GRUPO DE TRABALHO 6
TEORIA E PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL
O BARÃO DO RIO BRANCO E A SUA IDÉIA DE
BRASIL
Nathália Henrich
O BARÃO DO RIO BRANCO E A SUA IDÉIA DE BRASIL
Nathália Henrich 1
Resumo
O Barão do Rio Branco conquistou um lugar de destaque na historiografia brasileira. Entretanto, seu
enorme legado político acabou obscurecendo seu papel como pensador do Brasil, que quase nunca é
reconhecido nas análises feitas sobre ele e sua obra. Geralmente, ao eleger apenas uma das
―facetas‖ do Barão como objeto, deixa-se de se considerar a mais importante e que permeia todas as
demais: a de pensador do Brasil, como se o Rio Branco ―historiador‖ pudesse ser dissociado do
―diplomata‖, que por sua vez não é senão parte fundamental do ―político‖ e do ―jurista‖. Por trás da
sua atuação política, notadamente a elaboração da política externa brasileira, estava uma profunda
reflexão sobre o país. Era através de suas ações que ele deixava transparecer qual era sua idéia de
Brasil. Se é certo que não houve uma sistematização de seu pensamento político, há indícios dele
em seus escritos que permitem fazer uma reconstituição. Ao contrário de desqualificá-lo como
pensador e intérprete do Brasil, esta lacuna apenas força a procura de outras fontes. O objetivo desta
comunicação é, portanto, resgatar esta faceta de Rio Branco e apresentar alguns elementos da
concepção de Brasil que possuía e que era a base para sua atuação política, a partir da análise de
alguns de seus artigos publicados em jornais brasileiros quando era Ministro dos Negócios
Estrangeiros, entre 1902 e 1912.
Introdução
O Barão do Rio Branco ocupa na história do Brasil o espaço reduzido dedicado aos seus
grandes heróis. Mais ainda, ocupa a posição talvez única dedicada às unanimidades. Esta aura de
infalibilidade, que o elevou à categoria de mito fundacional de diplomacia brasileira e de
personagem histórico irrepreensível, começou a ser construída ainda durante sua vida. Os inimigos
e opositores, que por certo existiram, não eram suficientemente numerosos, ou poderosos, para
borrar a fama internacional construída sobre suas vitórias diplomáticas nas questões de fronteiras
em que atuou como advogado brasileiro. A coroação de seus êxitos veio com a nomeação para o
cargo de Ministro de Negócios Exteriores do governo Campos Salles, em 1902, que o trouxe de
volta ao país depois de mais de vinte anos em postos no exterior e que deu a conhecer ao Brasil
finalmente o seu já mítico personagem, que aumentou o território nacional e consolidou suas
fronteiras por vias totalmente pacíficas. Apesar da hesitação inicial, Rio Branco assume o cargo e
inicia uma trajetória política jamais igualada: cumpre doze anos de mandato ininterrupto à frente da
pasta do Exterior, passando por quatro mandatos presidenciais, de 1902 a 1912.
Estes anos, conhecidos pela História Diplomática como a Era Rio Branco, são objeto de
numerosos estudos e análises, bem como a obra de seu condutor de forma geral. O seu conjunto de
feitos é estudado sob diversos aspectos, da história e da geografia à ciência política, das relações
1
Mestre em Ciência Política (Universidad de Salamanca) e mestranda em Sociologia Política (UFSC).
internacionais à diplomacia e ao direito internacional e mesmo da sociologia e da antropologia. Sem
contar o sem fim de biografias escritas a seu respeito, variando entre as mais fidedignas até as mais
laudatórias e, por vezes, fantasiosas. Porém, geralmente é apenas uma das tantas facetas do
personagem que é analisada, em detrimento do conjunto da qual é parte. Ás vezes o objeto de
análise é sua trajetória política, seja sua vida como Deputado ou como Ministro, por outras a
carreira diplomática, talvez seus estudos históricos, sua dedicação à cartografia e à história militar
ou até sua curta carreira como jurista. O fato é que ao focar em uma de estas atividades se perde
muitas vezes a noção mais global de sua obra e não se dá a devida atenção ao seu papel como
pensador político. Está claro que sua atuação política está embasada em idéias e concepções que
possuía, sendo a mais fundamental delas, sua idéia de Brasil. É a partir da sua concepção de como
deveria ser seu país e de como ele deveria agir para que esta idéia correspondesse à realidade, que
Rio Branco desenvolvia sua política exterior. Não seria exagero afirmar que Rio Branco possuía
mesmo um projeto político para o Brasil em termos de política exterior.
