Curativos bioativos para a cicatrização de feridas: uma esperança que vem do mar Pelo Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Fernando Pessoa O mar sempre foi alvo da fascinação dos seres humanos. Inicialmente apresentava uma fonte de mitos, lendas e histórias, não raramente cheias de terror inexplicável, espaço de onde na Antiguidade Clássica emergiam os deuses e onde, segundo a imaginação dos homens da Idade Média, residiam monstros temíveis. Com a evolução dos conhecimentos humanos, o mar foi se convertendo numa origem de riqueza singular, graças às avançadas tecnologias de exploração do fundo do mar. De maneira geral, pode-se dizer que o desenvolvimento da pesca no mundo acompanhou o ritmo do desenvolvimento tecnológico e do crescimento populacional da humanidade e vem acelerando-se bastante a partir da Segunda Grande Guerra. Além da explosão demográfica, alguns avanços tecnológicos desempenharam um papel importante no intenso crescimento observado na produção pesqueira mundial, com destaque para o advento das fibras sintéticas (poliamida, poliéster, polipropileno), o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de equipamentos eletrônicos de suporte à navegação e à pesca (ecossonda, sonar, radar), a mecanização da atividade pesqueira e o aprimoramento dos métodos de conservação do pescado a bordo das embarcações (sistemas de refrigeração e fabricação de gelo). A importância dos recursos vivos do mar, contudo, não advém apenas de sua exploração com a finalidade de produção de alimentos, sob enfoque de recursos pesqueiros, mas também de sua biodiversidade, como patrimônio genético gigantesco e como fonte potencial para utilização na biotecnologia. Os recursos vivos do mar fazem parte de um sistema produtivo complexo, com componentes bióticos e abióticos de alto dinamismo, sendo imperativo, portanto, para sua adequada conservação, que se tenha presente o papel diversificado de todos os seus componentes. O Brasil é o detentor da maior diversidade biológica do planeta, contando com pelo menos de 15-20% de toda a biodiversidade mundial. Essa riqueza está distribuída em vários biomas, tais como a Amazônia, a Mata Atlântica, as Florestas de Araucárias e os Campos Sulinos, a Caatinga, o Naturale dezembro/janeiro - 2012 Cerrado e o Pantanal e a Zona Costeira e Marinha. Considerando a Zona Costeira e Marinha, o Brasil possui outra Amazônia, cuja existência é ainda tão ignorada por grande parte dos brasileiros quanto o foi a Amazônia terrestre por muitos séculos. Trata-se da Amazônia Azul, uma gigantesca área de 4,5 milhões de quilômetros quadrados, que acrescenta ao nosso país uma área equivalente a mais de 50% de sua extensão territorial. Nossa Amazônia Azul é inimaginavelmente rica em sua diversidade biológica onde microscópicos vegetais, os fitoplânctons, flutuando na superfície da água renovam o oxigênio e outros gases vitais de nossa atmosfera. São as florestas invisíveis aos olhos humanos que sustentam a vida nos oceanos e funcionam como o verdadeiro pulmão do mundo. Atualmente, os cientistas voltaram seus olhos para o fundo dos oceanos à procura de substâncias com propriedades medicinais. Aliados a dezenas de empresas farmacêuticas localizadas, em sua ampla maioria, ao norte do Equador, estão mapeando as águas dos cinco continentes para delas extrair cobiçosamente amostras dos mais variados organismos de vida marinha. Como resultado da corrida ao mar, nos últimos anos surgiram vários medicamentos, destacando-se por exemplo, as ecteinascidinas extraida de um animal marinho, o tunicado Ecteinascidia turbinata, encontrado no mar do caribe. As ecteinascidinas têm apresentado potente atividade antitumoral contra uma variedade de tumores humanos, incluindo sarcomas, câncer de mama e de ovário. Outro fármaco de origem marinha é o ziconotida, conhecido comercialmente com o nome de Prialt®, um potente analgésico que é uma versão sintética de um princípio ativo natural encontrado no molusco denominado Conus magus, uma espécie de caracol marinho que produz uma das toxinas mais fortes do mundo. É indicado principalmente para o tratamento da dor. Estima-se que o princípio ativo extraído do Conus magus é cerca de 1000 vezes mais potente que a morfina e parece não causar vício associado ao consumo contínuo. O primeiro teste clínico com o Prialt® em pacientes com dor severa ocorreu em 1995 e em 2004 a agência norte-americana FDA (Food and Drug Administration) para controle e aprovação de medicamentos e alimentos, aprovou este fármaco para o controle da dor severa, incluindo aqueles pacientes refratários a tratamentos com opioides. A Tabela 1 ilustra a relação entre os organismos marinhos e seus princípios ativos produzidos com potencial ação farmacológica. Em breve muitos medicamentos extraídos desses organismos marinhos estarão nas prateleiras das farmácias. Nessa aventura subaquática, os pesquisadores do Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) sob a coordenação científica do prof. Dr. Alvaro A. A. de Queiroz, estão concentrados na utilização da biomassa marinha para a produção de curativos destinados à área da saúde com o objetivo de se regenerar a pele lesada por enfermidades ou acidentes. Uma importante fonte de biomassa marinha são os crustáceos (camarão, siri, caranguejo, lula) cujo exoesqueleto é rico em quitina, um biopolímero precursor da quitosana. Os pesquisadores tem extraído e purificado a quitina de crustáceos, efetuado sua transformação em quitosana através de várias etapas, entre elas a desmineralização, a desproteinização, a descoloração e a modificação de sua estrutura química. Uma vez obtido o biopolímero quitosana modificado, ele é utilizado na produção de membranas para o tratamento de queimados e feridas de diabéticos. O tratamento das