II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem:
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ESTRATÉGIAS NARRATIVAS NO ROMANCE LA CIUDAD AUSENTE
FIORUCI, Wellington Ricardo (UTFPR-Pato Branco)
RESUMO: La ciudad ausente, romance do escritor argentino Ricardo Piglia, data de
1992, situando-se diacronicamente, portanto, no espaço discursivo da pós-modernidade,
linguagem representativa da contemporaneidade. Com efeito, verifica-se na imbricada
tessitura narrativa do romance um acentuado jogo com as vozes narrativas, dando um
caráter bastante experimental a este elaborado texto de Piglia. Levando em consideração
as influências sobre a poética do autor, percebe-se o diálogo com a tradição borgeana e
joyceana, expoentes, por sua vez, da narrativa ocidental do século XX, bem como o
intertexto com a obra de/ outro autor argentino, a saber, Macedonio Fernández. El
museo de la novela de la eterna, obra poliédrica de caráter explicitamente
metaficcional, revela-se como contraponto literário essencial na composição
metapoética de Piglia. Os artifícios macedonianos são colocados à prova neste espaço
narrativo caudaloso que é o terreno no qual se desenvolve o romance La ciudad ausente.
Assim, as metáforas que tratam da memória e do discurso no texto de Macedonio são
reelaboradas por Piglia, leitor crítico por antonomásia de seu antecessor. Por meio de
uma linguagem marcadamente inventiva, La ciudad ausente investe em estratégias
narrativas sofisticadas para contar uma estória com traços policiais, revelando que a
trama narrativa resiste ao tempo. Nos vários extratos narrativos que compõem a obra,
há, no entanto, um fio condutor histórico que deixa sua indelével assinatura crítica,
provocando no leitor a percepção para um olhar mais aguçado.
PALAVRAS-CHAVE: La ciudad ausente; Ricardo Piglia; pós-modernismo;
estratégias narrativas.
Quando Ricardo Piglia publica em 1992 seu segundo romance, La ciudad
ausente, o contexto histórico na Argentina, assim como na América Latina, havia
mudado consideravelmente em relação à década anterior. A principal mudança era de
ordem política e consistia na transição do regime ditatorial para o democrático, sob cuja
égide do terror também haviam passado e amargado longos anos os países vizinhos:
Chile, Uruguai e Brasil1.
Se por um lado é possível afirmar que o território argentino encontrava-se na
década de noventa diante de um novo quadro histórico-político, posto que a ditadura
militar, denominada de Proceso de Reorganización Nacional, terminara havia quase dez
anos, por outro é essencial a observância nos vários setores estigmatizados, perseguidos
1
Este regime ou estado de exceção foi comum na geografia da América Latina, resultado de um
processo de recrudescimento dos direitos civis impetrado pelos setores conservadores, tendo o
apoio do governo norte-americano e de sua principal agência de inteligência, a CIA. A
bibliografia sobre o período é extensa e consolida esta versão.
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e execrados pelo regime, dentre eles o grupo dos artistas e escritores, um sentimento
inescapável de revisitação e catarse daquele período. Assim, o primeiro romance de
Piglia, Respiración artificial, escrito durante o advento do regime ditatorial argentino,
entre 1976 e 1980 (GANCEDO: 2006, p.33), no cerne do qual o presente histórico da
escritura jamais se oculta, mesmo quando não se explicita, provocará ainda ecos
dissonantes nos romances posteriores, que virão a lume na década seguinte, La ciudad
ausente e Plata quemada, este último já próximo dos alvores do século XXI.
Com efeito, afloram nos dois últimos romances, a exemplo do primeiro,
referências à história argentina, seja no campo propriamente histórico-político, seja nas
diversas inserções pelo campo histórico-literário. Neste sentido, o personagem itinerante
Emilio Renzi ganha um contorno simbólico elucidativo, já que se trata de um jornalista
investigativo, cujo caráter detetivesco nos leva sempre em busca das raízes da história
argentina. Indo um pouco além na análise, conclui-se ser este personagem de papel mais
que o alter-ego do autor, nascido Ricardo Emilio Piglia Renzi. Na verdade, ele ocupa a
função de elo metaliterário, eixo intratextual ao redor do qual seus romances, além de
outras produções ficcionais, giram imantados por uma força centrípeta alimentada pelo
élan investigativo de Renzi: “O sujeito civil Ricardo Emilio Piglia Renzi torna-se
personagem de si mesmo encenando o narrador detetive Ricardo Piglia”
(PEREIRA:1998, p.39).
