitudes, uma vez que, ao longo do romance, são explicitadas as consequências decorrentes dos eventos conflituosos. Desta forma, os leitores que não nutrem simpatia pela guerra podem, através da percepção da representação da revolução enquanto motivo de alegria, 137 reafirmar os conflitos como valores negativos, já que são contrários a estes pensamentos. Entretanto, embora o romance perpasse pelo orgulho nas vitórias engendradas por conflitos, “a crônica de sangue pontuada por sucessivas guerras”, como descreve Chaves (1972, p. 79), permite ver as revoluções sob diferentes prismas, e também a partir das próprias personagens. Isso porque, ao passo em que os “heróis” elevam a cultura da guerra, sempre existem vozes questionando ou debatendo acerca destas atitudes e, muitas vezes, estas vozes são as das mulheres da família conforme destaca Chaves: Enquanto a narração avança cronologicamente através das lutas fratricidas de Cambarás e Amarais, dos gestos aparentemente heróicos do Capitão Rodrigo e de Licurgo, a verdadeira crença do autor se expressa na saga de Ana Terra, de Bibiana, de Maria Valéria. (CHAVES, 1981, p. 77). Estas mulheres citadas pelo autor aparecem como algumas das personagens que questionam guerra e violência, e, embora conformadas com suas longas esperas e recebendo até mesmo com naturalidade notícias acerca de mortes, estas personagens não concordam com muitas das atitudes de seus companheiros. Entretanto, ora estas personagens reagem contestando as consequências da guerra, como podemos observar, especialmente, através da atitude de Maria Valéria, que não quer ver sua irmã morrer por falta de atendimento médico, e ora agem apenas enquanto conformadas com a situação, como verificamos em Bibiana, que embora peça ao seu marido que tome cuidado, está ciente do que pode acontecer e já aguarda pelas notícias más. Quando o capitão morre, a personagem já nem mais se importa com os assuntos relacionados com a guerra, entendendo-a como apenas mais uma das revoluções de que vivenciou. Diante de textos que abordam a temática da guerra, Ginzburg (2012, p. 284) afirma que os anseios permeiam o moral e o social, organizando as ações entre aceitáveis ou condenáveis. E esta reflexão do autor é cabível também no que diz respeito ao romance em análise, uma vez que episódios de guerra e violência muitas vezes acabam sendo aceitos, durante a obra, em nome de meios justificáveis 138 como a honra, o desejo de vitória ou, simplesmente de guerrear, ou ainda, por omissão. Desta maneira, compreendemos que, tendo de um lado os guerrilheiros enquanto “heróis”, mas também, de outro, as personagens atuando como vozes questionadoras, o discurso desta primeira parte da trilogia de O tempo e o vento é capaz de gerar um grande campo interpretativo sobre a temática principal. Com perspectiva semelhante, e discutindo acerca da eterna inimizade entre as famílias Cambará e Amaral, que também permite diferentes reflexões, Chaves (1972, p. 80) afirma: A mesma intriga, distribuída por diferentes níveis da temporalidade, repetese várias vezes na sucessão das gerações de Terras e Cambarás. Justamente esta reiteração da temática, insistindo no motivo, amplia o contexto da narração e faz com que O Continente ultrapasse os limites do mero romance histórico, escapando ao regionalismo. É todo um universo, no qual o “contador de histórias” já não se restringe à fotografia social, mas expressa, a partir dela, uma concepção da existência que abrange toda a ordem das coisas criadas. Se Erico Verissimo, chamado por Chaves de “contador de histórias”, não tinha pretensão de escrever um romance de cunho regionalista, podemos entender que sua trama discursiva de fato não teve como foco a imagem sulina tradicionalmente descrita enquanto amor à tradição, mas sim a presença de heróis desmitificados, exaltados por seus grandes feitos, mas também representados por suas fraquezas e valores questionáveis. Conforme citou Chaves (1972), O Continente não simplesmente representa uma história, como expressa diferentes concepções a respeito do tema, ou seja, não quer imitar a realidade, mas trazer, através das personagens ficcionais, as mais diferentes releituras acerca daqueles episódios, incitando ainda uma construção de uma memória sobre episódios históricos. 139 3.3 Leitura da violência e memória da narrativa A temática da violência é muito recorrente em O tempo e o vento, primeiramente, porque, em se tratando de guerras, a violência é o elemento intrínseco aos eventos conflituosos. Mas, além do tema ser explorado através da remontagem das revoluções, este tema é representado também outras diversas vezes ao longo da narrativa, e de diferentes maneiras. Cabe, portanto, para a nossa pesquisa, recorrermos aos questionamentos feitos por Ginzburg (2013): por que a violência é vista como um fenômeno comum? E adaptando-a para a nossa proposta de investigação: a violência é representada, através deste romance, como um fenômeno comum? Qual o posicionamento crítico, se existente, da obra em relação à violência? Sendo assim, selecionamos, para esta seção deste capítulo, alguns fragmentos em que, através das atitudes das personagens, tornam-se possíveis outras discussões acerca da representação da violência, não somente enquanto recursiva das guerras, já que em outros momentos da narrativa de O Continente encontramos situações de “extremo horror” e “níveis de sofrimento que não deveriam existir”, termos utilizados por Ginzburg (2013, p. 10) quando o autor explica o que acontece em episódios violentos. Iniciamos, assim, a análise de alguns episódios violentos expressos no romance, a partir da história de Ana Terra, uma das precursoras da família que deu origem a Bibiana e ao Licurgo, personagens muito mencionadas em função das guerras analisadas neste trabalho. Ao realizarmos a leitura da história de Ana Terra, podemos perceber que, ainda sem a presença dos guerrilheiros que seriam considerados heróis por aqueles que cultuam a guerra, e mesmo em uma estância muito longe da civilização, a violência já se fazia muito presente, comprovando mais uma vez este ciclo de pensamentos idênticos que permeiam a geração desta família, que tem seguimento, justamente, com a gravidez de Ana Terra. Esta, ao saber que estava esperando um filho do índio Pedro Missioneiro, recordou: “conhecia casos de pais que matavam as filhas ao sabê-las desonradas. Honra se lava com sangue!” (VERISSIMO, 2013, p. 135-136). Essa é uma constatação – evidenciando a institucionalização da violência como solução para conflitos das mais diversas origens –, que tem sequência pela 140 continuidade de uma predestinação violenta que marca toda a narrativa. E se já no século XVIII era o sangue que poderia lavar a honra de uma família, sendo o ato violento concebível como mais correto em relação a outros acontecimentos, com a personagem em questão não foi diferente, como podemos perceber no trecho que segue: Antônio e Horácio voltaram ao clarear do dia. Estavam pálidos e tinham nos olhos tresnoitados uma apagada expressão de horror. Nada disseram ao entrar; ninguém lhes perguntou nada. Estendida no catre, Ana ouviu o ruído dos passos dos irmãos [...]. Viu quando um deles atirou uma pá no chão. Compreendeu tudo. Numa súbita revolta desejou erguer-se, correr para os irmãos, meter-lhes as unhas na cara, arrancar-lhes os olhos, mas ficou imóvel, sem ânimo para mover-se ou falar. Estava exausta, com um frio de morte no corpo, um vazio na cabeça. Tudo aquilo lhe parecia um pesadelo [...] Ana imaginou Horácio e Antônio cavando uma sepultura, e o corpo de Pedro estendido no chão ao pé deles, coberto de sangue e sereno. Depois os dois vivos atiraram o morto na cova e o cobriram com terra. Baterama terra e puseram uma pedra em cima. E Pedro lá ficou no chão frio, sem mortalha, sem cruz, sem oração, como um cachorro pesteado. Agora estava tudo perdido. Seus irmãos eram assassinos. Nunca mais poderia haver paz naquela casa. Nunca mais eles poderiam olhar direito uns para os outros. (VERISSIMO, 2013, p. 140-141). Embora a honra dos Terra pudesse ter sido lavada, a paz da família foi enterrada junto com o índio. Os irmãos horrorizados com seu próprio feito, Ana Terra grávida de um filho sem pai e uma casa onde as pessoas não conversam. A violência realizada para garantir a honra é a mesma que se torna motivo para uma desavença que perdura por muitos anos, gerando, inclusive, anseios de concretização de outra forma de violência, desta vez de Ana, que, revoltada com a atitude dos irmãos, tem anseio por arrancar-lhes os olhos, embora não o faça. Através desta narrativa fictícia, podemos mais uma vez compreender o que afirma Ginzburg (2013) no sentido de a violência não se justificar em nenhuma das hipóteses, já que causa, em medidas ainda maiores, a destruição. Neste mesmo sentido, encontramos em O Continente uma passagem sobre o ataque dos castelhanos à estância dos Terra. Embora o Brasil estivesse vivenciando as consequências da Revolução Francesa e Inconfidência Mineira – mais uma vez a guerra como pano de fundo do sofrimento –, o ataque dos castelhanos àquela família, matando todos os homens e violentando Ana Terra, 141 estaria colocando atos violentos, novamente, acima de qualquer forma de humanização, para a conquista de bens materiais: Um suor gelado escorria-lhe pela testa, entrava-lhe nos olhos, fazendo-os arder e aumentando-lhe a confusão do que via: o pai e o irmão ensanguentados, caídos no chão, e aqueles bandidos que gritavam, entravam no rancho, quebravam móveis, arrastavam a arca, remexiam nas roupas, derrubavam a pontapés e golpes de facão as paredes que ainda estavam de pé. Mas não lhe deram tempo para olhar melhor. Começaram a sacudi-la e a perguntar: - Donde está la plata? la plata... la plata... la plata... Ana estava estonteada. Alguém lhe perguntava alguma coisa. Dois olhos sujos e riscados de sangue se aproximaram dos dela. Mãos lhe apertavam os braços. [...] Braços enlaçaram-lhe a cintura e Ana sentiu contra as costas, as nádegas, as coxas, o corpo duro dum homem; e lábios úmidos e mornos se lhe colaram na nuca, desceram em beijos chupados pelo cogote, ao mesmo tempo que mãos lhe rasgavam o vestido. [...] Ela soltou um grito, fez um esforço para se erguer mas não conseguiu. O homem resfolgava, o suor de seu rosto pingava no de Ana, que lhe cuspia nas faces, procurando ao mesmo tempo mordê-lo. (Por que Deus não me mata?) Veio outro homem. E outro. E outro. E ainda outro. Ana já não resistia mais. Tinha a impressão de que lhe metiam adagas no ventre. Por fim perdeu os sentidos. (VERISSIMO, 2013, p. 156-157). A busca pelo dinheiro, através do roubo, que já pode ser considerada uma forma de violência não vem sozinha. Além do ato de roubar, é notório que as personagens que representam os castelhanos fazem graça da situação, ao matar toda a família e deixar a mulher horrorizada e, ainda, ao abusar dela com o objetivo da satisfação física, por meio do sofrimento da personagem. Esta graça que citamos pode ser notada ainda mais explicitamente em outros trechos da narrativa, quando, por exemplo, o capitão Rodrigo chega à cidade de Santa Fé e com sua expressão: “nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho” (VERISSIMO, 2013, p. 209), brinca com a questão da violência antes mesmo de apresentar-se aos demais homens que compõem a cena. Como os atos violentos e a cultura de guerra já estão enraizados naquele lugar, um até então desconhecido já desafia para que a briga de fato se suceda. Sem motivos, sem inimizades, sem guerra constituída, há a ideia de duelar, pelo simples fato de duelar. Neste sentido, também a violência que não provém de batalhas institucionalizadas é representada, assim como a guerra, como uma forma de resolver todos os conflitos. Isso acontece, por exemplo, quando Rodrigo dirige-se ao coronel Amaral para avisar que ficará na cidade e o mesmo pega sua adaga, 142 convidando à briga, já que não simpatiza com o novo habitante do lugar. E é também através de duelo que o capitão resolve suas diferenças com o pretendente de Bibiana, o Bento Amaral: – Podemos resolver tudo isso amigavelmente – disse o padre, com voz um pouco trêmula. – Vamos, rapazes. No fim de contas não há motivo. Bento Amaral interrompeu-o: – Com certos tipos a gente só resolve as coisas de homem pra homem. Os outros admiravam-se da serenidade de Rodrigo, que encarava Bento a sorrir. [...] O padre Lara tinha os lábios trêmulos e sua respiração parecia mais agoniada que nunca. – Meninos, acho que podíamos ajustar tudo honradamente sem ser necessário um duelo – sugeriu. – Agora é tarde, padre! – gritou Rodrigo. – Se eu não botar minha marca na cara desse cachorro, não me chamo mais Rodrigo Cambará. [...] – Arma de fogo? – perguntou Rodrigo. – Adaga. Os olhos de Rodrigo brilharam. – É melhor. Leva mais tempo. (VERISSIMO, 2013, p. 274-277). O padre, mais uma vez aparece como a voz que questiona e tenta encontrar outra solução que não necessite perpassar por uma briga. Contudo, os dois demonstram o grande interesse no duelo, até mesmo pela escolha da arma que causará mais dor. E a tranquilidade expressa por Rodrigo evidencia, novamente, o modo como algumas das personagens da ficção tratam a violência como algo jocoso. Estes mesmos pressupostos podem ser verificados em outros dois momentos da narrativa que selecionamos como exemplo: um, em que personagens falam acerca do modo como Dr. Aguinaldo Silva, um novo morador da cidade, matou a sua esposa e o amante dela, e o outro, relativo ao enforcamento de um escravo acusado de roubo: Havia no drama um detalhe dum trágico grotesco que os maldizentes usavam como remate humorístico do caso: “O homem estava começando a tirar a roupa quando Aguinaldo saiu de baixo da cama. O infeliz nem teve tempo de dizer ai: a faca do marido rasgou-lhe o bucho”. Risadas. “No fim, acho que ele não sabia se segurava as calças ou as tripas.” Pausa dramática. “Mas tanto as calças como as tripas acabaram caindo no chão.” Novas risadas. (VERISSIMO, 2013, p. 20). Neste caso, é a voz do narrador que questiona as risadas, tratando como trágico o motivo que suscita o riso. A respeito de discursos desta natureza, Ginzburg 143 (2013) afirma ser importante este papel do narrador, uma vez que, ele mesmo, pode fazer conhecer diferentes perspectivas. No outro episódio que citamos, cujo fragmento será exposto a seguir, não é a voz do narrador que questiona de maneira mais evidente, mas existem personagens incumbidas de pensar e transmitir o horror da violência: Bolívar não respondeu. O suor fazia arder-lhe as faces recém-escanhoadas e uma dor latejante na cabeça deixava-lhe as ideias confusas. – Ele anda triste por causa do Severino – explicou Florêncio. Estavam agora os três a menos duma quadra da praça e já podiam ver o movimento das pessoas que procuravam lugares em torno da forca. Lenços, roupas e vozes alegres ao sol – aquilo parecia uma festa. [...] Um homem achava-se sentado numa pedra, alisando uma palha de milho com as costas da faca. Era o Chico Carreteiro. Ao ver o grupo o caboclo dirigiu-se a Bolívar e caçoou: – Então vamos ter hoje dois enforcamentos ao mesmo tempo, não? Mostrou os dentes escuros num sorriso rasgado. Bolívar teve vontade de atirar-se sobre ele e partir-lhe a cara a bofetadas. Cerrou os punhos, olhou duro para a frente e não respondeu. Bibiana, porém, sorriu para o carreteiro e disse: – É verdade, Chico, é verdade. – É preciso ser muito malvado pra gozar com o sofrimento alheio – observou Florêncio em voz baixa, olhando as pessoas que disputavam lugares ao redor de cadafalso. Tirou o relógio do bolso e olhou o mostrador. – E ainda falta mais duma hora! (VERISSIMO, 2013, p. 63). Assim como a guerra fora tratada como uma festa, um fandango, também aqui um ato de extrema violência, o enforcamento de um homem, é considerado como tal. Existem algumas personagens que apresentam aversão a este episódio, mas