IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem
I Encontro Internacional de Estudos da Imagem
07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR
ENTRE O SUJEITO E A METRÓPOLE: PAISAGENS URBANAS NAS
FOTOMONTAGENS DE ATHOS BULCÃO
Maria Cláudia Reis Silva1
Resumo:
A metrópole, enquanto temática, acompanha a história da fotomontagem desde seus
primórdios. Praticada por diferentes vanguardas artísticas, ela se viu atenta às mudanças da
cidade e as formas de percepção da vida urbana. No Brasil, aparece como prática através dos
experimentos de artistas como Geraldo de Barros, José Oiticica Filho, Jorge de Lima e Athos
Bulcão. Conhecido por integrar a arte de seus azulejos à arquitetura de Brasília, Bulcão
desenvolveu, durante a primeira metade da década de 1950, uma série de fotomontagens que,
antes de apresentarem aspectos surrealistas ou clássicos, são cinematográficas. Cada imagem
representa uma narrativa em movimento em que o artista se mostra influenciado pelo cinema
e por sua concepção técnica. Assim, o presente estudo pretende abordar as fotomontagens
relativas à temática urbana, em paralelo a outros fotomontadores e cineastas, em uma análise
que dialoga a cidade com o sujeito personagem das imagens.
Palavras-chave: Athos Bulcão, metrópole, fotomontagem
Abstract:
Metropolis, as thematic, follows the history of photomontage since its beginnings. Done by
different artistic vanguards, it was always aware of the changes in the city and the forms of
urban life perception. In Brazil it appears as a practice done by artists as Geraldo de Barros,
José Oiticica Filho, Jorge de Lima e Athos Bulcão. The later is Known for integrate the art of
his tiles to Brasília’s architecture, and developed during the first half of the 1950’s decade a
series of photomontage that, before presenting surrealistic or classic aspects, are
cinematographic. Each image represents a narrative in motion, in which the artist shows
himself influenced by cinema and its technical conception. Thus, the following study aims to
address the photomontages related to the urban thematic in comparison to other photomontage
artists and film-makers. It also seeks to make an analysis between the relations of the city
with the character that composes the images.
Key words: Athos Bulcão, metropolis, photomontage.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Email: [email protected]
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Athos Bulcão foi um artista plural. Trabalhou com pintura, azulejos, esculturas,
decoração de interiores e fotomontagens em obras públicas e privadas. Por essa diversidade
de campos, o entendimento de sua obra requer a consciência dessas múltiplas faces de sua
trajetória. Bulcão iniciou sua carreira como artista plástico em 1939, quando conheceu Carlos
Scliar, Enrico Bianco e Burle Marx, vindo a trabalhar com Cândido Portinari e, mais tarde,
com Oscar Niemeyer na construção de Brasília – amizade que o próprio definia como uma
parceria entre Fellini e Nino Rota, em uma alusão a sua grande paixão: o cinema.
No campo da fotografia, realizou durante a década de 1950, fotomontagens que
extrapolavam o âmbito das relações formais puras. O método de Athos Bulcão consistia em
procurar e recortar imagens ao acaso de revistas, como Time Magazine e The Weekend Post,
as colando em um fundo comum e refotografando a cena composta. Dentre as temáticas
dessas imagens encontra-se, em especial, uma predileção pelo urbano. À vista disso, o
presente trabalho aborda cinco fotomontagens que trazem consigo a paisagem da grande
cidade em uma análise que busca dialogar o sujeito com os múltiplos referentes imagéticos do
artista.
As fotomontagens de Athos Bulcão são consideradas, paralelamente com as
fotomontagens de Jorge de Lima, como precursoras da técnica no Brasil. Diferentemente de
suas obras mais consagradas, estas imagens dialogam com o onírico, onde a composição da
cena, com seu equilíbrio de proporção e recorte, abandona a ideia do real e abraça a ilusão.
Estas imagens demonstram que o artista concebia o peso da carga semântica das imagens
advindas de revistas, jornais e livros, assim como, os movimentos precursores da
fotomontagem. Dessa forma, para que possamos compreender sua série de fotomontagens,
faz-se necessário o entendimento da origem da técnica da fotomontagem e de seus principais
usos.