Apesar destes aspectos em comum, os três romances de Piglia apresentam
estratégias narrativas diferentes, as quais ajudam a compreender as fronteiras de sua
poética. Dado o interesse, neste breve artigo, de centralizar as atenções para a análise de
La ciudad ausente, faz-se necessário definir os traços constitutivos da linguagem desta
obra em contraposição às demais. Os recursos narrativos, ou ainda, os jogos de
linguagem deste romance carregam um caráter ainda mais experimental que seus pares,
tornando sua leitura tarefa hercúlea para a competência interpretativa do leitor empírico,
segundo a concepção de Umberto Eco, isto é, o leitor comum.
Para demonstrar o terreno pantanoso sobre o qual se constrói a narrativa do
romance em questão, é preciso evidenciar, primeiramente, que a temática central do
texto não se revela um argumento do mesmo quinhão de verossimilhança dos outros
dois. Junior, protagonista desta odisseia citadina, está em busca de uma máquina que
produz relatos, um museu-máquina, uma mulher-máquina, um gerador infinito de
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textos, de memórias. O protagonista encarna neste complexo romance o papel que
caberá a Renzi nos demais, um desdobramento anglo-saxônico, portanto, deste último, e
a primeira referência metaliterária do texto, elemento chave tanto para a poética do
autor quanto para a pós-modernidade.
A trama de La ciudad ausente começa com Renzi mostrando o ambiente de
trabalho a Junior, jornalista neófito: “[…] aterrizó una tarde en el diario, con su cara de
alucinado, y Emilio Renzi lo llevó a conocer la redacción, para que conociera a los otros
prisioneros.” (PIGLIA: 1997, p.10). Ambos são jornalistas a serviço de El Mundo,
diário de notícias que aparece no espaço ficcional com uma conotação singular, afinal,
durante as décadas de 30 a 60 houve um veículo de comunicação de ideias combativas
com este nome em Buenos Aires.
O jogo literário ao estilo pós-moderno, que começa com a referência ao jornal
editado pelo intelectual Alberto Gerchunoff, admirado por Borges, modelo para a
poética de Piglia, segue com a descrição de Junior e “su cara de alucinado”. Tendo este
traço como referência, somado ao fato de ser este personagem herdeiro de estrangeiros,
imigrantes ingleses, é possível enxergar em sua composição não mais apenas um
desdobramento de Renzi, mas também um reflexo literário de Roberto Arlt, outro
modelo literário-ideológico para Piglia. Esta aproximação é possível já que a loucura da
realidade expressa na ficção arltiana, confunde-se com seu criador, conforme relata a
própria filha do escritor, Mira Arlt: “Mi „juguete rabioso‟ [...] está conformado por un
padre a quien „los otros‟ consideraban vago, fracasado y loco” (ARLT: 2000, p.14).
Reforça-se esta leitura com a constatação de que Arlt trabalhou ativamente no
jornal El Mundo, no qual se concentravam mentes do seu quilate intelectual. Ali o
escritor publicou suas Aguafuertes porteñas, colaborando na construção da imagem do
pensador multifacetado moderno, escritor-intelectual-jornalista (SARLO: 1988). Junior,
herdeiro de Arlt, segue as pistas de Renzi, seu tutor mais direto em sua empreitada
detetivesca pela compreensão de seu passado, ligado diretamente ao passado da cidade,
por sua vez, ligado ao passado da história da literatura argentina.
Um exemplo de como estes universos se tocam surge no momento em que
Junior encontra o Museu: “En una sala Junior vio el vagón donde se había matado
Erdosain”. O leitor experiente notará que Junior acaba de entrar num mergulho
metaliterário, já que Erdosain é um personagem de Roberto Arlt, o qual se suicida, tal
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qual seu criador, num gesto de repúdio à sociedade no romance Los lanzallamas: “¡Hola!... ¿Quién está ahí?… ¿Es usted?... Vea, tome inmediatamente un fotógrafo y
váyase a Moreno. Erdosain se suicidó. Lleve a Walter. Háganle reportajes a los guardas
y maquinistas del tren, a los pasajeros que viajaban en este coche.” (ARLT: 2000,
p.595).
