O que é a política criminal, porque precisamos dela e como a podemos construir?1 Por Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque I. A política criminal strictu sensu consiste no programa de objectivos, de métodos de procedimento e de resultados que o Ministério Público e as autoridades de polícia criminal prosseguem na prevenção e repressão da criminalidade. A política criminal tem, pois, dois pilares: o preventivo e o repressivo. Portugal não tem nem um nem outro. Vivemos hoje o vácuo de uma política criminal democrática. As consequências são nefastas para o funcionamento do sistema penal, para a credibilidade do sistema judiciário e, mais genericamente, para o equilíbrio e o desenvolvimento da sociedade portuguesa. O pilar preventivo é hoje totalmente descurado, com a excepção da criminalidade económica. Com efeito, por força das obrigações internacionais do Estado português, a criminalidade económica já é hoje prevenida muito eficazmente através de uma rede crescente de deveres de colaboração e de informação dos agentes bancários, financeiros, comerciais, dos advogados e outros profissionais, de códigos deontológicos profissionais e de regras de escrutínio do funcionamento da administração pública central, regional e local e das outras pessoas colectivas públicas e privadas (cfr. a Segunda Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4.12.2001, relativa à utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais, já transposta pela Lei n. 11/2004, de 27.3). O fim do segredo bancário no âmbito da perseguição criminal reforça esta tendência (cfr. artigo 12 (2) da Convenção das Nações Unidas para a supressão do financiamento do terrorismo, de 9.12.1999, já ratificada pelo Decreto do Presidente da República n. 31/2002, de 2.8; o artigo 12, n. 6, da Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada transnacional, já ratificada pelo Decreto do Presidente da República n. 19/2004, de 2.4; o artigo 4 da Convenção do CE 1990 sobre lavagem do produto do crime, já ratificada pelo Decreto do Presidente da República n. 73/97, de 13.12; e o artigo 7 do Protocolo relativo à Convenção da União Europeia sobre assistência judiciária mútua, de 16.10.2001, ainda não ratificado). Fora deste âmbito, nenhum programa de acção preventiva se encontra. A situação é particularmente grave no âmbito da criminalidade contra as pessoas. Depara-se aí com o total abandono dos agressores violentos e das vítimas após o cumprimento da pena e a consequência inelutável de elevadas taxas de reincidência (cfr. Relatório do provedor de justiça de 2003, a taxa de 48 % de reincidentes na população prisional masculina em 1998 agravou-se para 51 % em 2002, “um sinal de alerta, na medida em que a reincidência é a face mais visível da não efectividade da reinserção social”) e de elevadas taxas de prisão preventiva (cfr. Relatório do provedor de justiça de 2003, a taxa de 28,5 % de presos preventivos no total da população prisional existente em 1998 mantém-se em 2002, embora com uma diminuição do número total de presos preventivos de cerca de 120 homens e 183 mulheres 1 Este texto corresponde ao texto que li na conferência sobre “A reforma da justiça criminal em Portugal”, organizada pelo Instituto Francisco Sá Carneiro no dia 24.11.2004 e presidida pelo Dr. João Bosco Mota Amaral. a menos). Eu diria mesmo que já não se prende para investigar, como em outros tempos, mas que se prende hoje para que o arguido não continue a cometer delitos. Ou, dito de outro modo, a prisão preventiva é hoje o sucedâneo prático de uma policia criminal preventiva inexistente. O Estado português deve ter uma política de prevenção criminal, por três motivos essenciais: (1) porque toda a literatura e as experiências estrangeiras mostram que a prevenção criminal é mais económica e mais eficaz como instrumento no combate à reincidência do que qualquer política repressiva, (2) porque o Comité de Ministros do Conselho da Europa tem insistido desde 1983 na criação de uma política de prevenção criminal, designadamente na Recomendação (83) 7 sobre a participação do público na prevenção criminal, na Recomendação (87) 19 sobre a organização da prevenção criminal, na Recomendação (87) 21 sobre a assistência às vítimas e a prevenção da vitimisação, na Recomendação (2001) 16, sobre a protecção de crianças contra a exploração sexual, que no seu ponto 40 recomenda muito particularmente a criação de programas de prevenção da reincidência no âmbito da criminalidade sexual, na Recomendação (2000) 20 sobre o papel da intervenção psicológica na prevenção da criminalidade, e na Recomendação (2003) 21 sobre