A falta de uma obra sistematizada sobre estas concepções que o guiavam talvez seja uma das
maiores responsáveis pelos poucos estudos sobre seu pensamento político, e mesmo para que este
não seja o maior foco de atenção daqueles que se dedicam a sua obra. A publicação de uma série de
artigos intitulada Artigos Anônimos e Pseudônimos do Barão do Rio Branco, pelo Centro de
Documentação e História Diplomática (CHDD), traz à luz material inédito e fundamental para a
compreensão do seu pensamento político e para ajudar a preencher esta lacuna deixada pela falta de
fontes.
A estreita relação mantida pelo Barão do Rio Branco com a imprensa de sua época é
amplamente citada por seus biógrafos2. Primeiro como jornalista e, posteriormente, já Ministro,
como colaborador em diferentes jornais e revistas, Rio Branco sempre teve muito clara a dimensão
política que possuía a notícia e o trabalho jornalístico. Não por acaso, procurava manter os meios de
comunicação informados sobre os temas que considerava importantes e se assegurava de que a
versão oficial fosse divulgada, seja por meio de notas e artigos assinados por ele ou sob a forma de
pseudônimos. Especialmente neste último caso, os artigos se revestem de capital importância, por
deixarem transparecer de forma mais evidente as idéias que animavam o autor, protegido que estava
sob um pseudônimo.
O artigo busca analisar alguns dos artigos publicados pelo CHDD no que se refere às idéias
gerais expressadas pelo autor sobre o Brasil e que orientavam sua atuação política. Por isto, se
limita a trabalhar com artigos escritos durante sua gestão no Ministério de Negócios Estrangeiros,
2
Ver Lins (1995), Viana Filho (1988), Ricupero (2000).
deixando de lado o material publicado3 de sua juventude como jornalista e algumas intervenções
sobre temas candentes da época quando ainda era diplomata.
Os textos selecionados
Ao tratar de um personagem histórico da envergadura do Barão do Rio Branco, sempre há o
risco de incorrer no erro comum de fomentar a mitificação já existente sobre ele ou de
simplesmente seguir repetindo o muito que já foi dito. Justamente por isso, tampouco pretende-se
entrar em pormenores de sua vida e obra em termos mais gerais, já que para isso estão as várias
biografias já escritas4. Assim, limitamo-nos a fazer referência a algumas obras biográficas
consideradas como fontes historicamente mais fiáveis para embasar a análise do que é o ponto
central deste artigo, qual seja, a idéia de Brasil que possuía Rio Branco e que alimentava seu projeto
político. Por todas as razões já mencionadas, fazer uso de fontes primárias é imprescindível para a
realização de um trabalho sério e comprometido com o rigor histórico e metodológico,
especialmente se tais fontes foram pouquíssimo exploradas, como é o caso dos volumes agora
editados pelo CHDD. É importante ressaltar que há plena consciência dos limites – e limitações
derivadas – da opção feita por analisar apenas fragmentos da extensa produção jornalística5 de Rio
Branco. Ainda que não seja possível apenas através destas fontes fazer uma análise exaustiva do
que chamamos de ―idéia de Brasil‖ 6 de Rio Branco, é importante fazer uso deste material até pouco
tempo inédito para avaliar as contribuições que pode trazer para o estudo de seu pensamento
político.
Além do ineditismo das fontes em si mesmo constituir um fator de interesse para sua
análise, algumas outras características fazem destes textos um material com potencial explicativo
muito rico. Primeiro, por tratar-se de um conjunto de artigos escritos por Rio Branco durante sua
gestão no Ministério e por tocarem em assuntos que estavam diretamente ligados a sua atuação
política. Além disso, são quase sempre respostas a outros artigos publicados na imprensa sobre sua
conduta e decisões como Ministro, sendo, portanto, bastante exemplares de seu projeto político.
Logo, por sua publicação sob pseudônimos davam mais liberdade de expressão ao autor. E,
finalmente, pela sua importância no debate político da época, já que representam a resposta oficial a
3
Ver Rio Branco, Cadernos do CHDD, ano II nº 3 (2003); Ano III no 4 (2004); Ano IV no6 (2005).
Não é objetivo deste trabalho aprofundar-se sobre as questões que envolvem a construção de sua imagem e o papel das
biografias escritas sobre ele neste processo, para este tema ver Henrich (2008).
5
Optou-se pelo uso da expressão jornalística para fazer referencia a seus escritos na imprensa, embora possivelmente
nem sempre estes possam ser enquadrados com perfeição ao conceito de trabalho jornalístico, por se ratarem grande
parte das vezes de artigos de opinião. Entretanto, ainda que reconhecendo os problemas que possam haver nesta
escolha, ainda considera-se mais adequado seu uso para fazer distinção entre outro tipo de produção do autor, como
relatórios , obras históricas e geográficas, correspondência pessoal e pública, entre outras.
