IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE Grupo de Trabalho 24: Partos, maternidade e políticas do corpo: saberes locais e experiências transnacionais Título do Trabalho: Ação Política e Humanização do Parto na Esfera Pública Digital Clarissa Sousa de Carvalho. [email protected]. PUC-Rio Adriana Andrade Braga. [email protected]. PUC-Rio/CNPq 1. Introdução O presente artigo discute os usos da Internet por grupos da sociedade civil, como forma de participação democrática, em uma possível reestruturação da esfera pública. A partir de pesquisa em andamento no âmbito do Doutorado em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, analisa-se, de forma mais específica, como a Rede1 Parto do Princípio, que é parte de um movimento maior pela humanização do parto e do nascimento no Brasil, se utiliza de diferentes estruturas da Web a fim de sustentar práticas de participação e deliberação populares na esfera pública digital, em consonância com ações políticas presenciais. Os movimentos de Humanização do Parto defendem a resistência a um modelo obstétrico que, segundo seu entendimento, subjulga a mulher a uma posição “passiva”, através da perda do controle sobre o próprio corpo, da submissão de seus saberes ao saber médico-obstétrico e, em última análise, do desrespeito a seus direitos reprodutivos. A retomada do controle sobre o próprio corpo e seus processos é parte do ideário que sustenta esse movimento. O objetivo geral da pesquisa é identificar na Rede Parto do Princípio os usos da infraestrutura da Internet, como meio de otimizar a participação democrática, em favor de causas relacionadas à saúde reprodutiva feminina, bem como a articulação dos discursos e práticas adotados on-line às ações presenciais da Rede. Para tanto, pretende-se mapear as estruturas da Internet utilizadas pela Rede, identificar os sentidos compartilhados pelo movimento em relação à articulação maternidade e cidadania, analisar as relações entre as ações orquestradas na Internet e as ações presenciais e esclarecer as posições de poder e de afirmação identitária de gênero no exercício dessa participação política. A partir da aplicação de metodologia etnográfica nos ambientes digitais e nos eventos presenciais, pretende-se produzir dados que esclareçam as articulações, Nesse artigo, a Rede Parto do Princípio será referida como Rede, com inicial maiúscula, a fim de evitar possíveis imprecisões em relação à rede mundial de computadores ou à rede hospitalar referidas ao longo do texto. 1 deslocamentos de poder e construção e disseminação de discursos possibilitados pela infraestrutura da Internet, apontando para uma possível reconfiguração da esfera pública. De posse desses dados pretende-se reconhecer/identificar os mecanismos de utilização dos ambientes digitais para o ativismo político. 2. Internet e Esfera Pública Digital O crescimento exponencial da Internet e da Comunicação Mediada por Computador (CMC) nos últimos anos, conectando pessoas de diferentes lugares, fez emergir novas possibilidades de interação social e de intercâmbio de conteúdos simbólicos. Diferente dos meios de comunicação tradicionais, como a TV e o rádio, a Internet permite a realização concomitante de produção e recepção de conteúdo. A Internet é um meio interativo que possiblita comunicação e feedback em dois sentidos, permitindo trocas de mensagens de um-para-um, como no caso dos e-mails; um-para-muitos, como é o caso das webpages; muitos-para-um, no caso de navegação em busca de informação e muitos-para-muitos, como no caso das listas de discussão, e todos relacionados a uma base de dados comum (BRAGA, 2008, p.43) Wilson Gomes (2005) defende que o advento do formato Web da Internet acarretou em grandes expectativas no que concerne às possibilidades de participação democrática, a partir de novos arranjos possibilitados pela esfera pública digital. Buscando fugir de posições extremistas em relação às efetivas melhorias que o ciberespaço pode trazer para a participação democrática, o autor problematiza os usos da Internet pela esfera civil como forma de participação democrática, em uma possível reestruturação da esfera pública. Assim, aponta para a importância da discussão a respeito das consequências do uso da Internet para um novo modelo de democracia capaz de fomentar a participação da esfera civil na decisão política. “A questão em tela é sobre se as novas tecnologias da