parcerias na prevenção criminal, e (3) porque a decisãoquadro do Conselho da UE 2001-220, de 15.3.2001, impõe a adopção de uma medida de prevenção criminal, que consiste na notificação da vítima quando a libertação do seu agressor possa suscitar perigo para aquela e esta medida devia ter sido introduzida no direito português até 22 de Março de 2002 (!). A criação de um política preventiva da criminalidade assenta em duas premissas: a selecção dos campos de intervenção, uma vez que os meios do Estado são escassos, e a necessidade de colaboração da sociedade civil na tarefa da prevenção criminal. O Estado português deve seleccionar como área crucial da actuação da política criminal preventiva a criminalidade violenta (condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo superior a cinco anos) e sexual (condutas subsumíveis aos tipos legais do capítulo V do título I do livro II do Código Penal). Esta opção fundamenta-se nas seguintes três razões: (1) porque estes tipos de criminalidade registam o grau mais elevado de ressonância social do ilícito e, portanto, de maior danosidade para a validade da norma jurídica, (2) porque este tipo de criminalidade tem aumentado entre nós (de acordo com as estatísticas do Ministério da justiça, houve 400 queixas por violação em 2002, 1200 queixas por outros crimes sexuais, 8200 queixas por maus tratos, 13000 queixas por roubo, sendo certo que este tipo de crimes revela sempre elevadas cifras negras), e (3) porque estes tipos de criminalidade são aqueles em que a acção preventiva do crime tem um maior efeito positivo de prevenção geral. O legislador português pode tirar lições de várias experiências estrangeiras. Em Inglaterra e no País de Gales, estabeleceu-se a obrigação do registo de agressores sexuais e de agressores violentos, nos termos do Sex Offenders Act, de 1997, revisto em 2003 pelo Sexual Offences Act. O período de duração do dever de registo é de cinco anos no mínimo e perpétuo no máximo e é fixado na lei em função da gravidade da condenação do agente. Durante este período, qualquer mudança de morada deve ser notificada à polícia pelo indivíduo registado. A informação sobre o indivíduo registado pode ser transmitida a particulares em circunstâncias muito restritas dependentes da avaliação da polícia. Também se criou o Multi-Agency Public Protection Panel, que, nos termos do Criminal Justice Act de 2000, tem a obrigação de avaliar todos os agressores potencialmente perigosos que sejam libertados, devendo acompanhar com diversos tipos de programas multidisciplinares os que revelarem um risco alto ou crítico de reincidência e devendo notificar as vítimas da libertação de arguidos condenados a mais de 12 meses de prisão por crime sexual ou violento. Em França, criou-se em 1992 o Conseil Local de Sécurité et de Prévention de la Délinquance, composto com autoridades locais e com competência para celebrar o contrat local de sécurité, que visa articular as instituições locais (câmara, polícia, escola, associações e outras) em torno de programas concretos de prevenção e ressocialização. Por outro lado, a Lei n. 2004-204, de 9.3.2004, instituiu um registo para as pessoas condenadas e suspeitas da prática de crimes sexuais, onde são registadas todas as condenações em pena de prisão de cinco anos ou mais e sob ordem judicial condenações em penas inferiores e mesmo meras suspeitas. A duração do dever de registo é de trinta anos para os condenados em pena superior a dez anos de prisão e vinte anos para os restantes, salvo se os suspeitos forem absolvidos ou o respectivo processo for arquivado. A informação sobre o agente só pode ser facultada a entidades públicas constantes de uma lista oficial. Sobre estas políticas se pronunciaram já os mais altos tribunais dos respectivos países, a antiga Comissão Europeia dos Direitos do Homem e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sempre no sentido do carácter não punitivo da obrigação de notificação e da sua compatibilidade com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. a House of Lords no caso Regina v. H, de 30.1.2003 (this provision is designed to protect the public and not to punish the subject of the order), o Conseil Constitutionel francês na sua Decisão 2004-492, de 2.3.2004 (ne constitue pas une sanction, mais une mesure de police destinée à prévenir le renouvellement d’ infractions et à faciliter l’ identification de leurs auteurs), a Comissão Europeia dos Direitos do Homem no caso Ibbotson, 21.10.1998 (the comission considers them to be preventative in the sense that the knowledge that a person has been registered with the police may dissuade