Segundo Dawn Ades (2002) os primeiros experimentos de fotomontagem foram
realizados durante o século XIX como uma forma de criação paralela do real e de
compensação da precariedade técnica da câmerai. A fotomontagem era vista como artefato
que poderia fantasiar, confundir e mesmo melhorar o que a fotografia ainda não conseguia
transmitir enquanto recurso tecnológico. No âmbito da paisagem, a combinação de diferentes
negativos em um fundo comum era frequentemente utilizada por fotógrafos que procuravam
realizar imagens com maior nitidez e profundidade de campo, sendo a técnica ainda
constantemente usada como recurso de uma prática pictorialista.
Ao entrarmos no século XX, vemos a fotomontagem ser integrada à movimentos
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artísticos de vanguarda, como possibilidade de crítica e diálogo entre as diferentes formas de
percepção da vida e a consequente urbanização e industrialização do século em questão. Na
Alemanha de Weimar, a fotomontagem encontra seu caráter político. Os dadaístas de Berlim
viam na técnica a possibilidade de criação de uma imagem ready-made, uma vez que suas
fotomontagens eram feitas de recortes de jornais e revistas, tipografias e desenhos que unidos
buscam formar uma nova imagem. O movimento defendia que essa combinação de imagens
pré-fabricadas não era somente um desmembramento da realidade, mas também, uma
releitura crítica aos acontecimentos políticos da época.
A artista dadaísta, Hannah Höchii, defendeu que a opção de uma colagem feita
somente com fotografias se baseava na crença de que a fotografia, por ser um meio advindo
do mundo da comunicação de massa e passível de ser reproduzida, era ideal para um
movimento que ia contra a irreprodutibilidade, a privação e a exclusividade característica da
pintura à óleo. A fotomontagem conseguia, assim, integrar os objetos do mundo das máquinas
e da indústria ao mundo das artes, como aponta Domingos Tadeu Chiarelli:
Elemento de contestação ao aparente caos da realidade em constante transformação
do período entre as duas grandes guerras, a fotomontagem foi um método de criação
e uma nova modalidade de expressão que, ao mesmo tempo, incorporava
decididamente os elementos da nova realidade tecnológica que tomava conta do
cotidiano – e a fotografia era o ícone máximo dessa realidade nova – servindo
igualmente para opor a produção dos dadaístas à produção burguesa de arte, fosse
ela convencional ou moderna.(CHIARELLI, 2003, p. 71)
De acordo com Chiarelli, esta premissa foi importante também para que os
construtivistas russos desenvolvessem, paralelamente aos dadaístas, fotomontagens que
possuíam como característica comum uma dimensão ética e estética extremamente conectada
com o desejo de romper com os velhos estatutos da arte burguesa e abraçar, como elementos
constitutivos da própria obra de arte (ou anti-arte), os elementos surgidos no contexto da
sociedade industrial de massa.
Enquanto os dadaístas berlinenses buscavam atacar e satirizar a sociedade e a
política burguesas que se dava com o apogeu da Alemanha nazista; os construtivistas russos,
viam a fotomontagem como uma ferramenta para a divulgação dos feitos e ideais da
Revolução Russa. Assim como os dadaístas, os construtivistas também percebiam a fotografia
como uma arte retirada do mundo real e a junção de fragmentos “reais” era capaz de
proporcionar uma narrativa que, por ser reproduzível, estava ao alcance das massas:
Do ponto de vista formal, uma característica bastante presente nas fotomontagens
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produzidas pelos dois grupos é o aspecto planar que quase sempre assumem suas
produções, fragmentadas, abusando das linhas de força do plano (sobretudo as
diagonais), as fotomontagens construtivistas e dadaístas apresentavam como herança
imediata (e talvez não desejada), o esforço da pintura moderna, desde o pósimpressionismo, em romper com a ilusão de tridimensionalidade. Satírica ou
apologética, elas sempre buscavam uma decodificação rápida de sua mensagem pelo
observador, preferencialmente um indivíduo componente da massa trabalhadora
(CHIARELLI, 2003, p.71)
Dawn Ades discorre ainda que do mesmo modo que a fotografia inspirava a
fotomontagem política por sua capacidade de exprimir uma maior realidade, ela também
inspirava a criação de imagens que perturbassem nossa percepção de mundo ao criar imagens
“maravilhosas”. Usando da justaposição de elementos que não dividiam necessariamente um
mesmo repertório visual, o movimento surrealista incorporou às suas fotomontagens
paisagens alucinatórias que não obedeciam ao aspecto planar de outros movimentos. Nessas
fotomontagens, as imagens recortas trafegavam em um novo contexto onde já não se utilizava
com frequência profundas mudanças de escala, tão comuns nas fotomontagens dadaístas. As
disjunções e deslocamentos passam a ocorrer dentro de uma cena “real”, ao contrário da
fragmentação presente na fotomontagens dadaísta e construtivista, formando, dessa forma
uma paisagem que aparente possui uma continuidade de espaço.