existem, ainda, aqueles que esperam ansiosamente pelo momento do enforcamento e, ainda, os que conseguem criar piadas em cima do sofrimento alheio. A violência, neste sentido, é representada como um espetáculo, no qual os expectadores assumem os mais diferentes papéis. Alguns destes papéis referem-se à presença das mulheres na obra. Contrapondo com as personagens femininas que questionam ou, pelo menos, não concordam com as atrocidades acometidas pelas guerras, como vimos que acontecia durante a revolução, existem outras mulheres que fazem parte deste ciclo violento. Para Chaves (1981), a verdadeira guerra de O Continente foi travada, principalmente, entre Bibiana, agora com mais idade e após ter vivenciado inúmeros episódios de guerras e perdas, e Luzia, a esposa do seu filho Bolívar. Sogra e nora vivem em conflito, uma desavença que inicia pela compreensão de Bibiana a 144 respeito do Sobrado onde Luzia mora com seu avô. A personagem entende que a casa pertence à família Terra Cambará, já que o terreno foi tirado de seu pai, que tinha uma pequena residência onde ela e os irmãos cresceram. Para Bibiana, casar seu neto com Luzia é o mesmo que “tomar” o Sobrado de volta, não através de uma guerra física, mas travando episódios conflituosos diários entre as duas. Esta saga de ódio é ainda ampliada quando se percebe que Luzia é doente, mas a doença da personagem também não é física. A moça sente prazer com a dor alheia. Remetendo novamente ao enforcamento do escravo, sob a perspectiva de Luzia, podemos constatar esta afirmativa: – Uma vez na Corte, quando eu era menina, vi um enforcamento. Ah! Mas foi muito mais bonito que este. Enfim, Santa Fé é apenas uma vila. Não pode se comparar com o Rio de Janeiro, é natural. [...] –Ind'agorinha eu vi tudo ali da janela – disse Luzia, parando de tocar e descansando as mãos no regaço. Seus olhos pousaram no rosto do vigário. – Vosmecê ouviu quando o pescoço do negro se quebrou? - Se ouvi? – perguntou o padre, franzindo a testa. – Quero dizer, ouviu o barulho de ossos se quebrando? O sacerdote encolheu os ombros, em dúvida. – E ele ficou de língua de fora? – Minha filha... eu... vosmecê sabe que a gente não presta bem atenção a essas coisas. Na hora se fica tão... Ora, pra falar a verdade, nem olhei quando puxaram o alçapão. Estava de olhos fechados, rezando. Luzia insistiu: – Mas depois, quando vosmecê olhou... ele estava de língua de fora? O padre voltou a cabeça para Aguinaldo e disse com um sorriso constrangido: – A curiosidade das moças de hoje não tem limites. No espírito de Winter a palavra curiosidade transformou-se em crueldade. Luzia positivamente tinha a coragem de sua crueldade. Agora a névoa se havia dissipado ao redor dela. Lá estava a Musa da Tragédia com toda a sua alma desnudada. [...] O padre Otero olhava fixamente para o seu cálice de licor. Tinha a testa franzida, o ar preocupado. – Que bicho lê mordeu, padre? – perguntou Aguinaldo. – Ficou impressionado com a coisa? – No fim de contas, não foi nenhuma festa... – replicou o sacerdote. (VERISSIMO, 2013, p. 82). A curiosidade exposta de Luzia demonstra o grande interesse da noiva de Bolívar em saber detalhes sobre o enforcamento daquela pessoa, já que ela presenciou um outro, muito mais “bonito” do que este em outra oportunidade. A personagem atribui uma qualidade positiva a um fato de extrema violência, e, para ela, o negativo desta situação seria, na realidade, a pequena dimensão que, em sua opinião, o fato estava recebendo. É mais uma vez a figura do sacerdote que questiona tanto o fato ocorrido quanto o gosto da moça por tudo aquilo que acontecia. 145 Este prazer de Luzia diante da dor alheia aparece, inclusive, quando seu avô está à beira da morte. A jovem não se afasta do homem e o observa atentamente “como se não quisesse perder um minuto sequer daquela lenta agonia. [...] Ela estava gozando aquele momento. Tinha a respiração ofegante e um brilho meio embaciado nos olhos claros” (VERISSIMO, 2013, p. 92). Em situação semelhante, quando viaja com o já marido para Porto Alegre, Luzia quer sempre ficar um pouco mais na cidade que está assolada pela cólera que mata inúmeras pessoas dia após dia: Eu andava desnorteado, desconfiava da água que bebia, das coisas que comia. Não podia dormir de noite. Sentia por todos os lados cheiro de morte, de podridão. Mas Luzia andava contente. Ficava na janela olhando as pessoas que caíam na rua. Às vezes ia pra fora pra esperar a carroça que vinha recolher os defuntos, ia olhar de perto a cara deles... Uma vez chegou a entrar numa casa onde estavam velando um morto; não conhecia ninguém mas foi direito ao caixão e tirou o lenço da cara do defunto e ficou olhando. Fazia todas essas coisas mas de noite, na cama, tremia e chorava de medo. E quando eu convidava pra vir embora, ela não queria. "Só mais uns dias, Boli" – ela dizia – "só mais uns dias.” (VERISIMO, 2013, p. 150). Este prazer pelo sofrimento alheio, representado na obra de Verissimo, pode enquadrar-se na perspectiva de Ginzburg (2013, p. 43), que explica como na literatura podemos encontrar o comportamento violento enquanto causador de prazer e satisfação. Vemos esta perspectiva quando a personagem Luzia sente satisfação no sofrimento do outro, seja através da doença que o destrói, tendo em si mesma o caráter violento, ou, pela violência causada de uns para com os outros, como no caso do enforcamento. Embora Luzia seja representada de forma a sentir este prazer de modo muito explícito, podemos entender que as demais personagens do romance, envolvidos com episódios conflituosos, também sentem prazer com a prática violenta. Os castelhanos, ao atacarem a estância buscando dinheiro, matam e violentam por prazer. Os duelos e brigas desafiadoras a qualquer momento, entre homens que ao menos se conhecem ou que não têm motivos para iniciar uma batalha antes mesmo de uma conversa também são recorrentes ao longo da narrativa. Além disso, vimos a preferência pela adaga em vez da arma de fogo, pelo prazer de ver a demora no sofrimento do outro, e o brilho no olhar do capitão 146 Rodrigo ao chegar a esta conclusão. Da mesma forma, quando observamos o modo como a guerra é representada, entendemos o quanto a revolução era importante inclusive para o divertimento de algumas das personagens. Todos estes exemplos levam à crença de que não somente Luzia, que notoriamente vibra com o sofrimento alheio, mas sim outras representações na trama apresentam a violência com o viés da satisfação. Por outro lado, vemos, diversas vezes, as figuras que surgem para questionar as práticas violentas, para inclusive, algumas vezes, propor práticas diferenciadas. Contudo, nenhuma das personagens chega a agir de modo a impor o fim efetivamente das ações violentas. Embora reflitam e até expressem opiniões contrárias às práticas conflituosas, as personagens do romance acabam conformando-se com as situações e opiniões dos demais, não apresentando atitudes em relação aos episódios desenvolvidos. Ginzburg (2013, p. 43) afirma que “a presença constante de práticas violentas em nossa história estaria associada ao fato de que existe prazer no movimento agressivo”. Se a literatura e, especificamente, O Continente, apresentam estes episódios é porque, de fato, a história da vida humana é marcada por situações deste cunho que, representados através do romance, e com o teor ficcional, ganham um novo sentido capaz de proporcionar releituras e ampliar o sentido da humanização, justamente, diante da leitura das práticas do horror. Com perspectiva semelhante, e considerando o romance de Verissimo como uma narrativa que remonta uma história, podemos relembrar a citação de Walter Benjamin (1994, p. 224), já abordada neste trabalho, que trata da articulação do passado não somente enquanto fato, mas apoderando-se do assunto para reinterpretá-lo. Desta maneira, tomamos como base os estudos acerca da representação e podemos uni-los à questão da memória, se pensarmos a história representada não unicamente a partir dos fatos como eles são, mas em maior medida, através de outros aspectos que podem contribuir com a formação de uma memória coletiva mais crítica, com novas possibilidades de reflexão. Conforme citamos anteriormente, a memória pode ser constituída, segundo Halbwachs (2006), também a partir de leituras. Embora se trate de uma memória tomada como empréstimo, passa a ser parte de uma comunidade e, assim, as percepções individuais podem, também, tornarem-se parte de um grupo maior. 147 Isso não significa que, episódios violentos e a guerra em si devam ser rememoradas a fim de enaltecer estes feitos, mas, por outro lado, esta memória que passa a fazer parte dos grupos teria como uma das funções trazer à tona uma discussão que é pertinente enquanto construção de um novo pensamento social. Neste sentido, ao abordar sobre o esquecimento em torno das recordações de Auschwitz, Adorno (1995) apresenta a ideia que aquilo que é posto deve ser contrário ao esquecimento. A partir disso, entendemos que para ser proporcionada uma reflexão através da memória perpassada pelas das obras, não é cabível que os fatos sejam atenuados. “Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu” (ADORNO, 1995, p. 136), por outro lado, é necessário que os episódios sejam expostos, não de maneira sensacionalista, mas com vistas a contribuir para a formação de uma memória coletiva que não vislumbre a glorificação de fatores de desumanização. Se a memória social é, portanto, permeada por episódios de guerra e violência, O tempo e o vento, através de O Continente, traz a possibilidade de registrar ficcionalmente alguns episódios, podendo estimular que esta memória construída coletivamente possa estar mais voltada à preocupação com o que fazer, do que simplesmente em conhecer os fatos como eles são. Diante deste assunto, Ginzburg (2012, p. 217) acrescenta que “como parte substancial de nossa memória coletiva, o cânone literário, que resguarda um patrimônio cultural identificado como referência de valores estéticos, está ainda, em grande parte, expressando os interesses da tradição patriarcal”. Entretanto, O Continente, apesar de resguardar a memória da formação do estado gaúcho, além das revoluções e violência que marcaram este território, não apresenta em seu discurso uma parcialidade diante de um ou outro lado, mas sim deixa uma abertura que permite ao leitor a interpretação diante daqueles episódios. A autora Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 39) questiona sobre por que o resgate do passado é tão mencionado hoje. E dentre suas afirmativas, acrescenta: “Pode-se escrever uma história da relação do presente com a memória e o passado, uma história da história, por assim dizer, o que já foi iniciado por vários autores”. Sendo assim, entendemos que a obra de Verissimo, muito além de resgatar o passado, faz a sua contribuição para a o resgate desta história enquanto possibilidade de reflexão para, a partir disso, tornar constituinte a memória coletiva. 148 A mesma autora escreve ainda sobre a existência de uma “memória ativa que transforma o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 59). Diante desta perspectiva, podemos ousar a tentativa de responder o questionamento que lançamos no início desta seção. A narrativa em O Continente, por um lado, trata a violência sim como algo comum. A violência, no romance, é quase inerente à vida e às atitudes das personagens, promovendo suas visões de mundo, suas vivências e as escolhas que tomam. Por outro lado, as vozes que questionam a violência e as consequências decorrentes das atitudes violentas vêm à tona para fazer pensar acerca do modo como os fatos poderiam ter sido resolvidos senão através de conflitos. Uma vez postas estas considerações, retomamos o pensamento acerca da memória coletiva enquanto transformadora do presente se relacionarmos o que nos traz a obra com os acontecimentos que permeiam o mundo ou, de modo mais específico, o Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul hoje. Da mesma forma com que se aglomeravam pessoas para assistir ao enforcamento do escravo acusado em O tempo e o vento, por exemplo, na atualidade vemos, mais do que a luta por uma sociedade diferenciada e isenta de episódios violentos, a curiosidade sobre os acontecimentos decorrentes da violência. As notícias sobre o tema, os programas sensacionalistas, por exemplo, causam ansiedade nas pessoas para saber sobre o que ainda vai acontecer, acerca do “próximo capítulo” de histórias reais, de guerras da vida diária. A literatura de Verissimo, portanto, ao trazer este questionamento, principalmente sobre as consequências de escolhas violentas, pode contribuir para que, a partir de uma história passada, sejam repensadas as ações do presente. Entretanto, não cabe somente à literatura o papel de atualizar as percepções dos indivíduos. Ainda que contribua para a formação de uma memória coletiva mais crítica, a história de guerras e violência no Rio Grande do Sul continua permeando a memória social enquanto orgulho por seus heróis que guerrearam e lutaram pela terra e por liberdade, diferente do que pudemos constatar nesta primeira parte da trilogia que analisamos, que, embora traga o aspecto vultoso dos heróis riograndenses, apresenta muito mais sobre suas falhas, sobre o seu lado desmitificado e, especialmente, sobre até onde pode levar os seus anseios e práticas de guerra e violência. Ainda diante da memória enquanto constituinte de modificações no presente, podemos conferir, mais uma vez, as percepções de Adorno (1995, p. 46): “No fundo, 149 tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se permanecemos no simples remorso ou se resistimos ao horror com base na força de compreender até mesmo o incompreensível”. É na atualização de fatos que, cultural e naturalmente, poderiam fazer parte de determinados grupos, que se torna possível a compreensão hoje e, a partir disso, a modificação na forma de identificá-los, tratando da guerra e violência não como institucionalizado, mas classificando-os como valor negativo, a fim de trazer à tona o horror proporcionado por estes atos ao invés de permanecer na impassibilidade. Ao percebermos o modo como acontecem as comemorações das guerras e as rememorações aos ditos heróis, poderíamos, então, definir como atos incompreensíveis, considerando que a violência não é capaz de proporcionar benefícios aos indivíduos. Mas se os episódios históricos que geram estas atitudes são os verdadeiros passíveis de incompreensão, através do resgate na literatura é possível que se compreenda de forma mais adequada o que acontece ainda, atualizar no presente o que deu origem aos acontecimentos do passado. A memória coletiva que O Continente busca resguardar é justamente formada a partir de uma releitura atualizada deste passado, que pode ser mais uma vez lido, sob o viés ficcional, e sob diferentes pontos de vista, para que cada um dos receptores possa constituir suas percepções acerca daqueles fatos e ainda, compor as suas inquietações e indagações no presente. Ao considerarmos a ideia de Verissimo, através de O tempo e o vento, poder ir além dos materiais didáticos escolares a respeito das guerras e da formação do estado do Rio Grande do Sul, podemos concluir que o modo dicotômico como as duas guerras e a violência são representadas, pode sinalizar um próprio questionamento do autor a respeito destes fatores na sociedade. Ainda que predominem no romance personagens que têm a guerra e a violência como inerentes ao seu modo de vida, são apresentadas, durante o romance, as consequências destas escolhas, como mortes, famílias destituídas, violência e perda de valores positivos. Além disso, existem outras vozes que surgem com uma visão contrária acerca dos elementos apresentados. Contudo, parece-nos que o ciclo da trilogia, que perpassa pelas gerações de homens que lutam na guerra e de mulheres que os esperam voltar, não é o único que está presente na narrativa. Também existe um ciclo que perfaz a pacificação, já que as personagens que questionam não parecem sair do seu lugar: refletem, 150 sugerem, mas as atitudes para a modificação das realidades são poucas ou quase nulas. Embora sejam levantadas possibilidades de se fazer diferente ou, ainda, existam discussões sobre os acontecimentos violentos, a conformidade é um fator predominante, como se guerra e violência fossem inerentes à saga da família, da cidade, do estado e do país. Entre os ciclos das guerras e da conformidade, existe uma linha tênue capaz de levar o leitor a torcer pelos ditos heróis ou, a refletir sobre como os valores da pacificidade poderiam se sobressair na sociedade, não somente enquanto sul-riograndense, mas, principalmente, considerando a humanidade. 