him from committing further offences, article 7 is not applicable), e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Adamson, 26.1.1999 (the court considers that the purpose of the measures in question is to contribute towards a lower rate of reoffending in sex offenders, since a person’s knowledge that he is registered with the police may dissuade him from committing further offences and since with the help of the register the police may be enabled to trace suspected reoffenders faster …; the court does not consider that the requirement to provide information to the police (during an indeterminate period) can be said to be disproportionate to the aims pursued …; that the requirement to register in itself cannot be regarded as a severe measure and there is no evidence to suggest that the applicant is at particular risk of any humiliation or attack resulting from the requirements of the Act, the complaint under Article 3 is also manifestly ill-founded), cuja argumentação foi reiterada no caso K.S., de 7.3.2000 e no caso Massey, de 8.4.2003). Na prossecução deste desiderato, o legislador português não deixará de atender ao novo direito comunitário. A decisão-quadro do Conselho da UE 2001-220, de 15.3.2001, embora não seja limitada aos crimes sexuais nem aos presos condenados, é, contudo, muito insuficiente e mesmo incoerente. No caso de a vítima não ter falecido e haver perigo para ela resultante da libertação do agressor, a decisão-quadro esquece completamente todas as outras potenciais vítimas, que eventualmente possam vir a ser alvo de condutas semelhantes à que atingiu a primeira vítima. A incoerência reside no reconhecimento de um perigo suficientemente sério para que se proceda à notificação da vítima, sem que outras potenciais vítimas tenham direito a tomar conhecimento dessa mesma perigosidade. No caso de a vítima ter falecido, a decisão-quadro não prevê qualquer notificação, o que, além de manifestamente incoerente, deixa a família da vítima e a sociedade completamente desprotegidas. Não se percebe que se pretenda proteger a vítima quanto ela foi violentada, mas não morreu, e se esqueça a sociedade e todas as outras potenciais vítimas quando o primeiro acto criminoso teve como resultado a morte da vítima. Quando mais necessária era a protecção da sociedade, a decisão-quadro peca por omissão, deixando a sociedade abandonada à sua sorte. Quanto ao ex-recluso, nenhum programa de acompanhamento se prevê. A solução que proponho pretende conciliar a componente preventiva com uma forte componente ressocializadora. A prevenção da criminalidade violenta e sexual e a assistência psicofisiológica e social aos agentes condenados ou acusados pela prática destes crimes devem ser realizadas por Comissões de Prevenção da Criminalidade Violenta e Sexual. Em cada círculo judicial do país deve ser criada uma Comissão, que exercerá funções em instalações para o efeito disponibilizadas pelo Tribunal do respectivo círculo. O Ministro da Justiça poderá constituir, por portaria, mais de uma Comissão por círculo judicial onde o número de processos pessoais o justifique. A Comissão deve ser composta por um técnico do Instituto de Reinserção Social, que presidirá, por um funcionário do Ministério da Solidariedade Social e por um agente da PSP ou por um guarda da GNR. A organização e o funcionamento da Comissão serão definidos por portaria do ministro da justiça, podendo a Comissão recorrer, para auxílio no desempenho das suas competências, aos técnicos do IRS, aos agentes da PSP e da GNR e aos funcionários do Ministério da Solidariedade Social. A Comissão deve ter a seguinte competência: a) organizar um processo pessoal de avaliação de risco em relação a cada agente de um crime violento ou de um crime sexual e determinar, sendo caso disso, um plano de assistência psicofisiológica e social aos agentes destes crimes, b) rever o plano de assistência psicofisiológica e social sempre que se verificar uma alteração substancial das circunstâncias, c) decidir da revelação da informação atinente ao agente do crime, em casos muito limitados, d) manter actualizado um Registo Preventivo da Criminalidade Violenta e Sexual, e e) publicar um relatório anual sobre os processos pessoais pendentes até 1 de Janeiro do ano civil subsequente. O plano de assistência psicofisiológica e social consistirá em um programa detalhado de intervenção e apoio personalizados com vista a prevenir o cometimento de crimes e a favorecer a reinserção social do agente. A Comissão deve proceder à elaboração do plano quando, em face de uma avaliação prévia da personalidade, do estado psicofisiológico, das