Com este gesto, Piglia nos conecta imediatamente a uma tradição literária da
qual se nutre, ao mesmo tempo em que nos revela a filiação genética da loucura que une
Arlt e Erdosain: “la locura como ruptura de lo posible [...] la locura arltiana es una
forma de utopía popular” (PIGLIA: 2000, p.26). Conectemo-nos novamente ao romance
de Arlt, por meio da análise crítica de Beatriz Sarlo:
La angustia de Erdosain, ese sentimiento moderno que hace la
modernidad de la ficción arltiana, es una cualidad objetiva. La
angustia está en la naturaleza social de las cosas, un sentimiento
hegemónico por el cual la subjetividad se carga con el conflicto
irresoluble que ya ha sido jugado en la dimensión objetiva. (ARLT:
2000, p.XV)
A filiação genética da loucura, fruto da angústia alucinada e vívida em Arlt e
Erdosain, cria uma nova linhagem e ramifica-se em Junior, para quem,
sintomaticamente: “Se ha invertido la sentencia de Heráclito [...] Tenía la sensación de
que todos coincidían en soñar el mismo sueño y cada uno vivía encerrado en una
realidad distinta” (PIGLIA: 1997, p.88). Piglia retoma o duplo viés da ficção arltiana,
jornalístico e detetivesco, para desenvolver, a partir de Renzi e, consequentemente, de
Junior, um outro viés, metarreferencial, que garante à sua poética o status da
autoconsciência ficcional. Redimensiona, desta forma, a poética arltiana, atualizando a
sua dimensão híbrida no espaço esquizofrênico da arte pós-moderna. A leitura que
Beatriz Sarlo faz de Arlt serve-nos como uma luz oblíqua a iluminar a ficção sucedânea
de Piglia:
Las dos muertes de Erdosain señalan las condiciones de la escritura de
las novelas de Arlt. Por un lado, el periodismo; por el otro, ese borde
donde, como en Crimen y Castigo, la novela se toca con la crónica
policial. La ficción arltiana muestra cómo un personaje de novela
termina en la página de crímenes de un diario de masas. Durante años,
el carácter plebeyo de la literatura de Arlt desconcertó a los lectores
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que establecían un corte nítido entre los géneros masivos y la
literatura “culta”. (ARLT: 2000, p.XVII)
A sombra de Arlt com seu quixotismo dilacerado, impossível frente à sociedade
estilhaçada, de contornos invisíveis, revive em Junior. Nesse sentido, se os escritos de
Arlt “captam o núcleo paranóico do mundo moderno: o impacto das ficções públicas, a
manipulação da crença, a invenção dos fatos, a fragmentação do sentido, a lógica do
complô” (PIGLIA: 2004, p.34), o romance de Piglia repete o gesto. Colocado agora
diante de uma nova configuração social, ditatorial, a cultura do espetáculo, a literatura
de Piglia coloca em evidência a ideia de que o poder ficcionaliza o real para apagar as
marcas da opressão (PIGLIA: 2000, p.11). Junior é um personagem-leitor e também
fruto de uma leitura, a encarnação ficcional das leituras que Piglia faz da tradição
literária argentina.
Embora a presença de Arlt seja importante para a construção do protagonista, é
Macedonio Fernández, escritor excêntrico e contemporâneo de autores como Leopoldo
Lugones e Roberto Jorge Payró, quem imanta a força do texto. A trama gira em torno de
uma busca que, em princípio detetivesca, logo vai-se revelando como uma grande
metáfora literária. Observa-se que a trama vai se constituindo num caleidoscópio
narrativo, pois, entrecortando a trama principal, na qual Junior busca respostas sobre o
“Museo”, proliferam relatos que se constroem dentro de novos relatos. A grande
metáfora do romance reside, desta forma, na simbologia representada pelo Museo, ele
próprio uma máquina de produzir relatos. Para compreender melhor estas relações
simbólicas, é preciso aventurar-se pelo magnífico texto que está por trás de toda a
trama: El Museo de la novela de la Eterna.