A diferença que Ades nos mostra, se faz ainda mais visível quando levamos em
consideração a essência de cada movimento. O dadaísmo e o construtivismo russo surgiram
marcados pela necessidade de dialogar com a realidade circundante. Essa característica, como
propõe Chiarelli, está na necessidade que estes movimento tinham de inserir ao processo
artístico materiais típicos de uma sociedade de massa (imagens retiradas de jornais, revistas,
catálogos de lojas, etc.) e também na escolha temática de questões cotidianas. Já o artista
surrealista ia por outro lado: ele se volta para sua procura interior. A fotomontagem surrealista
valorizava em um espaço contínuo, sem bruscas fissuras, a composição de um cosmo
inquietante e misterioso e baseado muitas vezes no onírico.
Segundo Fabris (2002, p.146), a colagem surrealista configura-se como uma
“desambientação mental” que obriga o espectador a tomar uma posição moral. Neste
momento, é o observador quem deve dar o “sentido” da obra em uma relação que une o
fictício ao imaginário e o que a colagem revelaria, na verdade, seria o inconsciente do
observador quando ele busca encontrar símbolos que dialoguem com sua vivência e
percepção de mundo. Portanto, se as paisagens das fotomontagens dadaísta e construtivista
buscavam se comunicar com o observador anônimo das grandes cidades, a montagem
surrealista busca o contrário: tem como princípio a própria incomunicabilidade, o desejo
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manifesto de não dar-se totalmente a ninguém, nem mesmo a seu autor.
A ligação que autores, como Fabris e Chiarelli, fazem da série de fotomontagens
de Athos Bulcão com o surrealismo deve-se à essa presença de espaços advindos do mundo
dos sonhos e de lugares improváveis, onde figuras aparentemente incomunicáveis colocam-se
como personagens de alegorias quase impossíveis de serem decodificadas objetivamente.
Ainda sobre essa associação, Fernando Cocchiarale considera que a redução do sentido das
fotomontagens de Bulcão ao universo surrealista, só seria possível se centrada nas
características espaciais:
Desse ponto de vista seria visível em grande parte de seus trabalhos a presença de
princípios de organização espacial (perspectiva) legados pela pintura clássica e
assumidos, quase naturalmente, pela tradição pictorialista da fotografia. Haveria,
portanto, nessas montagens, a manutenção de um espaço cênico, perspectivado,
comum ao classicismo e ao surrealismo, que poderia conter infinitas situações, da
vigília ao sonho (COCCHIARALE, 1998, p.318)
A despeito das controvérsias sobre a relação entre o artista e o surrealismo, Fiona
Bradley (2001, p.74) afirma que toda obra de arte que valoriza as operações da mente e da
subjetividade pode ser vista como influenciada pelo surrealismo. O termo ingressou na
linguagem comum, uma vez que o surrealismo foi um movimento internacional que espalhou
sua influência graças a imigração de seus membros e divulgação de suas ideias durante o
período da Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, Athos Bulcão não se apresenta como um
artista ligado propriamente ao surrealismo, mas como uma possível influência que surge pela
associação das características de suas fotomontagens com o movimento.
Em entrevista ao Jornal de Brasília iii , Athos revelou que durante o período de
produção de suas fotomontagens vivia uma crise de identidade. Havia voltado de Paris, onde
foi bolsista pelo governo francês e ao regressar ao Brasil, percebeu que não era possível viver
só de pintura. Para sobreviver, fazia decoração de interiores, o que não gostava muito, já que
preferia trabalhar em obras públicas e não privadas. Vale lembrar que durante os anos que o
artista esteve na Europa, o Brasil havia diversificado seu ambiente cultural. Foram criados o
Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro e a Bienal, assim como surgiram a
arte abstrata e concreta, como alternativas centradas na investigação da forma pura.