competências sociais e do modo de vida do agente, conclua que há um risco sério de que ele cometa crimes violentos ou crimes sexuais. O plano de assistência psicofisiológica e social deve ser articulado com a intervenção penitenciária, sempre que esta tenha tido lugar. A Comissão proporá ao agente a adesão ao plano de assistência psicofisiológica e social e a execução do plano dependerá sempre do consentimento do agente. A Comissão poderá decidir revelar a determinada pessoa singular informação atinente a um agente nas seguintes condições cumulativas: quando a revelação dessa informação se revele uma medida proporcional e adequada para prevenir a ocorrência de um crime violento ou de um crime sexual e quando o perigo de ocorrência desse crime seja grave e iminente (cfr. a Recomendação (87) 15, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que prevê a comunicação de dados pessoais pela polícia a privados quando há perigo grave e iminente para estes e, no direito nacional, o artigo 4, n. 1, al. f) do DL n. 275-A/2000, de 9.11, que fixa a competência dos agentes da PJ para “realizar acções destinadas a reduzir o número de vítimas, motivando os cidadãos a adoptar precauções e a reduzir os actos e as situações que facilitem ou precipitem a ocorrência de condutas criminosas”). A Comissão só deverá revelar a informação que se afigurar estritamente necessária para evitar o cometimento do crime. A pessoa singular a quem for revelada essa informação não poderá transmiti-la a terceiros. Para o efeito, a pessoa singular a quem for revelada a informação deverá ser solenemente advertida do seu dever de não revelar a informação a terceiros, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência. A informação recolhida pela Comissão poderá ser facultada ao agente se ela não puser em risco a segurança da vítima ou de terceiros. A Comissão deve determinar a cessação do plano de assistência psicofisiológica e social quando o agente morrer, quando transitar o despacho de arquivamento, o despacho de não pronúncia ou a sentença de absolvição no processo penal, quando o agente for reabilitado, quando a Comissão concluir que não há um risco sério de que o agente cometa crimes violentos ou crimes sexuais ou quando terminar o período de notificação obrigatória pelo agente ao Registo Preventivo. Deve ser criado um Registo Preventivo da Criminalidade Violenta e Sexual. Nele deverão ser registados todos os agentes condenados ou acusados pela prática de crimes violentos e de crimes sexuais. O acesso ao Registo Preventivo só será permitido aos seguintes profissionais e no exercício das respectivas funções: aos técnicos encarregados da sua manutenção, aos membros das Comissões, no âmbito de um processo pessoal de avaliação de risco em curso, e aos agentes da PJ, do SEF, da PSP e da GNR, aos magistrados do MP e aos magistrados judiciais, no âmbito de determinado processo penal em curso, bem como ao agente, nos termos já referidos. O Tribunal deverá comunicar ao presidente do IRS o nome do agente do crime violento ou do crime sexual, o seu sexo, a sua data de nascimento, o seu local de nascimento, o crime imputado, as decisões relativas a medidas de coacção, às penas aplicadas e à execução das penas aplicadas. Não se tendo apurado algum ou alguns elementos relativos à identificação civil do agente, deve mencionar-se esse facto na comunicação feita pelo Tribunal. O agente deverá comunicar qualquer alteração da sua morada ao Registo Preventivo. Durante a pendência do processo penal, o cumprimento das obrigações decorrentes do TIR satisfará este dever de comunicação. O incumprimento deste dever durante a pendência do processo penal só terá as consequências previstas no CPP para o incumprimento das obrigações decorrentes do TIR e, caso tenha sido imposta alguma regra de conduta atinente à morada do agente como condição da suspensão da execução da pena, as consequências previstas no CP para o incumprimento das obrigações decorrentes das regras de conduta. Findo o processo penal em relação ao agente, isto é, sendo proferido o despacho de extinção da pena aplicada, o dever de comunicação manter-se-à pelo período de dez anos se o agente tiver sido condenado em pena superior a cinco anos de prisão e pelo período de cinco anos se o agente tiver sido condenado em pena igual ou inferior a cinco anos de prisão. Em caso de mudança de morada, o dever de notificação deverá ser satisfeito no prazo máximo de oito dias após ter ocorrido a mudança de morada, através de comunicação da nova morada à Comissão, ao IRS, à PSP ou à GNR. A PSP e a GNR comunicarão ao presidente do IRS a nova informação. O incumprimento injustificado pelo agente da obrigação de notificação no prazo fixado fará o mesmo incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência. O agente deverá dispor das seguintes garantias: 1. O agente terá o direito de conhecer em qualquer momento a informação constante do Registo Preventivo a si respeitante. 