A onipresença de Macedonio Fernández no romance se explica pelo seu
reconhecido trabalho de exploração do universo narrativo, o qual tanto para Piglia
quanto mesmo para o exigente Borges significara uma revolução dos modelos teóricos
narratológicos. Assim, seu romance é uma espécie de antirromance, pois, ao parodiar a
ordem histórica ou o pensamento que a estrutura, acaba por transformar-se numa
linguagem em aberto, em suspenso, um “romance infinito, que inclui todas as variantes
e todos os desvios; o romance que dura o que dura a vida de quem o escreve” (PIGLIA:
2004, p.22).
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De fato, como sabemos hoje, Macedonio transformou esta metáfora escritural em
uma sinfonia que regeu sua vida: o autor começou a escrever El Museo em 1904 e
continuou a tarefa até sua morte, em 1952. “Durante quase cinquenta anos se enterra
metodicamente nesta obra desmesurada. O exemplo de Musil, O homem sem
qualidades. Um livro cuja própria concepção exclui a possibilidade de lhe dar fim”
(PIGLIA: 2004, p.22). Os relatos que a máquina de Macedonio produz recriam a
realidade, mantendo viva a memória de Elena, sua esposa falecida, e, mutatis mutandis,
guardando a memória deste mundo perdido. A sensação que se enraíza em Junior ao
deixar o museu é fascinante:
Había pasado dos noches casi sin dormir desde que salió del Museo.
Entraba y salía de los relatos, se movía por la ciudad, buscaba
orientarse en esa trama de esperas y de postergaciones de la que ya no
podía salir. Era difícil creer lo que estaba viendo, pero encontraba los
efectos en la realidad. Parecía una red, como el mapa de un subte.
Viajó de un lado al otro, cruzando las historias, y se movió en varios
registros a la vez. (PIGLIA: 1997, p.87)
Neste fragmento percebe-se a sobreposição dos relatos à própria concepção da
cidade, como se transitar pelas palavras fosse perambular pelas ruas. A leitura que
provoca efeitos na percepção do leitor. A literatura que promove uma nova fundação da
cidade, preenchendo os espaços vazios soterrados pelo silêncio do poder, pela nulidade
do cidadão. O mesmo Ricardo Piglia lançando mão da crítica literária complementa esta
perspectiva estabelecendo uma ponte entre a obra inaugural da consciência argentina,
Facundo (1845), e a literatura contemporânea, à qual se alinha La ciudad ausente:
El Facundo es una máquina polifacética […] trabaja con todos los
materiales y todos los géneros. En ese sentido funda una tradición. La
serie argentina del libro extraño que une el ensayo, el panfleto, la
ficción, la teoría, el relato de viajes, la autobiografía. Libros que son
como lugares de condensación de elementos literarios, políticos,
filosóficos, esotéricos. En el fondo esos libros son mapas, hojas de
ruta para orientarse en el desierto argentino. (PIGLIA: 2000, p.47)
O gesto intertextual que aproxima a tradição de Facundo ao romance de Piglia
instaura-se neste último ao final da primeira parte, intitulada a propósito de “El
encuentro”, e que está marcada por uma divisão interna, um relato dentro do relato que,
neste caso, trata-se da gravação que Renzi entrega a Junior e que dispara o gatilho da
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narrativa: “este es el mapa del infierno. En la tierra, como un mapa, lo que yo te cuento,
que le doy la certidumbre, era un mapa” (PIGLIA: 1997, p.37). Este relato, produto da
máquina-mulher aprisionada no museu, apresenta-se como um fluxo de memória,
plasmado de oralidade, e narra em forma de testemunho imagens de covas, de corpos,
uma clara alusão ao período ditatorial argentino e seus crimes. Segundo Gareth
Willians: “Macedonio‟s machine, producer and reproducer of myths and of images
creating and recreating collective cultural memory – has been growing increasingly
aware of its own machinations (and therefore of its own limits)” (WILLIANS: 2002,
p.162).
