IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte
e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho 24: Partos, maternidade e políticas do corpo: saberes locais
e experiências transnacionais
Título do Trabalho: Ação Política e Humanização do Parto na Esfera Pública
Digital
Clarissa Sousa de Carvalho. [email protected]. PUC-Rio
Adriana Andrade Braga. [email protected]. PUC-Rio/CNPq
1. Introdução
O presente artigo discute os usos da Internet por grupos da sociedade civil,
como forma de participação democrática, em uma possível reestruturação da esfera
pública. A partir de pesquisa em andamento no âmbito do Doutorado em Comunicação
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, analisa-se, de forma mais
específica, como a Rede1 Parto do Princípio, que é parte de um movimento maior pela
humanização do parto e do nascimento no Brasil, se utiliza de diferentes estruturas da
Web a fim de sustentar práticas de participação e deliberação populares na esfera
pública digital, em consonância com ações políticas presenciais.
Os movimentos de Humanização do Parto defendem a resistência a um modelo
obstétrico que, segundo seu entendimento, subjulga a mulher a uma posição “passiva”,
através da perda do controle sobre o próprio corpo, da submissão de seus saberes ao
saber médico-obstétrico e, em última análise, do desrespeito a seus direitos
reprodutivos. A retomada do controle sobre o próprio corpo e seus processos é parte
do ideário que sustenta esse movimento.
O objetivo geral da pesquisa é identificar na Rede Parto do Princípio os usos da
infraestrutura da Internet, como meio de otimizar a participação democrática, em favor
de causas relacionadas à saúde reprodutiva feminina, bem como a articulação dos
discursos e práticas adotados on-line às ações presenciais da Rede. Para tanto,
pretende-se mapear as estruturas da Internet utilizadas pela Rede, identificar os
sentidos compartilhados pelo movimento em relação à articulação maternidade e
cidadania, analisar as relações entre as ações orquestradas na Internet e as ações
presenciais e esclarecer as posições de poder e de afirmação identitária de gênero no
exercício dessa participação política.
A partir da aplicação de metodologia etnográfica nos ambientes digitais e nos
eventos presenciais, pretende-se produzir dados que esclareçam as articulações,
Nesse artigo, a Rede Parto do Princípio será referida como Rede, com inicial maiúscula, a fim de evitar
possíveis imprecisões em relação à rede mundial de computadores ou à rede hospitalar referidas ao
longo do texto.
1
deslocamentos de poder e construção e disseminação de discursos possibilitados pela
infraestrutura da Internet, apontando para uma possível reconfiguração da esfera
pública. De posse desses dados pretende-se reconhecer/identificar os mecanismos de
utilização dos ambientes digitais para o ativismo político.
2. Internet e Esfera Pública Digital
O crescimento exponencial da Internet e da Comunicação Mediada por
Computador (CMC) nos últimos anos, conectando pessoas de diferentes lugares, fez
emergir novas possibilidades de interação social e de intercâmbio de conteúdos
simbólicos. Diferente dos meios de comunicação tradicionais, como a TV e o rádio, a
Internet permite a realização concomitante de produção e recepção de conteúdo.
A Internet é um meio interativo que possiblita comunicação e feedback em dois
sentidos, permitindo trocas de mensagens de um-para-um, como no caso dos
e-mails; um-para-muitos, como é o caso das webpages; muitos-para-um, no
caso de navegação em busca de informação e muitos-para-muitos, como no
caso das listas de discussão, e todos relacionados a uma base de dados
comum (BRAGA, 2008, p.43)
Wilson Gomes (2005) defende que o advento do formato Web da Internet
acarretou em grandes expectativas no que concerne às possibilidades de participação
democrática, a partir de novos arranjos possibilitados pela esfera pública digital.
Buscando fugir de posições extremistas em relação às efetivas melhorias que o
ciberespaço pode trazer para a participação democrática, o autor problematiza os usos
da Internet pela esfera civil como forma de participação democrática, em uma possível
reestruturação da esfera pública. Assim, aponta para a importância da discussão a
respeito das consequências do uso da Internet para um novo modelo de democracia
capaz de fomentar a participação da esfera civil na decisão política. “A questão em tela
é sobre se as novas tecnologias da comunicação podem, de fato, alterar para melhor
as possibilidades da cidadania nas sociedades contemporâneas” (GOMES, 2005,
p.216).