comunicação podem, de fato, alterar para melhor as possibilidades da cidadania nas sociedades contemporâneas” (GOMES, 2005, p.216). Para tanto, é preciso entender primeiro que os modelos contemporâneos de democracia representativa se desenvolveram de modo a configurar uma esfera da decisão política separada da sociedade ou esfera civil. Tem-se, assim, uma crise do modelo de democracia representativa, que se dá justamente pela cisão entre esfera civil, considerada o “coração dos regimes democráticos”, que autoriza mas não governa; e uma esfera política, cuja função é produzir a decisão política. O único vínculo constitucional entre essas duas esferas é de natureza eleitoral. Dessa forma, a participação democrática se restringe quase completamente à escolha dos representantes políticos. Se historicamente a alternativa à democracia representativa tem sido a democracia direta, cabe ressaltar que esse modelo não se sustenta devido ao grau de complexidade do Estado e à consolidação da sociedade de massa. A esperança de uma terceira via entre esses dois modelos de democracia parece emergir com a introdução de uma nova infraestrutura tecnológica. Assim, a democracia digital2 se configura como uma alternativa para a implantação de uma nova experiência democrática, fundada numa reestruturação da esfera civil, a partir do incremento das potencialidades de participação cidadã nos processos decisórios, e também de canais de expressão das demandas públicas que, de outro modo, não chegariam a representantes políticos. Gomes (2005) relaciona alguns pressupostos em relação à Internet e à participação política civil que sustentam a ideia de ciberdemocracia: a) A Internet resolveria o problema do déficit de participação política das democracias contemporâneas, uma vez que tornaria essa participação mais ágil, conveniente e confortável; Democracia eletrônica, ciberdemocracia, e-democracy são expressões usadas para designar o mesmo conceito. 2 b) A Internet resolveria também a questão dos intermediários entre a esfera civil e a esfera política. Eliminariam-se as influências da esfera econômica, das indústrias do entretenimento, da cultura e da informação de massa; c) A Internet evitaria que o fluxo da comunicação política acontecesse da esfera política para a esfera civil, unilateralmente. Nesse sentido, “representaria a possibilidade de que a esfera civil produzisse informação política para seu próprio consumo e para o provimento da sua decisão” (GOMES, 2005, p.218). É preciso esclarecer, no entanto, que há diferentes graus de participação popular proporcionados pelo uso do ciberespaço. Esses gradientes de democracia digital são determinados pela maior ou menor porosidade do Estado à participação popular, que se efetiva a partir do uso da infraestrutura da Internet, em diferentes níveis e com resultados efetivos diversos. Cabe também enfatizar que tratam-se de modelos puramente teóricos, que nos ajudam a refletir sobre as formas de participação popular e possibilitam a elaboração e execução de projetos voltados à melhoria do processo democrático. Reconhecendo os limites da democracia digital, Gomes (2005) destaca a dificuldade de se apontar os efeitos das deliberações da esfera pública digital na produção da decisão política, uma vez que tais deliberações não ocorrem somente na Internet e costumam ser acompanhadas por outras ações. A esse respeito, o autor considera mais sensato voltar a atenção para a identificação de deliberações nos ambientes digitais, compreendendo-as como debate. “A rigor, em parte considerável dos casos trata-se de uma esfera pública não-deliberativa ou simplesmente daquilo que podemos chamar de conversação civil, quando a reivindicação da democracia forte seria uma esfera pública deliberativa civil” (p.220) Sem desconsiderar que o acesso à Internet e aos saberes dos quais dependem seu uso não acontece de forma democrática, principalmente em se tratando de países em vias de desenvolvimento, como o Brasil, torna-se relevante perguntar de que maneiras grupos organizados se utilizam dessa infraestrutra tecnológica, ou mesmo se organizam através dela, para publicizar discursos que não encontram espaço nas mídias tradicionais e debater demandas sociais com pouco ou nenhum espaço na agenda pública. A apropriação do ciberespaço, de forma organizada e em diferentes estruturas, orquestrada com outras ações de natureza política, pode ser uma maneira que grupos minoritários encontram para se fazer visíveis e levar suas demandas e necessidades para a esfera política de decisão. 