1 Fogo Morto: Universo de Mulheres Trabalhadoras Dead Fire: Universe of Women Workers Nabylla Fiori de Lima. UTFPR – [email protected] Resumo: A obra Fogo Morto é analisada neste artigo a partir da força e da resistência feminina frente à decadência dos engenhos de cana-de-açúcar. Essa força é representada, sobretudo através do trabalho desempenhado pelas personagens femininas do romance, substituindo de certa forma seus maridos que decaem juntamente com os engenhos. Partimos da teoria de Antonio Candido quanto ao elemento social presente na obra analisada como um elemento interno que não está presente apenas no cenário e no tempo da narrativa para, então, mostrarmos como estas personagens apesar de representadas sutilmente pelo autor da obra, são de grande importância para a sociedade açucareira e para a vida de seus esposos apesar da resistência desses para admitirem a importância de suas esposas. Palavras-chave: Regionalismo nordestino. Feminino. Trabalho. Abstract: The book "Dead Fire" is analyzed in this article from the strength and female resistance against the decay of the mills of sugar cane. This force is represented mainly through the work performed by the female characters of the novel, replacing their husbands that go into decline along with the mills. We use the theory of Antonio Candido on the social element present in the work analyzed as an internal element that is not present only in the setting and time of the narrative to then show how these characters subtly represented by the artist, are of great importance to sugar society and to lives of their husbands despite the resistance of these to admit the importance of their wives. Keywords: Northeastern Regionalism. Female. Work. 2 Introdução Ao analisarmos uma obra literária, de acordo com Cândido, precisamos escolher um viés. Durante a leitura de Fogo Morto, ao perceber a importância das mulheres na narrativa, embora pareçam personagens secundárias, optamos para este trabalho o viés social: analisar as mulheres na sociedade açucareira patriarcal, sobretudo quanto ao trabalho, visto que tais personagens desempenharam importantes papéis nas vidas de suas famílias através do trabalho. Para tanto, é importante percebermos o contexto da obra. Cândido afirma que “só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.” (CANDIDO, 1973, p.13). Portanto, iniciaremos o presente artigo com a contextualização do tempo externo da obra (tempo em que ela foi escrita) e quanto ao tempo interno, ou seja, a época em que se passa a narrativa – que na obra escolhida é diferente do externo – falaremos também no decorrer da análise. Essa importância implícita das mulheres em Fogo Morto, apesar de sutil, acaba por tornar-se de grande valia para a compreensão integral da obra, tornando-se um fator interno na narrativa, como afirma Cândido - “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” (CANDIDO, 1973, p.14) Obra e Contexto José Lins do Rego Cavalcanti, nascido no município do Pilar, Estado da Paraíba, tendo passado a maior parte da sua vida em Recife, o que o levou a descrever o cotidiano paraibano em muitas de suas obras. Escreveu, entre outro, cinco livros nomeados “Ciclo da cana-de-açúcar” - Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O Moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto (1943) - que descreve a decadência do engenho açucareiro nordestino, sendo mais realista que nostálgico, visto que teve, na sua infância, contato com os engenhos passando, depois de certo tempo, a criticar essa sociedade, vendo-a não mais com nostalgia. 3 Para entendermos o contexto em que Fogo Morto foi produzido, é necessário entendermos o chamado Regionalismo de 30 bem como o movimento Modernista. Na Semana de 22 houve diversas manifestações culturais que visavam buscar uma arte nacional que não imitasse as produções européias. As valorizações do indígena e da língua falada pelo povo eram vistas como essenciais para a construção de uma identidade nacional. O Regionalismo de 30, no entanto, dentro dos moldes do modernismo, buscou também demonstrar a identidade nordestina. Com o Manifesto Regionalista de 1926, criado por Gilberto Freyre e publicado no Congresso Regionalista, tinha por objetivos trazer e preservar os valores e tradições do Nordeste. O chamado “Romance de 30”, também um importante movimento em que a obra de José Lins do Rego estava inscrita, buscava mostrar um retrato da realidade, história e socialmente, denunciando as desigualdades e injustiças. Demonstrava, portanto, que