É também no início da década de 1950 que o campo da fotografia se expande no
Brasil. Segundo Paulo Herkenhoff (1987), enquanto as revistas ilustradas O Cruzeiro e
Manchete divulgavam o fotojornalismo, os fotoclubes enfatizavam a exploração de uma
fotografia criativa, dando origem às raízes da fotografia abstrata. Cabe destacar, neste
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momento, as fotografias de Geraldo de Barros, com as Fotoformas que criavam ritmo e
modulação de espaço, e de José Oiticica Filho, com sua fotografia construtiva. É neste campo
experimental, e paralelamente à essas experiências abstratas e concretas, que Athos Bulcão
produz suas primeiras fotomontagens.
Entretanto Herkenhoff considera que a produção de Athos Bulcão se refere mais à
história universal da fotomontagem do que propriamente à uma herança das fotomontagens de
Jorge de Lima, dado que a obra de Athos buscou manter uma relação mais íntima com a
fotografia e sua lógica. A imagem formada pelos recortes compartilhava da unidade de
superfície e de tratamento do código fotográfico, por ter sido refotografada, o que não
acontecia com Jorge de Lima. O poeta utilizava nas suas colagens vinhetas de tipografia,
ilustrações, não operando necessariamente no interior da fotografia. Dessa maneira, ao
contrário de Jorge de Lima, Athos Bulcão preservava as proporções, os tons das fotografias,
as fontes de luz e a relação lógica entre as partes, para que mais adiante, pudesse subvertê-las
através da composição.
Segundo o próprio artista, ele procurou desenvolver algo que não fosse
simplesmente fotografia, cinema ou teatro. Muito influenciado pelo cinema russo,
principalmente por Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, ele via em suas fotomontagens
exercícios de enquadramento, onde cada imagem revelaria o movimento de uma narrativa
fílmica. Também as caracterizava como cenas de um “clima onírico e surrealista”iv.
Neste ponto, faz-se importante destacar, como aponta Ades (2002, p. 87), que o
desenvolvimento do cinema russo tem muito a ver com o desenvolvimento das fotomontagens
construtivistas. Desde 1923 até o início da década de 1930, o uso da fotomontagem soviética
se estendeu rapidamente para a publicidade e para a confecção de capas de livros, postais,
ilustrações de revista e de cartazes de filmes. A combinação da fotomontagem com as novas
técnicas tipográficas se transformavam, assim, em uma poesia visual, cuja as obras de artistas
como Rodchenko e El Lissitzki são referência. Paralelo a esta expansão, estava o
desenvolvimento do cinema soviético e não por acaso, a confecção dos pôsteres
cinematográficos com fotomontagens, principalmente por parte dos artistas citados, era
artifício comum.
A montagem como prática de edição cinematográfica, já era uma atividade
internacionalmente estabelecida, porém Eisenstein a inovou com sua teoria do “cinema
intelectual” e da “montagem de atrações”. Para o cineasta, a montagem não seria apenas um
pensamento composto de partes que se sucedem, e sim, um pensamento que nasceria do
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choque de partes independentes uma das outras – em uma referência à escrita hieroglífica
japonesa, onde signos independentes são justapostos para formarem um conceito novo
(SARAIVA, 2006, p.132).
Driblando a sequência linear, Eisenstein aplicava a descontinuidade de cenas, a
tensão dentro do próprio enquadramento, dinamizava as relações internas entre figura e fundo,
e contrapunha eventos não relacionados. Veremos adiante, que todas essas características são
também encontradas nas fotomontagens de Athos Bulcão – novamente ressaltando que o
cinema, assim como o movimento surrealista, são apenas algumas das influencias do
repertório visual do artista.