3. Hospitalização x humanização do parto Segundo Dagmar Meyer (2005), nas sociedades ocidentais contemporâneas vivencia-se um período de intensa “politização do feminino e da maternidade” (p.81), com discursos que são incorporados e difundidos pelas políticas de Estado, manuais e meios de comunicação de massa. Tal politização da maternidade e do feminino se dá na articulação entre discursos médicos, jurídicos, pedagógicos, psicológicos, articulando forças sociais e produzindo outro discurso, aparentemente unitário, sobre a maternidade. A institucionalização e tecnologização do parto fazem parte desse discurso normativo que posiciona as práticas intervencionistas como mais seguras para mães e filhos(as), muitas vezes sem questionar as dimensões simbólicas e rituais do parto, se assentando nos poderes e saberes médicos, que dificilmente são contestados. Como reação a esse modelo, surgiu, no final dos anos 1980, um movimento social pela humanização do parto e do nascimento, que propõe mudanças no atendimento ao parto, tendo como base consensual a proposta da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1985. As medidas propostas pelo movimento buscam desestimular o parto medicalizado, entendido como violento, artificial e tecnologizado, e incentivar práticas e intervenções biomecânicas, consideradas como mais adequadas à fisiologia do parto (TORNQUIST, 2005). O modelo tecnocrático de assistência ao parto é criticado a partir de dois eixos: (...) um, de que o parto, ao contrário do que postula a versão medicalizada, não é um evento patológico, mas sim existencial e social, vinculado à sexualidade da mulher e à vida da família, e outro, de que o parto hospitalizado introduz uma série de recursos e procedimentos não-naturais (ou mesmo anti-naturais) que afastariam tanto a mulher quanto o bebê de sua suposta ‘natureza’, destituindo-os de seus direitos à vida e à boa saúde (TORNQUIST, 2005, p.484) A pesquisadora enfatiza a interlocução do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento com órgãos públicos de gestão da saúde coletiva, de forma que grupos e redes atuam em parceria com agências estatais, resultando em ações concretas que visam modificar o atendimento ao parto na rede hospitalar e fora dela, especialmente nas regiões em que há deficiência do serviço médico oficial. Durante um longo período, o parto foi um evento do âmbito doméstico, feminino, entendido como fenômeno fisiológico e natural. Para entender a institucionalização desse evento, que a partir do século XX passou a exigir saberes científicos, e não mais empíricos, passando das mãos de parteiras mulheres a médicos homens, é preciso situar o parto como evento produzido na e pela cultura. Badinter (1980) defende que, no último terço do século XVIII, iniciou-se uma revolução das mentalidades. Se antes se buscava educar súditos dóceis para Sua Majestade, a preocupação das classes dirigentes passou a ser produzir seres humanos para compor a riqueza do Estado. Assim, ocorreu uma transformação nas práticas de cuidados dispensados a crianças, que passam a ter valor inestimável. As mulheres foram alçadas à posição de interlocutoras entre o Estado e a família, e responsáveis pela nação. Marilyn Yalom (1997) refere-se à “politização do seio feminino” para descrever o processo que posicionou a mulher, como mãe, no centro das políticas de gestão da vida nas sociedades ocidentais modernas. Nesse contexto, há um processo de educação e medicalização dos corpos das mulheres em nome de sua responsabilidade na criação de filhos(as) saudáveis para a salvação da sociedade. A medicalização do corpo das mulheres aconteceu dentro de um contexto maior de medicalização da vida privada, através de mecanismos de biopoder (FOUCAULT, 2009) que visavam o controle populacional, a disciplinarização da força de trabalho e a higienização dos espaços e das relações sociais. Para Michel Foucault, a partir do século XVII, operou-se um intenso processo de politização dos corpos, através do qual desenvolveu-se a organização do poder sobre a vida, que se articula em dois polos: Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população” (FOUCAULT, 2009, p. 151-152). Nos processos em que se exerce o biopoder, acontece, ao mesmo tempo, uma extensa produção de saber. A