Com efeito, se em El Museo a metáfora do real aprisionado no universo da ficção
apresenta-se nos mais de cinquenta prólogos que preparam o leitor para o espírito
autoconsciente da obra, em La ciudad tal estratégia está contida nos inúmeros relatos de
natureza diversa que constroem o romance. De qualquer modo, fica patente a dimensão
metanarrativa em ambos os textos. Piglia apropria-se da metáfora de Macedonio e a
reinventa no espaço metaficcional da pós-modernidade, acrescentando a este
metadiálogo um outro elemento: a questão dos gêneros.
Os vários relatos que compõem La ciudad ausente formam um painel discursivo
diverso. A narrativa costura um relato a outro e, neste movimento, vai tecendo
diferentes linguagens que vão do relato policial ao poético, da ficção científica ao texto
político, do relato histórico ao fantástico. Assim pode-se depreender de um romance no
qual o personagem-detetive busca respostas para um mistério que percorre a cidade,
relato maior de uma obra polifônica onde não raro as vozes narrativas fluem líricas, de
um lirismo filosófico: “Añoramos un lenguaje más primitivo que el nuestro. Los
antepasados hablan de una época donde las palabras se extendían con la serenidad de la
llanura” (PIGLIA: 1997, p.118).
A ficção científica reside em alguns objetos do “Museo”, criações artificiais como
“Los pájaros mecánicos”, em princípio trazidos da Alemanha e, logo, reinventados por
Russo, personagem importante na trama, quem declara profeticamente:
“Los científicos son grandes lectores de novelas, los últimos
representantes del público del siglo XIX, los únicos que se toman en
serio la incertidumbre de la realidad y la forma de un relato […] El
resto del mundo se dedica a creerse en las supersticiones da
televisión.” (PIGLIA: 1997, p.141)
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Este personagem, Rajzarov, o Russo, amigo de Macedonio, parece representar
uma espécie de Frankestein, uma versão moderna do clássico gótico. Após uma
explosão, aparece para Macedonio desfigurado, quase transformado num fantasma:
“estaba hecho de metal más que de vida” (PIGLIA: 1997, p.152). Ele havia sido um
exímio inventor e os objetos que cria ganham vida, ainda que artificialmente. O que
importa é que a memória do mundo sobrevive nos objetos que ele cria, como num
museo, onde a vida permanece aprisionada em uma escala menor. Ao contrário, porém,
do museo, estes objetos, como a máquina de produzir relatos, vão ganhando vida
própria. Novamente eis a metáfora da literatura, a qual recria “artificiosamente” o real
por meio das palavras, as quais, depois de criadas, assumem uma personalidade própria.
É interessante lembrar que Elena, quando questionada pelo Doctor Arana o que
era ser uma máquina, responde-lhe: “Nada [...] Una máquina no es, una máquina
funciona” (PIGLIA: 1997, p.68). Elena, a mulher-máquina, não se questiona enquanto
ser, ela sabe que tem uma função a exercer, e o faz ininterruptamente. Arana é
psiquiatra, discípulo de Jung, e não se surpreende com a resposta de Elena, ao contrário,
contra-argumenta dizendo apenas “Muy ingenioso”. Entendemos a ausência de surpresa
no personagem; ele vê Elena como uma memória coletiva, um inconsciente desperto da
cidade. Elena, quando levada à Clínica, local de trabalho de Arana, assim a descreve:
“La Clínica era la ciudad interna y cada uno veía lo que quería ver. Nadie parecía tener
recuerdos propios” (PIGLIA: 1997, p.69).
O clima de mistério, de silenciamento da cidade, posto que imersa em um espaço
de vigilância, obriga os personagens a se moverem nas sombras, em diálogos
entrecortados. O fantástico reside nesta ambientação por vezes onírica, por vezes
neurótica, mas, sobretudo, sustenta-se pela constante sensação de morte que serpenteia
pelas linhas do romance do começo ao fim: “Rastro do fantástico, a morte também
ronda, na figura de Elena morta-viva, nos poços com restos mortais, no bezerro de olhos
brancos antes da degola, no cemitério de antigas tribos debaixo de uma casa, no suicídio
de um dos primeiro habitantes de uma ilha [...]” (GROTTO: 2009, p.117).
Por fim, cabe examinar a importância do personagem Renzi na poética pigliana e,
por conseguinte, no romance La ciudad ausente. Renzi aparece, sintomaticamente,
como narrador indireto, em segundo grau, do romance, afinal parte dele a gravação
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entregue a Junior que motiva a peripécia da ação narrativa: “Tenía la grabación que le
había dado Renzi. Era el último relato conocido de la máquina” (PIGLIA: 1997, p.30).