Ao considerarmos a teoria da montagem russa, percebemos equivalências técnicas
entre a fotomontagem e a montagem cinematográfica que podem se estender para além do
cinema soviético. As fotomontagens carregam em si, assim como o cinema, estudos de ritmos
de composição, de unidade espaço-temporal dinâmica com rupturas e rápidas intercalações,
montagem alternada dos primeiros planos e panorâmicas. Além disso, ambos compartilham
da sobreposição de motivos, duplas exposições e projeções em telas dividas. Dessa forma,
conclui-se, como posto por Haul Hausmman, que a fotomontagem pode ser vista como um
filme estático.
No entanto, a apropriação e construção de uma narrativa fílmica em cartazes
cinematográficos não se restringiu somente ao construtivismo. Notamos, por exemplo, nas
fotomontagens dos pôsteres do filme Berlim, sinfonia de uma metrópole, de Walter Ruttmann,
a preocupação de apresentar o roteiro da obra na forma de uma figura única, como mostram
as seguintes fotomontagens.
Figura 2 – Berlim, sinfonia de uma metrópole, Walter Ruttmann
/ Otto Umbehr, 1927
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Figura 1 – Berlim, sinfonia de uma metrópole,
Walter Ruttmann / Otto Umbehr, 1927
Encomendas
pelo
diretor
ao
fotógrafo
Otto
Maximilian
Umbehr,
as
fotomontagens nos sugerem o mecanismo de Berlim durante sua modernização. E assim
como pensava Athos Bulcão sobre a narrativa de suas fotomontagens, nota-se que Umbehr
procurou transmitir em seus cartazes toda as sensações que o filme apresenta, com a diferença
que o artista foi guiado pela roteirização de um filme real.
O filme se inicia com um dia comum. As ruas desertas do final da madrugada de
Berlim passam a ser preenchidas pela multidão que se dirige ao trabalho. Enquanto a
montagem adquire um outro ritmo, a música também assume tons que se relacionam com a
velocidade da cidade. Através da montagem, o filme aborda a modernidade especialmente ao
destacar determinados signos referentes a elementos-chave desse momento histórico como,
por exemplo, a explosão demográfica, apresentada pela aglomeração humana nas ruas; os
meios de comunicação, pelo telefone; os meios de comunicação de massa, pelos jornais e
impressa; os meios de transporte; o industrialismo; a cultura do consumo e a crise do
indivíduo representada em uma cena que insinua um suicídio.
Esta cena, em especial, é uma das poucas de planos fechados nas expressões dos
moradores da metrópole. A mulher que decide acabar com sua vida, pula de uma ponte, mas
antes tem seus olhos apavorados mostrados em um close que Umbehr toma como central para
construir seu cartaz (Figura 2). O estado da personagem é de medo e impotência perante ao
ambiente e a velocidade da cidade.
Vale lembrar, que a abordagem da metrópole como uma visão do futuro e sua
relação com o humano, é uma temática recorrente na arte desde o início do século XX, com o
Manifesto Futurista, de Marinneti. Apesar do futurismo evocar a visão heroica do mundo
moderno, surgiram paralelamente à ele, outras formas de interpretação da grande cidade em
construção, como nos evoca Ades:
As violentas mudanças de escala e das percepções simultâneas de elementos
diferentes que formaram parte da visão futurista da cidade foram uma matéria prima
ideal para a fotomontagem. O contraste entre a multidão da cidade e seus
gigantescos edifícios, junto a euforia para conseguir dominá-la e ao pânico que
resulta de sua compreensão de que a cidade, com seus edifícios e máquinas, já não
se pode viver como uma prolongação do homem por que se escapa do seu controle e
cobra vida própria. (ADES, 2002, p. 99)
Essa relação de euforia e pânico perante a metrópole, descrita por Ades, encontra
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nas fotomontagens dos cartazes de Berlim, sinfonia de uma metrópole, o retrato da busca
humana em dominar o fluxo da metrópole. Semelhante sentimento pode ser abordado nas
temáticas urbanas das fotomontagens de Athos Bulcão. Mais do que isso, existem
semelhanças na composição que instigam um possível diálogo entre as obras.
Em A invasão dos marcianos, de 1952 (Figura 3), sugere-se uma batalha entre
mundos. A dicotomia entre o corpo humano, em contraste com os paraquedas abertos, e por
uma figura híbrida em primeiro plano, nos apresenta uma possível guerra. A relação títuloimagem acompanha quase todas as fotomontagens de Athos e se, por um lado, ele nos insere
em um ambiente surrealista onde nada obrigatoriamente faz sentido, por outro, ao nomear a
obra, nos oferece um cosmo para que seja feita sua interpretação.