produção de um saber científico sobre o corpo se dá concomitantemente à politização do corpo, que passa a ser objeto de controle. Nesse contexto, se processa uma medicalização minuciosa dos corpos e do sexo das mulheres em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde de seus(suas) filhos(as), à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade como um todo (FOUCAULT, 2009). Foi ainda no século XVIII que a Medicina se configurou como área de saber técnico-científico, de domínio exclusivamente masculino. A medicalização social ocorreu como dispositivo biopolítico, redescrevendo eventos fisiológicos até então considerados como naturais. Diante da nova condição de responsáveis pelo bem-estar das crianças – pela população, portanto - as mulheres, assim como as crianças, foram atingidas prioritariamente pela medicalização dos corpos. A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato de a reprodução ser focalizada na mulher, transformou a questão demográfica em problema de natureza ginecológica e obstétrica, e permitiu a apropriação do corpo feminino como objeto de saber (COSTA et.ali., 2006, p.368-369). Assim, ao longo dos séculos XIX e XX, emergem vários discursos sobre cuidados a serem dispensados aos corpos femininos, principalmente aos corpos de mulheres-mães. Meyer (2005) entende que a rede discursiva de cuidados específicos com os corpos das mulheres-mães que se intensifica no Ocidente levou a uma politização da maternidade, que “atualiza, exacerba, complexifica e multiplica investimentos educativo-assistenciais que têm como foco mulheres-mães” (p.82), instituindo lugares específicos para essas mulheres. A medicalização do corpo das mulheres se mostrou de forma especial nos processos relativos à gravidez e parto. “Centradas, inicialmente, em uma visão bastante pessimista da natureza feminina, a obstetrícia e a ginecologia justificarão toda uma série de inovações científicas (...) que tornaram a mulher um corpo passivo” (TORNQUIST, 2004, p.72). Emily Martin (2006) argumenta que a partir da emergência do capitalismo, o corpo passou a ser visto como uma máquina, uma força de produção. O parto passou a ser entendido como uma linha de montagem, nos moldes tayloristas, onde seriam produzidos humanos. A mulher deixou de ser a protagonista do próprio parto, que agora era comandado pelos médicos. Os saberes femininos relacionados à gestação e parto foram rechaçados em favor dos saberes médico-científicos. Parteiras e comadres, que assistiam parturientes baseadas em saberes construídos pela experiência própria e pela tradição, foram proibidas de partejar. O fórceps permite a intervenção masculina e se tornou instrumento de um novo paradigma do parto, agora entendido como um evento patológico e que devia ser controlado pelo médico homem. O parto assistido por parteiras passou a ser visto como sinônimo de atraso e rusticidade, enquanto o parto medicalizado era associado à civilidade. Assim, percebe-se, a partir do século XX, a transformação do parto, que era entendido como evento fisiológico, natural, feminino e empírico, “em um evento patológico que necessita, na maioria das vezes, de tratamento medicamentoso e cirúrgico, predominando a assistência hospitalar no parto, tornando-o, a partir daí, institucionalizado” (CRIZÓSTOMO; NERY; LUZ, 2007, p.99), e deslocando a mulher da posição de sujeito à de objeto do parto. Carmen Tornquist (2005) reconhece que, embora seja um processo heterogêneo e inconcluso, a hospitalização do parto no Brasil teve início por volta dos anos 1960. A presença do Estado, através do controle das escolas do sistema de saúde e da definição de políticas públicas de atenção ao parto, abriu caminhos para a “entrada massiva da lógica de mercado no campo da saúde neste país, considerado por estudiosas da assistência ao parto como modelo tecnocrático por excelência” (p.97). A fim de esboçar o ideário do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento, Tornquist (2002) recorre ao ideário do Parto sem Dor (SALEM, 1983) e também à Ecologia, movimentos dos quais herdou seus valores. Assim, o MHPN defende a participação do pai ou acompanhante no processo do parto; a valorização do feto e recém-nascido(a) como sujeito dotado de individualidade; o ideal do casal igualitário; a valorização da natureza; a crítica à medicalização da saúde; a inspiração em métodos e técnicas não-ocidentais de cuidados com o corpo