o “velho mundo” ainda não havia desaparecido por completo. A narrativa interna da obra se dá durante os primeiros anos do século XX, no entanto, há uma regressão ao ano de 1850 - época da fundação do engenho Santa Fé. O título da obra remete-se aos engenhos que interromperam a sua atividade, fazendo referência às fornalhas apagadas. Todavia, em Fogo Morto vemos que não são apenas os engenhos que entram em decadência; mas também os homens, que perdem suas forças com a decadência dos engenhos e deixam de lutar pelos seus ideais e por uma melhora de vida. O fim do trabalho escravo, mostrado na obra, auxilia nessa decadência, visto que grande parte dos escravos, por serem muito maltratados pelos senhores, desistem de trabalhar, deixando os engenhos com uma relevante falta de mão-de-obra. A religião também é um fator importante nessa sociedade. As crenças movem o povo. Percebemos como a reza é importante para alguns senhores de engenho, ao pedirem o que desejam em suas rezas. Também a ida à missa é um importante evento, visto que muitas mulheres só podiam sair de casa para irem à missa, e seus pais e maridos aproveitavam-se dos eventos religiosos para mostrarem à sociedade sua riqueza e manterem sua posição social. 4 Sendo uma sociedade patriarcal, era o homem quem dava a última resposta e controlava a vida das filhas e esposas, tendo essas, como direito, o silêncio e a submissão. O casamento tem como papel a manutenção da propriedade, a continuidade do nome da família e certa ascensão social, como veremos adiante. Para Elizabeth Fox Genovese, nossa história é uma “história de governantes e de batalhas”. E, portanto, não há lugar para as mulheres (PEDRO, 2005, p.83). Numa leitura superficial de Fogo Morto, podemos notar que os papéis principais cabem aos homens, como se apenas eles que fizessem aquela história. A mulher nessa sociedade é uma peça de jogo para seus pais e maridos. São excluídas da vida social e devem atender aos pedidos e desejos daqueles, além de serem constantemente vigiadas por eles. Se alguma mulher buscava a liberdade, poderia pôr em risco a própria vida. Porém, as mulheres eram, também, um braço direito do marido: Eram elas que administravam os assuntos internos da casa, organizavam o lar e atendiam os convidados. Na obra analisada, percebemos uma discreta força feminina, que vem à tona nos momentos de fraqueza dos maridos. Personagens principais O romance se divide em três partes, cada uma tendo um personagem principal. Apresentaremos resumidamente cada um deles para analisarmos as personagens femininas logo em seguida e complementar as informações aqui dadas. A primeira parte é a do Mestre José Amaro, um seleiro orgulhoso que severamente afirma que não aceita ordens e não trabalha para ninguém – “Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, queria bater em tudo como batia naquela sola.” (REGO, 1978, p.19). A segunda parte tem como título o nome do personagem Lula de Holanda, em que vemos a ruína do engenho mesclar-se com a ruína do homem. Até o seu nome passa, no decorrer da narrativa, por um declínio, o que espelha a sua queda: no início, é chamado de Luís César de Holanda Chacon, em seguida passa a ser coronel Lula de Holanda e depois é apenas “Seu Lula”. 5 O compadre do Mestre José Amaro, Vitorino Carneiro Cunha, é o personagem que denomina a terceira parte da obra. É um personagem que possivelmente pode fazer mudar a opinião do leitor no decorrer da obra, visto que seus feitos passam a ser reconhecidos e podemos perceber, talvez, que no final ele não é aquele homem egoísta que de início pode parecer-nos. No entanto, esse personagem está lutando por ideais fora de sua época, ou seja, sua luta já está perdida. Personagens Femininas A sociedade açucareira em meados do início do século XX era uma sociedade patriarcal, portanto a vida das mulheres, filhas ou esposas, eram dominadas e controladas pelos seus pais e maridos. Havendo essa divisão entre a submissão delas e o poder tomado por eles, até mesmo as profissões eram sexualmente definidas, ou seja, havia profissões destinadas às mulheres e profissões que eram vistas como masculinas “O homem, idealizado como provedor da família, foi designado para o trabalho da produção e a mulher, designada para o trabalho de reprodução, ocorrendo uma separação entre o público (masculino) e o privado (feminino)” (STANCKI, 2003, p. 2) Na obra analisada, no entanto, atrás de cada homem há uma forte mulher. Percebemos a força feminina ali presente, pois é ela que faz com que, na queda