4 A IMAGEM DA GUERRA E DA VIOLÊNCIA NO DISCURSO FICCIONAL DO FILME O TEMPO E O VENTO 4.1 O tempo e o vento: cinema, história e vida social Não é incomum obras literárias serem referência para a produção cinematográfica. Primeiramente sucessos entre os leitores, livros considerados Best Sellers ou referências clássicas da literatura passam do papel para os telões, transformando as palavras e a imaginação em imagens em movimento, sem, necessariamente, serem absolutamente fiéis à obra que lhes deu origem. Além de O tempo e o vento, objeto de análise deste trabalho, que foi adaptado ao cinema por duas vezes, em 1985 e 2013, citamos como exemplo outras obras literárias que embasaram produções cinematográficas: Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1591), foi adaptada ao cinema em 1968, por Franco Zeffirelli, e novamente em 1998, quando o diretor Baz Luhrmann elaborou uma versão mais moderna de adaptação do romance shakespeariano. Em 2013, a obra foi mais uma vez amoldada ao cinema, desta vez dirigida por Carlo Carlei e com diversas modificações nos diálogos entre as personagens. Outro exemplo de literatura que embasou um filme é o brasileiro O Primo Basílio, romance de Eça de Queirós publicado pela primeira vez em 1878 e adaptado para as telas em 2007, com direção de Daniel Filho. Nenhum destes livros citados e outros tantos que foram base para produções fílmicas são fielmente reproduzidos pelo enredo do cinema. Primeiro, porque a origem e a formatação de cada uma destas obras se dão de maneira diferenciada: na literatura, considerando a leitura através das páginas de um livro e, no filme, considerando as imagens a serem repassadas aos espectadores. Além disso, uma obra literária pode gerar diferentes interpretações em cada um dos leitores, inclusive aos diretores de cinema, responsáveis por adaptá-las a uma nova narrativa. Nesta perspectiva, Robert Stam (2008) certifica que a fidelidade do filme à obra nem deve ser uma pretensão dos produtores, conforme podemos constatar em sua afirmativa: 152 A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável. (STAM, 2008, p. 20). Considerando esta ideia, vemos a narrativa cinematográfica apoderando-se de pertinentes temas explorados nos romances sem, contudo, ter a preocupação de manter-se igual ao objeto que lhe deu origem. Os filmes são, portanto, novas obras que, embora estejam embasadas em determinados livros, propiciam atrativos diferenciados, não superiores e nem inferiores, mas que possibilitam novas formas de leitura, com diferentes elementos que compõem esta nova abordagem. Desta maneira, portanto, não se deve esperar ver no filme a obra literária em sua forma integral e, assim, destacamos que o comparatismo interessa-se justamente pelas diferenças entre as narrativas, muito mais do que pela semelhança entre as obras. Considerando as ideias de Carvalhal (2003) expostas no início deste trabalho, recordamos ainda a importância da verificação da relação entre dois ou mais discursos, a fim de ampliar as possibilidades de entendimento sobre um determinado tema. Portanto, não podemos pensar em uma obra como melhor ou pior do que a outra, pois tratam-se de linguagens e modos diferentes de comunicar os conteúdos. Cabe, portanto, comparar estes discursos, através de suas diferenças, visando buscar a completude do entendimento dos temas para se chegar a resultados concretos que possam colaborar não somente para a interpretação dos fatos, mas, principalmente, contribuindo para a constituição de novos saberes e perspectivas. Assim sendo, é necessário apontar algumas das peculiaridades do texto a ser comparado, sendo, neste caso, o discurso cinematográfico. Ao debater a essência do cinema, Stam (2011, p. 49) afirma que, desde o seu surgimento, os estudiosos buscam pelo seu cerne, ou seja, atributos específicos desta forma de expressão: “Alguns dos primeiros teóricos reivindicaram um cinema não contaminado pelas outras artes”, afirma o autor, explicando que outros tratam com orgulho a questão da proximidade do cinema com as demais artes. Desta 153 maneira, compreendemos que a especificidade dos filmes se mantêm ainda que este esteja aliado com outros objetos da ficção. Mesmo que não reproduza fielmente as obras, o cinema tem a oportunidade de atualizá-las e, a partir disso, trazer também uma nova proposta de leitura sob determinado tema, considerando, especialmente, o tempo de transação entre as duas formas de narrativa, aspecto também abordado por Stam (2008) quando o autor destaca que a questão entre cinema e literatura perpassa justamente pelo espaço e tempo. Partindo desse pressuposto, entendemos que o novo formato de narrativa, apresentado inicialmente por um romance literário e, atualizado posteriormente para o cinema, depende também da época em que o novo enredo se desenvolve e é apresentado. Esta perspectiva pode corroborar a ideia de um não julgamento de uma obra em relação a outra uma vez que consideramos a época em que cada uma delas é desenvolvida. Sobre a representação dos temas ou especificamente de uma obra da literatura através do cinema, destacamos que ela se dá imageticamente, tendo a câmera e as imagens captadas por ela, como as principais ferramentas, aliadas ao modo como as filmagens são realizadas, os planos e enquadramentos optados pelos diretores e produtores, a edição e, é claro, a questão do som e outros fatores estéticos. Jacques Aumont (1995, p. 30) ajuda a compreender isso ao tratar da perspectiva abordando-a como “a arte de representar os objetos em uma superfície plana de modo a que essa representação seja semelhante à percepção visual que se pode ter desses mesmos objetos”. Sendo assim, através das imagens comunicadas por um filme, há também a busca por transmitir ao espectador, em maior medida, a impressão do real, de que os ambientes, sofrimentos, emoções e lugares, sejam verídicos. A escolha dos planos, trilha sonora, de imagens em detrimento de outras, formam o todo representativo das ideias a serem transmitidas. Sendo assim, as ferramentas utilizadas na narrativa cinematográfica levam aqueles que assistem aos filmes a entender as imagens como reais, mesmo que por pequenos instantes. Ainda que o espectador tenha a consciência de que aquilo que é transmitido trata-se de ficção, conforme citado por Aumont (1995), é possível que haja uma reação a partir da visualização de um filme e, dessa maneira, podemos destacar a importância das escolhas no momento de se veicular imagens que identificam determinados temas, uma vez que esta ideia do real proporciona o 154 entendimento de situações e, assim, a reconstrução de valores e ideias, especialmente quando se trata de uma transposição de uma obra para outra, de outra linguagem. O mesmo autor traz a ideia de “cinema ‘narrativo e representativo’” (AUMONT, 1995, p. 26), filmes que contam uma história fictícia que, materializada pela representação, acentuam o conceito de real. Estas produções, segundo o estudioso, tratam-se da maioria da produção mundial são uma modalidade de cinema muito criticada especialmente por aqueles que consideram a possibilidade de que os espectadores possam confundir a ficção com ficção com o real. O filme O tempo e o Vento, baseado na obra literária de Erico Verissimo, de modo mais específico, em sua primeira parte da trilogia, O Continente, poderia, então, ser um exemplo de cinema representativo se considerarmos que aborda fatos que aconteceram no Brasil e no Rio Grande do Sul, especialmente os episódios de guerras, contudo, trata-se de uma ficção, retratando estes e outros acontecimentos de viés histórico, a partir de imagens atuais, de personagens e histórias que não aconteceram veridicamente. Considerando que a ficcionalidade está presente na narrativa fílmica, o modo como se prioriza a representação de alguns acontecimentos em relação aos demais, é também fator importante no que diz respeito as formas de interpretação das informações recebidas através da película. Aumont constata que há duas atitudes principais acerca da representação fílmica, “os que fazem da representação um fim (artístico, expressivo) em si e os que a subordinam à restituição o mais fiel possível de uma suposta verdade, ou de uma essência, do real” (AUMONT, 1995, p. 46). A partir de uma primeira constatação do objeto de análise deste trabalho, o filme O tempo e o vento não podemos enquadrá-lo nesta segunda ideia apresentada pelo autor, uma vez que as cenas que poderiam trazer a essência de episódios que marcaram a história, limitam-se a apresentar outras temáticas, que circundam muito mais no meio da expressão artística, como poderemos exemplificar, posteriormente, através das análises. Para iniciar esta discussão, apresentaremos a proposta do filme O tempo e o vento, de Jayme Monjardim, considerando-o como produção diferente da obra literária. O longa-metragem roteirizado por Letícia Wierzchowski, Marcelo Pires e Tabajara Ruas, traz, em 127 minutos, a atuação de Thiago Lacerda, como capitão Rodrigo, Cleo Pires, como Ana Terra, Marjorie Estiano e Fernanda Montenegro como Bibiana, em duas fases diferentes de sua trajetória, e Paulo Goulart como 155 coronel Ricardo Amaral Neto, além de outros diversos atores que interpretam as personagens levando os mesmos nomes dos da obra literária. A estreia aconteceu uma semana antes no estado do Rio Grande do Sul do que nos demais estados brasileiros. A primeira exibição aconteceu no dia 20 de setembro, feriado para os gaúchos, data em que se celebra o fim da Revolução Farroupilha. Conforme informações da Globo Filmes (2013), coprodutora do longa, mais de 65 mil pessoas assistiram ao filme no primeiro fim de semana do lançamento nos cinemas gaúchos. Exibido em 33 salas, a produção reuniu uma média de dois mil espectadores por sala, um número alto, segundo a produtora, até mesmo considerando produções internacionais. Além disso, a média de O tempo e o vento superou a de todos os demais filmes exibidos no Brasil no mesmo fim de semana. De acordo com a listagem dos filmes brasileiros e estrangeiros lançados em 2013, desenvolvida pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA e Agência Nacional do Cinema – Ancine (2013), O tempo e o Vento ocupa a 56ª colocação – em termos de renda bruta e público – de 397 filmes listados. Distribuído por Downtown filmes e Paris filmes, o longa de Jayme Monjardim, ainda segundo a Agência, foi exibido em 217 salas com 711.435 espectadores e uma renda bruta de mais de R$ 7,7 milhões. O filme apresenta como mote “A maior história de amor de todos os tempos”. Deste conceito motivador para a venda da ideia do filme, já podemos inferir o tema destaque na obra: o romance. A história de amor de Ana Terra (Cléo Pires) e o índio Pedro Missioneiro (Matheus Costa) é o que parece nortear o início desta narrativa cinematográfica, que segue com a sequência da família Terra que se funde com a Cambará, para, a partir de então, evidenciar a história de amor de Bibiana Terra (Marjorie Estiano e, posteriormente, Fernanda Montenegro) e capitão Rodrigo Cambará (Thiago Lacerda), episódios que serão mais detalhadamente analisados na próxima seção deste capítulo. Embora o romantismo seja fator que circunda a maior parte do enredo, o filme inicia referindo-se à Revolução Federalista, através de uma tela preta com a seguinte escrita: 156 De 1893 a 1895, as terras do Sul do Brasil serviram de cenário a violentos combates entre facções políticas opostas. De um lado, os republicanos defendiam o presidencialismo. De outro, os federalistas buscavam a implantação de um regime parlamentarista. Inicia-se uma guerra civil que deixa como saldo mais de dez mil mortos. Em Santa Fé, os Terra-Cambará e os Amaral lutam pela posse da cidade. (O TEMPO E O VENTO, 00:01:56 – 00:02:34, 2013). E é neste cenário que se dá início ao filme, após uma imagem que representa uma paisagem tipicamente gaúcha, com o sol de pondo, um rio, e cavalos galopando. O enredo remete ao Sobrado – residência dos Cambará –, local onde transcorre a trama que envolve a Revolução Federalista. Neste ambiente, encontra-se a personagem idosa de Bibiana, matriarca da família e narradora do filme. Já de início é apresentado Licurgo (Marat Descartes), que como chefe do Sobrado, mas também dos republicanos, busca aconselhar-se sobre o que fazer uma vez que sua esposa necessitaria de um médico para cuidar-lhe da saúde, enquanto a guerra acontece e não é possível render-se para que o orgulho não seja ferido. Este e outros dramas que acontecem dentro do Sobrado enquanto se dá a Revolução Federalista são intercalados com as histórias que Bibiana relembra em seu quarto, contando-as para o espírito do capitão Rodrigo, que veio lhe visitar. Quando ele, que é uma das personagens principais do filme, chega a casa, desce de seu cavalo com imponência, munido da espada e de um violão a tiracolo, vestido com traje típico gaúcho, o chiripá. Contudo, como não é o capitão, mas sim sua alma que visita o Sobrado, nenhum dos soldados é capaz de enxergá-lo, somente Bibiana. Ao acordar e ver seu esposo, a personagem não se assusta, com tranquilidade sorri e passa as mãos em sua face: “– Rodrigo!. – Não me esperava, minha prenda?. – Como conseguiu passar por eles?. – A bala que me procurava já me alcançou há mais de 50 anos” (O TEMPO E O VENTO, 00:08:15 – 00:08:50, 2013).” Bibiana, ao dizer “eles”, referia-se a todos os soldados armados à postos em cada uma das janelas e entradas do Sobrado. Antes de dar início à narrativa de O tempo e o Vento, a personagem ainda explica para o capitão qual é a guerra que se sucede, momento em que Rodrigo, mesmo em espírito, procura agir, embora seja detido por Bibiana: “– Vosmecê sabe que um Terra-Cambará nunca se entrega. – Um Cambará macho não se entrega nem depois de morto” (O TEMPO E O VENTO, 00:11:50 – 00:12:01 2013). 