e saúde; a ênfase na dimensão sexual do parto; e a incorporação de outros(as) profissionais à equipe de atendimento,uma vez que os médicos foram vistos como símbolos máximos do poder e do saber biomédico, que eram alvos de críticas. A categoria “natureza”, frequente no movimento, teve como desdobramento a recusa ao modelo tecnocrático de assistência ao parto e o questionamento do predomínio da técnica e da cultura sobre processos tidos como naturais. Assim, a busca por uma forma natural de parir destaca os aspectos ritualísticos do parto e remete à categoria instinto universal. Humanizar torna-se sinônimo de animalizar, no sentido de buscar um instinto supostamente universal que foi perdido no processo civilizatório, que subjugou as mulheres à cultura masculina. A partir desses desdobramentos da categoria “natureza”, entende-se que toda mulher tem a capacidade de acessar um suposto instinto a fim de retomar o controle de seu parto e de seu corpo. Para tanto, seria preciso empoderar-se. O empoderamento se daria pelo resgate de saberes que foram subjugados ou esquecidos no processo civilizatório. “No entanto, há um reconhecimento de que é preciso aprender a resgatar esses saberes ancestrais, de onde a necessidade da didática do parir e do maternar” (TORNQUIST, 2002, p.489). Segundo essa lógica, a pedagogia do parto ganha importância como uma tarefa da mulher moderna que não é vítima da maternidade, mas que escolheu ser mãe; que é dona de seu corpo e sua sexualidade. (...) há um feminismo em todas essas imagens de mulheres cuja singularidade (um corpo capaz de gestar e parir) é valorizada como um espaço de poder e de saber. As mulheres são vistas como capazes de ter seus filhos com a mediação e o apoio de outras mulheres, não lapidadas pela formação médica intervencionista (TORNQUIST, 2002, p.489-490). Um movimento que reivindica o protagonismo feminino no parto, excluindo, ou ao menos desvalorizando, o saber médico tradicional, parece se configurar como uma forma de enfrentamento ao biopoder descrito por Foucault (2009), se insurgindo contra a medicalização e tecnologização dos corpos de mulheres-mães. A pedagogia do parto proposta pelo MHPN propõe um resgate de saberes e poderes femininos a partir da desconstrução dos discursos que sustentam o parto como evento patológico, que necessita de hospitalização, tecnologização, intervenções médicas e saberes científicos. Cabe questionar, portanto, se o ciberespaço não seria locus de construção desse suporto empoderamento, ao nível do indivíduo, a partir das trocas de experiências e saberes, e também ao nível coletivo, ao facilitar a articulação dessas demandas com as agendas públicas relativas à saúde reprodutiva feminina. 4. Rede Parto do Princípio A Rede Parto do Princípio (www.partodoprincipio.ocom.br) surgiu em dezembro de 2005, logo após o Congresso +20+05, realizado pela Rede de Humanização do Parto e do nascimento (ReHuNa). Atualmente a Rede congrega mais de duzentas voluntárias, desenvolvendo ações presenciais e na Internet, em busca de romper a suposta uniformidade do discurso de patologização do parto, através do que seria um empoderamento de mulheres que, segundo os princípios da Rede, se daria por meio da informação e da desnaturalização das práticas obstétricas tidas como normais pelo discurso dominante. Da iniciativa do desmembramento de um grupo de mulheres que participava da ReHuNa surgiu da necessidade de compartilhar conhecimentos com outras mulheres. Eu participei da organização do congresso da ReHuNa e há tempos era chamada para participar de mesas e representar as usuárias. Neste congresso muitas usuárias compareceram e senti a necessidade de formar um grupo que nos representasse. Inicialmente criei uma lista de discussão de e-mails chamada "Rede de Mulheres 2006". Já existiam blogs e a lista de discussão "PartoNosso" e "Materna_SP" do yahoogrupos de onde saíram a maioria das mulheres que ingressaram nessa Rede. Em 2006 pensamos no nome e após alguns palpites surgiu o nome Parto do Princípio. O nome busca sintetizar a ideia de resgate do parto de antigamente (do princípio), com o cunho filosófico (parto do princípio que...) que toda a questão carrega (LOFTI, 2012). O dia 08 de março de 2006 é considerado pelas membras do grupo como a data da instituição da Rede, pois corresponde à inauguração do site. Percebe-se, desde o início das atividades do grupo, a importância do uso