de cada homem, elas passem a controlar a situação. A força dessas mulheres acaba por ultrapassar a força masculina. Não é uma força física, mas sim uma força de resistência, de sobreviver às mudanças da época e à decadência de suas propriedades e família. O discurso masculino, fortemente machista, é de autoafirmação: eles necessitam afirmar constantemente sua força e sua posição em relação a elas - de poder e controle para convencerem os que estão próximos e a eles próprios de que eles detêm algum poder. O controle de seus pais e maridos e a falta de liberdade de expressão que lhes é imposta levam essas mulheres ao silêncio. No entanto, esse silêncio e a simplicidade de cada uma das personagens transformam-nas em personagens com profundas reflexões. 6 Essas reflexões que aparecem ao longo do romance nos remetem a um retrato da condição da mulher nessa sociedade. As esposas e as filha nesse romance têm desfechos semelhantes. Enquanto as filhas são marcadas pela loucura e/ou alheamento, as esposas se assemelham através do trabalho. As principais personagens femininas do romance, no papel de esposas, são Sinhá Velha, esposa do Mestre José Amaro, Dona Mariquinha, esposa do Capitão Tomás, Amélia, filha do Capitão Tomás e Dona Mariquinha, casada com o Coronel Lula e Adriana, esposa do Capitão Vitorino. Como já foi dito, a decadência de Lula é demonstrada também através da mudança de como este é tratado, portanto parece-nos que o sobrenome é algo bastante importante. No entanto, ao contrário de seus maridos, estas mulheres não são tratadas com os seus sobrenomes, o que pode demonstrar certa inferioridade em relação a eles. Sinhá Velha, a esposa do seleiro José Amaro, casou-se por causa da idade em que se encontrava. Isto é afirmado pelo seu próprio marido: “Sabia que a sua mulher Sinhá se casara com ele porque não encontrara outro. Estava ficando no caritó e aparecera ele com promessa de casamento. Fingiu que gostava dele para não ficar moça velha.” (REGO, 1978, p. 37) O casamento entre eles se dá por conveniência: ele casou-se por precisar de alguém que o servisse e ela para ser bem vista na sociedade, pois para uma mulher, nessa época, apenas o casamento é bem visto socialmente. Uma moça não casada não é bem vista pela sociedade, principalmente depois de passada certa idade. José Amaro culpa a mulher por não lhe ter dado um filho homem, que levasse o nome da família e aprendesse seu ofício. A Sinhá Velha é vista, então, como uma mulher sem utilidade. O casamento de Dona Mariquinha e Capitão Tomás, que provavelmente eram da mesma classe social, se dá provavelmente por conveniência econômica. Capitão Tomás 7 queria uma mulher para ajudá-lo a construir um patrimônio: “Alguns dos seus irmãos tinham-se casado com gente de Pernambuco. Ele preferira uma prima, mulher de muito bom pensar, que só vivia para a casa, para os filhos, para a criação, para os negros.” (REGO, 1978, p.121) e ele reconhecia os esforços da mulher: “É verdade que tinha uma mulher que era a metade do seu esforço. Cuidava ela dos negros, cosia o algodãozinho para vesti-los, fazia-lhes o angu, assava-lhes a carne.” (REGO, 1978, p.125). O casamento de Dona Mariquinha mostra-se como um casamento de benefício ao homem e submissão da mulher. O silêncio de Dona Mariquinha também a leva a reflexões quanto a sua condição: Em relação ao casamento da filha, Mariquinha pensa: “Não queria para Amélia um marido assim como Tomás, homem que só tinha corpo e alma para o trabalho. Homem devia ser alguma coisa para melhor do que era Tomás.” (REGO, 1978, p.124) e depois sobre o seu genro: “Assim devia ser um marido, homem que vivesse perto da mulher, como gente, sem aquela secura, aquela indiferença de Tomás.” (REGO, 1978, p. 130) Capitão Tomás, pai de Amélia, manda-a para o Recife para estudar e diferenciarse das outras filhas de senhores de engenho, como é afirmado no seguinte excerto: “A verdade é que uma filha fora para o colégio das freiras no Recife. Queria fazer da sua família gente de verdade. Não queria mulheres dentro de casa fumando cachimbo, sem saber assinar o nome, como tantas senhoras ricas que conhecia. E o Santa Fé, com o capitão Tomás Cabral de Melo, chegou à sua maior grandeza. A filha voltara dos estudos, uma moça prendada, assombrando as outras com os seus dotes. […] Era o capitão Tomás Cabral de Melo, senhor do engenho de Santa Fé, chefe do partido liberal, pai de filha educada em Recife, com piano em casa, que falava francês, que bordava com mãos de anjo.” (REGO, 1978, p.122-123) Apesar