2. O agente terá o direito de requerer, durante a pendência do processo penal, ao Tribunal e, findo o processo penal, à Comissão Nacional de Protecção de Dados a correcção de informações imprecisas e a supressão de informações erradas constantes do Registo Preventivo. 3. O agente terá o direito de requerer em qualquer momento à Comissão de Prevenção da Criminalidade Violenta e Sexual competente a sua exclusão do Registo Preventivo, com fundamento em que não há um risco sério de que ele cometa crimes violentos ou crimes sexuais. 4. O agente terá o direito de recorrer da decisão de recusa de correcção ou supressão da informação constante do Registo Preventivo a si respeitante e da decisão de recusa de exclusão com fundamento na inexistência de risco sério de cometimento de crimes violentos ou crimes sexuais pelo agente requerente. 5. Será proibida a conexão dos dados do Registo Preventivo com os de qualquer outra base de dados nominativos detida por pessoa singular ou pessoa colectiva, de natureza pública ou particular. 6. As informações constantes do Registo Preventivo deverão ser suprimidas quando o agente morrer, quando transitar o despacho de arquivamento, o despacho de não pronúncia ou a sentença de absolvição no processo penal, quando o agente for reabilitado, quando a Comissão concluir que não há um risco sério de que o agente cometa crimes violentos ou crimes sexuais, ou quando terminar o período de notificação obrigatória pelo agente ao Registo Preventivo. II. O diagnóstico do pilar repressivo da política criminal não é melhor do que o feito a propósito do pilar preventivo: o inquérito é a fase que mais tempo dura, demorando em média 50 meses um inquérito relativo a crimes fiscais, 30 meses nos crimes contra a economia, 29 meses nas burlas e nas falsificações e 20 meses nos homicídios e nos furtos. Há manifestos desencontros entre MP e polícias. Por outro lado, o direito é aplicado de modo desigual, variando entre os magistrados do Ministério Público de comarca para comarca, dentro do mesmo tribunal e mesmo dentro de cada secção do Ministério Público. Acresce ainda que nos casos em que o Procurador-Geral da República estabeleceu directivas atinentes a questões do domínio da política criminal essas directivas não foram previamente discutidas e aprovadas pelos órgãos de soberania. A política criminal deste país é, pois, definida de um de dois modos, ambos censuráveis de um ponto de vista da política criminal de um Estado de Direito democrático: ou é definida de um modo atomístico, por cada magistrado do Ministério Público no isolamento do seu gabinete, ou é definida em casos pontuais superiormente pelo Procurador-Geral da República através de directivas sem legitimidade democrática directa. Esta situação é claramente insatisfatória, pois não cumpre o programa constitucional de organização democrática da política criminal e, deste modo, não respeita os imperativos constitucionais do princípio da igualdade e da soberania popular na conformação e execução da política criminal. Com efeito, o artigo 219, n. 1, da Constituição da República atribui ao Ministério Público a competência para participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania competentes. Isto é, a Assembleia da República e o Governo como órgãos de soberania competentes em matéria de direitos, liberdades e garantias têm o dever constitucional de definir a política criminal que o Ministério Público executará. Também neste tocante o legislador português pode tirar proveito de experiências estrangeiras muito ricas. Em Inglaterra e no País de Gales, o Code for Crown Prosecutors, na sua quinta versão, publicada no passado dia 16.11.2004, é da responsabilidade do Director of Public Prosecutions (chefe do Crown Prosecution Service), embora seja elaborado em coordenação com o Attorney General, que faz parte do governo e é o ministro que responde pelo Crown Prosecution Service no parlamento. O CPS tem também um conjunto vasto de directivas para os crown prosecutors (denominadas como Legal Guidance), que não são vinculativas. Em França, existem as circulaires de la direction des affaires criminelles et des grâces, da responsabilidade do ministro da justiça e vinculativas para os magistrados do siège. Na RFA existem as Richtlinien fuer das