6
Toma-se a expressão emprestada de Ricupero (2000) por parecer a que melhor descreve aquilo que se busca explicar,
que era a visão de país que Rio Branco tinha em mente ao conduzir a política exterior brasileira.
4
questionamentos feitos por formadores de opinião através do canal midiático mais influente
politicamente no país naquele momento, os grandes jornais do Rio de Janeiro. A mídia fluminense
era o palco onde eram travadas as batalhas de idéias que teriam grandes impactos na vida política e
social brasileira, daí sua importância estratégica como canal de expressão, como tão bem
compreendia o Barão e que por isso dela fez uso tão recorrentemente. Sua relação com a imprensa
era antiga, iniciou nos tempos de juventude como colaborador da revista francesa L´Illustration,
para a qual enviava artigos, informações e desenhos por ocasião da Guerra do Paraguai, em 1866.
(VIANA FILHO, 1988: 30)
Já como Deputado Estadual, em 1872, começa a escrever naquele que ficou conhecido como
o órgão oficial do Partido Conservador e defensor das políticas do Gabinete Rio Branco, o jorrnal A
Nação. Nele escreveu desde sua primeira edição e logo passou a dividir com Gusmão Lobo a
responsabilidade pela redação, sendo sua atribuição geralmente a elaboração do editorial. Era, por
exemplo, neste espaço e também em vários artigos sob pseudônimo que defendia ardorosamente a
Lei do Ventre Livre, proposta por seu pai, o Visconde de Rio Branco. (LINS, 1995:74). Talvez as
lições aprendidas nesta primeira grande campanha de imprensa em que se envolveu tenham deixado
as marcas para o desenvolvimento daquilo que futuramente seria um estilo característico seu como
Ministro, o uso da imprensa para esclarecer e convencer a opinião pública do acerto das ações do
seu Ministério.
Como não deixa dúvida a apresentação dos Cadernos do CHDD sobre os artigos que seriam
publicados, ―é sabido que o Barão do Rio Branco, durante os anos de sua gestão à frente do
Itamaraty, mantinha estreitos laços de cooperação com os principais jornais do Rio de Janeiro, no
propósito de informar e angariar o apoio da opinião pública para sua política exterior‖. (ARTIGOS,
2002:7). A publicação ainda adverte que ―seus objetivos táticos ditavam o grau de identificação
com o texto publicado‖, o que as vezes tornava mais difícil a afirmação da autoria dos textos
publicados. (APRESENTAÇÃO, 2002:7). Esta dificuldade se via ainda agravada pelo hábito de Rio
Branco de enviar pessoalmente amplas informações aos diretores ou principais redatores sobre
temas que julgasse oportunos serem levados ao grande público. De esta forma, nem sempre era
possível saber se o texto havia saído da pena do Ministro ou apenas havia sido escrito baseado em
dados fornecidos por ele. Entretanto, já são conhecidos seguramente os pseudônimos ―Nemo‖ e
―Kent‖ – com o qual assina os textos que serão tratados a seguir – além de F.H. ou Ferdinand Hex,
Brasilicus, Bernardo de Faria e J. Penn. (LINS, 1988:409). Lins, um de seus biógrafos mais
respeitados, também afirma que em alguns casos a dúvida sobre a autenticidade do texto é dirimida
pelo próprio Barão. Segundo o autor, em seu acervo particular, hoje parte do Arquivo Histórico do
Itamaraty, Rio Branco costumava colocar suas iniciais ―R.B.‖ nos recortes de jornais que guardava,
indicando que eram de sua autoria. O fato inegável é que Rio Branco conhecia as engrenagens da
imprensa e as manejava habilmente a seu favor. Nos textos dos quais nos ocuparemos, o Barão trata
de responder de maneira pormenorizada a outros artigos publicados que criticavam sua atuação na
pasta de Negócios Estrangeiros.
A questão do Acre, por Kent
A primeira série de cinco artigos selecionados pelo CHDD e aqui analisados foi publicada
no Jornal do Commercio, entre dezembro de 1903 e janeiro de 1904 e assinada por Kent. Os quatro
primeiros artigos são igualmente intitulados A questão do Acre e o tratado com a Bolívia e sempre
aparecem na seção de Publicações a Pedido do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. O quinto e
último artigo se centra em responder às críticas de um jornal argentino sobre a atuação do Brasil no
mesma questão e é publicado originalmente em O Paiz. Os textos versavam sobre a disputa
territorial com a Bolívia pela região do Acre e sua posterior resolução, através da assinatura do
Tratado de Petrópolis, em 1903. O Tratado pôs fim a um longo litígio com o país vizinho, mas
suscitou fortes críticas e dividiu opiniões no Brasil. Os críticos de Rio Branco consideraram os
termos do Tratado demasiadamente generosos com a Bolívia e o viam como uma humilhação para o
país, que, sob esta perspectiva, estaria cedendo parte do seu território e ainda pagando uma quantia
em dinheiro por isso7.