157 Embora se trate de uma produção diferente, o apreço pela guerra e o orgulho em destacar-se pelas lutas são evidentes desde o início do filme, assim como na obra de Verissimo. Contudo, poderemos verificar, através das análises, se nesta forma de expressão também surgem as vozes questionadoras e de que maneira as personagens lidam com cada uma das situações de guerra e violência. A fim de identificarmos estes fatores, consideraremos também alguns elementos específicos do cinema que, no romance literário, fica muito mais a cargo da imaginação de cada um dos leitores enquanto que, na forma audiovisual, a escolha das imagens fica a cargo dos produtores, cabendo aos espectadores a decodificação do ambiente já constituído. Para Hugo Munsterberg (2003), este fator perpassa muito pela percepção e atenção. Conforme o autor, devemos acompanhar aquilo a que assistimos com a mente munida de ideias, que, segundo o estudioso: [...] Devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de experiências anteriores, mobilizar sentimentos e moções, atiçar a sugestionalidade, gerar ideias e pensamentos, aliar-se mentalmente à continuidade da trama e conduzir permanentemente a atenção para um elemento importante e essencial – a ação. Uma infinidade desses processos interiores deve ir de encontro ao mundo das impressões. (MUNSTERBERG, 2013, p. 27). A partir disso, compreendemos que, além dos recursos cinematográficos e as escolas pelas quais perpassaram os filmes, o conteúdo e as mensagens transmitidas são também passíveis de interpretação do espectador, que pode ir além dos limites das impressões, para buscar entender e atribuir significados que gerem reflexão. Entretanto, estas possibilidades não podem ser excluídas das produções em questão, esta possibilidade de atribuição de sentido é também engendrada pela forma como os conteúdos e imagens são transmitidas. Estudioso do cinema, Sergei Eisenstein (2002), ao escrever o livro O sentido do filme, destaca a necessidade de se analisarem os fenômenos audiovisuais, avaliando os métodos utilizados para a constituição das realidades apresentadas através das telas. Em O tempo e o vento, há uma notável preocupação em se demonstrar o ambiente que tradicionalmente remete ao sul do país. Diversas vezes as cenas do enredo são intercaladas por imagens que mostram pôr e nascer do sol no horizonte de um vasto campo, cavalos galopando, rios e 158 riachos, além de rodas de churrasco e chimarrão que evidenciam um cenário típico gaúcho. A partir disso, o filme deixa evidente ao espectador qual o espaço onde transcorre a narrativa, ao tempo em que ratifica a ideia estereotipada deste ambiente, pela presença de elementos que são transpostos, para as mais diversas formas artísticas, como motivo de orgulho para o povo rio-grandense. Esta alternativa é um meio de identificação, por parte da população sulina, mas, principalmente, uma forma de fazer entender em que espaço se deram os acontecimentos expostos pelo filme. Conforme Jean-Louis Baudry (2003), as imagens escolhidas são como fatias de realidade, e esta afirmativa se comprova na medida em que o espaço de gravação do objeto de nosso estudo foi justamente o cenário rio-grandense. Segundo o mesmo autor, quanto mais imagens são captadas de diferentes ângulos, há uma multiplicação dos pontos de vista, ou seja, um maior entendimento acerca do espaço a ser mostrado. Isso se verifica no filme em estudo ao percebermos que as paisagens e o espaço, tão constantemente apresentados, aparecem de diferentes formas, ora com plano aberto, ora com elementos em primeiro plano, por algumas vezes evidenciando os cavalarianos e, em outras cenas, com a valorização na própria paisagem. As constatações de Baudry (2003) são pertinentes não unicamente quando tratamos da paisagem sulina, mas também através de outros elementos. Há em O tempo e o vento, outras diversas formas de caracterização da tradição gaúcha, como as roupas das personagens, as mulheres com vestidos compridos e armados, homens com bombachas, chiripás e ponches, além de elementos como o chimarrão, o fogão à lenha, velas e uma constante menção ao frio, inclusive com imagens de geada. Diante disso, também percebemos uma forte caracterização através das falas das personagens, carregadas de sotaque gaúcho. Podemos verificar na fala de Bibiana uma das referências ao inverno rigoroso e expressões tradicionais do sul, quando conversa com capitão Rodrigo: “É que a noite aqui custa mais a passar do que o dia. E noite braba de inverno então...” (O TEMPO E O VENTO, 00:55:37 – 00:55:46, 2013). Outras cenas que identificam este espaço são os momentos de festa com músicas e danças típicas sul-rio-grandenses. Os peões e prendas, como são chamados homens e mulheres no contexto da tradição gaúcha, dançam músicas como Cana-verde, Balaio e Tirana do Lenço, enquanto outras personagens ficam ao 159 redor sorrindo e batendo palmas para acompanhar as canções. Estas danças apresentadas no filme como tradicionais do século XIX fazem parte, ainda hoje, de um repertório de coreografias encenadas nos Centros de Tradições Gaúchas (CTG’s), o que também auxilia na compreensão deste cenário para aqueles que identificam estas danças enquanto pertencentes à cultura gaúcha. Imagem 3 – Paisagem tradicionalista no filme O Tempo e o Vento Fonte: O Tempo e o Vento – 01:13:29 Contudo, além destes episódios alegres, são expostas no longa cenas de guerra, adagas quase como parte da vestimenta e momentos em que aparecem explicitamente estas espadas ferindo as personagens consideradas inimigas. Estes são momentos que também atraem o olhar para a narrativa fílmica em questão. Segundo Munsterberg (2003, p. 28) “o foco da atenção é dado pelas coisas que percebemos”, aquilo que faz mais barulho, que brilha ou é mais raro, atrai a atenção involuntariamente, e isto acontece no filme nas cenas de batalhas, quando há o brilho e barulho das explosões, por exemplo. O autor explica de que forma estas cenas chamam a atenção do espectador. Automaticamente, a mente se volta para o local da explosão, lemos os anúncios luminosos que piscam. Sem dúvida, o poder de motivação das percepções impostas à atenção involuntária pode advir das nossas próprias reações. Tudo o que mexe com os instintos naturais, tudo o que provoca esperança, medo, entusiasmo, indignação, ou qualquer emoção forte assume o controle da atenção. Mas, embora este circuito passe pelas nossas respostas emocionais, seu ponto de partida fica fora de nós, o que caracteriza a atenção do tipo involuntário. (MUNSTERBERG, 2003, p. 2829). 160 Deste modo, compreendemos que as escolhas das imagens transmitidas através de O tempo e o vento podem ser motivadoras na detenção da atenção involuntária. As cenas, uma vez que são suscitadoras de curiosidade, para aqueles que não são familiarizados com a tradição sulina, geram identificação ou questionamentos, por parte dos gaúchos, além de abordar a emoção de ambos, com os mais diferentes tipos de exibições. Além disso, todos esses fatores estão atrelados às trilhas sonoras que compõem esta obra cinematográfica. As músicas8 que acompanham as cenas em alguns momentos são de característica romântica, especialmente quando são exibidas imagens de Bibiana com o capitão Rodrigo ou, ainda, quando a personagem que narra a história relembra fatos que a emocionam. Em outras passagens a trilha sonora é de cunho mais marcante/expressivo, com tom de suspense, como ocorre especialmente nos episódios de guerra, quando as batalhas estão em evidência. Há, ainda, a presença de melodias com características mais tristes, que acompanham episódios de enterros e más notícias. Outras trilhas sonoras ainda são perceptíveis no longa, aparentemente com o objetivo de manter um fundo musical para as situações exibidas. Munsterberg (2003) já adianta que o interesse do espectador não se limita apenas às imagens, que, embora sejam consideradas as mais importantes neste processo, vêm acompanhadas pelo som, este, que também perpassa, obviamente, por uma escolha, conforme explica Aumont (1995, p. 44): “o som não é dado ao ‘natural’ da representação cinematográfica”. Esta afirmativa nos instiga a refletir o quanto cada detalhe desenvolvido para a narrativa fílmica poderá interferir naquilo que analisaremos enquanto constituição de memória social construída a partir do discurso de O tempo e o vento. 8 Com trilha sonora original de Alexandre Guerra, as músicas foram gravadas especialmente para o longa, com vistas a percorrer a história contada também com trajetória musical, conforme explicou o próprio responsável em um vídeo disponibilizado no canal oficial do O tempo e o vento no YouTube. Gravadas pela Orquestra Sinfônica de Budapest, as músicas que fazem parte do longa são: Liberdade a vento, História de Pedro índio, Ataque à missão, Aparição do capitão Rodrigo, Ana Terra Vairações, Tema Pedro misterioso, Devolvendo a adaga, Morte de Pedro índio, Morte mãe Ana Terra, Depois do ataque castelhano, Partida de Ana Terra, Lembranças de Ana Terra, Batalha, Passagem de tempo Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo, Beleza triste, Um capitão nervoso, Guerra Farroupilha, Romântico Rodrigo, Enterrando capitão Rodrigo, O Sobrado, Uma valsa para Luzia, Rendição e paz, O tempo e o vento – parte final e, ainda, a música Stone Walls, interpretada por Maria Gadú. 161 A partir destas primeiras constatações acerca do modo como se constrói a narrativa fílmica de O tempo e o vento, abordamos os dois temas norteadores deste trabalho: guerra e violência, buscando identificar de que maneira as imagens das guerras Farroupilha e Federalista são apresentadas aos espectadores e, ainda, como a violência é retratada a partir desta forma de expressão ficcional. 4.2 A espetacularização da violência na narrativa fílmica No filme O tempo e o vento, podemos verificar o modo como hoje, século XXI, a narrativa sobre as revoluções Farroupilha e Federalista é transposta ao discurso ficcional, desta vez, pelo viés fílmico. Além disso, observaremos como, neste século, a violência vivenciada há 200 anos é representada. Ambos os elementos desta pesquisa já foram representados não-ficcionalmente, através do discurso jornalístico e, um século depois, pelo do romance de ficção escrito por Verissimo. Com essa transição temporal, em que a sociedade se modificou, os valores se alternaram – e continuam se transformando –, as guerras ainda acontecem, embora não no mesmo formato e tampouco no estado gaúcho, e a violência toma proporções avassaladoras à medida que a humanidade evolui. Além disso, narrativas ficcionais têm a possibilidade de reconstruir e transmitir o passado de forma mais reflexiva para que seja possível a relação com o atual com vistas à humanização e ao enfrentamento de situações conflitivas que necessitam ser combatidas. Ginzburg (2013) afirma que o fato de a violência ser considerada como condição de sobrevivência por determinados grupos sociais requer um amplo debate. O autor comenta que “na perspectiva atual, com a difusão de correntes de pensamento favoráveis aos direitos humanos, a tendência a acentuar o interesse por condições pacíficas de sobrevivência deveria ser priorizada” (GINZBURG, 2013, p. 102). Em um contexto mundial que não exclui a guerra e a violência como forma de resolução dos problemas, é oportuno repensar a situação de paz enquanto valor 162 fundamental ao ser humano. A partir da narrativa ficcional que faz a releitura de episódios de guerra e violência que aconteceram no passado, seria de grande relevância a utilização de um enredo que propiciasse ponderações acerca destas temáticas. Entretanto, ao considerar a questão do consumo, ou seja, a forma como o conteúdo pode atingir a grande massa, alguns assuntos passam a ser tratados de forma não tão reflexiva quanto atrativa, aproximando-se do conceito de espetacularização. Cenas violentas, imagens de guerra, paisagens que remetem a uma identificação e histórias de amor são alguns dos fatores que, por si só, prendem a atenção do público receptor, ainda que não tenham como objetivo propiciar uma nova forma de entendimento sobre aquilo que é transmitido. Guy Debord (2003), que definiu sociedade do espetáculo enquanto a relação social entre as pessoas transposta em imagens, aborda este conceito, ainda, considerando especialmente o entretenimento, ou seja, situações são representadas muito mais com objetivo de proporcionar momentos de lazer do que propriamente de reflexão. O autor afirma; Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à realidade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente. (DEBORD, 2003, p. 10). Através destas idéias, podemos inferir que o espetáculo seria justamente a realidade invadida pela ficção, a presença de novos elementos que tornam fatos reais mais atrativos enquanto forma de entretenimento e, com isso, propiciando maior adesão. Isso quer dizer que um filme não representa fatos verídicos por si só, e tampouco é esta a sua função. Além disso, uma narrativa ficcional, normalmente, apodera-se de enredos que auxiliam a convidar o imaginário social a assistir, rever e comentar. A espetacularização do real é uma via de mão dupla se considerarmos o entendimento de Debord (2003), tendo em vista que o próprio espetáculo, posteriormente, configura-se como parte do real, imerso na vivência de realidade. 163 Isso quer dizer que o ficcional, o tema espetacularizado, passa a fazer parte da convivência real, seja por meio de conversas ou mesmo pela interferência pessoal que uma narrativa é capaz de provocar, no sentido de trazer à tona reflexões mais ou menos relevantes. O autor ainda relata que “onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico” (DEBORD, 2003, p. 13). É claro que não podemos relativizar a tomada de consciência a partir de um discurso transposto em imagens, contudo, avaliando a perspectiva do estudioso, compreendemos a importância da utilização de novos elementos que contribuem para o ato de contar uma história, que não apenas os reais, ou seja, a possibilidade de incrementar o discurso com vistas a suscitar releituras das situações, conforme já abordamos anteriormente. A partir das considerações feitas até aqui, iniciaremos a discussão em torno das cenas do filme O tempo e o vento, considerando as personagens, seus discursos, o ambiente/cenário e, em determinadas circunstâncias, o tipo de trilha sonora utilizada para a constituição das situações. A técnica cinematográfica não será abordada como foco nesta análise. Em um primeiro momento, abordamos o modo como a violência é demonstrada através deste longa, sem atrelar esta temática com as cenas das revoluções, que serão discutidas de forma mais ampla na próxima seção deste capítulo. As cenas de violência em O tempo e o vento, versão cinema, estão muito atreladas às guerras, que analisamos na seção subsequente deste capítulo. Entretanto, a constituição de episódios brutais ocorre também, assim como no romance literário, vinculada a outras questões que não as batalhas civis. Quando a personagem Bibiana começa a narrar como inicia a saga de sua família, os primeiros relatos dizem respeito à fuga de uma índia grávida que percorreu quilômetros até chegar aos Sete Povos das Missões, onde faleceu, mas antes disso, deu a luz ao índio Pedro, que aparece ainda criança brincando e entoando cantigas religiosas junto ao coral de crianças do povoado. Para referir-se a tal circunstância, Bibiana conta: “– Enquanto meu avô Pedro crescia sob os cuidados do padre Alonso, havia paz nos Sete Povos das Missões” (O TEMPO E O VENTO, 00:15:14 – 00:15:21 2013). Entretanto, o capitão Rodrigo que, em espírito, 164 escuta as recordações, pronuncia sorrindo: “– Paz é uma coisa que as gentes daqui desconhecem, Bibiana” (O TEMPO E O VENTO, 00:15:22 – 00:12:26, 2013). À medida que Bibiana tenta recordar um período em que houve paz, o capitão retoma a informação que confirma a presença constante da violência na vida das personagens do romance. A paz, que deveria ser inerente ao ser humano, seu convívio com os demais e os valores pessoais e coletivos, deixa lugar para a violência e chega a ser tratada ironicamente, já que Rodrigo inclusive sorri para constatar esta triste realidade. E as cenas que seguem no filme não são diferentes, pois, na sequência, o mesmo povoado aparece sendo atacado pelo exército de Portugal, com imagens de fogo, pessoas gritando e fugindo e uma trilha sonora de tom fúnebre, que anuncia o fim de uma população. Depois destas cenas, exibidas em imagens e narradas pela personagem Bibiana, é o momento de iniciar a história acerca da família Terra, quando Ana encontra o índio Pedro sangrando no riacho próximo da residência de sua família, em virtude de um ataque contra ele. O fato de a violência estar incorporada no contexto das personagens fica mais uma vez evidente se considerarmos que, em nenhuma oportunidade, a ênfase está no modo como o índio foi agredido ou os motivos que o deixaram tão ferido, com uma bala de arma de fogo no ombro. Desde o instante em que a família ajuda o ferido, o foco está no modo como ele passou a ser útil para ajudar no trabalho diário e, em especial, o romance secreto com Ana Terra. O sinal de confiança é