do ciberespaço para a sustentação de suas práticas, articulação e exposição de ideias e construção do almejado empoderamento feminino. O principal objetivo da Rede, exposto no site, é: (...) a retomada, pela mulher, do protagonismo de seus processos de gestação, parto e pós-parto. Somos, a priori, uma rede que busca resgatar o direito de cada mulher ao que chamamos de escolha informada: obter informações, tomar decisões conscientes com base nas informações obtidas e, finalmente, assumir responsabilidade sobre as decisões tomadas. (...) Move-nos, portanto, o intuito de formar uma rede de apoio e solidariedade onde encontre suporte cada mulher que alimente o desejo de retomar para si o protagonismo de sua gravidez, das decisões sobre seu corpo, de sua vida. Nossa proposta é oferecer apoio não apenas emocional, mas também prático para que obtenham sucesso em sua busca e descubram o infinito de possibilidades que oferece a maternidade ativa e consciente à mulher que se dispõe a tomar em suas mãos as rédeas de sua vida (site da ReHuNa). Percebe-se o viés político da Rede, sustentada no apoio e solidariedade com o objetivo de trazer não apenas um empoderamento individual, mas coletivo. Acreditamos que o primeiro passo no processo de retomada do protagonismo deve dar-se no âmbito do indivíduo. É preciso, antes de tudo, que cada mulher encontre dentro de si a força e a possibilidade da mudança. E é esse que pensamos ser nosso papel: estender a mão a cada mulher que deseje vivenciar sua gravidez ativa e conscientemente e parir de forma natural e transformadora. O site tem conteúdo diversificado, que mescla relatos pessoais, colunas de opinião, artigos científicos, notícias a respeito de políticas públicas relacionadas ao tema. Além disso, traz enquetes, cartas de leitoras, e disponibiliza a agenda da Rede, com as diversas ações que acontecem em todo o país. Um espaço interessante dentro do site é o Proteste!, onde são organizados abaixo-assinados eletrônicos, a exemplo do abaixo assinado pela abolição da taxa de acompanhante nos hospitais, que está em curso atualmente. Além do site, a Rede conta com perfil no Twitter (@partodoprincipio), listas de discussão, perfil no Facebook (https://www.facebook.com/parto.doprincipio.9), além de grupo de discussão no Facebook (https://www.facebook.com/groups/partodoprincipio). Ingrid Lofti (2012) explica que a atualização dos perfis nas redes sociais é feita por todas, em um processo de autogestão. Entendemos, assim, que a Rede tem na Internet um locus privilegiado de atividade política, através de interações sociais e produção de sentidos. Para nos acercar desse objeto, entendemos que a metodologia etnográfica é a mais eficiente, ao permitir desvelar as estruturas de significados compartilhados pelo grupo que compõe a Rede. A partir do conceito semiótico de cultura proposto por Geertz (1978), é preciso ajustar a metodologia etnográfica ao grupo em questão, pois não são os métodos e procedimentos que definem a etnografia, e sim o esforço intelectual da descrição densa. Dessa forma, entendemos ser necessário aplicar a técnica etnográfica tanto nas estruturas do ciberespaço utilizadas pela Rede quanto nos eventos presenciais, buscando as múltiplas estruturas conceituais complexas. É essa participação (mesmo que invisível) no grupo que irá viabilizar a apreensão dos aspectos daquela cultura possibilitando a elaboração posterior de uma descrição densa, que demanda uma compreensão detalhada dos significados compartilhados por seus membros e da rede de significação em questão (BRAGA, 2006, p.5). Ao entender, com Castells (1999), que há uma nova forma de espaço que adquire importância crescente na estruturação das relações sociais, um espaço como uma instância de fluxos que se organiza a partir de conexões e interações, defendemos que “o campo da etnografia poderia converter-se no estudo dos espaços de fluxos, e estruturar-se em torno das conexões mais que sobre lugares concretos e delimitados” (HINE, 2000, p. 77).3 A autora sustenta ainda que a etnografia virtual ou netnografia deve problematizar o uso próprio da Internet. “O status da rede como forma de comunicação, como objeto dentro da vida das pessoas e como lugar de estabelecimento de comunidades, sobrevive através dos usos, interpretados e reinterpretados, que se Tradução nossa. No original: “(…) el campo de la etnografía podría convertirse en el estudio de espacios de flujos, y estructurarse alrededor de las conexiones más que sobre lugares concretos y delimitados” 3 fazem dela” (HINE, 2000, p.80).4 Assim, buscamos apreender não apenas as significações dos conteúdos postados no site, Twitter, e listas de discussão em estudo, mas também problematizar o uso da Internet como ambiente discussão, deliberação democrática e visibilidade, e como locus de compartilhamento de experiências relativas ao protagonismo feminino no processos relacionados à gestação e de sustentação do ativismo que se dá também em ações presenciais. 