Em A questão do Acre e o tratado com a Bolívia I8, de 17 de dezembro de 1903, Kent
defende que a questão do Acre é uma herança monárquica e não um problema criado pela república,
como afirma o ―infatigável propagandista da restauração Sr. Martim Francisco Ribeiro de
Andrada‖, a quem dirige sua resposta. (RIO BRANCO, 2002: 21). Tal afirmação e a forma como
(des)qualifica seu crítico chama a atenção e ganha importância por ser Rio Branco notório
monarquista, que muito hesitou em aceitar continuar servindo ao novo regime9. De fato, só o fez
após receber aprovação de D. Pedro e passou a justificar sua decisão com o argumento dado pelo
velho monarca, serviria ao Brasil e não a um regime político. Mesmo sendo um funcionário da
república, sua gratidão e admiração pelo antigo Imperador o fizeram até o fim considerá-lo como
um dos dois maiores brasileiros já existentes, além, é claro, do Visconde de Rio Branco, seu pai.
7
O Tratado de Petrópolis foi firmado em 17 de novembro de 1903 entre Brasil e Bolívia e fixou os limites entre os dois
países, acabando com uma disputa territorial herdada do Império. Pelos termos do Tratado, houve uma permuta de
territórios que procurou estar de acordo com a nacionalidade da população habitante do espaço. Por serem áreas
desiguais, o Brasil teve que pagar uma compensação financeira à Bolivia no valor de £ 2.000.000 e ficou comprometido
com a construção da estrada de ferro do rio Madeira ao Mamoré.
8
Texto também publicado em Gazeta de Notícias (18 dez. 1903), Jornal do Brasil (18 dez. 1903), A Tribuna (19 dez.
1903), O Paiz (18 dez. 1903).
9
Telegrama de Rio Branco a D. Pedro II em 7 de dezembro de 1889: ―Senhor. Desde muitos dias estou para escrever a
Vossa Majestade imperial e não tenho tido coragem (...) Suplico-lhe que diretamente ou por intermédio do conde de
Nioac me mande uma palavra de perdão que me dê algum conforto, pois nunca atravessei dias tão cruéis.‖ A resposta
veio pelo intermediário citado no dia posterior: ― Sei tudo quero-lhe muito; diga que fique; peço que fique. É seu dever.
Sirva seu país.‖. (LACOMBE, 2001:100).
(RICUPERO, 2000:8).
Como bem define Angela Alonso, Rio Branco e seus amigos mais
próximos, Eduardo Prado, Alfredo Taunay, Rodolfo Dantas, André Rebouças, Joaquim Nabuco,
―eram homens de corte, criaturas da cultura aristocrática, apreciadores da liturgia dos salões‖ e,
como tais, comungavam do mesmo sentimento de perda de perspectivas com a proclamação da
república. (2008:7). Dentro deste contexto era compreensível a hesitação de Rio Branco em unir-se
a um novo regime, que, no seu íntimo repudiava, conforme carta a um amigo: ―...esta geração nova,
com os tais federalismo e republicanismo, parece querer desprezar a grande pátria, que nos legaram
nossos pais, homens enérgicos, que não viviam de capitulações e fraquezas.‖ (LACOMBE,
2001:96). Para Almeida (1996:6), Rio Branco possuía ―o pensamento político de um monarquista
conservador típico do século XIX‖. Com todos estes antecedentes, não deixa de ser interessante o
reconhecimento de que, a despeito de suas críticas, a República não era a criadora do problema
fronteiriço com a Bolívia, mas seria quem o havia de resolver. Ademais, cita a criação do Uruguai
e o papel jogado pelo Império brasileiro como antecedente e o equipara à questão que se
desenrolava, deixando claro que se os atos da nascente República podiam ser censurados, também
haveriam de ser os já executados pelo Império.
Não recordamos estes fatos com a intenção de desaprovar ou censurar o que
praticou o Império. Desejamos tão somente que o Commercio de S. Paulo e o Sr.