de ter estudado, a mulher continua presa ao espaço privado, como afirma Falci que “no sertão nordestino do século XIX, a mulher de elite, mesmo com um certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, pois a ela não se destinava a esfera pública do mundo econômico, político, social e 8 cultural. A mulher não era considerada cidadã política.” (FALCI, 2009, p.251) A preocupação de Capitão Tomás quanto a esta filha era que, apesar de tocar piano, ler livros bonitos e ter lhe custado tanto dinheiro nos estudos, ela não se casava. Esta preocupação se dá pelo fato de que “No sertão, a preocupação com o casamento das filhas moças foi uma constante. É verdade que muitas mulheres não se casaram, entre outras razões por dificuldades de encontrar parceiros à altura (…), mas tão logo passadas as “primeiras regras” (menstruação) e a mocinha fizesse corpo de mulher, os pais começavam a se preocupar com o futuro encaminhamento da jovem para o matrimônio.” (FALCI, 2009, p.256) Todavia, diferente das demais personagens do romance, Amélia ao ver o primo Lula “engraçou-se” e quando do pedido de casamento, “encheu os olhos de lágrimas” (REGO, 1978, p. 129) Em várias partes do texto diz-se que Amélia mostra-se feliz com o marido. Apesar disso, ainda é um casamento dado por conveniência social, buscando a ascensão social da família. Conforme afirma Falci, “O casamento da elite no sertão nordestino sempre foi antes de tudo um compromisso familiar, um acordo, mais do que um aceite entre esposos. “Assim, pai e mãe, conhecedores das famílias da sociedade local e com a responsabilidade de ‘orientar as filhas’, ao propiciarem alegres festas e saraus na casa da fazenda (…), estavam cuidando da manutenção e solidificação dos laços de amizade, do patrimônio territorial, e da inter-relação de famílias poderosas oligárquicas locais.” (FALCI, 2009, p.257) A mulher é, então, vista como uma forma de se atingir um fim, ou seja, a ascensão social da família se daria por ela bem como a garantia da continuidade do nome da família. Amélia, quando perde o segundo filho, perde também o marido: este passa a tratála mal depois do parto do segundo filho, que nascera morto. Assim como Sinhá Velha, ela passa a ser vista também como uma mulher sem utilidade. 9 Adriana, vinda do sertão nordestino, viu no casamento uma forma de fuga da miséria. (“Fora uma retirante da seca, que se casara sem amor, somente para fugir da miséria, só porque tivera um convite para fugir para longe.” (REGO, 1978, p.238)). Como depois de casada a mulher fica presa ao marido, Adriana não retorna às origens. Adriana difere-se das demais, pois tem um filho homem e é ela quem escolhe o padrinho e o destino do filho, além de trabalhar fora de casa. A mulher tinha que fazer aquilo a que foi destinada: as tarefas domésticas e devia gerar novas vidas para dar continuidade à linhagem. Há várias alusões à Velha Sinhá dentro da casa – seja quando ela está na cozinha, ou quando chama a comadre para dentro. O mesmo ocorre com Dona Mariquinha. Amélia, por ser educada, tem o espaço da sala: toca piano para o pai e marido, mas conforme o tempo passa menos o marido pede para que toque e, portanto assemelha-se à mãe. Adriana é a que nesse sentido tem mais liberdade. Trabalha com castração de frangos e, portanto vai à casa das pessoas para trabalhar. Ainda assim, há as falas de Vitorino que a manda ir para a cozinha, calar a boca e não se meter em seus assuntos, mas diferente das demais que estão sempre em silêncio, é a única que diversas vezes critica o marido (“Ela às vezes perdia a paciência, era bruta para com o marido.” (REGO, 1978, p.42)). Notamos aqui que a mulher volta sempre àquilo a que foi destinada. A sociedade açucareira não permite espaço às mulheres, deixando-as presas a um confinamento que já não condiz com os novos tempos. Mas estando aquela sociedade da obra em decadência, a mulher acaba por ter um novo papel, que é o de dar segurança aos seus maridos. Todas elas em determinado momento da narrativa refletiam sobre a situação e percebiam que seus maridos e família estavam encaminhando-se para o fim - diferente dos maridos que sempre tentavam demonstrar força e poder. Enquanto eles se prendem ao passado, elas refletem sobre o que já passou e vêem no passado uma mostra de que o fim está chegando. Mudanças: Mulheres no comando 10 A relação dessas mulheres com seus maridos é de cuidado quando há a queda da força deles: Adriana trata Vitorino como menino. Quando ele está com problemas na justiã, Adriana vale-se