5. Considerações finais Entendemos de que a organização em rede, de forma não-hierárquica, operada pelas mulheres da Rede se configura em uma forma de participação política colaborativa, ao lançarem-se não apenas ao debate de suas demandas e necessidades, mas também ao utilizar a Internet em suas diversas estruturas como forma de sustentar e maximizar as ações presenciais orquestradas pelo grupo. A compreensão das demandas desse grupo se dá a partir da causa mestra, que guia todas as ações empreendidas. A defesa do protagonismo feminino nos processos relacionados à gestação e parto se justifica pelo entendimento de que a medicalização e tecnologização da vida aconteceram em um contexto de submissão das mulheres a uma ordem patriarcal. Embora essa pesquisa ainda esteja em gestação, acreditamos ser possível reconhecer na Rede Parto do Princípio um grupo que se utiliza do ciberespaço para elaborar e circular discursos sobre a humanização do parto, em consonância com ações presenciais. A partir da apropriação da esfera pública digital, pode-se perceber articulações de sentidos e deslocamentos nas relações de poder e na cultura de gênero. Ao longo da investigação, acreditamos ser factível compreender os mecanismos de participação política proporcionados pelo ambiente da Internet, apontando para uma possível reestruturação da esfera pública. Tradução nossa. No original: “El estatus de la Red como forma de comunicación, como objeto dentro de La vida de lãs personas y como lugar de establecimiento de comunidades, pervive a través de los usos, interpretados y reinterpretados, que se hacen de ella” 4 6. REFERÊNCIAS BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro, 1980. BRAGA, Adriana. Personas materno-eletrônicas: feminilidade e interação no blog Mothern. Porto Alegre: Sulina, 2008. _____________. Técnica etnográfica aplicada à comunicação on-line: uma discussão metodológica. UNIrevista,São Leopoldo, vol. 1, nº 3, jul/2006. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. COSTA, Tonia et. al .Naturalização e medicalização do corpo feminino: o controle social por meio da reprodução. Interface – Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v.10, n.20, p.363-380, jul-dez 2006. CRIZÓSTOMO, Cilene; NERY, Inez; LUZ, Maria Helena. A vivência das mulheres no parto domiciliar e hospitalar. Esc Anna Nery R Enferm,v.1, n.11, p.98-104, 2007. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GOMES, Wilson. A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política. Fronteiras - estudos midiáticos. VII(3), p.214-222, set/dez 2005. ____. Internet e participação política em sociedades democráticas. Revista FAMECOS. Porto Alegre, n.27, p.58-78, ago 2008. HINE, Christine. Etnografia Virtual. Barcelona: UOC, 2000. LOFTI, Ingrid. Parto do Princípio. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por [email protected] em 26 set 2012. MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. MEYER, Dagmar E. Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Gênero. Niterói, v.6, n.1, p. 81-104, 2.sem. 2005. SALEM, Tânia. O ideário do parto sem dor: uma leitura antropológica. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, Museu Nacional, n. 40, p.1-27, ago.1983. TORNQUIST, Carmen Susana. Armadilhas da nova era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.10, n.2, p.483-492, jul 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2002000200016&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 23.08.11. ____. Parto e poder: O movimento pela humanização do parto no Brasil. (Doutorado em Antropologia Social). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, 2004. ____. O Parto Humanizado e a ReHuNa. II Seminário Nacional de Movimentos Sociais, Participação e Democracia. Florianópolis, p. 145-160, 2007. YALOM, Marilyn. A história do seio. Lisboa: Teorema, 1997.