VIVEMOS UM DEJÀ VU?
Guilherme Carvalho
É muito comum vivermos certas situações que parecem repetir algo que já havíamos
experimentado. Essas ocorrências são denominadas dejà vu, um termo da língua francesa que
significa já visto. Ocorre, porém, que essa sensação de já ter vivido um determinado evento
parece não se restringir ao campo estritamente pessoal, mas se estende à nossa vida em
sociedade. Daí alguns identificarem a história humana como um ciclo em seu movimento de
auge e de queda, ou ainda como um círculo que nos faria prisioneiros de um eterno retorno.
Consideramos ambas perspectivas limitadas para compreendermos a complexidade do real.
Todavia, é forçoso reconhecer que alguns fatos persistem de tal maneira ao longo do tempo
que parecem se constituir numa reprodução infinita do mesmo.
O assalto ao poder pelos militares brasileiros em 1964 foi justificado por eles como
uma medida necessária para livrar o país da ameaça comunista. Para isso contou com a
colaboração de grandes grupos públicos e privados de comunicação, de parcelas majoritárias
do judiciário, do empresariado e do parlamento, de vários segmentos da sociedade civil
nacional, bem como do apoio logístico e de informações dos Estados Unidos.
Além da ameaça comunista os militares buscaram incutir na população a ideia de que
somente eles seriam capazes de garantir as condições necessárias para fazer o país progredir.
O discurso do progresso foi, portanto, uma importante ferramenta ideológica para atrair o
apoio da população às ações repressivas desencadeadas pelo bloco de poder que se apoderou
do aparelho do Estado contra os opositores do regime, às restrições à liberdade e aos planos
macroeconômicos.
Em nome desse suposto progresso a Amazônia foi definitivamente escancarada aos
conglomerados econômicos nacional e internacional através da abertura de grandes rodovias
como a Transamazônica, concessão de fartos subsídios para a instalação dos mesmos na
região, criação de facilidades que garantiram o monopólio de vastas extensões do território
amazônico aos setores que compunham o bloco de poder capitaneado pelos militares etc. O
Estado brasileiro foi fundamental para o bom êxito dessa estratégia de ocupação e de controle
territorial. Todavia, as consequências disso tudo não foram pequenas e repercutem ainda hoje:
Que lições podem ser extraídas da política regional de ocupação do
território? O privilégio a ser atribuído aos grandes grupos e a violência da
implantação acelerada da malha tecno-política, que tratou o espaço como
isótropo e homogêneo, com profundo desrespeito pelas diferenças sociais e
ecológicas, teve efeitos extremamente perversos nas áreas onde foi
implantada, destruindo, inclusive, gêneros de vida e saberes locais
historicamente construídos. Essas são lições a aprender como não planejar
uma região. (BECKER, 2005, p. 26)
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Doutor em Ciência do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da
Universidade Federal do Pará – NAEA/UFPA e coordenador da ONG FASE Programa Amazônia.
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Eis que entramos no túnel do tempo e surgimos em pleno governo de Dilma Roussef.
Dois meses antes da realização da Conferência Rio+20 a presidente da República reuniu-se
com organizações da sociedade civil integrantes do Fórum do Clima, no Palácio do Planalto.
Em resposta às críticas suscitadas pelo fórum em relação à política do governo federal de
construir novas hidrelétricas na Amazônia, a presidente foi enfática: o governo não mudará
sua estratégia de aumentar a oferta de energia utilizando o máximo possível o potencial dos
rios amazônicos. A presidente foi além. Disse aos ambientalistas que “o mundo real não trata
de tema ‘absurdamente etéreo ou fantasioso’”. Afirmou ainda que ninguém “numa
conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para
a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando de fantasia” (BNDES DÁ
NOVO CRÉDITO..., 2012, não paginado). Para finalizar, assegurou que trabalharia pelo
desenvolvimento sustentável, para tirar as pessoas da pobreza e tentar compatibilizar
progresso e respeito ao meio ambiente.
Também o ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, recorre reiteradamente à
defesa do progresso e do desenvolvimento da Amazônia para rebater as críticas de diferentes
segmentos sociais do Brasil e do exterior preocupados com os impactos do erguimento de
dezenas de barragens previstas para a região até 2050. A defesa do progresso, portanto, tem
servido de anteparo a qualquer questionamento à intenção do Estado brasileiro e,
evidentemente, de grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais de tornar a
Amazônia a província energética brasileira, sem que se saiba ao certo as consequências dessa
iniciativa não somente para a região, mas para o clima de todo o planeta.
Na coletânea de poemas intitulada Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles,
há uma linda referência sobre a liberdade, onde afirma ser esta um sonho humano que
ninguém consegue explicar, mas que não há quem não entenda (MEIRELES, 2005). O que
aconteceria se substituíssemos a palavra liberdade por progresso? Quem em sã consciência
não almeja progredir? Quem não entende o que ela significa? Todavia, o que ela significa?