demonstrado à personagem justamente através de seu punhal, mais um símbolo que remete a um espaço carente de pacificidade. Ao perceber que Pedro não era uma má pessoa, ainda sem saber das relações que mantinha com a filha, Maneco Terra, o pai de Ana, devolve-lhe o punhal encontrado no dia em que o índio apareceu, punhal que depois é passado de geração em geração, assim como o modo violento que marca a trajetória da família. Muito semelhante ao modo como é exposto no livro O tempo e o vento, a jovem Ana Terra conta ao índio que está grávida. “– Pedro, vamos embora daqui. – Tarde demais. – Se meu irmão e meu pai descobrem eles nos matam. A honra da família é o mais importante. Vamos embora daqui. – Tarde demais. Vou morrer” (O TEMPO E O VENTO, 00:33:12 – 00:33:39, 2013). E como sinal de segurança, ele entrega justamente o punhal para a companheira, enquanto Bibiana narra: “– O velho Maneco Terra quis vingar a honra da família. E a honra só se lavava com sangue” (O TEMPO E O VENTO, 00:35:10 – 00:35:17, 2013). A maneira como isto é 165 exposto parece não causar espanto e tampouco tristeza, já que a voz firme da narradora e a conformidade das personagens da cena, neste momento, mostram o modo inevitável de se fazer justiça, mesmo em um ambiente interiorano, longe de tudo. Pedro é morto no filme ao mesmo tempo em que Ana Terra traz ao mundo seu filho, chamado pelo mesmo nome. As cenas dos irmãos matando e enterrando o índio são intercaladas com os gritos da mãe e o nascimento da criança. Esta maneira encontrada pelo roteirista para explicitar a dor deste momento é talvez um dos mais marcantes no longa-metragem, considerando a relação do espectador com as personagens. O episódio da morte é amenizado pelo efeito da sombra e não diretamente exibido, assim como não aparece sangue ou outros elementos que levariam a espetacularização, em maior medida. Sendo assim, este momento do filme traduz a ideia da violência enquanto fator negativo, gerando o sentimento de piedade, o anseio de que a história tivesse tomado outro rumo. Imagem 4 – Morte do índio Pedro Fonte: O tempo e o vento - 00:35:41 A percepção pode ser semelhante no momento em que há o ataque dos Castelhanos à estância dos Terra. Mas, neste aspecto, a revolta pode aparecer a partir de imagens bastante nítidas, não há omissão de situações: existe uma trilha sonora de muito suspense, cavalos guinchando, e a morte das personagens com tiros provenientes dos revólveres dos Castelhanos, com Ana Terra observando as cenas e, posteriormente, sendo violentada sexualmente, momento em que há destaque em seus gritos e no rosto daqueles que a molestam. Após esta cena, 166 aparecem os destroços do que era a casa da família, e Ana Terra, que anda vagarosamente com as roupas rasgadas e queimadas, observando os corpos dos seus familiares pelo chão e chorando, até que vai ao encontro de seu filho que estava escondido. Outra cena de violência no filme é evidente já com a presença do capitão Rodrigo, quando a personagem chega à cidade de Santa Fé com ar imponente e adentra a venda através de imagens que perfazem quase que com fidelidade a narração literária, inclusive nos diálogos muito próximos. Apresentando-se como quem veio de muitas guerras, sem um destino certo, as falas de Rodrigo remetem ao contexto violento, como podemos verificar nas seguintes pronúncias: “– Estou cansado de pelear, não quero pegar em arma por pelo menos um mês. Vamos, companheiro, um homem não briga de valde” (O TEMPO E O VENTO, 00:57:56 – 00:59:17, 2013). A primeira frase, referindo-se ao tempo em que não deseja guerrear, a personagem fala enquanto sorri, já, na segunda parte de sua exclamação, Rodrigo aparece com expressão bastante séria, como que considerando a gravidade de uma briga sem fundamentos. Estas formas de comunicar conotam uma contrariedade de pensamentos do capitão, que, por um momento, trata da guerra como algo corriqueiro, considerando o período de um mês como tempo suficiente para descansar da utilização de armas e, logo em seguida, demonstra-se irritado por não querer brigar sem motivos. O novo integrante da fictícia cidade também se orgulha: “– Ainda trago nas ventas o cheiro de sangue” (O TEMPO E O VENTO, 01:01:03 – 01:01:07, 2013). Na maioria destas cenas em que o foco do filme se dá na chegada de Rodrigo a Santa Fé, a câmera está focada em primeiro plano no ator. Munsterberg (2003, p. 47) afirma que o close-up “acentua ao máximo a ação emocional do rosto, [...] onde a raiva e a fúria, o amor ou o ciúme, falam em linguagem inconfundível”. Este é um recurso bastante utilizado em todo o filme O tempo e o vento, entretanto, acentua-se quando as cenas são voltadas para o capitão Rodrigo, corroborando a transmissão da ideia da personagem enquanto protagonista, dotada de heroísmo por seus feitos, já que suas emoções e expressões passam a ser mais valorizadas na trama. Seguindo nesta mesma linha, constatamos que, a partir do momento em que inicia a sua participação no filme enquanto capitão que chegou a Santa Fé, os episódios que contém conteúdo acerca da violência envolvem Rodrigo. A facilidade 167 com que se envolve em uma briga é aparente em diversas ocasiões, como no momento em que vai ao casarão do coronel Amaral para apresentar-se. A presença do capitão já é incômoda para o líder da cidade, que, da mesma forma como no romance literário, pronuncia: “– Sempre desconfiei de homem que toca violão” (O TEMPO E O VENTO, 01:09:57 – 01:10:02, 2013). É interessante percebermos que o coronel sabe das andanças de Rodrigo, das lutas que participou e da quantidade de pessoas que precisou matar, entretanto, questiona sobre o fato de a personagem tocar violão. Semelhante ao que ocorre no romance de Verissimo, Rodrigo também envolve-se em uma briga quando tenta tirar Bibiana para dançar em uma festa, na qual a moça já está acompanhada pelo filho de coronel Amaral, o Bento. “Por muito menos que isso escrevi à faca a primeira letra de meu nome na cara de um patife” (O TEMPO E O VENTO, 01:15:02 – 01:15:09, 2013), pronuncia o capitão, respondendo ao chamamento de “canalha”. Neste episódio, o padre, que no livro procura amenizar a situação, atua como um figurante, apavorado com o rumo que a história pode tomar, porém, sem se envolver de forma direta nas decisões dos oponentes. O irmão de Bibiana, Juvenal Terra, inclusive estimula aos demais para que soltem Rodrigo para retribuir uma esbofeteada que levou. O primeiro plano evidencia a raiva de ambos os pretendentes da personagem na família Terra, contudo, não há a presença marcante de fúria, os dois mantêm-se estáveis, com uma calma que, normalmente, não poderia condizer com instantes antes de um duelo, no qual, um poderia não voltar. Quando decidem que será utilizada a adaga no duelo, em detrimento da arma de fogo, novamente o primeiro plano paira em Rodrigo que sorri irônico dizendo: “Melhor, leva mais tempo” (O TEMPO E O VENTO, 01:15:13 – 01:16:16, 2013). Os sorrisos do capitão parecem desviar tudo o que há de violento na cena, perante a personagem Bibiana, que afirma a sua mãe estar nervosa porque ama o capitão Rodrigo, diálogo que existe apenas no longa. “– Minha filha, como pode dizer uma coisa dessas. Tu mal conhece esse homem direito. – Eu amo Rodrigo desde a primeira vez que o vi” (O TEMPO E O VENTO, 01:16:48 – 01:16:59, 2013). Em mais esta oportunidade o sentimento, quase que instantâneo, que a personagem nutre pela figura do capitão está acima de outros valores. A cena criada pelo roteirista indica as duas mulheres apreensivas enquanto o duelo acontece, mas a ansiedade se estabelece porque Bibiana teme pelo que pode acontecer com o 168 capitão, em específico. Entretanto, não é considerada a hipótese cruel de um dos dois, sendo qualquer que seja, ter de morrer, para vencer o duelo e conquistar Bibiana. As personagens não discutem o fato de perder uma vida humana, o que se expressa é unicamente o anseio para que Rodrigo não seja ferido. Quando se encontram no local marcado, o cemitério, para duelar, as personagens começam rapidamente a se preparar para ferir um ao outro e capitão Rodrigo, nesta cena, quase não deixa de rir. É como se a personagem estivesse realmente se divertindo com a situação, e a sua brincadeira continua quando enfatiza que pretende desenhar a primeira letra de seu nome no rosto de Bento Amaral, o que o faz, com a exibição explícita no filme, enquanto o ferido grita de dor e o capitão pronuncia: “– Falta só a pontinha do R” (O TEMPO E O VENTO, 01:19:29 – 01:19:33, 2013). A mostra detalhada da arma do capitão perfurando o rosto de seu inimigo espetaculariza a dor, uma vez que não seria necessária a exibição de tal situação, além disso, a personagem que marca o rosto do Amaral o faz quase sorrindo, comentando sobre o ato, como que vangloriando seu feito. Imagem 5 – Duelo entre capitão Rodrigo e Amaral Fonte: O tempo e o vento – 1:18:17 Após este episódio, em que Rodrigo acaba ferido por arma de fogo e posteriormente se recupera, o padre da cidade procura Pedro Terra, pai de Bibiana, a fim de convencê-lo a permitir o romance entre os dois. Na narrativa fílmica, não há forte constatação desta personagem, que se limita a dizer: “– Este homem não é trigo limpo” (O TEMPO E O VENTO, 2013), enquanto o sacerdote replica: “– 169 Vosmecê está enganado, capitão Rodrigo é um homem de grande valor [...]. Canalha é quando volta da guerra com a guaiaca cheia de ouro, joias, coisas roubadas, o capitão trouxe apenas o sou do que economizou” (O TEMPO E O VENTO, 01:23:00 – 01:23:03, 2013). No romance fílmico, o apreço do sacerdote por Rodrigo não aparece tão constantemente como no livro, mas vem carregado de expressões que evidenciam a forma como o religioso enxerga o capitão. Ele refere-se a um combatente de guerras, que já matou inúmeros e está sempre envolvido em brigas como alguém que possui um grande valor e atribui isso especialmente ao fato de a personagem não ter participado de roubos, embora tenha tido outras experiências negativas em função de tudo o que uma guerra pode proporcionar. Para além da guerra, são frequentes no filme a violência e agressividade no âmbito familiar, ainda envolvendo o capitão Rodrigo, que, assim como no romance literário, aparece gritando com a esposa e com os filhos sem motivos, abandonandoos para beber e jogar cartas e, com os próprios companheiros de jogatina Rodrigo, por vezes, demonstra-se agressivo. Embora não se trate de violência física, este modo de ser da personagem conota um perfil violento, mas que é posto em segundo plano, para atribuir espaço aos feitos que tornariam Rodrigo um herói, atos estes marcados pela brutalidade. Após considerarmos as cenas de violência – não atreladas às revoluções –, que são apresentadas no longa dirigido por Jayme Monjardim, entendemos que o espetáculo se dá, especialmente, através da figura do capitão Rodrigo. Embora a personagem mostre, por diversas ocasiões, sua agressividade e demonstre, até mesmo em seu modo de pensar, a tendência à prática da violência, o roteiro do filme trata estas questões como parte do perfil de uma grande personagem que, quando exibida em primeiro plano, é exaltada pela simpatia, olhar profundo e sorriso marcante. É como se a questão da violência fizesse naturalmente parte de Rodrigo, como uma característica a ser aceita, uma vez que outras atribuições da personagem são sobrepostas a estes atos.Se na obra literária Rodrigo aparecia como alguém que para as demais personagens era muito difícil não ter apresso, na obra cinematográfica favorece a impressão de transmitir esta ideia a respeito do capitão também para o espectador. O leitor da obra original reconhece personagens que questionam, o que não ocorre no filme, já que quase todas as demais valorizam o lado positivo do líder e, se alguma não o faz, também não expressa. 170 Diante destes fatores, recorremos mais uma vez aos pressupostos de Debord: O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. (DEBORD, 2003, p. 12). É justamente esta a ideia que encontramos a partir das ações violentas espetacularizadas em O tempo e o vento filme. Embora existam atitudes negativas, imagens injustificáveis de violência e uma tendência a evidenciar a personagem principal, que está envolvida na maioria dos eventos conflituosos, como detentora de grandes valores, a finalização do enredo circunda a aceitação de capitão Rodrigo. Muito pouco se questiona a figura que protagoniza os atos violentos, pelo contrário, a personagem é caracterizada quase como superior às demais, já que a maioria dos outros moradores da fictícia Santa Fé o tratam com respeito, com admiração, inclusive, por ter participado de muitas guerras. A esposa não o questiona, o sacerdote o auxilia, as mulheres da cidade o desejam, os amigos o escutam e pouco debatem com ele. Ainda seguindo os pressupostos de Debord (2003), identificamos a falta da réplica, ou seja, de vozes que possam questionar atitudes os feitos violentos, o contexto que infere a vida de capitão Rodrigo é marcado pela aparência e transposto como heroísmo. A ausência destes questionamentos (que aparecem na obra literária), deixa uma lacuna no que diz respeito a interpretação da personagem. Embora o espectador possa, por conta própria, perceber o lado negativo de Rodrigo e, a partir disso, questionar determinadas ações, o fato de nenhuma personagem instigar esta reflexão pode contribuir para o fortalecimento da ideia de a violência ser intrínseca ao capitão como algo natural, o que o faz ser ainda mais reconhecido como este herói. Por não possuir personagens que ousam questionar as ações violentas, o enredo reduz-se a um único posicionamento, como se todos concordassem com o que se passa ou, não tivessem força para propor outras ideias com vistas à pacificidade. 171 A questão da violência não é representada no longa como valor negativo, pelo contrário, em meio aos cenários típicos gaúchos - campos, cavalos galopando ao pôr do sol, rodas de chimarrão e danças tradicionais -, há situações violentas como integrantes deste todo, fazendo parte de uma cultura de orgulho gaúcho, até mesmo se considerarmos a personagem que protagoniza o longa, tida como uma representante da população sulina, mas marcada por valores negativos que representam a violência nos mais diversos âmbitos, a começar pelo familiar. E após discorrermos de forma mais direta sobre como a violência, em geral, é exposta nesta narrativa ficcional, discutimos, na seção seguinte, o modo como as duas grandes revoluções gaúchas foram abordadas no longa e também a memória constituída a partir desta representação. 