crónica José Luis Peixoto
Viagem
Sabemos exatamente o que temos de fazer a seguir. Depois de um
passo, outro. Não podemos parar. Mas para onde nos dirigimos?
Ontem, o tempo foi muito diferente de hoje.
Ontem, estavas mais perto do dia em que nasceste. Tinhas
a impressão de que não te lembravas desse instante marcado
nos calendários, era uma ideia que se dissolvia na memória, no
nevoeiro, mas, no entanto, estavas mais perto dela do que estás
hoje e, agora, ao dedicares-lhe atenção precisa e específica, só
podes concluir que te conseguias lembrar melhor do que hoje,
conseguias aproximar-te mais, com detalhes que perdeste.
Ontem, a referência total com que avaliavas o tempo da tua vida
(desde que nasceste até ontem) era menor do que a referência
total com que o avalias hoje. Dessa maneira, uma hora parecia
mais longa. Dentro daquilo que era toda a tua vida, uma hora
ocupava uma percentagem maior. Não havia tanta familiaridade
com a passagem do tempo.
Hoje, estás mais perto do dia em que morrerás. Hoje, tens
de lidar com isso. Olhas para ontem e sabes que qualquer
desconfiança que tenhas alimentado acerca dessa matéria
era infundada. Vês-te a considerar esse assunto ontem e
reconheces ingenuidade em qualquer construção mental que
possas ter feito. Hoje, sabes que ontem não morreste e que
qualquer plano ou medo foi infundado. O tempo de ontem está
dentro de um frasco. Podes chamar quem quiseres para abri-lo,
ninguém será capaz de o fazer.
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Ontem, apanhaste um táxi, medido pelo taxímetro, e chegaste
ao aeroporto. Esperaste numa cadeira com a mala aos teus
pés. Passaram quatro horas que te pareceram muito mais
longas porque não tinhas nada para preenchê-las, apenas
a tua espera, apenas o teu olhar a desembaraçar-se sobre
pessoas que se dirigiam a algum lado. Tempo longo e cinzento,
iluminado por lâmpadas cansadas, ar artificial. E, depois, todos
os procedimentos a dividirem o tempo: a senhora fardada do
check in, a máquina dos metais, tira o cinto e descalça-te, o
passaporte fiscalizado por um homem de óculos, a fila no portão
de embarque, o autocarro a dar demasiadas curvas, a escada
do avião, o corredor do avião, o teu lugar. E apertaste o cinto de
segurança. Não tens certeza acerca de quanto tempo durou o
voo porque tomaste um comprimido e dormiste. O sono agilizou-te o curso do tempo, mas também o abrandou porque, naquela
posição, dormiste mal, sentiste as hospedeiras a passarem com
o carrinho das bebidas, a dizerem: chá café chá café chá café.
O avião aterrou. Quando saíste do aeroporto, espreguiçaste-te.
Estava frio e era tudo demasiado real. Disseste algumas palavras
noutra língua e apanhaste um táxi. Acertaste o teu relógio pela
hora desse país.
Ontem, chegaste a um hotel onde já tinhas estado. Recebeste
a chave, entraste no elevador, o corredor, o quarto. Descalçaste
as botas e subiste para a cama, acomodaste as almofadas nas
costas. Ligaste a televisão e adormeceste vestido.
Tiveste pesadelos.
Hoje, já hoje, acordaste. Com as miniaturas de sabonete e
de champô do hotel cumpriste todos os teus rituais de higiene.
Vestiste roupa lavada e chegaste aqui. Carregas em ti o tempo
de hoje, este instante e aquilo que és agora.
O que pretendes?
Responde. Só tu podes responder.
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Viagem - Espiral do Tempo