Para tanto, é preciso entender primeiro que os modelos contemporâneos de
democracia representativa se desenvolveram de modo a configurar uma esfera da
decisão política separada da sociedade ou esfera civil. Tem-se, assim, uma crise do
modelo de democracia representativa, que se dá justamente pela cisão entre esfera
civil, considerada o “coração dos regimes democráticos”, que autoriza mas não
governa; e uma esfera política, cuja função é produzir a decisão política. O único
vínculo constitucional entre essas duas esferas é de natureza eleitoral. Dessa forma, a
participação
democrática
se
restringe
quase
completamente
à
escolha
dos
representantes políticos.
Se historicamente a alternativa à democracia representativa tem sido a
democracia direta, cabe ressaltar que esse modelo não se sustenta devido ao grau de
complexidade do Estado e à consolidação da sociedade de massa.
A esperança de uma terceira via entre esses dois modelos de democracia
parece emergir com a introdução de uma nova infraestrutura tecnológica. Assim, a
democracia digital2 se configura como uma alternativa para a implantação de uma nova
experiência democrática, fundada numa reestruturação da esfera civil, a partir do
incremento das potencialidades de participação cidadã nos processos decisórios, e
também de canais de expressão das demandas públicas que, de outro modo, não
chegariam a representantes políticos.
Gomes (2005) relaciona alguns pressupostos em relação à Internet e à
participação política civil que sustentam a ideia de ciberdemocracia:
a)
A Internet resolveria o problema do déficit de participação política das
democracias contemporâneas, uma vez que tornaria essa participação mais
ágil, conveniente e confortável;
Democracia eletrônica, ciberdemocracia, e-democracy são expressões usadas para designar o mesmo
conceito.
2
b)
A Internet resolveria também a questão dos intermediários entre a esfera
civil e a esfera política. Eliminariam-se as influências da esfera econômica, das
indústrias do entretenimento, da cultura e da informação de massa;
c)
A Internet evitaria que o fluxo da comunicação política acontecesse da
esfera política para a esfera civil, unilateralmente. Nesse sentido, “representaria
a possibilidade de que a esfera civil produzisse informação política para seu
próprio consumo e para o provimento da sua decisão” (GOMES, 2005, p.218).
É preciso esclarecer, no entanto, que há diferentes graus de participação
popular proporcionados pelo uso do ciberespaço. Esses gradientes de democracia
digital são determinados pela maior ou menor porosidade do Estado à participação
popular, que se efetiva a partir do uso da infraestrutura da Internet, em diferentes níveis
e com resultados efetivos diversos. Cabe também enfatizar que tratam-se de modelos
puramente teóricos, que nos ajudam a refletir sobre as formas de participação popular
e possibilitam a elaboração e execução de projetos voltados à melhoria do processo
democrático.
Reconhecendo os limites da democracia digital, Gomes (2005) destaca a
dificuldade de se apontar os efeitos das deliberações da esfera pública digital na
produção da decisão política, uma vez que tais deliberações não ocorrem somente na
Internet e costumam ser acompanhadas por outras ações. A esse respeito, o autor
considera mais sensato voltar a atenção para a identificação de deliberações nos
ambientes digitais, compreendendo-as como debate. “A rigor, em parte considerável
dos casos trata-se de uma esfera pública não-deliberativa ou simplesmente daquilo que
podemos chamar de conversação civil, quando a reivindicação da democracia forte
seria uma esfera pública deliberativa civil” (p.220)
Sem desconsiderar que o acesso à Internet e aos saberes dos quais dependem
seu uso não acontece de forma democrática, principalmente em se tratando de países
em vias de desenvolvimento, como o Brasil, torna-se relevante perguntar de que
maneiras grupos organizados se utilizam dessa infraestrutra tecnológica, ou mesmo se
organizam através dela, para publicizar discursos que não encontram espaço nas
mídias tradicionais e debater demandas sociais com pouco ou nenhum espaço na
agenda pública.