4.3 A glamourização da guerra e a memória histórico-social das revoluções gaúchas Os filmes, enquanto produções ficcionais, não têm a obrigatoriedade de transmitir os fatos como realmente aconteceram e tampouco de transpor para a linguagem audiovisual o que foi apresentado na literatura, quando toma esta como base. Os novos enredos são, portanto, passíveis de atualização, considerando a época em que serão exibidos, o público receptor e tantos outros fatores. A partir desses pressupostos, analisamos de que maneira as duas grandes revoluções gaúchas foram representadas através do cinema, como as guerras são passíveis de glamourização quando transpostas para a ficcionalidade do cinema e, ainda, qual a memória histórico-social é suscitada nessa forma expressão audiovisual. A representação da Revolução Farroupilha inicia no filme no momento em que o Coronel Ricardo Amaral convoca os homens da cidade de Santa Fé para uma reunião. A cena é apresentada com elementos típicos de guerra e regionalismo, pois os homens vão reunindo-se na praça da cidade em sua maioria montados em seus cavalos carregando bandeiras e armas. Para ouvir o que o representante do município tem a dizer, alguns se mantêm de pé e os que chegam a cavalo 172 permanecem sobre o animal, formando um círculo ao redor do coronel que afirma: “– Todos sabem que os liberais, comandados por Bento Gonçalves querem derrubar a monarquia e separar o Rio Grande do resto do Brasil” (O TEMPO E O VENTO, 00:35:41 – 00:35:49, 2013). O líder segue seu discurso evidenciando contrariedade, não especificamente à guerra, mas aos ideais republicanos e pede que a cidade mantenha-se ao lado do governo, para evitar a desordem, esta que, de qualquer maneira, manifesta-se em tempos de guerra. Entretanto, nem todos são a favor da ordem estabelecida, Pedro Terra, o pai de Bibiana contesta: “– Coronel Amaral, os farrapos não são desordeiros, são republicanos, pessoas com ideias eu proponho que... [...] – Vosmecê não propõe nada. A câmara representa o governo, não é uma câmara de traidores” (O TEMPO E O VENTO, 01:36:02 – 01:36:16, 2013). Independente da opinião dos cidadãos quanto a um ou outro ideal político, o que vemos são pessoas prontas para o combate, seja ao lado dos republicanos, que possuem as ideias revolucionárias, ou para manifestar apoio ao governo. Reunidos apenas para uma conversa, que poderia ser um debate acerca dos temas em questão, os convidados já foram prontos para guerrear, montados em cavalos e com as armas a postos. Uma tentativa de discussão, através da opinião de Pedro Terra, levou-o a ser preso, comentário que chegou para Bibiana, que, na narrativa cinematográfica, aparece tão ou ainda mais apática do que no romance literário. “Rodrigo a esta hora já está longe. Estava louco de contente, parecia que ia pra uma festa” (O TEMPO E O VENTO, 01:36:36 – 01:36:45, 2013) . O primeiro plano focado em Bibiana não evidencia nenhuma expressão marcante, embora tenha o olhar triste, não tem reação de sorrir, chorar ou qualquer outra. A falta de atitude da personagem que representa Bibiana na narrativa cinematográfica apresenta os sentimentos de submissão e conformidade com as situações que envolvem o marido. A personagem não parece importar-se com o horror da guerra, a referência que faz é unicamente ao marido, como se a espera fosse a única ação possível, transformada em sentimento. Entretanto, a sequência traz a voz da narradora do filme, Bibiana em idade avançada, que apresenta um pouco mais de reflexão em sua fala, embora isso aconteça com seu pensamento voltado basicamente ao seu amor por capitão Rodrigo. Neste momento, assim como em todos os outros em que a voz da narradora aparece, ela dirige-se à alma do capitão que foi visitá-la no Sobrado: 173 A revolução farroupilha se alastrou por toda a província. E proclamaram a república, a república rio-grandense. Eu não sabia por onde vosmecê andava, Rodrigo, mas alguma coisa me dizia que vosmecê estava bem, que vosmecê estava vivo. (O TEMPO E O VENTO, 01:37:04 – 01:37:31, 2013). A história da Revolução Farroupilha aparece muito brevemente, não são explicitados, no filme, por exemplo, os passos para que fosse proclamada a república. Esta lembrança, para a personagem, parece ser a mais vaga, a mais rapidamente descrita, enquanto que a memória acerca dos pensamentos que levavam ao seu esposo aparecem de forma muito mais enfática. As imagens que sucedem este momento do filme, acompanhadas pela fala de Bibiana, mostram um plano aberto com centenas de homens cavalgando por matas e riachos munidos pelas bandeiras republicanas, armas de fogo e adagas. As sombras dos cavalarianos e seus instrumentos também são mostrados ao entardecer e ao nascer do sol. Em alguns momentos desta representação, o plano da câmera fecha em Rodrigo, que lidera o grupo, perpassando uma imagem da personagem enquanto guerreiro, exemplo diante dos demais. Ao avisarem o coronel Amaral que os republicanos estavam chegando a Santa Fé, a expressão, exibida em primeiro plano, é de raiva. “Deixa que venham, vou receber esses anarquistas à bala” (O TEMPO E O VENTO, 01:37:38 – 01:37:43, 2013). Mesmo que o líder municipal não esteja na guerra com os demais, sua resposta é precisa e pronta para o combate. A trilha com caráter de suspense está presente nesta parte do filme, momento em que Bibiana muito paciente conta ao irmão e a cunhada que acredita que Rodrigo voltará para vê-la e, desta forma, decide ficar na casa enviando seu filho com os familiares para encontrá-lo posteriormente. Esta cena é marcada ainda por pessoas correndo, fugindo da cidade para se protegerem, imagens estas que são alternadas com as dos guerrilheiros rumo a Santa Fé, galopando sempre precedidos por capitão Rodrigo. A aflição de Bibiana que permanece na cidade à espera do marido, tão detalhadamente descrita no romance de Verissimo, na narrativa cinematográfica, resume-se a uma cena de Bibiana rezando com a vela acesa em frente à imagem de 174 Nossa Senhora. Neste momento, o Capitão Rodrigo chega e, após uma tocante cena de reencontro, beijos e abraços, o esposo que está há meses fora de casa pronuncia-se: “Vou invadir o casarão, Bibiana, e vou prender os Amaral, pai e filho” (O TEMPO E O VENTO, 01:39:27 – 01:39:31, 2013). A personagem feminina mostra-se muito aflita, já não mais tão apática quanto anteriormente. Já o Capitão ri muito ao dizer: “Parece que é mentira que foi preciso uma guerra civil pra eu terminar de botar a pernita do R na cara do Bento” (O TEMPO E O VENTO, 01:39:33 – 01:39:38, 2013). O republicano refere-se a um duelo que teve com o inimigo antes do casamento com Bibiana, que, ao ouvir a constatação do marido, apenas sorri, sem jeito, não concordando e nem discordando da situação. Ao chegar o momento da invasão, a personagem alerta: “– Pelo amor do nosso filho Rodrigo, tenha cuidado. – A gente passa trabalho numa guerra, mas se diverte” (O TEMPO E O VENTO, 01:40:19 – 01:40:32, 2013), responde Rodrigo, sorrindo, o que comprova sua própria fala: para ele, a guerra é muito mais atrativa do que qualquer conselho ou do que a vida que levava quando estava apenas em sua casa, a personagem nem ao menos refere-se ao pedido feito por Bibiana, parece não pesar no filho, pelo menos não naquele momento, diferente do que disse quando chegou em casa, que não tirou a esposa e a criança da cabeça durante o tempo em que esteve longe. Enquanto Rodrigo sai com seu cavalo seguido pelos demais republicanos, Bibiana fica na porta apenas observando o rumo do esposo, que, antes de chegar ao casarão, para na igreja e chama pelo padre, que tem a fala semelhante a do livro, embora o diálogo seja reduzido, especialmente da parte do capitão: “– Toma cuidado meu filho, os Amaral são cabeçudo, têm muita munição. – Fique tranquilo, padre, ainda não fabricaram a bala que há de me matar” (O TEMPO E O VENTO, 01:41:10 – 01:41:18, 2013). Diferente do romance literário, no cinematográfico, não há nenhuma tentativa do sacerdote em deter Rodrigo para que ele repense em um diálogo antes do ataque, fala que aconteceu no texto do livro, mas não foi aceita pelo capitão. Na narrativa fílmica, este momento é muito mais de Rodrigo, sua vaidade e orgulho estão em evidência, confirmando a confiança que ele tem em si mesmo, na medida em que não demonstra, em nenhuma circunstância, medo ou receio, apenas a verdade que traz consigo, que é a de invadir o casarão e, com isso, dominar a cidade com os ideais republicanos. Ao aproximarem-se do casarão, os aliados de capitão Rodrigo são recebidos com tiros pelos soldados do outro lado. Entretanto, reagem também com suas armas 175 de fogo e conseguem invadir a casa, quando Rodrigo entra a cavalo na sala do inimigo e ao puxar sua espada pronuncia: “– Coronel, se me dá a honra” (O TEMPO E O VENTO, 01:42:35 – 01:42:41). Enquanto duelam sob o teto do casarão, Rodrigo sorri, como se estivesse de fato se divertindo, como havia ele mesmo comentado anteriormente. A briga é acompanhada por uma trilha de suspense, o que auxilia a prender a atenção do espectador e parece instigar o sentimento de torcida, já que a música de fundo culminará em um acontecimento que, provavelmente, será a morte de um dos duelistas. Ao atingir o coronel Amaral com a adaga, Bento Amaral atira nas costas de Rodrigo, tiro que, no romance, não revela sua origem. O fato de o capitão ter levado um tiro nas costas pelo inimigo que lutara anteriormente é um elemento que parece trilhar um caminho de indução à preferência pelo capitão republicano, tendo em vista que “atirar pelas costas” é uma expressão utilizada, inclusive neste filme em análise, não por se tratar de um ato violento, mas com a gravidade voltada à covardia. Nesta linha de interpretação, Rodrigo teria morrido de forma injusta, embora esteja, ao mesmo tempo em que é lastimado, matando seu oponente. Aliás, no longa, Rodrigo esboça mais um sorriso antes de morrer. Esta cena do longa demonstra o modo como Rodrigo pode, inclusive, ter sentido alegria ao perceber que sua morte deu-se em meio a uma batalha, assim como mencionou ser a saga dos demais homens da família. A encenação da morte do capitão acontece quase que de forma positiva, já que seu sorriso, desta vez, ironiza sua própria morte. Uma vez que demonstramos o modo como a Revolução Farroupilha é apresentada através do filme de Jayme Monjardim, analisamos a maneira como a Revolução Federalista é representada. Esta segunda se desenvolve na narrativa fílmica, assim como no romance, nos momentos em que se remete ao Sobrado. Contudo, no longa, as cenas mais marcantes desta residência, que representa em maior medida o lado republicano na guerra, acontecem apenas no início e ao final do enredo. O Sobrado corta, por algumas outras vezes, a linearidade do filme, mas apenas para mostrar Bibiana relembrando toda a história que está contando, e Rodrigo, que a escuta, ora abraçando-a, ora dedilhando seu violão, sem, diretamente, remeter à Revolução Federalista, embora o quarto escuro e o barulho de tiros evidenciem que a guerra está acontecendo. Voltamos então, ao início do filme, quando a frase inicial para abertura do longa remete à Revolução Federalista, conforme já descrevemos na seção anterior. 176 Uma vez que o longa inicia com esta referência, a impressão que temos é deque a narrativa será desenvolvida, principalmente em torno desta temática, contudo, outros fatores tomam importância igual ou maior dentro do roteiro, não sendo justificado o porquê da escolha de esta guerra ser resumida em caracteres para iniciar a produção. Após a exibição dos dizeres a respeito da guerra, já visualizamos Licurgo, o neto de Bibiana, andando armado pelo corredor quando sua esposa Alice grita de dor por estar próxima de dar à luz uma criança, com muita dificuldade, pois está doente. Neste instante, ao som de tiros e dos gritos da esposa de Licurgo, Alice, que está prestes a ter um bebê, a cunhada Maria Valéria aparece dissolvendo o escuro com um lampião, imagem que é intercalada com a de soldados fora e dentro da casa, todos armados. O diálogo que se estabelece entre Licurgo e sua cunhada é mais breve do que o do livro de Verissimo, porém, apresenta o mesmo sentido. Maria Valéria preocupada com a irmã, e o esposo, preocupado com a guerra. “– É tudo uma questão de horas, amanhã Santa Fé pode amanhecer livre. – E sua mulher pode amanhecer morta” (O TEMPO E O VENTO, 00:04:01 – 00:04:07, 2013). Também no filme o líder republicano recorre ao sogro Florêncio que lhe afirma: “Vosmecê pode estar procedendo muito bem como chefe político, mas está procedendo muito mal como chefe de família” (O TEMPO E O VENTO, 00:04:54 – 00:05:00, 2013). Em ambos os momentos, Licurgo parece de fato apreensivo, notamos em sua expressão a preocupação com a esposa, mas isso não é o bastante para lançar mão de sua vitória na guerra. É como se a Revolução Federalista estivesse somente em torno no Sobrado e tudo pudesse ser definido ali. Neste instante, a alma de capitão Rodrigo adentra a casa, o filme apresenta total silêncio e corredores escuros, em que pessoas doentes estão sendo tratadas de forma amadora pelas mulheres da casa e homens armados estão a postos em cada uma das portas e janelas. Ninguém para a fim de olhar Rodrigo, já que se trata de um espírito. A trilha que perfaz a parte romântica do longa entra em ação no encontro do capitão com Bibiana, cena que já descrevemos na apresentação deste capítulo. 177 Imagem 6 – Encontro de Bibiana, já idosa, com a alma do capitão Fonte: O tempo e o vento – 00:08:37 Após o reencontro das duas personagens e, ainda durante o abraço, há uma quebra no romantismo com o som de tiros, o que motiva Rodrigo a pronunciar: “Ainda reconheço de longe uma boa guerra” (O TEMPO E O VENTO, 00:10:30 00:10:32, 2013). A pergunta que podemos fazer enquanto pesquisadores ou espectadores seria: de que maneira uma guerra pode configurar-se como positiva? Se o sentido de um combate é que um dos lados seja aniquilado para que o outro possa vencer, não podemos encontrar quais seriam os aspectos que tornariam positivos episódios como este. Entretanto, o enredo demonstra outra questão. A expressão “boa guerra” utilizada pela alma do capitão é proveniente do som do tiro, da imagem de pessoas feridas que viu pela casa, dos soldados cercando o sobrado dos dois lados, de dentro e de fora e, portanto, esta seria, para a personagem, a boa guerra, aquela com elementos como aqueles que vira, com batalhas grandiosas, com os tiros como sonoridade e homens lutando e morrendo pelos seus ideais.. A fim de sequenciar a conversa e explicar ao espírito de seu esposo do que se trata tudo o que viu ao chegar em Santa Fé, Bibiana comenta: 178 Faz muitos dias que os Amaral cercam o Sobrado. Estamos sem água, sem comida e até a munição está acabando. Mas não me preocupo, logo os republicanos vão estar aqui em Santa Fé e o nosso neto, Rodrigo, o nosso neto Licurgo vai botar os Amaral e a sua corja pra correr. (O TEMPO E O VENTO, 00:10:55 – 00:11:22, 2013). A fala de Bibiana já não mostra uma personagem em maior medida indiferente à guerra, tampouco podemos notar em sua fala uma inquietação no que diz respeito aos males causados pelas batalhas. O que vemos é a constatação de uma problemática que se lança maior para com o fato de a munição estar terminando do que por faltar alimento para as pessoas que ali residem. Contudo, a própria Bibiana afirma não se preocupar com nada disso, uma vez que os aliados de Licurgo chegarão à cidade e seu neto poderá ser o vencedor. A resolução dos problemas, segundo este pronunciamento da personagem feminina, não estaria na questão da finalização da guerra, mas principalmente tendo em vista o vencedor, o lado republicano, evidentemente apresentado no filme como aquele que merece a vitória. Os relatos acerca da Revolução Federalista só retornam à narrativa da personagem na parte final da produção, já que, a partir desta conversa, Bibiana começa a relembrar sobre tudo o que aconteceu desde a origem de sua família, com a índia que caminhou por dias até chegar a São Miguel das Missões, onde deu à luz Pedro Missioneiro, que posteriormente se encontrou com Ana Terra e foi morto por seus irmãos. O enredo segue com a formação do Continente de São Pedro, a partir da cidade de Santa Fé, local onde se estabelece a continuidade da geração da família Terra-Cambará. Durante a contação desta história, muitos episódios violentos são narrados, para além das guerras, situações estas que analisamos, separadamente, na sequência destes comentários acerca da guerra Federalista. As narrativas de Bibiana a respeito da história de Santa Fé, seus habitantes e guerras, retornam para a Revolução Federalista quando a personagem termina de narrar os acontecimentos da Revolução Farroupilha, que culmina com a morte do capitão Rodrigo. Com imagens que variam entre a jovem Bibiana no túmulo do esposo e da idosa Bibiana deitada nos braços da alma de Rodrigo, a constatação da personagem é idêntica à da narrativa literária: “Podiam dizer o que quisessem, mas a verdade é que vosmecê tinha voltado pra casa” (O TEMPO E O VENTO, 01:44:44 - 01:44:52, 2013). Em nenhum momento no filme, produzido neste século, 179 atualizam-se os desastres advindos da guerra ou a morte enquanto resultado de