Figura 1 – A invasão dos marcianos, 1952. Acervo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
O título da obra remete ao tema do filme Guerra dos Mundos, de Byron Haskin,
lançado no mesmo ano que a fotomontagem foi feita. Por sua vez, o roteiro do filme é
baseado no livro de Herbert George Wells, que também leva o nome de Guerra dos Mundos.
Lançado em 1898, o romance de ficção científica conta a história de uma invasão da Terra por
marcianos inteligentes, dotados de um poderoso raio carbonizador e de máquinas assassinas,
semelhantes a caixas d'água sobre tripé.
O cenário da narrativa de Wells se passa em Londres no início do século XX e o
personagem principal surge ao ser convidado para ir ao observatório de Ottershaw, onde
observa a primeira de uma série de explosões na superfície de Marte. Neste momento, aquilo
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que se pensa ter sido a queda de um meteoro perto da casa do narrador, acaba por ser a queda
de um cilindro metálico. O cilindro abre-se, e de lá saem os marcianos, que destroem todos os
humanos que se aproximam com um raio. É possível identificarmos semelhanças entre os
objetos descritos pro Wells e os que caem de paraquedas na imagem de Bulcão, como se
fossem os cilindros que trazem os marcianos para Terra, dialogando assim, com a narrativa
de Wells diante a visualidade de Haskin.
As fotomontagens de Athos Bulcão não estão organizadas em série. As trinta e
duas imagens v fazem parte de uma produção onde várias imagens dialogam umas com as
outras, sendo que algumas chegam a dividir as mesmas bases imagéticas, como é o caso da
Figura 4 – uma das únicas que não possuem título dado pelo artista – em relação à Figura 3.
Nota-se que ambas trazem um corpo atlético em queda livre em uma paisagem metropolitana
em construção. Porém, a Figura 3 nos revela menos detalhes dessa cidade, já que tanto o
homem nu, quanto o ser de feição assustada, tapam a maior área que demonstra que a cidade
está em construção.
Já a composição da Figura 4, permite a visualização do canteiro de obras, mesmo
que o personagem à esquerda tape uma parte delas. A imagem da cidade ao fundo não se faz
identificável, mas não o é necessário: apesar do enredo que influenciou o título reportar a
invasão à Londres, ela representa uma ameaça à humanidade e suas construções
metropolitanas como um todo. A batalha se baseia na luta pela sobrevivência da metrópole
perante o caos e a destruição de uma forma de vida que nos é alienígena.
Figura 4 - Sem título, sem data. Coleção particular.
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Os marcianos caem de paraquedas em uma cidade que cresce e que é símbolo de
organização da ascensão da raça humana. Estamos diante uma guerra que pretende defender a
cidade, mas ao mesmo tempo que o homem a protege, ele se perde. Ele cai sobre algo que
construiu, mas que não domina mais. Neste ponto, Athos Bulcão também faz alusão aos
trabalhos de outros artistas sobre a metrópole enquanto visão do futuro, como nos cartazes do
filme Metrópolis de Fritz Lang e a Cidade Moderna: crise da vida, de Kazimierz Podsadecki,
de 1928.
Voltando às imagens de Athos Bulcão, percebemos a presença do corpo austero,
sadio e viril de um atleta de lançamento de peso que encontra sua fragilidade quando se
depara com a grandiosidade da metrópole. A pose do atleta nos revela o ápice do movimento
que lança o peso adiante. O movimento em questão pode ser associado ao contra-ataque
humano à invasão em uma tentativa de manutenção da sobrevivência do sujeito na paisagem.
Em relação às fotomontagens de Berlim, sinfonia de uma metrópole, Bulcão e
Umbehr dividem elementos semelhantes. A presença de atletas, ao centro da imagem de três
imagens – duas de Athos (Figura 3 e 4) e uma de Umbehr (Figura 1) – trazem consigo a
movimentação orgânica que contrasta com a cidade de aspectos duros e geométricos.
