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ID: 56025045
06-10-2014
Tiragem: 37998
Pág: 45
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 20,54 x 23,10 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Festa das ideias
e da liberdade em Lisboa
João Carlos Espada
Cartas do Atlântico
“À
procura da liberdade”
foi o título escolhido
para a edição deste ano
da conferência anual da
Fundação Francisco Manuel
dos Santos. Teve lugar
na sexta-feira e sábado
passados, no Centro Cultural
de Belém, em Lisboa. “Festa
das ideias e da liberdade” foi
a expressão que ouvi de muitos participantes
para designar o que se passou em Belém.
Parece-me uma excelente descrição de uma
excelente iniciativa — tão rara entre nós — que
mobilizou seguramente mais de um milhar
de pessoas, durante dois dias. Não me é
seguramente possível tentar resumir aqui
a variedade dos temas e pontos de vista do
encontro. Mas talvez seja legítimo exprimir
aqui algumas opiniões pessoais sobre alguns
dos temas que estiveram em debate.
No centro do programa — cuidadosamente
concebido por uma equipa presidida por Jaime
Gama — estava(m) a(s) ideia(s) de liberdade
e as suas complexas relações com outras
ideias estimáveis, como a de democracia,
ou igualdade, ou virtude, entre muitas
outras. Embora existam vários conceitos de
liberdade, parece-me difícil dar-lhe sentido
distintivo sem reconhecer um núcleo central:
ausência de coerção intencional por terceiros.
É uma definição apropriadamente negativa,
que designa uma esfera de inviolabilidade
da consciência da pessoa — de cada pessoa
e de todas as pessoas. A liberdade mais
fundamental é por isso a liberdade de
consciência. A partir dela decorrem todas as
outras: liberdade de religião, de expressão,
de associação, de participação, etc.
Ao contrário do que possa parecer, esta
ideia não é recente, nem sequer moderna.
No Ocidente, ela é muito antiga. Resulta de
um encontro feliz entre a tradição grega
e a mensagem cristã. Vários autores têm
recentemente voltado a recordar o contributo
decisivo do cristianismo para a ideia de
liberdade da consciência da pessoa — fundada
na igual dignidade das pessoas, criadas à
imagem e semelhança de Deus.
É hoje frequente designar esta liberdade
de consciência como liberdade de escolha.
É uma formulação possível, embora tenha
dado origem a múltiplos mal-entendidos. É
por vezes dito que, para haver “verdadeira”
liberdade de escolha, terão de existir escolhas
com valor e terá de haver informação suficiente
para escolher. Vejo com muita reserva essas
qualificações da liberdade de consciência.
Elas podem abrir caminho à atribuição a
alguma autoridade suprapessoal, ou colectiva,
do poder de decidir em que condições
específicas é que as pessoas estão habilitadas,
ou têm real capacidade, ou “sabem” realmente
escolher. Esse caminho pode conduzir a
severas restrições da liberdade de consciência,
em nome de uma “doutrina certa”, ou de
“uma educação apropriada”, quando não de
uma “reeducação apropriada”. Julgo que esse
caminho de limitação da simples liberdade
de consciência, em nome de uma alegada
“verdadeira liberdade” foi tragicamente
simbolizada por Jean-Jacques Rousseau — e
pelo seu equívoco conceito de “vontade geral”
que deve “obrigar os indivíduos a serem
livres”. O equívoco de Rousseau esteve, em
meu entender, na origem da funesta Revolução
Francesa de 1789 e, numa versão ainda mais
extremada, da revolução soviética de 1917. Foi
o equívoco de Rousseau que abriu caminho
a um entendimento da democracia como
vontade colectiva que pode (quando não
deve) ter precedência sobre a liberdade de
consciência da pessoa. É isso que explica
que as ditaduras comunistas tenham sido
autodesignadas por “democracias populares”
e que a Alemanha de Leste fosse designada
por “República Democrática Alemã”.
Também Mussolini, num célebre artigo na
Enciclopédia Italiana, argumentou que o
fascismo era mais democrático do que as
“oligarquias capitalistas”.
Pelo contrário, nas democracias mais
antigas e mais duradouras — de que um bom
símbolo será seguramente o Parlamento
de Westminster — o poder da maioria em
democracia não foi entendido como tendo
precedência sobre a liberdade de consciência
da pessoa. Entre os povos de língua inglesa,
a democracia não resultou da substituição
do governo absoluto do rei pelo governo
absoluto do povo. A democracia emergiu da
gradual extensão do sufrágio em regimes que
não eram absolutos e já eram limitados — pela
lei e pelo Parlamento (ainda que este fosse
baseado em sufrágio não universal). A Magna
Carta de 1215 é um símbolo destes princípios.
Este entendimento
de democracia como
governo limitado
pela lei que presta
contas ao Parlamento
é hoje felizmente
dominante entre nós.
Resulta da vitória
das democracias
liberais sobre os
totalitarismos
nacional-socialista
e comunista do
século XX. Supõe
que a esfera política
e estatal é ela
própria limitada.
Para além dela
existem múltiplas
associações, livres e privadas, da sociedade
civil — que não podem nem devem ser
comandadas pelo Estado, mesmo democrático.
Este conceito de democracia não garante
um bom governo. Apenas garante que os
maus governos poderão ser afastados sem
violência. Tal como o conceito de liberdade
de consciência não garante que as escolhas
dela decorrentes sejam boas. Apenas garante
que as más escolhas não poderão ser impostas
a todos. A liberdade e a democracia são, por
este motivo, imperfeitas. Mas, como recordou
Winston Churchill, em boa parte porque são
imperfeitas, a liberdade e a democracia são
de longe preferíveis às alternativas.
A liberdade
e a democracia
são de longe
preferíveis
às alternativas
Professor universitário, IEP-UCP
Escreve à segunda-feira
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"Festa das ideias e da liberdade em Lisboa", in Público, 6 de