Erschienen im O Público vom 19. Juni 2009:
Investigadores portugueses estudam pela primeira vez documento do jesuita português, de
1614
Foi Manuel Dias que ensinou aos chineses quem era Galileu
Ana Machado
Chama-se Sumário de Questões sobre os Céus. É um documento de 100 páginas, com
prefácio. E a estrutura do texto vem no formato de perguntas - colocadas por um chinês - e de
respostas - dadas por um ocidental com conhecimento de astronomia. O ocidental era um
padre jesuíta português, chamado Manuel Dias. E foi ele quem apresentou Galileu e as suas
descobertas à China, em 1614, apenas três anos depois de o trabalho de Galileu ter sido
publicado.
Há dez anos que Henrique Leitão, investigador do Centro Interuniversitário de História das
Ciências e da Tecnologia, andava atrás deste documento e do contributo de Manuel Dias para
o conhecimento da astronomia e dos achados de Galileu na China. Sabia da existência do
documento, onde o jesuíta Manuel Dias contava como funcionava o telescópio de Galileu e o
que o mestre italiano teria descoberto sobre as maravilhas do Universo. "É um texto que está
em todas as bibliotecas imperiais chinesas, o original é de 1615. Mas foi reeditado até ao
século XIX, o que significa que teve imenso impacto na cultura chinesa. Notícias de que
havia este texto existem desde o princípio do século XX. Mas nenhum português pensou:
vamos lá ler o que vem aqui escrito."
Mas, tratando-se de um documento em chinês, Henrique Leitão precisava de alguém que lesse
chinês clássico e soubesse de história da ciência para o poder interpretar. Lembrou-se então
de um antigo colega de liceu, chamado Rui Magone. Não se viram durante anos. Voltaram a
ver-se em Berlim em 2002 e trocaram as perguntas do costume. Henrique Leitão dedicava-se
então à física. Mas a história da ciência, que haveria de o ocupar em exclusivo, tentava-o. Rui
Magone contou como tinha chegado ao estudo do chinês e da cultura chinesa. Quando
Henrique Leitão decidiu dedicar-se ao documento de Manuel Dias, lembrou-se então do
sinólogo amigo de liceu. Rui Magone precisou de cinco horas para uma primeira leitura do
documento em chinês clássico.
Investigador do Max Planck Institute de História das Ciências, Magone aproveitou uma visita
este mês a Lisboa - para uma conferência na Universidade Católica sobre a sua especialidade,
o sistema de exames chinês (a forma antiga para seleccionar os intelectuais chineses) - para se
dedicar ao estudo aprofundado deste documento, juntamente com Henrique Leitão.
"É incrível como em Portugal ninguém sabe disto. Para Portugal, no ano em que se comemora
o Ano Internacional da Astronomia, 400 anos depois das primeiras observações de Galileu,
esta é a história mais importante que se podia revelar."
Henrique Leitão frisa a própria estrutura do texto como um dos aspectos mais interessantes do
documento: "Já existiam documentos de autores ocidentais sobre astronomia traduzidos na
China no século XVII. Mas este é mais vivo, é uma conversa", diz Henrique Leitão, enquanto
folheia a cópia do documento de Manuel Dias, enviada pela Academia Sínica, a grande
instituição de investigação de elite chinesa. "Mostra que os jesuítas sabiam o que interessava
aos chineses sobre a astronomia ocidental."
E o que é que interessava aos chineses? "Por exemplo, na China havia um interesse enorme
pela previsão de eclipses. Um eclipse que não estivesse previsto era encarado como um mau
sinal, como se o céu não estivesse contente com os imperadores e mandassem aquele recado
do céu", explica Rui Magone. O que é a Terra, o horizonte, a latitude e longitude, o equador
celeste, são algumas das noções explicadas na sequência de perguntas e respostas do
documento de Manuel Dias.
"Tem tabelas com as várias latitudes na China. São as primeiras tabelas destas na China. Não
havia ainda a noção de latitude na cosmografia chinesa", conta Henrique Leitão folheando as
páginas, nas quais só consegue descodificar as imagens, como uma criança que folheia um
livro ilustrado. "São perguntas e respostas que revelam o conhecimento do comunicador e
aquilo que o interlocutor ansiava por saber", diz o investigador.
