BARRAGISTAS - (3)
Carrinhos de rolamentos
O dia-a-dia dum “barragista” é sempre pautado pelo sentimento do dever cumprido;
de ser hoje um pouco mais do que ontem; de ser amigo do seu amigo; de divertir-se
quanto baste para recuperar energias e vencer o tédio provocado pela lonjura do seu
torrão Natal e pela obsessão, bem-estar e segurança dos seus entes queridos.
Não lhe sobra tempo nem disponibilidade dos sentidos para a abstracção.
Todos os dias são feitos de tarefas muito repetitivas e violentas, de grande desgaste
físico e psíquico, porque é preciso que a obra cresça, porque todos são peças da
máquina em movimento, porque o cumprimento do dever de cada um não é mais que
a acção que nos incumbe e torna indispensáveis, porque elementos da enorme,
complexa e violenta engrenagem que é a construção duma barragem.
No “barragista” o que é importante é o que ele faz, e mais importante ainda, como
faz.
Disso depende o êxito ou o fracasso de cada tarefa; a consolidação e o cumprimento
temporal de cada uma das suas fases; a qualidade final do projecto.
Mas se de todo este esforço e complexidade do dia-a-dia, resulta não haver tempo
para as delícias da metafísica nem por isso aquela gente, aquela comunidade
encravada para lá dos seus horizontes, ali, naquele sítio onde o silêncio faz zumbido
que entra pelos sentidos e incomoda o espírito, naquele sítio visitado nos rigores do
Inverno pelos tordos que fogem às agruras pirenaicas e no Verão pelos horrores do
Inferno a clamar os corpos para o descanso e paz do espírito, apesar disso tudo, o
“barragista” ainda encontra e constrói os seus momentos de evasão.
E dentre todos eles, aquele que mais o seduz, que verdadeiramente não quer perder,
o faz menino e diariamente se repete, é a distribuição do correio no próprio dia em
que chega.
Então é vê-los depois do jantar, ceia ou presigo, segundo o estatuto social ou as
tradições de cada um dos participes desta Babilónia; quando as famílias já não estão
a atender o Sr. Monteiro – o Canetas – para a tentativa de venda daquele tão útil
electrodoméstico, do rádio para enfeitar o ambiente ou o televisor que nos põe, sem
tempo e sem método, diante da sua pantalha, é vê-los, dizia, famílias e ranchos de
mocidade, naqueles momentos de torpôr em que o hoje já é história e o amanhã é
apenas uma miríade; naquele momento de ouvir cantar a cigarra e o som dos seus
acordes chamar-nos à volúpia ou à busca de sensações novas, é nestes momentos
que muita gente se junta e vai até ao correio ouvir ler o nome dos sortudos desse dia.
E quem recebe o envelope e a folha mágica que transporta, fica embevecido como
criança a quem foi dado o primeiro brinquedo.
Durante muito tempo, até à construção do Centro Comercial, a Estação dos Correios
de Barrocal do Douro funcionou num anexo do complexo pré-fabricado em que
funcionavam os escritórios da Hidouro, local muito distante do bairro, já sobranceiro à
barragem e ponto privilegiado para observação da marcha das obras.
Para lá chegar – toda a gente andava a pé – ia-se, ou a corta mato, ou em numerosos
ranchos de gente bem disposta, estrada abaixo a serpentear a encosta, cantando,
rindo, descrevendo comportamentos ou episódios burlescos, mas sempre a pé ou…
Em carrinhos de rolamentos que cada um fazia segundo a sua habilidade e acesso a
peças usadas, com o qual se fazia transportar para lá, estrada abaixo, e para cá o
carregava às costas, encosta acima, para voltar no dia seguinte.
Era um desarrincanço por ali abaixo, ver quem pesava mais sobre o carrinho de
rolamentos e o fazia atingir mais velocidade e quem fazia as curvas em ferradura sem
ser cuspido pela força da gravidade ou pela malandrice dum amigo competidor.
Era uma tal algazarra, um tal chispar de faíscas no alcatrão que mais se diria uma
chuva de pirilampos em noite cálida de luar.
Aqui não havia volúpia nem cantoria de cigarras.
Aqui havia masculinidade e muita testosterona a impressionar a plateia que importava
seduzir.
Depois era só ouvir aquela voz fria, nada feminina, mecânica, sem humor, anunciar
para a audiência cada um dos nomes contemplados nesse dia.
Assim todos os dias, até que cá em cima, no bairro, funcionasse o Centro Comercial,
neste a nova Estação do Correio, e para esta viesse o Artur, também competente,
sempre bem disposto e com muito humor para nos aturar, servir e compreender. Este
é outro verdadeiramente igual a nós: Um “barragista” como o Águia Negra, como o
Bebe Água, como o Zig Zag, como o Índio, etc.
Éramos todos “barragistas” e vivíamos todos o nosso momento diário de emoção.
Henrique Pinto
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