Strafverfahren and das Bussgeldverfahren, de 1.7.1977, posteriormente actualizadas por diversas vezes. São da responsabilidade dos ministros da justiça do estado federal e dos estados federados e obrigatórias para os magistrados do Ministério Público, embora em caso excepcionais possam não ser aplicadas por estes. O Comité de Ministros do Conselho da Europa tem também insistido na necessidade de uniformização da aplicação do direito através de directivas genéricas, como se constata na Recomendação (77) 27 sobre a compensação de vítimas de crimes, na Recomendação 85 (11) sobre a posição da vítima no quadro da lei e do processo penais, na Recomendação (87) 18 relativa à simplificação da justiça criminal, na Recomendação (87) 21 na assistência à vitima e na prevenção da vitimização, na Recomendação (92) 17 relativa à coerência na fixação da pena, na Recomendação (95) 12 sobre a gestão da justiça criminal, na Recomendação 95 (13) relativa a problemas da lei processual penal ligados às tecnologias da informação, na Recomendação (99) 19 relativamente à mediação em matéria criminal, na Recomendação (2000) 22 sobre a melhoria da implementação das regras europeias sobre medidas e sanções comunitárias, na Recomendação (2001) 2 relativo ao desenho de sistemas judiciários e sistemas de informação legais de modo económico, na Recomendação (2001) 3 sobre o fornecimento de serviços judiciários e outros serviços legais ao cidadão através das tecnologias de informação, na Recomendação (2001) 11 sobre o combate à criminalidade organizada, e na Recomendação (2003) 14 sobre a interoperabilidade dos sistemas de informação no sector da justiça. A solução mais conforme à Constituição da República é a seguinte: A política criminal deve ser definida pelo Governo e pela Assembleia da República através de directivas genéricas e executada pelos magistrados do Ministério Público e, sob a orientação funcional destes, pelas autoridades de polícia criminal. Depois de definida pelos órgãos de soberania, a política criminal deve, pois, ser executada de modo uniforme pelos magistrados do Ministério Público, constituindo a subordinação hierárquica dos magistrados do Ministério Público e a subordinação funcional dos órgãos de polícia ao Ministério Público os dois meios legais de garantir a execução uniforme da política criminal. O processo de definição da política criminal deve ter três fases: 1. A política criminal será preparada pelo ministro da justiça, depois de ouvir os outros ministros, o presidente do Conselho Superior da Magistratura, o procurador-geral da República, o bastonário da Ordem dos Advogados e as chefias máximas das autoridades de polícia criminal. O ministro da justiça submeterá à Assembleia da República uma proposta de política criminal. 2. A Assembleia da República discutirá a proposta de política criminal em plenário e pronunciar-se-à, através de resolução, favorável ou desfavoravelmente sobre a política criminal. A pronúncia desfavorável deve ser fundamentada com um relatório detalhado sobre as razões que a determinaram. Em caso de pronúncia desfavorável pela Assembleia da República, o ministro da justiça deve submeter nova proposta de política criminal à Assembleia da República. 3. Em caso de pronúncia favorável pela Assembleia da República, o Governo aprovará, através de resolução do Conselho de Ministros, a política criminal nos termos constantes da proposta do ministro da justiça. O processo de execução da política criminal concentrar-se-à na figura do procurador-geral da República. As directivas genéricas da política criminal são dirigidas ao procurador-geral da República com vista à execução da política criminal pelo Ministério Público. O procurador-geral da República converte as directivas genéricas em circulares internas. As circulares internas emitidas pelo procurador-geral com vista à execução da política criminal são publicadas no Diário da República, II série, e no sítio da Procuradoria-Geral da República na Internet e comunicadas ao gabinete do ministro da justiça. A política criminal deve poder ser revista em certas circunstâncias. A política criminal poderá ser modificada durante a legislatura quando o ministro da justiça entender que se verifica uma alteração significativa das circunstâncias que determinaram a anterior política criminal. Ao processo de revisão da política criminal deve ser correspondentemente aplicável o acima referido para a sua aprovação. O ministro da justiça controlará a execução da política criminal pelo Ministério Público e pelas autoridades de polícia criminal, através da apresentação pelo procurador-geral da República de um