A fotocópia do documento que folheia em cima da mesa, na Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, é uma reedição do século XVIII. Mas ainda não desistiu de encontrar
a primeira edição. "Andamos atrás dela. Ou está em Oxford ou na Biblioteca do Vaticano",
diz, referindo que, para além de estar presente nas bibliotecas pessoais dos imperadores
chineses, este documento deve ter exemplares em bibliotecas europeias. "Mas nunca foi
procurado com cuidado na Europa."
Henrique Leitão volta a centrar-se numa imagem, a de um círculo, com dois outros pequenos
círculos que o orbitam, exemplificando um dos maiores achados de Galileu, as fases de
Vénus, que desmontavam o sistema de Ptolomeu e sustentavam a teoria heliocêntrica
apresentada por Copérnico.
No final do documento lá vem a alusão às observações feitas por Galileu, em 1611. Rui
Magone ajuda a descodificar para lá das imagens: "Refere-se nas últimas páginas a um sábio
ocidental famoso que revelou segredos do Sol, da Lua e outros objectos, mas que, com os
olhos já frágeis, construiu um instrumento para os observar", conta o sinólogo. E Manuel Dias
prometia relatar mais novidades sobre o assunto assim que lhe chegassem mais dados.
A Aula da Esfera
No início do século XVII, a Companhia de Jesus dominava a educação no mundo com uma
enorme rede de jesuítas dedicados ao ensino, quase 700. O ponto central da rede localizava-se
em Roma e, a partir daí, multiplicava-se em vários ramos, ou assistências. Uma dessas
assistências, a portuguesa, propagou-se pelo mundo todo, do Brasil à China, passando pela
Índia, Japão e Timor.
"Era a maior assistência dos jesuítas e a que tinha menos efectivos, pelo que tiveram de
importar estrangeiros", conta Henrique Leitão sobre o recurso na altura a jesuítas italianos,
que divulgaram precocemente em Lisboa os feitos dos sábios da época, entre eles Galileu.
Um desses jesuítas, Giovanni Paolo Lembo, que era até amigo pessoal de Galileu, chega a
Lisboa em 1614 e no ano seguinte já ensinava na "Aula da Esfera", a aula de Matemática do
colégio jesuíta de Santo Antão. Os apontamentos portugueses de Lembo são mesmo famosos,
porque têm as mais antigas instruções conhecidas no mundo sobre a construção de
telescópios.
Henrique Leitão e Rui Magone explicam que terá sido este conhecimento tão profundo dos
jesuítas em Portugal em relação aos feitos de Galileu que fez com que as descobertas do sábio
fossem tão precocemente reveladas em Lisboa, e depois no mundo, através da rede da
Companhia de Jesus.
Manuel Dias, que nasceu em Castelo Branco em 1574 e que ingressou na Companhia de Jesus
em 1593, estudou Filosofia em Coimbra antes de partir para a Índia, Macau e entrar na China
em 1610. Chegou a Pequim em 1613, onde redigiu o Sumário de Questões sobre os Céus.
Ironicamente os jesuítas na China estavam proibidos de ensinar disciplinas não religiosas,
como a Astronomia ou a Matemática. Entre 1625 e 1635 Manuel Dias foi a autoridade
máxima da companhia na China. Morreu a 4 de Março de 1659.
"Como é que é possível que alguém em Pequim tenha sabido disto em 1614, quando estas
observações de Galileu são de 1611, apenas três anos antes?", questiona Henrique Leitão,
acentuando o papel do documento de Manuel Dias. Até ao século XX, quando um chinês
queria informar-se sobre Galileu, era este texto de Manuel Dias que lia. "E em Portugal
ninguém liga", observa sobre o papel deste jesuíta, que não se resume a este documento. "O
primeiro globo da China é feito por Manuel Dias e pelo italiano Nicolau Longobardo. É de
1623, quando ainda não havia noção na China de que a Terra era esférica. A toponímia é toda
portuguesa. Ainda existe e está na British Library."
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Foi Manuel Dias que ensinou aos chineses quem era Galileu