A apropriação do ciberespaço, de forma organizada e em diferentes estruturas,
orquestrada com outras ações de natureza política, pode ser uma maneira que grupos
minoritários encontram para se fazer visíveis e levar suas demandas e necessidades
para a esfera política de decisão.
3. Hospitalização x humanização do parto
Segundo Dagmar Meyer (2005), nas sociedades ocidentais contemporâneas
vivencia-se um período de intensa “politização do feminino e da maternidade” (p.81),
com discursos que são incorporados e difundidos pelas políticas de Estado, manuais e
meios de comunicação de massa. Tal politização da maternidade e do feminino se dá
na articulação entre discursos médicos, jurídicos, pedagógicos, psicológicos,
articulando forças sociais e produzindo outro discurso, aparentemente unitário, sobre a
maternidade. A institucionalização e tecnologização do parto fazem parte desse
discurso normativo que posiciona as práticas intervencionistas como mais seguras para
mães e filhos(as), muitas vezes sem questionar as dimensões simbólicas e rituais do
parto, se assentando nos poderes e saberes médicos, que dificilmente são
contestados.
Como reação a esse modelo, surgiu, no final dos anos 1980, um movimento
social pela humanização do parto e do nascimento, que propõe mudanças no
atendimento ao parto, tendo como base consensual a proposta da Organização
Mundial da Saúde (OMS) de 1985. As medidas propostas pelo movimento buscam
desestimular o parto medicalizado, entendido como violento, artificial e tecnologizado, e
incentivar práticas e intervenções biomecânicas, consideradas como mais adequadas à
fisiologia do parto (TORNQUIST, 2005). O modelo tecnocrático de assistência ao parto
é criticado a partir de dois eixos:
(...) um, de que o parto, ao contrário do que postula a versão medicalizada, não
é um evento patológico, mas sim existencial e social, vinculado à sexualidade
da mulher e à vida da família, e outro, de que o parto hospitalizado introduz
uma série de recursos e procedimentos não-naturais (ou mesmo anti-naturais)
que afastariam tanto a mulher quanto o bebê de sua suposta ‘natureza’,
destituindo-os de seus direitos à vida e à boa saúde (TORNQUIST, 2005,
p.484)
A pesquisadora enfatiza a interlocução do Movimento pela Humanização do
Parto e do Nascimento com órgãos públicos de gestão da saúde coletiva, de forma que
grupos e redes atuam em parceria com agências estatais, resultando em ações
concretas que visam modificar o atendimento ao parto na rede hospitalar e fora dela,
especialmente nas regiões em que há deficiência do serviço médico oficial.
Durante um longo período, o parto foi um evento do âmbito doméstico, feminino,
entendido como fenômeno fisiológico e natural. Para entender a institucionalização
desse evento, que a partir do século XX passou a exigir saberes científicos, e não mais
empíricos, passando das mãos de parteiras mulheres a médicos homens, é preciso
situar o parto como evento produzido na e pela cultura.
Badinter (1980) defende que, no último terço do século XVIII, iniciou-se uma
revolução das mentalidades. Se antes se buscava educar súditos dóceis para Sua
Majestade, a preocupação das classes dirigentes passou a ser produzir seres humanos
para compor a riqueza do Estado. Assim, ocorreu uma transformação nas práticas de
cuidados dispensados a crianças, que passam a ter valor inestimável. As mulheres
foram alçadas à posição de interlocutoras entre o Estado e a família, e responsáveis
pela nação.
Marilyn Yalom (1997) refere-se à “politização do seio feminino” para descrever o
processo que posicionou a mulher, como mãe, no centro das políticas de gestão da
vida nas sociedades ocidentais modernas. Nesse contexto, há um processo de
educação e medicalização dos corpos das mulheres em nome de sua responsabilidade
na criação de filhos(as) saudáveis para a salvação da sociedade.