Martim Francisco meditem sobre esses antecedentes históricos e expliquem o
porque era lícito e louvável, naquele tempo, permutar, ceder território ou mesmo
consentir na separação de uma província inteira, com representação no Parlamento
Brasileiro, e é condenável agora alargar os domínios da Pátria Brasileira, receber
um território imenso, fertilíssimo, onde vivem e trabalham 60.000 compatriotas
nossos e conseguir isso sem um tiro, sem uma gota de sangue derramado, somente
pela persuasão, dando nós em retorno à outra parte algumas léguas de terra
despovoada e de alagadiços, uma soma em dinheiro aplicável a melhoramentos que
indiretamente nos serão vantajosos, favores comerciais que nenhum povo culto
recusa a outro seu vizinho, e o uso de um caminho de ferro já prometido, sem
compensação alguma no tempo do Império. (...) (RIO BRANCO, 2002: 27).
Um ponto muito polêmico do Tratado de Petrópolis era o pagamento de uma indenização à
Bolívia, que Kent considera justo pela compensação pela área dada e a área recebida. Segundo ele,
o pagamento não era mais do que parte da ―soma dos sacrifícios que fazemos para resolver
definitivamente a chamada questão do Acre‖ e reafirmava que ―não houve nessa operação compra
de direitos ou de Territórios.‖ (RIO BRANCO, 2002: 24). As justificativas apresentadas por Kent
iam ao encontro da concepção de política exterior de Rio Branco, que tinha como um de seus
pilares a consolidação das fronteiras nacionais. Seu objetivo maior, que era o de alçar o Brasil ao
patamar dos grandes países, das ―nações civilizadas‖ para utilizar seus próprios termos, passava
pela clara definição das fronteiras e pela ausência de litígios com os vizinhos. Sendo o Brasil o
maior país da região e tendo fronteira com tantos paísess, era ainda mais importante deixar
delimitados seus limites de maneira pacifica para evitar demandas posteriores que pudessem abalar
a paz na América do Sul e suas relações com a Europa (é importante lembrar que à época ainda
havia colônias européias que faziam fronteira com o Brasil e que suscitaram problemas, como
foram os casos das questões com a Guiana Francesa e com a Guiana Inglesa). A solução pacífica de
controvérsias, tida até hoje como pilar da política externa brasileira, é um dos maiores legados do
Barão e está presente na justificativa de Kent para a assinatura do Tratado. Seu objetivo era
―eliminar um elemento perturbador e perigoso, que andava a suscitar-nos dificuldades na Europa e
na América do Norte, tirar ao Governo boliviano a esperança de apoio estrangeiro, simplificar a
questão entre o Brasil e a Bolívia e facilitar um concerto amigável entre os dois países.‖ (RIO
BRANCO, 2002: 24-25). Rio Branco conhecia muito bem as prevenções que o cercavam na
América do Sul. ―Tinha, portanto, plena consciência de que a aproximação com os vizinhos deveria
ser feita passo a passo, com menos romantismo e mais pragmatismo, com menos utopia e mais
realismo‖. (Vilalva, 1995: 120)
Com efeito, Rio Branco solucionou o primeiro problema de toda política externa que é a da
delimitação das fronteiras nacionais ―pois equacionou, com virtú e fortuna, por meio do direito e da
diplomacia os limites do país com os seus inúmeros vizinhos‖. (LAFER, 2000: 261). A
consolidação pacífica do espaço nacional ainda liberou o país para fazer do desenvolvimento o tema
básico da política externa brasileira no correr do século XX. (LAFER, 2000). Por este entendimento
que embasava sua conduta, é que para Ricupero (2000) a maior contribuição de Rio Branco não foi
apenas consolidar as fronteiras, como defendido por grande parte dos autores, mas definir o espaço
internacional do Brasil e ter um projeto para sua inserção no mundo. Esta inserção deveria ser soberana e
baseada nos princípios do Direito Internacional, no respeito às normas e costumes internacionais, entre eles a
solução negociada de conflitos. Estes argumentos são reiterados ao longo dos artigos para explicar aos
descontentes porque o Brasil havia sido tão ―generoso‖ no acordo com a Bolívia.
Apesar de ser louvado por aumentar o território nacional e resolver sem recorrer às armas os
conflitos externos, o Ministro também encontrava resistências internas, as quais buscava sempre responder
fazendo alusão ao sentimento de patriotismo que animava a conduta do seu gabinete. Em A questão do
Acre e o tratado com a Bolívia II10, publicado no Jornal do Commercio em 18 de dezembro de
1903, diz Kent: ―Em outros países, onde em todos os círculos da política e da imprensa se tem
melhor compreensão de patriotismo e dos interesses da causa pública, as questões com o estrangeiro
são consideradas sempre questões nacionais‖. (RIO BRANCO, 2002: 29). Expressava assim dois
posicionamentos fundamentais para a compreensão do seu pensamento político. Primeiro, a
compreensão de que a política exterior não era senão uma faceta da política interna e, portanto, tão
importante quanto esta. Talvez esteja aí uma crítica velada também àqueles que acusavam11 seu
10
Texto também publicado em O Paiz (19 dez. 1903), Gazeta de Notícias (19 dez. 1903), A Nação (19 dez. 1903).