do povo do Santa Rosa para livrar Vitorino e era ela quem sustentava a casa. “Tudo o que uma mulher de paciência podia fazer ela fizera. Tinha que trabalhar para sustentar a casa” (REGO, 1978, p. 42). Amélia com o Lula tem uma mescla de pena e nojo, assim como Sinhá Velha em relação ao José Amaro tem repulsa. No entanto, elas cuidam deles ainda assim, pois são todos os homens criaturas que precisam de consolo e é nelas que eles encontram. Adriana pensa em deixar Vitorino, mas sabe que se o fizer, irá abandoná-lo para a morte. Uma prova disto se dá com Sinhá Velha, que deixa o marido e quando o faz, ele morre. No decorrer da narrativa, com a decadência dos homens, são as mulheres que tomam os seus lugares e passam a cuidar do que têm ou procurar uma forma de sobrevivência. Quando o Capitão Tomás começa a ficar doente, Dona Mariquinha passa a controlar as terras, visto que seu genro parece não se interessar pelos assuntos do engenho: “O Santa Fé não seria aquele da saúde do capitão Tomás, mas ia andando com a energia da mulher de expediente de homem. Aquilo dera que falar. Com um genro dentro de casa, a velha Mariquinha preferira ser o homem da família.” (REGO, 1978, p.138-139). O mesmo ocorre com Amélia quando seu Lula, posteriormente, se desanima: “Pedira a Neco Paca para não falar a ninguém do seu negócio. Seria muito triste que soubessem, na várzea, que a senhora de engenho do Santa Fé sustentava a família com dinheiro de vendagem de ovos. Aquilo era muito bonito quando não havia necessidade dentro de casa, quando a senhora de engenho trabalhava como brinquedo, como aquela D. Emília do Oiteiro, que ganhou um dinheirão vendendo cocada para os cassacos da estrada de ferro. Todos achavam muito bonito o seu esforço, era muito louvada pela força de vontade. Mas se soubessem que a senhora de engenho do Santa Fé vendia 11 ovos para sustentar a casa-grande, fariam mangação.” - “O orgulho de Lula era uma doença que nem a devoção curaria. Um senhor de engenho sustentado pelo trabalho de sua mulher!” (REGO, 1978, p.169-170). Considerações Finais Numa sociedade patriarcal em que as mulheres não têm voz e ação, tal como foi a sociedade açucareira representada no romance, é de grande importância o destaque às mulheres que fizeram a diferença e que são a segurança e apoio aos seus pais e maridos, enquanto a sociedade – e eles próprios - as tratavam como mero objeto de procriação e garantia da continuidade do nome da família, bem como as únicas – e somente – responsáveis pela manutenção do lar, educação dos filhos e cuidados do marido. No entanto, pudemos observar que nessa obra o papel destinado a elas é várias vezes invertido e são elas quem tomam o posto de “chefes do lar” quando aqueles que assim se denominavam não tinham forças para garantir a sobrevivência da família e/ou de suas terras. É através do trabalho, que era até então proibido a elas e mal-visto pela sociedade, que elas conseguem sustentar suas famílias e assegurar suas posses. Seus maridos são os verdadeiros dependentes delas, como pudemos comprovar ao fim do romance em que um personagem morre ao ser abandonado pela esposa. E mesmo àquela que desde sempre trabalha para sustentar sua família, opta por não abandonar o marido – não se importando com o seu machismo explícito e constantes discursos de auto-afirmação – pois sabe que o abandonando, ele poderá perder-se. Podemos concluir, então, que elas são um elemento de grande importância nessa sociedade e seu papel no romance não é apenas mais um elemento da narrativa, como afirma Cândido quanto ao elemento social na obra: “Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo 12 historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo.” (CANDIDO, 1973, p.16) O trabalho as diferencia e as destaca numa sociedade que aprisiona as mulheres no ambiente privado e de cuidados do lar e da família. Referências Bibliográficas CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1973. PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, 2005, p.77-98. FALCI, Miridan Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (Org.), História das Mulheres no Brasil, São Paulo, Editora Contexto, 2009. REGO, José Lins do. Fogo Morto. 10 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1978. STANCKI, Nanci. Divisão sexual do trabalho: a sua constante reprodução. In: I CICLO DE DEBATES EM ECONOMIA INDUSTRIAL, TRABALHO E TECNOLOGIA, Puc-SP. 2003. São Paulo: 2003. Disponível em: < www.pucsp.br/eitt/downloads/eitt2003_nancistancki.pdf >. Acesso em 18 mai. 2011.