A partir deste gesto, a narrativa conecta Junior, protagonista deste romance, com a
figura de Renzi, seu “preceptor” no Jornal e, a partir daí, desencadeia-se uma rede
narrativa que irá culminar no mise-en-abyme pigliano. Reforça-se esta leitura genética
com o nome dado ao protagonista, Junior, etimologicamente alcunha de alguém mais
jovem (do latim junior-oris), mais novo em relação a outro, sobretudo dado um
contexto familiar. Junior está geneticamente ligado à tradição de Renzi, do escritorjornalista-intelectual, à qual se referia Sarlo anteriormente, tríade que também pode ser
lida, dentro da poética de Piglia, a partir do eixo jornalista-leitor-detetive. Desta forma,
o romance conecta-se à poética de outro escritor referência para Piglia, Rodolfo Walsh,
quem já desenvolvera em suas obras a figura do narrador jornalista, Daniel Hernández,
que resolve as tramas do texto pela linguagem:
For the narrator and detective, the most interesting part is the enigma.
Emilio Renzi, both narrator and detective, is aware of the fictional
structure of narrative as he unravels the mystery of the text. This
knowledge points to the device of a “story within a story”, since the
solving of the riddle functions as another story whose referent is the
fictional story being told. (LOCKHART: 2004, p.149)
Inevitavelmente, esta figura do jornalista detetive está ligada a uma tradição da
narrativa militante, já mais claramente anunciada em Respiración artificial, a qual
encontra solo fértil na escrita à flor da pele de Rodolfo Walsh. São escrituras que por
caminhos diferentes propõe-se como intervenções na realidade, golpes à base de
trincheiras de palavras e de ideias. Em Piglia, a narrativa, diferentemente de Walsh,
assume um tom mais metaficcional, articulando-se no diálogo com a tradição literária
argentina. Assim, por meio das releituras de Arlt, Macedonio, Walsh e, jamais percamos
de vista, Borges, Ricardo Piglia conecta seu leitor à história da literatura argentina.
La ciudad ausente funciona, a exemplo da poética de Macedonio, como um
microcosmos no qual o real não se projeta, mas se reconfigura em diversos planos, em
diferentes níveis. É notável a conclusão a que chega o personagem Russo: “Un relato no
es otra cosa que la reproducción del orden del mundo en una escala puramente verbal.
Una réplica de la vida, si la vida estuviera hecha sólo de palabras” (PIGLIA: 1997,
p.139). Vamos entrando neste labirinto de relatos, obstinados por encontrar uma lógica,
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ansiosos por ordenar o caos deste universo, na esperança de que: “Todo es posible, basta
encontrar las palabras” (PIGLIA: 1997, p.141).
Ao final, todavia, nos deparamos com a mesma nota melancólica de Macedonio,
que dialoga virtualmente com Russo: “pero la vida no está hecha sólo de palabras, está
también por desgracia hecha de cuerpos, es decir, decía Macedonio, de enfermedad, de
dolor y de muerte” (PIGLIA: 1997, p.139). Talvez resta-nos, como para Junior, Renzi,
Macedonio, Piglia, refugiar-nos na aparente segurança das palavras, esquecendo-nos,
por algum tempo, o tempo que dura o mergulho cego na ficção, que ao penetrarmos em
seu território estamos pisando ainda o terreno instável e movediço da experiência
humana.
Referências bibliográficas
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Osvaldo. Roberto Arlt – Dramaturgia y Teatro Independiente. Buenos Aires: Galerna,
2000, p.13-24.
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Nanterre: ALLCA XX, 2000.
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GROTTO, Lívia. “O invisível em La ciudad ausente”, In: Revista Rua. Nº15-Vol.2.
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LOCKHART, Darrel B. Latin American mystery writers: an A-to-Z guide. Westport:
Greenwood Press, 2004, p.147-152.
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SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930. Buenos
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WILLIANS, Gareth. “Hear say yes in Piglia”, In: The other side of the popular:
neoliberalism and subalternity in Latin America. Duke University Press: 2002, p.143173.
ISSN 2178-8200
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