Exemplar destas críticas é o romance Os bruzundangas, de Lima Barreto (2002), que faz uma sátira ao Brasil da
Primeira República e tem em Rio Branco um de seus alvos principais de crítica.
11
Gabinete de fazer gastos excessivos em prol da imagem internacional do país, como foi o caso da
criação da Embaixada em Washington, ou mesmo do papel que desempenhava o Ministério do
Exterior em uma República ainda em construção e com tantos problemas a resolver. O segundo, de
que a causa pública estava acima de qualquer divisão político-partidária ou ideológica, como já
havia deixado claro quando aceitou continuar desempenhando suas funções a partir da Proclamação
da República e mesmo ao demorar a decidir-se por retornar ao Brasil para o cargo de Ministro, por
temer imiscuir-se novamente no jogo da política interna que em nada lhe agradaram quando foi
Deputado.
Também aproveitou a ocasião para defender a permanência de políticos nos seus cargos por
períodos mais longos, dada, segundo ele, a importância da continuidade para o trabalho em política
exterior. Diz ele: ―Por isso em França, ministros como os Srs. Hanotaux e Delcassé têm podido
permanecer em gabinetes sucessivos, de diferentes matizes políticos. Entre nós não se dá o mesmo
nos dias de hoje, que infelizmente ainda são de anarquia mental‖. (RIO BRANCO, 2002: 29).
Nesta passagem é ainda possível observar um reflexo de uma postura muito própria de Rio Branco,
que era o rechaço à política partidária e suas ―pequenezas‖, repetidas vezes apontada por seus
biógrafos. (LINS, 1995; RICUPERO, 2000; LACOMBE, 2001).
A questão do Acre e o tratado com a Bolívia III12, foi publicado no Jornal do Commercio,
em 21 de dezembro de 1903, mais de um mês depois da assinatura do Tratado de Petrópolis,
evidenciando que a onde de críticas sobre o Ministério ainda tinha força. Neste texto, dado que já
havia explicado pormenorizadamente as razões que levaram o Brasil à assinatura do acordo, apenas
retomas os argumentos anteriores e reforça a idéia de que não houve nenhum tipo de cessão
territorial, mas sim uma troca legítima de territórios, que levou a necessidade de pagamento de uma
compensação financeira. Ainda se empenha em mostrar como a opinião do jornal mudou de total
apoio de sua gestão até passar a criticar o tratado de Petrópolis, fazendo um inventario de editoriais
anteriores do periódico. O trabalho de reconstituição das opiniões expressadas pelo jornal é
minucioso e serve para mostrar sua inconsistência, já que este iniciou com o pedido por uma
intervenção militar brasileira na região e passou a ser defensor de uma solução arbitrada, rechaçada
por Rio Branco pelo tempo que levaria e pela incerteza do resultado. Conforme descreve Almeida
(1996:1), o Barão era um ―pragmático, antes de mais nada, no sentido de não ater-se a princípios
rígidos de atuação diplomática — privilegiando a arbitragem ou a negociação direta, segundo o que
melhor conviesse no momento em causa‖. Por isto, defendia que sua opção pelo acordo direto era a
mais apropriada. Rio Branco não queria prolongar ainda mais a questão e ficar à mercê de um
12
Texto também publicado em Jornal do Brasil (22 dez. 1903), O Paiz (22 dez. 1903), A Tribuna (22 dez. 1903).
árbitro internacional, entendendo que as boas relações com o país vizinho eram a prioridade naquele
momento e justificavam os termos acordados.
Dois dias depois, volta ao tema e escreve A questão do Acre e o tratado com a Bolívia IV13,
no mesmo Jornal do Commercio, em 23 de dezembro de 1903. Desta vez, se dedica mais a refutar a
acusação de que nunca antes o Brasil havia cedido territórios, conforme já havia explicado em texto
anterior. Esclarecido novamente que o caso era de permuta e não de cessão territorial, algo que, em
todo caso, já havia acontecido anteriormente, busca os exemplos de outras ―nações cultas‖, como os
Estados Unidos, a Alemanha e o Reino Unido, para defender a saída encontrada pelo Ministério.