relatório anual detalhado. Esta solução corresponde integralmente ao programa, que a Constituição da República impõe, de conjugação de esforços dos dois órgãos de soberania com competência legislativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, a Assembleia da República e o Governo, na tarefa de definição da política criminal. Mas ela corresponde de igual modo ao modelo de organização do Ministério Público previsto na Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa 2000 (19). Aí se recomenda que a organização do Ministério Público seja transparente, devendo os objectivos e as prioridades da sua actividade ser submetidas a directivas do conhecimento público, que tenham sido previamente definidas pelo órgão parlamentar, quando a ordem constitucional o admita. Esta solução corresponde ainda à política de reforma do serviço público prevista na Resolução do Conselho de Ministros 53/2004, que assenta numa gestão por objectivos e medição dos resultados. Esta solução não conduz à politização da magistratura do Ministério Público, por três razões fundamentais: 1. ela não implica a emissão de ordens expressas do ministro em processo crime pendente, 2. a política criminal é discutida e definida publicamente pelos órgãos de soberania com legitimidade democrática, com discussão pública e aos olhos de todos dos argumentos que fundamentam as decisões dos órgãos de soberania, 3. os magistrados do Ministério Público beneficiam de garantias estatutárias referentes à sua transferência, suspensão e aposentação, bem como do dever de não obedecer a ordens ilegais e do direito de recusar ordens que violem gravemente a sua consciência jurídica, salvo se proferidas neste caso pelo PGR, sendo certo que em qualquer caso podem exigir que qualquer ordem superior seja dada por escrito se ela dever ter repercussão em um processo concreto. A crítica implícita no argumento da politização da política criminal demonstra, no fundo, um receio infundado da vida democrática e uma desconfiança intolerável em relação aos órgãos de soberania com legitimidade democrática. Que objecto deve ter a política criminal repressiva ? O âmbito destas directivas genéricas da AR deve incluir as seguintes matérias: os critérios de distinção entre os casos em que é o Ministério Público que dirige directamente o inquérito e em que delega essa competência em polícias, os critérios de determinação da urgência de processos, os critérios de determinação concreta do tribunal competente nos termos do artigo 16, n. 3 do Código de Processo Penal, os critérios de selecção das medidas coactivas mais gravosas, os critérios de diversão no tratamento da criminalidade participada (isto é, em que casos o Ministério Público deve promover soluções extrajudiciais e, designadamente, em que tipos de crimes semipúblicos e particulares deve o Ministério Público promover esse tipo de soluções e em que tipos de crimes deve o Ministério Público promover a suspensão provisória do processo), os critérios de escolha das formas processuais alternativas do processo e os critérios de escolha e individualização das penas (isto é, a definição de uma política de recurso criminal pelo Ministério Público de decisões judiciais que profiram penas que superem os limites considerados nas directivas genéricas ). Que objectivos deve ter a política criminal repressiva ? Os objectivos da política criminal repressiva no contexto actual da nossa sociedade devem ser os seguintes: 1. diminuir a taxa de encarceramento por 100.000 habitantes e a taxa de presos preventivos no total da população prisional, 2. favorecer o tratamento penal de três tipos de autores (agentes primários, jovens até aos 21 anos de idade e adultos de mais de 75 anos de idade), 3. promover o tratamento penal dos arguidos segundo um princípio de igualdade material (vd. o exemplo crasso da arbitrariedade na fixação da diária das multas e do período de proibição do direito de conduzir); 4. favorecer a posição jurídica da vítima (através da concessão de especial relevância à compensação do dano, ao perdão e à desistência da queixa) e humanizar o processo penal aos olhos da vítima (informar, acompanhar, proteger, inquirir uma só vez); 5. premiar as acções caracterizadas pela sua ilicitude diminuta (ofensas com três dias de doença ou menos, acções que tenham dado lugar a retaliação, acções que tenham dado lugar a dano de valor igual ou inferior a um salário mínimo nacional); 6. promover uma política severa de perda de instrumentos e benefícios do crime (de acordo com o ensinamento da literatura segundo o qual o crime compensa se não se sofrer a perda do instrumento com o