Inferimos que a batalha pela sobrevivência de A invasão dos marcianos, deve-se a
manutenção da cidade enquanto ordem e modo de vida que são mostrados durante toda
narrativa da sinfonia de Berlim. Porém, os mesmos corpos que edificam a paisagem urbana
são os que sofrem com seu excesso de estímulos que levam à crise do indivíduo da Figura 2.
Percebemos
também
a
influência
da
montagem
de
Eisenstein
pela
descontinuidade da cena e a tensão dentro do próprio enquadramento, enquanto que a
motivação e titulação da obra passam pela história do cinema. Se houve de fato um diálogo
cinematográfico entre a As invasões marcianas e as fotomontagens de Berlim, ela se faz
expressa na junção de repertórios que se encontram na imagem de Bulcão: os olhos
assustados, os atletas centralizados na composição e a paisagem de uma grande cidade
tomando maior parte do quadro. Importante ressaltar, que Athos também mantem nessas
imagens o espaço cênico, perspectivado, comum ao classicismo e ao surrealismo,
que
Cocchiarale descreveu.
Outra situação onde encontramos figuras de paisagens urbanas duplas na obra de
Athos, são as fotomontagens, que inclusive dividem quase o mesmo título, Recordações de
viagem – O turista I (Figura 5) e Recordações de viagem – O turista II, a primeira de 1952 e a
segunda de 1953 (Figura 6).
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Figura 5 - Recordações de viagem – O turista
I, 1952. Acervo Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro.
Figura 6 - Recordações de viagem – O turista
II, 1953. Acervo Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro.
Nessas imagens, Athos intervém na paisagem através do acréscimo de
personagens caricaturadas, dando ênfase às do primeiro plano. A colagem da personagem da
Figura 5, em cima da estátua que leva o nome do senador americano de Stephen A. Douglas,
reflete a opção de não retirar totalmente a paisagem da fotografia base, mas de modificá-la a
partir da composição de recortes novos.
Na fotomontagem de aspecto surrealista, a justaposição de objetos reconhecíveis
adquire um aspecto familiar. Entendemos cada elemento da imagem, mas não a sua ordem e
conexão com os elementos ao redor. Sobre isto, Fiona Bradley (2001, p.34) descreve que o
mundo surrealista, como o dos sonhos, é ao mesmo tempo familiar e desconhecido; isto é
familiar, em razão do estilo realista que oferece ao espectador o reconhecimento dos objetos e
desconhecido, por causar estranheza dos contextos em que eles aparecem, como se fosse em
um sonho. E assim, as Figuras 5 e 6 nos trazem para a realidade ao se tratar de um lugar
reconhecível, mas nos tira dessa mesma realidade ao dispor objetos não familiares ao contexto
daquela paisagem.
Retomando propriamente às imagens, em Recordações de viagem – O turista I,
observamos além da mulher no posto que seria de Stephen A. Douglas, outras duas pessoas
que olham uma caixa onde se lê “snakes”, ou cobras, em português. Mais uma vez
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direcionados pela legenda, percebemos que podem se tratar de turistas dominados pela
curiosidade e pela novidade, e guiados por este sentimentos, se debruçam sobre o perigo de
uma caixa cheia de cobras. A presença da mulher circense, como um monumento, reforça o
sentimento do viajante em observar o exótico de forma glorificada, algo próprio do turismo.
A imagem seguinte, Recordações de viagem – O turista II, nos traz também o
sujeito turista imergido nessa paisagem que lhe é estranha. Agora, ao invés do monumento ser
o exótico, ele é o próprio homem que ao usar uma redoma que se conecta à pilastra do prédio,
denotando um escafandro. O “turista” explora então a paisagem como se explorasse o fundo
do mar: a nova paisagem aparece-lhe como um ambiente alheio e por isso necessita ainda do
seu velho código de percepção para entender este ambiente. Os outros sujeitos demonstram a
surpresa e a euforia em relação ao novo e uma singela crítica a conversão do mesmo para
poder pertencer.
O homem de bigode vestido de trajes típicos japoneses, aparece como um ser
cômico que tenta se inserir no mundo desconhecido através do estereótipo. Novamente, Athos
Bulcão constrói seus personagens baseados na perspectivação e no estudo de composição, em
uma paisagem que a princípio nada dialoga com o repertório visual deles.