A medicalização do corpo das mulheres aconteceu dentro de um contexto maior
de medicalização da vida privada, através de mecanismos de biopoder (FOUCAULT,
2009) que visavam o controle populacional, a disciplinarização da força de trabalho e a
higienização dos espaços e das relações sociais. Para Michel Foucault, a partir do
século XVII, operou-se um intenso processo de politização dos corpos, através do qual
desenvolveu-se a organização do poder sobre a vida, que se articula em dois polos:
Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo
como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na
extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade,
na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso
assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais
tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no
corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a
duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los
variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções
e controles reguladores: uma bio-política da população” (FOUCAULT, 2009, p.
151-152).
Nos processos em que se exerce o biopoder, acontece, ao mesmo tempo, uma
extensa produção de saber. A produção de um saber científico sobre o corpo se dá
concomitantemente à politização do corpo, que passa a ser objeto de controle. Nesse
contexto, se processa uma medicalização minuciosa dos corpos e do sexo das
mulheres em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde de
seus(suas) filhos(as), à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade como
um todo (FOUCAULT, 2009).
Foi ainda no século XVIII que a Medicina se configurou como área de saber
técnico-científico, de domínio exclusivamente masculino. A medicalização social
ocorreu como dispositivo biopolítico, redescrevendo eventos fisiológicos até então
considerados como naturais. Diante da nova condição de responsáveis pelo bem-estar
das crianças – pela população, portanto - as mulheres, assim como as crianças, foram
atingidas prioritariamente pela medicalização dos corpos.
A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato de a reprodução ser
focalizada na mulher, transformou a questão demográfica em problema de
natureza ginecológica e obstétrica, e permitiu a apropriação do corpo feminino
como objeto de saber (COSTA et.ali., 2006, p.368-369).
Assim, ao longo dos séculos XIX e XX, emergem vários discursos sobre
cuidados a serem dispensados aos corpos femininos, principalmente aos corpos de
mulheres-mães. Meyer (2005) entende que a rede discursiva de cuidados específicos
com os corpos das mulheres-mães que se intensifica no Ocidente levou a uma
politização da maternidade, que “atualiza, exacerba, complexifica e multiplica
investimentos educativo-assistenciais que têm como foco mulheres-mães” (p.82),
instituindo lugares específicos para essas mulheres.
A medicalização do corpo das mulheres se mostrou de forma especial nos
processos relativos à gravidez e parto. “Centradas, inicialmente, em uma visão
bastante pessimista da natureza feminina, a obstetrícia e a ginecologia justificarão toda
uma série de inovações científicas (...) que tornaram a mulher um corpo passivo”
(TORNQUIST, 2004, p.72).
Emily Martin (2006) argumenta que a partir da emergência do capitalismo, o
corpo passou a ser visto como uma máquina, uma força de produção. O parto passou a
ser entendido como uma linha de montagem, nos moldes tayloristas, onde seriam
produzidos humanos. A mulher deixou de ser a protagonista do próprio parto, que
agora era comandado pelos médicos. Os saberes femininos relacionados à gestação e
parto foram rechaçados em favor dos saberes médico-científicos. Parteiras e
comadres, que assistiam parturientes baseadas em saberes construídos pela
experiência própria e pela tradição, foram proibidas de partejar. O fórceps permite a
intervenção masculina e se tornou instrumento de um novo paradigma do parto, agora
entendido como um evento patológico e que devia ser controlado pelo médico homem.
O parto assistido por parteiras passou a ser visto como sinônimo de atraso e
rusticidade, enquanto o parto medicalizado era associado à civilidade.
Assim, percebe-se, a partir do século XX, a transformação do parto, que era
entendido como evento fisiológico, natural, feminino e empírico, “em um evento
patológico que necessita, na maioria das vezes, de tratamento medicamentoso e
cirúrgico, predominando a assistência hospitalar no parto, tornando-o, a partir daí,
institucionalizado” (CRIZÓSTOMO; NERY; LUZ, 2007, p.99), e deslocando a mulher da
posição de sujeito à de objeto do parto.