qual foi cometido ou o benefício que dele se retirou, por exemplo, a perda do carro na condução perigosa, na condução sob efeito do álcool, na condução sem carta e a perda de carros, casas e outros bens no tráfico de pessoas e de droga, lenocínio, tráfico de menores), bem como de desqualificação para o exercício de funções ou competências sociais (vd. o exemplo paradigmático, o direito de condução de automóveis); e 7. maximizar os efeitos de prevenção geral associados ao rito do processo penal (por exemplo, através da fixação de regras para a gestão da informação fornecida aos meios de comunicação social). Seguem-se algumas propostas de directivas genéricas sobre o primeiro dos objectivos formulados: 1. A ESPÉCIE E A MEDIDA DAS PENAS 1.1 O MP deve, em alegações finais, definir a sua posição quanto à condenação ou absolvição do arguido, bem como quanto à medida concreta da pena que entende justa para cada um dos arguidos que devem ser condenados. 1.2 Caso seja condenado um arguido em relação ao qual o MP se pronunciou no sentido da sua absolvição, o recurso é obrigatório para o MP. 1.3 Caso seja aplicada uma pena concreta superior à indicada pelo MP, o recurso é obrigatório para o MP. 1.4 O MP deve promover que os antecedentes criminais do agente do crime tenham um efeito reduzido ou, de acordo com as circunstâncias do caso, não tenham qualquer efeito na escolha da espécie e da medida da pena quando decorreu um período significativo entre o facto sub iudice e os factos mais recentes a que se reportam os antecedentes criminais, quando o facto sub iudice é um crime menor ou os crimes constantes dos antecedentes criminais do agente são crimes menores ou quando o agente for ainda jovem. (cfr. Ponto D.3 da Recomendação No. R (92) 17 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 19.10.1992). 2. PENA DE PRISÃO (cfr. Pontos A.6 e H da Recomendação No. R (92) 17 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 19.10.1992) 2.1 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que seja condenado pela prática de um crime público e que tenha sido perdoado pelo ofendido ou, havendo mais do que um, por todos os ofendidos. 2.2 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que seja condenado pela prática de um crime público e em relação a quem o ofendido ou, havendo mais do que, todos os ofendidos tenham desistido da queixa apresentada. 2.3 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que seja condenado pela prática de um crime punível com pena até cinco anos de prisão e que tenha compensado integralmente o ofendido ou, havendo mais do que um, todos os ofendidos. 2.4 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que seja condenado pela prática de um crime contra as pessoas quando o ofendido tenha retaliado e causado ao arguido tantos ou mais dias de doença do que aqueles que sofreu. 2.5 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a arguido menor de 21 anos de idade à data dos factos que seja condenado pela prática de um crime punível com pena até cinco anos de prisão ou, em caso de concurso de crimes cometidos, quando cada um dos crimes imputados ao arguido seja punível com pena até cinco anos de prisão. 2.6 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido de mais de 80 anos de idade à data dos factos que seja condenado pela prática de um crime punível com pena até cinco anos de prisão ou, em caso de concurso de crimes cometidos, quando cada um dos crimes imputados ao arguido seja punível com pena até cinco anos de prisão. 2.7 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido primário de mais de 75 anos de idade à data dos factos que seja condenado pela prática de um crime punível com pena até cinco anos de prisão ou, em caso de concurso de crimes cometidos, quando cada um dos crimes imputados ao arguido primário seja punível com pena até cinco anos de prisão. 2.8 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido primário que seja condenado pela prática de um crime punível com pena até três anos de prisão ou, em caso de concurso de crimes cometidos, quando cada um dos crimes imputados ao arguido primário seja punível com pena até três anos de prisão. 2.9 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que seja condenado pela prática de um crime contra as pessoas que tenha tido como consequência até três dias de doença no ofendido ou, em caso de concurso de crimes, que tenha tido como consequência até três dias de doença em cada ofendido. 2.10 O recurso é obrigatório para o MP quando seja aplicada prisão efectiva a um arguido que causou prejuízo ao ofendido inferior a um salário mínimo nacional.