A fotomontagem seguinte, Um americano em Paris, de 1954 (Figura 8), Athos
parece dar continuidade à estas duas obras ao abordar ainda o sujeito em um paisagem que lhe
estrangeira. O americano, ou o “turista” em questão, já não se retrai e se transveste para
pertencer. Neste momento, ele se insere completamente na paisagem, jogando-se nela.
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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem
I Encontro Internacional de Estudos da Imagem
07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR
Figura 8 - Um americano em Paris, 1954 Acervo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
A partir dessas análises, concluímos que os sujeitos urbanos de Bulcão interagem
com a paisagem através de suas expressões intensas. As fotomontagens possuem em comum
uma continuidade de espaço, própria das fotomontagens surrealistas, e que, apesar dos signos
de suas imagens aparecem “jogados” dentro composição, eles caminham dentro de uma
cosmo de interpretações guiadas pelo título. A desordem das cenas, não refletem apenas uma
linguagem e a busca de sua significância, através da “desambientação mental” proposta por
Fabris. Mas, na própria realidade da cidade, quando nos insere na luta pela vida nos grandes
centros urbanos, no sentimento de perda e desconsolo perante esse processo, e na euforia do
descobrimento de outras paisagens e sua maneira de operar diante o desconhecido.
Explorador ou explorado, o sujeito mergulha na paisagem cênica, formulada a
partir da influência da montagem de Eisenstein e da fotomontagem narrativa dos pôsteres
cinematográficos. Produzidas como uma forma de passatempo criativo e estudo de
composição durante os anos em que o artista vivia uma crise pessoal, estas imagens dialogam
com o surrealismo por dividirem certas características com o movimento. Citando Susan
Sontag, Ades nos lembra que o surrealismo está na raiz da fotografia, pois ambos partem da
criação de um mundo duplicado e de uma segunda realidade. Além disso, Athos Bulcão
compõe imagens sem bruscas fissuras, perspectivadas, unindo elementos familiares em uma
relação não familiar para construir suas paisagens oníricas.
Por fim, o artista plástico se diferencia de outros fotomontadores ao operar no
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interior da fotografia, mantendo seu código de sua leitura, em uma superfície plana que mais
tarde surpreende o leitor pela subversão dos elementos. A fotografia aparece “normal” em sua
superfície, luz, tons e proporções, mas notamos que é há algo de errado quando observamos
que os elementos não pertencem originalmente aquele ambiente.
NOTAS
i
Segundo Dawn Ades, os primeiros processos de manipulação de fotografia eram, em sua maioria,
frutos de acidentes de revelação que faziam com que imagens de negativos distintos aparecessem
inesperadamente na mesma fotografia – sobretudo devido a más lavagens das placas de colóquio. Estes acidentes
passaram a ser explorados pelos fotógrafos de modo intencional, em uma tentativa de conseguir manipular a
composição para encontrar uma nova forma de produção de imagens. Produziam fotomontagens através de
recortes, de superexposição, de sobreimpressão, da repetição do mesmo negativo, da dupla impressão ou da
combinação de vários destes processos, que ficaram conhecidos como impressões combinadas.
ii
Hannah Höch, catálogo de exposição, Museu de Arte Moderna de Paris, 1976, p.31 apud Dawn Ades
iii
Entrevista concedida por Athos Bulcão ao Jornal de Brasília, publicada no dia 2 de julho de 1998, por Carmem
Moretzsohn
iv
Entrevista localizada no vídeo Athos de Ségio Moriconi, 1998
v
Este número compete aos exemplares apresentados no site da Fundação Athos Bulcão. Existe a possibilidade
de existirem outras produções.
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Brasília. Entrevista concedida a Carmem Moretzsohn.
BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
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modernistas sobre a fotografia e o surrealismo. ARS (São Paulo), São Paulo, v. 1, n.
1, 2003 .
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FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar: Fotografia e Artes Visuais no período das
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143-151, setembro/novembro 2002
HERKENHOFF, Paulo. Apresentação da exposição individual Pinturas, Máscaras e Objetos
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SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando. História do
cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 109 - 144
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Maria Cláudia Reis Silva