Carmen Tornquist (2005) reconhece que, embora seja um processo
heterogêneo e inconcluso, a hospitalização do parto no Brasil teve início por volta dos
anos 1960. A presença do Estado, através do controle das escolas do sistema de
saúde e da definição de políticas públicas de atenção ao parto, abriu caminhos para a
“entrada massiva da lógica de mercado no campo da saúde neste país, considerado
por estudiosas da assistência ao parto como modelo tecnocrático por excelência”
(p.97).
A fim de esboçar o ideário do Movimento pela Humanização do Parto e do
Nascimento, Tornquist (2002) recorre ao ideário do Parto sem Dor (SALEM, 1983) e
também à Ecologia, movimentos dos quais herdou seus valores. Assim, o MHPN
defende a participação do pai ou acompanhante no processo do parto; a valorização do
feto e recém-nascido(a) como sujeito dotado de individualidade; o ideal do casal
igualitário; a valorização da natureza; a crítica à medicalização da saúde; a inspiração
em métodos e técnicas não-ocidentais de cuidados com o corpo e saúde; a ênfase na
dimensão sexual do parto; e a incorporação de outros(as) profissionais à equipe de
atendimento,uma vez que os médicos foram vistos como símbolos máximos do poder e
do saber biomédico, que eram alvos de críticas.
A categoria “natureza”, frequente no movimento, teve como desdobramento a
recusa ao modelo tecnocrático de assistência ao parto e o questionamento do
predomínio da técnica e da cultura sobre processos tidos como naturais. Assim, a
busca por uma forma natural de parir destaca os aspectos ritualísticos do parto e
remete à categoria instinto universal. Humanizar torna-se sinônimo de animalizar, no
sentido de buscar um instinto supostamente universal que foi perdido no processo
civilizatório, que subjugou as mulheres à cultura masculina.
A partir desses desdobramentos da categoria “natureza”, entende-se que toda
mulher tem a capacidade de acessar um suposto instinto a fim de retomar o controle de
seu parto e de seu corpo. Para tanto, seria preciso empoderar-se. O empoderamento
se daria pelo resgate de saberes que foram subjugados ou esquecidos no processo
civilizatório. “No entanto, há um reconhecimento de que é preciso aprender a resgatar
esses saberes ancestrais, de onde a necessidade da didática do parir e do maternar”
(TORNQUIST, 2002, p.489). Segundo essa lógica, a pedagogia do parto ganha
importância como uma tarefa da mulher moderna que não é vítima da maternidade,
mas que escolheu ser mãe; que é dona de seu corpo e sua sexualidade.
(...) há um feminismo em todas essas imagens de mulheres cuja singularidade
(um corpo capaz de gestar e parir) é valorizada como um espaço de poder e de
saber. As mulheres são vistas como capazes de ter seus filhos com a
mediação e o apoio de outras mulheres, não lapidadas pela formação médica
intervencionista (TORNQUIST, 2002, p.489-490).
Um movimento que reivindica o protagonismo feminino no parto, excluindo, ou
ao menos desvalorizando, o saber médico tradicional, parece se configurar como uma
forma de enfrentamento ao biopoder descrito por Foucault (2009), se insurgindo contra
a medicalização e tecnologização dos corpos de mulheres-mães.
A pedagogia do parto proposta pelo MHPN propõe um resgate de saberes e
poderes femininos a partir da desconstrução dos discursos que sustentam o parto
como evento patológico, que necessita de hospitalização, tecnologização, intervenções
médicas e saberes científicos.
Cabe questionar, portanto, se o ciberespaço não seria locus de construção
desse suporto empoderamento, ao nível do indivíduo, a partir das trocas de
experiências e saberes, e também ao nível coletivo, ao facilitar a articulação dessas
demandas com as agendas públicas relativas à saúde reprodutiva feminina.