Com isso, conclui:
Depois do exposto e em vista das autoridades e dos exemplos citados, o leitor
certamente convirá conosco que os escritores do Correio da Manhã são um tanto
imodestos quando, a propósito do tratado de Petrópolis, vituperam os negociadores
brasileiros e bolivianos e pensam poder dar lições de direito internacional, de
direito diplomático, de patriotismo, de moralidade e honra a homens como os
presidentes Rodrigues Alves e General Pando e os plenipotenciários do Brasil e da
Bolívia, Srs. Barão do Rio Branco, Assis Brasil, Guachalla e Pinilla. (RIO
BRANCO, 2002: 53).
O último artigo sobre a Questão do Acre se chama CENSURAS PLATINAS14 e foi
publicado em O Paiz, do Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 1905, no qual busca responder a um
artigo de La Prensa, de Buenos Aires, considerado como ―assinaladamente desagradável para o
Brasil‖. (RIO BRANCO, 2002: 56). O texto, intitulado El Brasil en el continente, retoma alguns
argumentos já utilizados pelo mesmo jornal em outra ocasião, quando considerava a reorganização
naval do Brasil levada a cabo por Rio Branco como uma ameaça ou um perigo para a Argentina.
Kent defende a decisão do gabinete Rio Branco afirmando que ―mesmo naquele tempo,
compreendendo melhor do que certos políticos argentinos os verdadeiros interesses desta parte do
continente, procurávamos e queríamos a amizade e a aliança argentina‖. (RIO BRANCO, 2002:
56). Ainda que o tema que motivou o artigo argentino tenha sido o Acre, outros pontos surgem no
debate de fundo, que era o de uma possível pretensão hegemônica do Brasil na região e os
conseqüentes perigos para o vizinho. Rio Branco entendeu as intenções do jornal e acabou
retomando a discussão sobre planos brasileiros em matéria de política exterior, como o
reaparelhamento militar e as relações com os Estados Unidos, dois temas delicados e que
interessavam diretamente à Argentina.
As questões militares sempre estiveram presentes na vida de Rio Branco, já que a história
militar foi sua paixão desde a mocidade e o tema que motivou seus primeiros escritos históricos.
13
14
Texto também publicado em O Paiz (24 dez. 1903), Jornal do Brasil (24 dez. 1903), A Tribuna (24 dez. 1903).
Texto também publicado em Jornal do Commercio, 19 jan. 1905.
Em diferentes ocasiões chegou a sofrer acusações de ser um militarista, como ocorreu no caso do
Acre, embora não seja exatamente uma crítica procedente para um diplomata que resolveu sempre
as questões externas com base em negociações pacíficas. Ele tinha, sim, consciência do limitado
poder de projeção externa do País e por isso mesmo, ainda que recusando o militarismo, era um
―partidário ativo‖, como coloca Ricupero, ―da modernização das forças armadas, tendo seu nome
ficado ligado ao programa de renovação da frota‖. Não proclamava, contudo, a necessidade de
―armamentos formidáveis‖ ou a ―aquisição de máquinas de guerra colossais‖: tratava-se, tão
simplesmente, de cuidarmos ―seriamente de organizar a defesa nacional, seguindo o exemplo de
alguns países vizinhos‖. (RICUPERO apud ALMEIDA, 1996, p. 6).
As Forças Armadas no projeto político de Rio Branco eram consideradas úteis e deveriam
estar bem estruturadas, mas jamais foram empregadas na condução da sua diplomacia. Serviam de
apêndice ao poder político na sua tarefa de garantir o direito e de neutralizar os ânimos
expansionistas de outras nações - e não como referencial na hierarquização dos Estados ou como
instrumento ao exercício da machtpolitik. (ALMEIDA, 1996). Na concepção de Rio Branco, o
poder do Estado e a defesa do território careciam de Forças Armadas bem equipadas, como Kent
mesmo afirma:
Agora, tratamos apenas de reconquistar em parte a posição perdida e devíamos
esperar que a imprensa argentina imitasse a calma e a segurança que mostramos
quando o seu país se armava. (...)
Temos um litoral imenso e um vasto sistema de comunicações fluviais a defender e
a proteger. (...)
Não podemos prescindir de esquadra. (....). (RIO BRANCO, 2002: 56-57).