queimaduras sempre foi um desafio não só pela gravidade das lesões apresentadas por estes pacientes, como também pelas muitas complicações. As queimaduras representam um importante agente causador de danos que não só ameaçam a vida, mas que representam aos sobreviventes de lesões térmicas estigmas funcionais e estéticos importantes. Por outro lado, as feridas de diabéticos atingem cerca de 10% da população adulta no Brasil e tem como uma das principais complicações a dificuldade na cicatrização de feridas. O produto inovador oferece uma alternativa de baixo custo e eficaz no tra- 9 tamento dos ferimentos de queimados e diabéticos. Uma membrana bioativa e obtida por técnicas da nanotecnologia é permeável ao vapor de água e oxigênio e impermeável a bactérias devido à existência de poros de dimensões nanométricas. A membrana atua absorvendo o exsudato en-quanto libera princípios ativos que promovem a cicatrização da ferida. A membrana sintetizada possui nanopartículas de prata depositadas em sua superfície que atua como um poderoso agente bactericida. Os microorganismos não apresentam resistência às nanopartículas de prata mesmo através de mutações, método pelo qual ocorre a resistência contra a maioria dos antibióticos. A Figura 1 ilustra as membranas de quitosana desenvolvidas na UNIFEI. Os ensaios em animais no laboratório indicam que a membrana obtida reduz significativamente o tempo para a cicatrização de feridas de queimados e diabéticos relativamente aos curativos existentes no comércio. Os bons resultados obtidos indicam a viabilização num futuro próximo da fabricação de curativos de baixo custo para utilização em hospitais mantidos pelo SUS. Os sistemas apresentados se encontram em fase avançada de estudos de modo que atualmente estamos estudando a aplicação da membrana de quitosana bioativa na reconstrução da pele, convertendo-se assim em uma película que servirá de suporte para as células epiteliais e que devido às suas características umectantes e bactericidas será muito útil para pessoas com queimaduras graves. comercial. A História nos mostra que a exploração econômica das riquezas naturais com fins egoístas geralmente leva à opressão das pessoas, uma vez que tiram impiedosamente vantagens, apossam-se do que podem e finalmente, de modo cruel e arrogante; deixam as pessoas de lado quando não podem pagar pela tecnologia desenvolvida. Por si só, o livre-mercado não produzirá tecnologia amigável aos pobres. O poder da ética deve ser exercido por governantes, ambientalistas, empresários conscientes e cientistas, todos trabalhando em conjunto de forma a utilizar sabiamente o poder da ciência em favor da causa comum da justiça social. Tabela 1 - Organismos marinhos e a química submersa: o mar é uma grande fábrica de fármacos. Composto bioativo produzido Organismo Antibióticos, antiinflamatórios, analgésicos e compostos com atividade antitumoral com possível aplicação no combate ao câncer e AIDs. Esponjas do mar Anticoagulantes que protegem contra trombose e problemas cardiovasculares. Pepino do mar Compostos com atividade antitumoral para o combate ao câncer. Já é utilizada amplamente na cosmética e indústria alimentícia. Alga Figura 1. Ilustração das membranas de quitosana com propriedades bioativas para o tratamento de feridas de queimados e diabéticos. As micrografias obtidas por Microscopia Electrônica de Varredura (MEV) ilustram os nanocristais de prata e os nanoporos presentes nas membranas de quitosana. A quitosana bioativa obtida nos laboratórios da UNIFEI (Fig. 1) vem sendo utilizada com sucesso no desenvolvimento de pele artificial para o tratamento de queimados, na obtenção de curativos com a capacidade de se deter hemorragias, e membranas que previnem infecções e aceleram a cicatrização no tratamento de feridas de diabéticos. Iniciada na década de 60, a química de produtos naturais extraídos do mar é recente em todo o planeta. Essa área de investigação começa agora a despontar no Brasil, que guarda uma gigantesca biodiversidade em suas águas oceânicas. É um patrimônio importante que pode trazer importante desenvolvimento econômico e social, mas que precisa ser explorado com responsabilidade, de maneira sustentável para que não seja degradado. Nesse sentido, é importante destacar que o ser humano deve utilizar os recursos marinhos 10 com sabedoria, devendo dominar a natureza não pela força, mas pela compreensão. É esta a razão pela qual a ciência conseguiu alcançar êxito onde a magia falhou. Os alquimistas e os magos da Idade Média pensavam que a natureza deveria ser dominada por um instrumento que ultrapassasse as suas leis. Entretanto, em cerca de 400 anos, desde a Revolução Científica em 1543, quando Copérnico, talvez no seu leito de morte recebesse a versão impressa de seu livro; o ser humano aprendeu que consegue os seus fins apenas com as leis da natureza. Nascemos pelo mar, deixamos de valorizá-lo por muito tempo e agora o eixo do desenvolvimento, do futuro e da potencialidade de crescimento se volta outra vez para ele, como no início da nossa história, desta feita com mais intensidade. Entretanto, como toda riqueza, o mar acaba por se tornar objeto de cobiça e egoísmo Antiinflamatórios e anticancerígenos. Corais Remédio contra doenças de Parkinson e de Alzheimer Bactérias marinhas Produz ecteinascidinas, representando um dos primeiros compostos de origem marinha para o tratamento do câncer já em fase clínica de estudos. Tunicados Fonte de biomassa marinha, rica em quitina que pode ser transformada em quitosana que possui elevado valor agregado Crustaceos (camarão) na área farmacêutica. Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz, Coordenador Científico do Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados, UNIFEI. Naturale dezembro/janeiro - 2012