batalhas, ainda nesta narrativa, ressalta-se a ideia do amor entre os dois, maior do que os danos, maior inclusive do que a própria morte, já que a personagem aparece, em meia idade, na cena posterior, sentada na cama do casal com a roupa de capitão do seu esposo. “De algum modo, eu o sentia perto de mim o tempo todo. A guerra que levou vosmecê de mim durou dez anos, Rodrigo. Meu pai, Pedro Terra, perdeu toda sua roça”. (O TEMPO E O VENTO, 01:45:09 - 01:45:43, 2013). Após este momento, Bibiana narra rapidamente a história do casamento do filho Bolívar com Luzia, sendo que os detalhes deste trecho não são apresentados no filme. O marco que quebra esta conversa para o retorno ao roteiro que remete à Revolução Federalista é o som de um tiroteio, intercalado pela fala do capitão, já morto: “Parece que o baile vai começar” (O TEMPO E O VENTO, 01:47:29 – 01:47:31, 2013). Sabedor de toda uma história que acabara de recordar, de sua própria morte, consolidada em uma revolução, e que apenas seu espírito está presente no Sobrado, Rodrigo ainda continua a apresentar a ideia de guerra enquanto uma festa, uma oportunidade de divertimento, como outrora já salientara e, por isso, deixa Bibiana sozinha em seu quarto e vai averiguar o que acontece, embora esta cena não apareça no longa. Logo após este momento, acontece uma cena no filme que inexiste no livro. O filho de Licurgo, também chamado Rodrigo, entra no quarto quando Bibiana comenta: “Eu estava aqui justamente lembrando uma história. – Uma história de quê? Uma história de amor, de um grande, grande amor. E também de guerra” (O TEMPO E O VENTO, 01:48:53 – 01:40:07, 2013). A bisavó enfatiza a ideia do amor como superior à guerra, as batalhas foram apenas o pano de fundo para tudo o que vivenciou com Rodrigo. Se o amor supera a guerra, então seria fator positivo, mas, por outro lado, verificar a constante violência e presença de tragédias e mortes como apenas um dos fatos que fizeram parte do romance não tornaria as personagens humanizadas, com a total sensibilidade para o sentimento que nutrem. Se consideram o amor como principal elemento de suas vidas, então, seria contraditório ter a guerra intrínseca ao cotidiano, já que as batalhas se concretizam justamente pela manifestação da violência, da agressividade e da frieza das mortes. Por outro lado, temos um período em que revoluções acabavam sendo vistas como banais, considerando que nunca terminavam, como podemos conferir no diálogo que segue, quando o bisneto questiona sobre qual guerra se trata: “– De 180 guerra? Igual a essa guerra do papai?. – Ah, Rodrigo, um dia vosmecê vai descobrir que, no fundo, todas as guerras são a mesma guerra” (O TEMPO E O VENTO, 01:49:08 – 01:49:21, 2013). Com esta afirmativa, parece-nos que Bibiana tem a consciência de que, embora mudem os ideais pelos quais se lutam ou, a nomenclatura de cada uma das guerras, todas elas acabam gerando os mesmos resultados. Contudo, a personagem não questiona quanto à positividade ou negatividade de tais acontecimentos que tornam as revoluções semelhantes. O diálogo entre os dois ainda segue com uma fala que denota a presença dos ideais revolucionários já na criança: “– Vovó, quando eu crescer, eu vou ter muitos inimigos e eu já tô armado, armado de verdade. Mas não conta pro papai não, tá? Quer ver?” (O TEMPO E O VENTO, 01:49:23 – 01:49:35, 2013). A arma que o pequeno Rodrigo mostra trata-se do punhal que foi passado de geração a geração em sua família. Vemos a inocência de uma criança que se sente orgulhosa por possuir uma arma de verdade, já que nasceu e cresce em meio às batalhas e, por isso, sabe da importância de defender-se, mas, ainda, o desejo de se tornar um adulto, não com vistas a ter uma profissão ou outros anseios, mais adequados para pessoas desta idade, mas Rodrigo nutre o desejo de ter muitos inimigos, para, do modo como vê o seu pai, poder também lutar nas revoluções. Para encerrar esta parte da conversa, a bisavó Bibiana em nenhum momento reprime as ideias do garoto, pelo contrário, alimenta-as, oferecendo a ele mais um exemplo daquele que, neste contexto, é visto como herói pelas personagens da trama cinematográfica. “– Rodrigo! Vosmecê não tem só o nome do capitão, você tem também o sangue dele”, (O TEMPO E O VENTO, 01:49:41 – 01:49:52, 2013) afirma Bibiana, com tom e expressão de orgulho. O mesmo sentimento pode novamente ser salientado na criança quando, finalmente, ouvem-se os gritos de que um grupo se aproxima com bandeira branca e Licurgo, que estava abraçado consolando sua esposa pela perda da filha, deixa-a e sai correndo para ver o que acontece, e afirma: “A cidade está livre e nenhum Amaral pisou na nossa casa” (O TEMPO E O VENTO, 01:53:23 - 01:53:29, 2013). Esse motivo é, no filme, mais importante para comemoração do que propriamente o fim na revolução. Ao dizer isso abraça o filho com emoção, enquanto a cunhada Maria Valéria mantêm-se apática, apenas a observar. Outra cena que marca o fim desta guerra, e existe apenas na narrativa fílmica, é a do coronel Amaral rodeado por cavalarianos armados dizendo: “–Não 181 tem mais jeito, perdemos a revolução. Nunca pensei que um dia tivesse que entregar Santa Fé aos Terra-Cambará. Essa vergonha, eu vou ter que carregar no lombo o resto da minha vida” (O TEMPO E O VENTO, 01:51:44 – 01:52:00, 2013). Em nenhum momento se questiona se é justo que a família que tenha fundado a cidade se obrigue a sair do local onde viveu por muitos anos em função de ideais políticos, e a cena é mostrada de modo que parece estar sendo feita a justiça, já que a família Terra-Cambará, protagonista da história, está comemorando a vitória. “– Mais uma guerra soprada pelo vento” (O TEMPO E O VENTO, 01:52:11 01:52:14, 2013), afirma Bibiana no momento em que se apresenta a trilha que norteou as cenas românticas do longa, constatação esta seguida pela imagem de capitão Rodrigo andando em frente ao Sobrado que encontra um jornal noticiando sobre a derrota dos maragatos em Carovi. O bisneto Rodrigo entra correndo no quarto da bisavó com a roupa do capitão, afirmando que seu pai ganhou a guerra e que ganhou a vestimenta do próprio capitão Rodrigo. Ao pedir que o bisneto cuide de tudo o que está ali, ela se despede e, seguindo o roteiro do final escrito para o romance fílmico, faz uma oração e vai descendo as escadas do Sobrado com uma veste branca a medida em que curva os degraus, Bibiana vai ficando mais jovem. A persongem encontra-se com o capitão, já com a fisionomia que o conheceu, beijamse e acenam para o pequeno Rodrigo, que enxerga os dois, em espírito, pois já estão mortos, e sorri feliz. Sobem em um cavalo e este é o encerramento do filme, o casal andando a cavalo junto por campos, rios, pôr do sol, com a trilha romântica que segue a cena e os dizeres na voz de Bibiana, ainda idosa: Um Terra-Cambará nunca se entrega. Nunca. [...] Nasce o sol e põem-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasceu. O vento vai para o sul e faz seu giro para o norte, continuamente vai girando. O vento e volta a fazer os seus circuitos, uma geração vai, outra geração vem, porém, a terra, para sempre permanece.(O TEMPO E O VENTO, 01:56:44 – 01:57:50, 2013). A frase que dá o desfecho do filme enfatiza a importância do orgulho da família não ser ferido, já que a força de continuar não os permite entregarem-se. Entretanto, a fala que segue demonstra também um orgulho que estende-se à terra, embora as gerações passem – e as pessoas morram muito mais em função das 182 guerras do que por motivos naturais –, esta terra pela qual eles lutam se torna motivo que valida os acontecimentos. As duas revoluções são retratadas o filme de uma forma glamourizada, tendo em vista que os ideais pelos quais lutam e os líderes que tomam à frente das guerras, estão acima da dor que elas causam ou mesmo das mortes decorrentes das batalhas. As guerras são expostas como episódios fatídicos que são justificáveis quando se pensa na vitória, do fato de um grupo sobressair-se diante dos demais. A busca pelos interesses através de atos violentos aparece como se estivesse institucionalizada desta maneira, e os meios e resultados das guerras são vistos pelas personagens muito mais como fatores positivos do que como situações de tragédias e perdas. Nenhuma das duas revoluções é apresentada em detalhes históricos, com as motivações para terem ocorrido ou de que forma terminavam. As cenas de batalhas, apresentadas junto com trilhas marcantes, com certo suspense que prende a atenção do espectador, parecem demonstrar muito mais a bravura dos soldados que lutavam por seus objetivos do que os horrores vivenciados em tais duelos. O marco da Revolução Farroupilha, por exemplo, dá-se, no filme, através do capitão Rodrigo, sempre à frente das batalhas e como ícone de algo que parece bom, já que o próprio líder encara como uma festividade. Diferente do proposto por Verissimo, na obra literária, ausentam-se no longa as diversas vozes questionadoras, sobressaindo-se as ideias do capitão. Esta afirmativa se comprova, ainda, se considerarmos que o final da Revolução se dá com a morte de Rodrigo, como se a guerra fosse dele, estando estes fatos diretamente atrelados. Rodrigo no filme é indiscutivelmente o herói, ninguém contesta, ele é lembrado sempre e quando não é lembrado aparece em forma de espírito para se fazer presente na narrativa. Nem mesmo o pai de Bibiana o contesta, apenas o inimigo, Amaral, que é exibido no filme como alguém “do mal”, não se mostram as duas faces. Já na Revolução Federalista, a figura de Licurgo não é tão marcante quanto a de Rodrigo, que volta, já morto, em forma de espírito, para ajudar a narrar a revolução e a desvelar os fatos que circundam o Sobrado em meio a guerra de 93. De qualquer modo, o seu neto aparece com anseios de vencer a guerra que são supremos à saúde da esposa, a sobrevivência da filha que nasce ou mesmo, a todos os demais moradores da casa, já que não têm mais água e alimentos. Na narrativa fílmica, diferente do que vemos na obra literária de mesmo título, não são 183 demonstrados os detalhes dos pensamentos e inquietações de Licurgo, o que faz com que pareça ainda mais natural a doença, a falta de alimentos e os feridos pela casa. Entretanto, a questão do orgulho por estar liderando uma guerra também não é tão evidente, ficando mais explícito apenas no momento em que o líder de fato vence a revolução. O modo como tudo se desenrola, o sentimento e as angústias das personagens que vivem na casa da família Terra-Cambará levam o espectador a torcer para que o Sobrado conquiste a vitória da Revolução. Os desfechos são apresentados de forma que o sinônimo de perder a guerra seja a vergonha, conforme acompanhamos na retirada do coronel Amaral, enquanto que a comemoração condiz com o fato de ganhar a Revolução. Em nenhum dos lados, entretanto, faz-se menção àqueles que morreram em virtude das batalhas e ao horror que se finda ao concluir a guerra. Nem mesmo se faz referência à paz ou à humanidade, não se considera que o médico poderá atender aos doentes da casa. A alegria pela vitória ou a tristeza pela derrota não perpassam pelas causas, meios ou fim das revoluções, que parecem existirem por si só, porque têm de existir, para haver diversão, para haver ganhadores e perdedores, para constituírem-se heróis. Além destes fatores, e talvez um dos aspectos que mais evidenciem a glamourização na representação das revoluções seja o foco no amor de Bibiana e capitão Rodrigo. Embora várias batalhas aconteçam e muitas mortes e outros prejuízos sejam causados pelas guerras, a personagem feminina sempre remete à esperança na volta do esposo, o modo como ele chegou novamente à cidade, a maneira como morreu, como continuou vivo em seu coração e, para além de tudo isso, a volta do capitão – mesmo em espírito –, para buscá-la. No longa, vemos a Revolução Farroupilha terminar, com a morte do capitão, mas, quando se dá a Revolução Federalista, ele ainda está lá, sentado no quarto de Bibiana, recordando tudo o que se passou e no anseio de lutar mais. Considerando também o mote do filme “A maior história de amor de todos os tempos”, podemos reafirmar a percepção do romantismo enquanto superior às outras temáticas expostas através do filme. Se na obra literária a questão das guerras ganha mais espaço, com mais detalhes e outras personagens que, embora sem ação, questionam as atrocidades, no filme temos uma história de amor que supera todos os obstáculos. Ao passo em que as guerras terminam e muitos são 184 deixados para traz, o casal protagonista do filme se sobressai em um final feliz, em que o amor é que vence a guerra. Todavia, ao considerarmos os dois séculos de história da humanidade após as revoluções e o grande público que assiste ao longa, entendemos que a reflexão propiciada através de O tempo e o vento poderia ter ido além. Embora histórias de amor cativem ao público e, na ficção, o amor superando a guerra poderia suscitar boas emoções, é preciso considerar qual a memória histórico-social fixada a partir da forma como se realiza a leitura desta obra audiovisual. Primeiramente, se faz necessário constar que capitão Rodrigo não é o herói que se apresenta. Embora no filme Bibiana diga a sua alma: “Vosmecê não mudou nada, o mesmo sorriso, o mesmo brilho de adaga nesses olhos, e ainda sabe agradar uma mulher como nenhum outro homem” (O TEMPO E O VENTO, 00:25:41 – 00:26:02, 2013), podemos questionar este agrado ou o amor que se constrói por uma personagem que tem como característica o brilho da adaga, como maior ideal guerrear, matar seus inimigos e, nos momentos de tédio – por falta de guerras –, trair a mulher e abandonar a família para beber e jogar cartas. Se este é o protagonista que representado por transmitir o valor do sentimento enquanto maior que o das revoluções, então deveria haver outro foco na construção do perfil da personagem, que não age em conformidade com este amor que venceria as atrocidades das guerras. Deste modo, a memória construída a partir do discurso do filme O tempo o vento não propiciaria novas formas de compreender as revoluções gaúchas, mas suscitaria, em maior medida, o apreço pelo aspecto romanesco explícito no filme. O autor Munsterberg (2003) apresenta a memória e imaginação tendo a lembrança enquanto recurso cinematográfico para mostrar cenas que já foram exibidas ou, ainda, através da reconstituição de episódios pelas próprias personagens, intercalando com as cenas, como verificamos através da atuação de Bibiana. Mas, para além disso, o estudioso em teatro e cinema discorre sobre a forma como a memória do espectador reage diante das cenas: A memória se relaciona com o passado, a expectativa e a imaginação com o futuro. Mas na tentativa de perceber a situação, a mente não se interessa apenas pelo que aconteceu antes ou pode acontecer depois: ela também se ocupa dos acontecimentos que estão ocorrendo simultaneamente em outros lugares. (MUNSTERBERG, 2003, p. 41). 