Progresso é uma daquelas palavras que se encontra estreitamente vinculada à
“credibilidade ou ao poder de quem a pronuncia” (DUPAS, 2006, p. 17). Afinal de contas,
quem determina o “rumo” do progresso? Dupas recorre à fala do “gnomo irascível Humpty
Dumpty”, presente em Alice no país das maravilhas, escrita por Charles Lutwidge Dodgson e
publicada em 1865, para refletir sobre essa questão:
Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu quero
que ela signifique. Nada mais, nada menos’. Alice contesta que ‘o problema
está em saber se é possível fazer que uma palavra signifique montes de
coisas diferentes’. Ao que Humpty Dumpty replica ativamente: ‘O problema
está em saber quem é que manda. Ponto final’ (LALANDE apud DUPAS,
2006, p. 17, grifo do autor).
Parlamentares, mídia, pessoas comuns e mesmo o judiciário também utilizam o
progresso como uma espécie de vacina que imuniza as hidrelétricas e qualquer outro grande
empreendimento, publico ou privado, de contestações de todo tipo; na grande maioria das
vezes independentemente da justeza e/ou embasamento dos questionamentos. Que o digam os
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pesquisadores que integraram o Painel Independente de Especialistas, cujas conclusões
chocaram-se frontalmente com diversas afirmações do Estudo de Impacto Ambiental
apresentado pelas empresas interessadas na construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu.
O fato é que o progresso se tornou parte constitutiva do discurso do poder. Assim foi
durante a ditadura militar no Brasil, nos governos Juscelino Kubitschek, Eurico Gaspar Dutra
e Getúlio Vargas; nos primórdios da República com o lema Ordem e Progresso incrustado na
bandeira nacional e mesmo durante o Império. Da mesma forma, a palavra progresso foi
utilizada pelas diferentes coalizões de poder que estiveram à frente do Estado brasileiro após a
redemocratização do país para afirmarem-se diante da população e delas conquistar o
reconhecimento e apoio.
É a partir da noção de progresso que a Amazônia tem sido refletida pelas coalizões de
poder que estiveram à frente do Estado brasileiro até o presente momento, assim como
fundamenta a implementação do atual modelo hegemônico de desenvolvimento, cuja
característica é basear-se na exploração intensiva dos recursos naturais aqui existentes. O
progresso, então, assume o papel de servir como um ponto de inflexão, de separação entre o
antes e o depois, entre retrocesso e avanço, entre passado e futuro. Exemplo: a Amazônia é
atrasada daí ser necessário levar o progresso a ela para que a mesma seja definitivamente
integrada ao restante do território nacional, através do estímulo ao deslocamento de
empreendedores para o seu território, assim como do capital necessário para desenvolvê-la.
Tal visão pode ser encontrada como fundamento das políticas dos governos Vargas, Médici e,
mesmo, de Dilma Roussef, entre outros.
Fica evidente que progresso também guarda um sentido civilizatório. É como se o
mesmo fosse um ato de redenção de povos primitivos, ou de sociedades atrasadas. Para que
tal perspectiva se imponha é necessário que seja estabelecida alguma referência do que se
considera “estágio avançado”. Por muito tempo essa referência foi a Europa, agora, a
designação genérica são os países “desenvolvidos”. À Amazônia resta espelhar-se na
dinâmica econômica do centro-sul do Brasil ou de outros países e tentar, quem sabe, rumar
em direção a elas, tal como preconizado por Rostow (1978) e sua ideia do desenvolvimento
em etapas. Apesar de ficar cada vez mais evidente que não há lugar para todos no banquete do
progresso, como bem demonstrado por Chang (2004). O progresso é utilizado para justificar
o discurso hegemônico da acumulação. Todavia, a promessa de um futuro próspero se vê
permanentemente confrontada com a situação precária de parcelas significativas da
população.
Vivemos um dejà vu? Hoje como ontem o Estado brasileiro se apresenta como o
grande impulsionador da apropriação privada de grandes extensões do território amazônico e
de seus recursos, em detrimento dos interesses e dos modos de vida de povos indígenas e
populações tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, agricultores familiares e outros. Também
utiliza o forte aparato repressivo para coagir, impedir e criminalizar movimentos sociais e
ONGs que se opõem a este modelo de desenvolvimento intensivo no uso da terra, água e
outros componentes da natureza e, acima de tudo, disseminador de conflitos e gerador de
crescentes desigualdades socioambientais. Como antes se tenta passar a ideia de que o
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mercado – suas instituições e suas regras – serão capazes de fazer com que a Amazônia se
desenvolva, retirando milhões de amazônidas da pobreza. Cinquenta anos depois da instalação
da mais brutal ditadura no Brasil a reprodução do mesmo parece não ter fim.
Bibliografia
BECKER, Bertha. Amazônia: nova geografia, nova política regional e nova escala de ação.
In. Amazônia Sustentável: Desenvolvimento sustentável entre políticas públicas, estratégias
inovadoras e experiências locais / Martin Coy e Gerd Kohlhepp (coord.). – Rio de Janeiro :
Garamond ; Tübinger, Alemanha : Geographischen Instituts der Universität Tübingen, 2005.
p. 23-44.
BNDES dá novo crédito de R$ 2,5 bi a Jirau. O Estado de São Paulo, 28 set. 2012.
Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,bndes-da--novo-credito-de-r25-bi-a-jirau, 937061,0.htm>. Acesso em: 13 out. 2012.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva
histórica. Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: UNESP, 2004.
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso, ou progresso como ideologia. São Paulo: UNESP,
2006.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
ROSTOW, W. W. Etapas do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978.
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