O outro ponto rebatido por Rio Branco é o descontentamento argentino com a criação da
Embaixada brasileira em Washington15. Para Kent, ―o que, porém, estomagou seriamente La Prensa
foi a recente criação de uma embaixada brasileira em Washington. Viu nisso uma ofensa às outras
repúblicas da América Latina‖, o que ele considerou um ―desabafo mais insensato‖. (RIO
BRANCO, 2002: 58). A criação da primeira Embaixada brasileira, em 1905, representou uma
mudança fundamental na condução da política externa brasileira, que então se aproximava dos
Estados Unidos em detrimento das relações mais próximas com a Europa que sempre manteve. Era
mais um sinal do pragmatismo do Ministro, que reconhecia o nascimento de uma nova potência
hegemônica no cenário internacional e que tratou de estabelecer uma ―eqüidistância equilibrada nas
suas relações externas, mas, sobretudo buscando contrabalançar o excessivo peso europeu‖.
(VILALVA, 1995: 122). Entretanto, aproximação não significava necessariamente alinhamento.
15
Para análise mais detalhada deste ponto, ver Pereira (2006).
Como aponta Vilalva (1995: 122), o objetivo de Rio Branco era construir ―uma amizade que
deveria ser construída em pé de igualdade, sem alienação de soberania, com vantagens mútuas e em
benefício da paz em todo o continente‖. Na sua concepção, o Brasil não deveria estar subordinado a
nenhuma outra potência estrangeira, seja européia ou americana, mas sim inserir-se de forma
soberana no concerto de nações, sem aspirações expansionistas e respeitando a autodeterminação
dos demais países. Kent claramente expressa esta posição e aproveita para criticar as pretensões da
Argentina:
La Prensa vê no nosso projeto de lenta reconstituição naval e na criação da
embaixada brasileira em Washington a pretensão de firmar a nossa hegemonia no
continente Atribuiu-nos aquilo que ela deseja para o seu país e que nunca
pretendemos. Não andamos procurando influir na vida interna ou na política dos
povos vizinhos. (...)
Quanto à hegemonia ou preeminência na América do Sul, não a queremos disputar
com a República Argentina. (...)
Na parte do Atlântico, teremos sempre prazer em dividir com a República
Argentina, se assim se pode dizer, a parte de hegemonia que nos cabe. (RIO
BRANCO, 2002: 57).
Enfim, o que procurou deixar claro, era que o Brasil não apenas não possuía aspirações
hegemônicas, como denuncia a existência destas idéias por parte da Argentina. Estrategicamente
termina oferecendo uma divisão de poderes ao vizinho, uma cessão de parte de sua hegemonia, já
que tampouco lhe interessava que este crescesse em suas pretensões. O que fica claro é a afirmação
de soberania na conduta brasileira, que, se não procura influir na vida interna dos vizinhos, também
não quer sofrer interferências, uma forma ainda de defender sua aproximação com Washington.
Considerações finais
O presente trabalho representa um primeiro esforço de aproximação com fontes primarias
até pouco tempo inéditas e que poderiam ser importantes para o desenvolvimento de pesquisas mais
aprofundadas sobre o pensamento político do Barão do Rio Branco. Além disso, os artigos
publicados sob pseudônimos são uma parte fundamental de sua produção intelectual que ainda não
foram totalmente mapeados, nem analisados no conjunto de sua obra. Após a leitura de uma parte
desta documentação que vem chegando ao alcance dos pesquisadores através da publicação pelo
Centro de História e Documentação Diplomática, foi possível encontrar diversos elementos do
pensamento político de Rio Branco a que fazem referência os estudiosos de sua obra. A grande
contribuição deste escritos, no entanto, é que neles estes elementos são encontrados saídos da pena
do próprio autor e não a partir de interpretações. Protegido por pseudônimos, Rio Branco assume
posturas, argumenta e justifica suas ações e de seu gabinete a partir de suas concepções de Brasil,
do projeto político que estava pondo em prática. As idéias de uma inserção internacional soberana e
em pé de igualdade com as outras ―nações cultas‖, o respeito ao Direito Internacional Público, a
manutenção do prestígio internacional e garantia de capacidade de defesa dos interesses nacionais
mediante a existência de Forças Armadas bem equipadas, o desejo, enfim, de que o Brasil ocupasse
seu lugar no mundo através dos procedimentos seguidos pelos ―países civilizados‖, são idéias
expressadas por Kent-Rio Branco nos artigos analisados. Mais do que conclusões acerca do
conteúdo destes textos, buscou-se apresentá-los como fontes extremamente úteis para a
reconstituição das idéias políticas do Barão e traçar algumas considerações iniciais sobre o seu
potencial para pesquisas posteriores. Entende-se que os artigos cumpriram seu papel e mostraram
que têm muito a aportar e ajudar a preencher a lacuna de fontes primarias que ajudem a desvendar o
pensador político atrás do diplomata, jurista, historiador, enfim, do estadista que foi Rio Branco.
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