4. Rede Parto do Princípio
A Rede Parto do Princípio (www.partodoprincipio.ocom.br) surgiu em dezembro
de 2005, logo após o Congresso +20+05, realizado pela Rede de Humanização do
Parto e do nascimento (ReHuNa). Atualmente a Rede congrega mais de duzentas
voluntárias, desenvolvendo ações presenciais e na Internet, em busca de romper a
suposta uniformidade do discurso de patologização do parto, através do que seria um
empoderamento de mulheres que, segundo os princípios da Rede, se daria por meio
da informação e da desnaturalização das práticas obstétricas tidas como normais pelo
discurso dominante. Da iniciativa do desmembramento de um grupo de mulheres que
participava da ReHuNa surgiu da necessidade de compartilhar conhecimentos com
outras mulheres.
Eu participei da organização do congresso da ReHuNa e há tempos era
chamada para participar de mesas e representar as usuárias. Neste congresso
muitas usuárias compareceram e senti a necessidade de formar um grupo que
nos representasse. Inicialmente criei uma lista de discussão de e-mails
chamada "Rede de Mulheres 2006". Já existiam blogs e a lista de discussão
"PartoNosso" e "Materna_SP" do yahoogrupos de onde saíram a maioria das
mulheres que ingressaram nessa Rede. Em 2006 pensamos no nome e após
alguns palpites surgiu o nome Parto do Princípio. O nome busca sintetizar a
ideia de resgate do parto de antigamente (do princípio), com o cunho filosófico
(parto do princípio que...) que toda a questão carrega (LOFTI, 2012).
O dia 08 de março de 2006 é considerado pelas membras do grupo como a data
da instituição da Rede, pois corresponde à inauguração do site. Percebe-se, desde o
início das atividades do grupo, a importância do uso do ciberespaço para a sustentação
de suas práticas, articulação e exposição de ideias e construção do almejado
empoderamento feminino.
O principal objetivo da Rede, exposto no site, é:
(...) a retomada, pela mulher, do protagonismo de seus processos de gestação,
parto e pós-parto. Somos, a priori, uma rede que busca resgatar o direito de
cada mulher ao que chamamos de escolha informada: obter informações,
tomar decisões conscientes com base nas informações obtidas e, finalmente,
assumir responsabilidade sobre as decisões tomadas. (...) Move-nos, portanto,
o intuito de formar uma rede de apoio e solidariedade onde encontre suporte
cada mulher que alimente o desejo de retomar para si o protagonismo de sua
gravidez, das decisões sobre seu corpo, de sua vida. Nossa proposta é
oferecer apoio não apenas emocional, mas também prático para que obtenham
sucesso em sua busca e descubram o infinito de possibilidades que oferece a
maternidade ativa e consciente à mulher que se dispõe a tomar em suas mãos
as rédeas de sua vida (site da ReHuNa).
Percebe-se o viés político da Rede, sustentada no apoio e solidariedade com o
objetivo de trazer não apenas um empoderamento individual, mas coletivo.
Acreditamos que o primeiro passo no processo de retomada do protagonismo
deve dar-se no âmbito do indivíduo. É preciso, antes de tudo, que cada mulher
encontre dentro de si a força e a possibilidade da mudança. E é esse que
pensamos ser nosso papel: estender a mão a cada mulher que deseje
vivenciar sua gravidez ativa e conscientemente e parir de forma natural e
transformadora.
O site tem conteúdo diversificado, que mescla relatos pessoais, colunas de
opinião, artigos científicos, notícias a respeito de políticas públicas relacionadas ao
tema. Além disso, traz enquetes, cartas de leitoras, e disponibiliza a agenda da Rede,
com as diversas ações que acontecem em todo o país. Um espaço interessante dentro
do site é o Proteste!, onde são organizados abaixo-assinados eletrônicos, a exemplo
do abaixo assinado pela abolição da taxa de acompanhante nos hospitais, que está em
curso atualmente.
Além do site, a Rede conta com perfil no Twitter (@partodoprincipio), listas de
discussão, perfil no Facebook (https://www.facebook.com/parto.doprincipio.9), além de
grupo de discussão no Facebook (https://www.facebook.com/groups/partodoprincipio).
Ingrid Lofti (2012) explica que a atualização dos perfis nas redes sociais é feita por
todas, em um processo de autogestão.