185 Através desta afirmativa compreendemos a importância daquilo que é exibido aos espectadores hoje, em função da constituição da memória históricosocial, tendo em vista que aquilo que está sendo visualizado não deverá ser somente apreendido por aquele instante, mas, de outro modo, será também relacionado ao passado, com as memórias já constituídas, e ainda com o futuro, enquanto perspectiva. Percebendo as interpretações desta maneira e considerando a constituição da memória como um processo coletivo, oriundo de diferentes experiências, nem sempre unicamente pessoais, como já pesquisamos em Halbwachs (2006), temos as revoluções enquanto parte da história real da humanidade e a representação fílmica, que enfatiza mais o discurso em uma história de amor. Ainda conforme o mesmo autor, algumas vezes a memória formada através de outrem é tida de uma maneira diferente, ou seja, se conhecemos os fatos históricos através dos relatos de outras pessoas, nossa percepção será formada de outro modo, desigual a que se constituiria caso tivéssemos presenciado as situações. Sendo assim, enquanto a narrativa cinematográfica enfatiza o amor entre as personagens e a superação de barreiras como parte do contexto de guerra, a memória formada a partir dessas informações pode correlacionar as situações amor e guerra atribuindo, em última instância, valor positivo a estes fatos. O formato adotado pelo roteirista poderia, portanto, levar, de alguma maneira, o espectador a remeter as atrocidades das guerras não como fator negativo, mas como forma de consolidar e fortalecer relações, como a união amorosa das personagens que protagonizam o longa em análise. Outra memória suscitada a partir das cenas é a valorização do herói constituído, que não é questionado por suas atitudes negativas, mas exaltado por estar a frente de um grupo de batalhas defendendo a terra ou seu próprio nome. Ao citar Araújo e Fischer, Ginzburg (2012, p. 272) trata a respeito da “ética heroica” que se forma sob uma “perspectiva positiva da guerra, como instrumento de busca de valores positivos – bem, amor, bondade, justiça”. O discurso nesta perspectiva valoriza a guerra, atribuindo o heroísmo àqueles que estão a frente destas condições, esta ética heroica, de acordo com o estudioso, eleva a guerra a uma afirmação social. Portanto, ao tratar as personagens protagonistas duas revoluções que analisamos, capitão Rodrigo e Licurgo, enquanto grandes líderes em relação à 186 sociedade ou ao grupo que estão à frente, lutadores que prezam pelos seus ideais e não desistem das batalhas, pessoas fortes que estão em evidência servindo como referência para as demais, são atribuídos os valores heroicos, como se realmente o bem e a justiça estivessem sendo pregados. Se a memória histórico-social se constitui através desta perspectiva, temos um fator que vai de encontro a valorização da humanidade. Ao considerarmos a afirmação de Ginzburg (2013) sobre o pacifismo estar em descrédito hoje, cabe refletir se a narrativa ficcional desenvolvida a fim de representar um histórico violento não poderia, então, ser exibida sob uma perspectiva mais reflexiva e menos no sentido da valorização dos ditos heróis. “Apresentar uma posição crítica depende de ir até o âmago do problema” (GINZBURG, 2012, p. 222) e o problema, neste caso, é a guerra, representada no longa muito superficialmente, dando espaço para outras questões e reafirmando a institucionalização das revoluções enquanto parte inerente à vida das pessoas. Sendo desta forma, a neurose que circunda o passado, conforme verificamos em Adorno (1995) ao invés de modificar o pensamento na atualidade, vem a tona como uma afirmação da falta de sentimentos em relação as situações graves, como as revoluções. A interpretação do passado acontece em união com as experiências atuais, como vimos em Benjamin (1994) e a representação através do filme O tempo e o vento, pouco atualiza este passado, ficando a cargo do espectador procurar refletir sobre os temas abordados. No longa de Jayme Monjardim, visualizamos o “mundo das verdades ficcionais” como nos apresenta Saramago (1990, p. 17), ou seja, os dados históricos aparecem no filme intercalados com os a ficção, que é predominante. Sendo assim, algumas atitudes das personagens diante dos acontecimentos são questionáveis. A omissão perante a guerra, o divertimento com a violência, a valorização daqueles que lutam e até mesmo o anseio por possuir inimigos são fatores presentes nesta narrativa. Se estas questões aparecem de forma glamourizada e, por vezes, espetacularizada, a memória histórico-social constituída a partir do enredo apresentado é muito mais visando a questão da guerra e seus heróis como valor positivo. DIÁLOGOS E DIVERGÊNCIAS Os discursos que utilizam as temáticas da guerra e da violência sempre serão merecedores de estudos e análises se entendermos estas questões enquanto parte histórica da sociedade, formada e atualizada em meio a cenários marcados por lutas e barbáries, que estão introduzidas na vida dos povos e, para além disso, possuem espaço privilegiado na memória histórico-social da humanidade. Diante do exposto e ao considerarmos a necessidade de aprofundamento destes estudos e as possibilidades ainda não exploradas de pesquisa em torno de discursos de diferentes vertentes, este trabalho teve como objetivo verificar como é construída a representação das guerras Farroupilha e Federalista em discursos de ordem ficcional e não-ficcional produzidos sobre a história social do Rio Grande do Sul e, ainda, qual a perspectiva de memória sócio-histórica foi construída em cada um desses meios discursivos. Os jornais O Povo, que circulou de 1838 a 1840, com retratos da Revolução Farroupilha, e A Federação, que circulou entre 1884 e 1937, abordando, de 1893 a 1895 fatos acerca da guerra Federalista, embora possuíssem como base o discurso jornalístico, ou seja, não-ficcional, não buscavam ser objetivos e não pretendiam mostrar duas ou mais versões a respeito das guerras ou violência ocorridas no tempo em que circulavam, já que ambos se tratavam de publicações que representaram o governo, em cada uma das revoluções. O discurso abordado pelos jornais analisados eleva as revoluções quase que ao patamar positivo e apresenta os lutadores como heróis. Mais do que apenas conhecer os fatos das duas revoluções, os leitores de O Povo e A Federação são conduzidos a tomarem posição sobre as ideologias propostas por cada um dos periódicos. Nos jornais analisados, todos aqueles que escrevem concordam com uma mesma opinião, difundida entre os discursos, repetindo informações que articulam a formação da memória histórico-social. Contudo, a memória perpassada não difunde uma visão crítica sobre a guerra, pois, apesar de divulgar fatos trágicos decorrentes das batalhas, os textos não os apresentam como consequências negativas de uma revolução, constituindo uma memória que envolve apenas uma versão dos acontecimentos. Ao tratar do discurso ficcional, temos a obra de Erico Verissimo, O tempo e o vento, publicada pela primeira vez em 1949, que utiliza a ficção para narrar não 188 somente a história da formação do estado rio-grandense, mas, para além disso, o modo como se davam as guerras e atos violentos desencadeados naquele período. Na primeira parte da trilogia, O Continente, objeto de estudo deste trabalho, são apresentadas personagens fictícias que vivenciaram as revoluções Farroupilha e Federalista, período em que também analisamos a presença da violência, constante na vida das personagens nesta obra. O tempo e o vento, através de O Continente, estimula a construção da memória coletiva mais no sentido reflexivo do que informativo, já que não apresenta as guerras em seus detalhes históricos, mas através das vivências de personagens que fizeram parte daquele contexto. A narrativa em O Continente aborda a questão da violência como algo comum, entretanto, existem vozes que questionam as consequências decorrentes das guerras e atitudes violentas, proporcionando a reflexão sobre o modo como os fatos poderiam ter sido resolvidos senão através de conflitos. Entretanto, cabe destacar que aqueles que questionam não possuem grande representatividade no texto, sendo vozes minorizadas diante daqueles que defendem a guerra. Ademais, obra de Verissimo contribui para que as ações desenvolvidas no passado ganhem uma releitura no presente, atualizando as percepções dos leitores. A memória coletiva que O Continente busca resguardar é formada a partir de diferentes pontos de vista, em que cada um dos receptores possa constituir suas percepções acerca dos fatos expostos compondo as suas próprias inquietações. O modo dicotômico como as duas guerras e a violência são representadas sinaliza questionamentos a respeito destas temáticas que estão presentes na sociedade. Ainda que predominem no romance personagens que têm a guerra e a violência como inerentes ao seu modo de vida, são apresentadas, durante o texto, as consequências destas escolhas, como mortes, famílias destituídas, violência e perda de valores positivos. Além disso, existem outras vozes que surgem com uma visão contrária acerca dos elementos apresentados. Já em 2013, o discurso ficcional aborda mais uma vez a temática a partir da releitura de O tempo e o vento. Trata-se do filme, de mesmo título, dirigido por Jayme Monjardim, que apresenta uma nova versão do romance, neste século. As duas revoluções são representadas no filme de uma forma glamourizada, tendo em vista que os ideais pelos quais lutam e os líderes que tomam à frente das guerras, estão acima da dor que elas causam ou mesmo das mortes decorrentes das 189 batalhas. O foco da narrativa está, principalmente, na história de amor das personagens Bibiana e capitão Rodrigo, sendo as guerras e os eventos conflituosos apenas elementos secundários na construção do longa. Entendemos que o filme O tempo e o vento poderia ter aprofundado os temas de uma maneira mais reflexiva. Embora histórias de amor cativem o público na ficção e o amor superando a guerra possa suscitar boas emoções, a memória histórico-social fixada a partir desta obra cinematográfica não propicia novas formas de compreender as revoluções gaúchas, mas suscita, em maior medida, o apreço pelo aspecto romanesco explícito no filme. A omissão perante a guerra, o divertimento com a violência, a valorização daqueles que lutam e inclusive o anseio por possuir inimigos são fatores presentes nesta ficção. Enquanto o longa enfatiza o amor entre as personagens e a superação de barreiras como parte do contexto de guerra, a memória formada a partir dessas informações pode correlacionar as situações amor e guerra atribuindo, em última instância, valor positivo à temática que envolve guerra e violência. Ao analisarmos cada um destes objetos que perpassam pelos três séculos – jornal, enquanto factual no século XIX; literatura, enquanto publicação do século XX; e cinema, enquanto produção do século XXI –, entendemos que ao longo destes anos os discursos apresentaram as situações de guerra e violência enquanto elementos naturalmente presentes na vida social. Isso significa que, muito mais do que proporcionar reflexões em torno destes temas, os textos comunicam questões como amor, orgulho de pertencimento e a reafirmação do heroísmo do povo gaúcho, que nas lutas matava e morria por seus ideais. Em nenhum dos três discursos, independentemente do gênero, encontramos uma busca por impactar a sociedade, estimulando a tornar-se mais pacífica e contrária à violência e tampouco reflexões diretas sobre as barbáries oriundas das revoluções, as obras não apresentam um posicionamento crítico diante dos fatos, que são expostos como naturais naquele contexto. Contudo, o discurso que mais se aproxima da ideia de instigar um novo pensamento a respeito destas situações é o literário, já que através de situações mais bem detalhadas e vozes de personagens que questionam pensamentos e ações. Verissimo apresenta um texto capaz de fazer o leitor tomar posição contrária aos feitos dos heróis, já que estes são apresentados não somente pelo modo como lutam bravamente, mas também em suas fragilidades e defeitos. O discurso jornalístico, embora apresente algumas das 190 atrocidades promovidas através dos conflitos civis, o faz vangloriando estes feitos, transformando violência em fatos positivos, que formam heróis. Enquanto isso, o filme, que glamouriza a guerra atribuindo destaque ao capitão Rodrigo, que, além de ser o protagonista do longa, é caracterizado através da beleza e simpatia, apresenta a história com um viés romântico, sendo este o principal eixo do enredo. Retomando a ideia de representação enquanto possibilidade de releitura do passado, já que o contexto de produção é diferente daquele em que os fatos ocorreram, entendemos que os discursos analisados, de modo especial o fílmico, poderiam ter abordado estas temáticas de uma maneira mais reflexiva, buscando contribuir em maior medida com a formação de uma memória sócio-histórica mais crítica na relação entre estes fatos do passado. Ginzburg (2012) comenta que a formação social do estado sulino foi baseada em violência, sendo a afirmação do gaúcho atrelada ao fato de guerrear e vencer inimigos. Esta afirmativa justificaria o discurso jornalístico, do modo como foi construído, no sentido de motivar as questões de luta e orgulho através das vitórias nas batalhas, já que os periódicos eram escritos em um contexto marcado por esta realidade. Todavia, ao relacionarmos aqueles textos com a produção fílmica veiculada dois séculos depois, poderíamos propor que a narrativa investisse um pouco mais profundamente na formação de uma memória sócio-histórica mais questionadora em relação a fatos violentos, ao invés de reafirmar a ideia de heroísmo àqueles que cometem violência. Ginzburg (2012, p. 223) destaca que “um escritor pode trabalhar para o mercado, elaborar ficcionalmente a violência como espetáculo banal e, com isso, reduzi-la a uma caricatura, ou pode confrontar seriamente o problema de sua representação estética”. Enquanto os jornais do século XIX e a própria literatura é de acesso mais elitizado, o filme analisado certamente atingiu uma grande massa de espectadores que pôde visualizar uma super produção, esteticamente muito bem construída e estrelada por atores renomados que muito bem interpretaram seus papéis. Em termos de entretenimento, O tempo e o vento, na versão cinematográfica, cumpre seu papel, tornando-se um filme bem montado para se assistir, entretanto, a memória sócio-histórica formada a partir das mensagens deixadas pelo longa metragem é aquela da qual Verissimo buscava fugir, que inclui o herói mitificado, um povo guerreiro que para defender seu solo morre lutando e, acima disso, ainda apresenta uma história de amor que prende a atenção mais do que os questionamentos acerca das revoluções. 191 Os três objetos analisados, portanto, propiciam ao público uma memória de legitimação à guerra, reafirmando uma ideia de violência justificável e contribuindo para a conservação de um pensamento de normalidade da violência diante destes contextos. Isso quer dizer que os discursos são postos de uma forma a não incitar a uma mudança de posicionamento ou atitudes diante de fatos que envolvem violência e guerra e, ao considerarmos o contexto atual, entendemos que o passado exibido pelas narrativas analisadas é, na realidade, muito atual, já que o orgulho pelos feitos rio-grandenses na guerra ainda está muito presente entre grande parte dos gaúchos, que consideram positivo o fato de pessoas com o título de heróis terem defendido o território, utilizando-se da violência, não apenas como uma rememoração do passado, mas, de forma mais preocupante, enquanto anseios diante de situações do presente. Essa memória se solidifica através dos discursos construídos em três diferentes séculos. Diante destas ponderações podemos retomar um questionamento feito por Ginzburg (2012, p. 14): “Como foi possível construir uma civilização em meio a tanta destruição, tanta barbárie, que civilização é essa?” O autor acrescenta que responder a esta questão, através da literatura, é um desafio a longo prazo. Sendo assim, qualquer representação discursiva poderia ser desafiada a buscar respostas a uma indagação que carrega muito mais do que a história, mas o modo como ela é escrita e transmitida. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. A GUERRA do Rio-Grande – Meios de a terminar. O Povo. Piratini, p. 1 - 2, 1º dezembro 1838. ANEDOCTA interessante. O Povo. Caçapava, p. 4, ed. 576, 1840. ANVISA. Filmes Brasileiros e Estrangeiros Lançados – 2013. Período: 04 de janeiro de 2013 a 02 de janeiro de 2014. Disponível em: <http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/DadosMercado/2114.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2014. ARISTÓTELES. 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