Entendemos, assim, que a Rede tem na Internet um locus privilegiado de
atividade política, através de interações sociais e produção de sentidos. Para nos
acercar desse objeto, entendemos que a metodologia etnográfica é a mais eficiente, ao
permitir desvelar as estruturas de significados compartilhados pelo grupo que compõe
a Rede.
A partir do conceito semiótico de cultura proposto por Geertz (1978), é preciso
ajustar a metodologia etnográfica ao grupo em questão, pois não são os métodos e
procedimentos que definem a etnografia, e sim o esforço intelectual da descrição
densa. Dessa forma, entendemos ser necessário aplicar a técnica etnográfica tanto nas
estruturas do ciberespaço utilizadas pela Rede quanto nos eventos presenciais,
buscando as múltiplas estruturas conceituais complexas.
É essa participação (mesmo que invisível) no grupo que irá viabilizar a
apreensão dos aspectos daquela cultura possibilitando a elaboração posterior
de uma descrição densa, que demanda uma compreensão detalhada dos
significados compartilhados por seus membros e da rede de significação em
questão (BRAGA, 2006, p.5).
Ao entender, com Castells (1999), que há uma nova forma de espaço que
adquire importância crescente na estruturação das relações sociais, um espaço como
uma instância de fluxos que se organiza a partir de conexões e interações, defendemos
que “o campo da etnografia poderia converter-se no estudo dos espaços de fluxos, e
estruturar-se em torno das conexões mais que sobre lugares concretos e delimitados”
(HINE, 2000, p. 77).3
A autora sustenta ainda que a etnografia virtual ou netnografia deve
problematizar o uso próprio da Internet. “O status da rede como forma de comunicação,
como objeto dentro da vida das pessoas e como lugar de estabelecimento de
comunidades, sobrevive através dos usos, interpretados e reinterpretados, que se
Tradução nossa. No original: “(…) el campo de la etnografía podría convertirse en el estudio de
espacios de flujos, y estructurarse alrededor de las conexiones más que sobre lugares concretos y
delimitados”
3
fazem dela” (HINE, 2000, p.80).4 Assim, buscamos apreender não apenas as
significações dos conteúdos postados no site, Twitter, e listas de discussão em estudo,
mas também problematizar o uso da Internet como ambiente discussão, deliberação
democrática e visibilidade, e como locus de compartilhamento de experiências relativas
ao protagonismo feminino no processos relacionados à gestação e de sustentação do
ativismo que se dá também em ações presenciais.
5. Considerações finais
Entendemos de que a organização em rede, de forma não-hierárquica, operada
pelas mulheres da Rede se configura em uma forma de participação política
colaborativa, ao lançarem-se não apenas ao debate de suas demandas e
necessidades, mas também ao utilizar a Internet em suas diversas estruturas como
forma de sustentar e maximizar as ações presenciais orquestradas pelo grupo.
A compreensão das demandas desse grupo se dá a partir da causa mestra, que
guia todas as ações empreendidas. A defesa do protagonismo feminino nos processos
relacionados à gestação e parto se justifica pelo entendimento de que a medicalização
e tecnologização da vida aconteceram em um contexto de submissão das mulheres a
uma ordem patriarcal.
Embora essa pesquisa ainda esteja em gestação, acreditamos ser possível
reconhecer na Rede Parto do Princípio um grupo que se utiliza do ciberespaço para
elaborar e circular discursos sobre a humanização do parto, em consonância com
ações presenciais. A partir da apropriação da esfera pública digital, pode-se perceber
articulações de sentidos e deslocamentos nas relações de poder e na cultura de
gênero. Ao longo da investigação, acreditamos ser factível compreender os
mecanismos de participação política proporcionados pelo ambiente da Internet,
apontando para uma possível reestruturação da esfera pública.
Tradução nossa. No original: “El estatus de la Red como forma de comunicación, como objeto dentro de
La vida de lãs personas y como lugar de establecimiento de comunidades, pervive a través de los usos,
interpretados y reinterpretados, que se hacen de ella”
4
6. REFERÊNCIAS
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Círculo do Livro, 1980.
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