DOMENICA DE ROSA
AQUELE VERÃO
NA TOSCANA
TRADUZIDO DO INGLÊS POR
MARGARIDA LUZIA
CAPÍTULO 1
Preparativos
31 de Julho
P
atricia O’Hara, mais conhecida por signora O’Hara, ou Patrizia,
ou a inglesa do castello, afasta o cabelo húmido da cara, tentando concentrar-se na sua lista. Embora a cozinha seja fresca, lá
fora o calor é de tal forma intenso que parece querer irromper pelas
janelas. A sua escrita, de um negro intenso que contrasta com a
alvura do papel, pulsa desagradavelmente na página.
A fazer
1. Falar com o Aldo sobre as beringelas
2. Toalhas no quarto amarelo
3. Limpar piscina – Matt?
Suspirando, Patricia detém-se. O ponto de interrogação a seguir
ao nome do seu filho adolescente é significativo, profético até. Hoje
em dia, a relação entre os dois parece confinar-se a um infindável
rol de perguntas: «Onde vais? Quando voltas? Com quem? Quanto?
Tomaste as devidas precauções?». Como as respostas do filho a estas
questões são invariavelmente (e com sorte) um grunhido, ou um
chorrilho de imprecações surpreendentemente eloquente, não admira
que os pontos de interrogação pareçam flutuar, quais fantasmas, em
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torno da cabeça do filho de dezasseis anos. Efectivamente, eles reduzem-se com facilidade a duas questões: «O que vais fazer?» e «Com
quem?». Patricia julga saber a resposta à segunda pergunta. Como
seria de prever, Matt travara amizade com os dois únicos delinquentes
juvenis de San Severino. Enquanto a maioria dos rapazes italianos
locais degustava o almoço de domingo com a respectiva família e dispunha flores nas campas dos seus bisnonni, Graziano e Elio andavam
de mota, tomavam drogas e frequentavam concertos de heavy metal
em Milão. E ambos tinham de se tornar os melhores amigos de Matt!
O seu «pelotão», como ele certa vez os designara, sem qualquer traço
de ironia, ilustrava bem isso. «Três rapazes não constituem um pelotão», protestara ela. Mas Matt, sem a menor paciência para a incrivelmente embaraçosa estupidez da mãe, já tinha saído do quarto.
Até mesmo as beringelas são um problema, ainda que menos
grave. Aldo, o seu chef, é exímio a preparar beringelas – melanzane
em italiano: salpica-as com sal e azeite e coloca-as no grelhador, cortando-as depois finamente para fazer um molho para a massa, ou
assa-as com tomates e serve-as com parmigiano para um almoço
ligeiro perfeito. Mas este ano, uma das hóspedes, Catherine Ferris-Merry, de Brighton, afirma ser «alérgica a beringelas». Patricia torna
a suspirar, pressionando as mãos contra a superfície fresca de mármore da tábua de cortar. Embora tenha já setenta e cinco anos, Aldo
continua a ser conhecido como o melhor chef daquela parte da Toscana, sendo, contudo, um homem de opiniões dogmáticas, não
menos inflexíveis por serem expressas com olhos reluzentes e um
charmoso e sorridente esgar. Por exemplo, o Aldo não acredita em
alergias nem intolerâncias alimentares. Não acredita em vegetarianismo, na dieta de Atkins, nem em preceitos kosher. «Non esiste»,
diz ele, sorrindo docemente, enquanto corta cebolas com uma reluzente mezzaluna. «Non esiste», diz ele, servindo porco marinado em
leite a um rabi de visita.
Mas Catherine Ferris-Merry existe efectivamente e pagou três
mil euros (excluindo o voo) por um curso de escrita criativa de duas
semanas no maravilhoso cenário rural da Toscana, durante o qual
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desfrutará de deliciosas refeições cozinhadas pelo charmoso chef
local. E se não gosta da porra das beringelas, não devia ter de as
comer.
Ao lado da sua lista de afazeres, está uma lista impressa dos hóspedes para o Verão. Patricia estuda-a, ainda que, após várias semanas
de fervorosos preparativos, já quase a tenha decorado.
Nome: Catherine Ferris-Merry
Idade: 39
Profissão: consultora de escrita publicitária e mãe
Morada: Brighton
Alergias: beringelas, cogumelos, cafeína, pão com glúten e não
posso comer muitos lacticínios porque senão incho!
Razões para se inscrever no curso: Para libertar a escritora que
sei existir em mim!
Nome: Anna Valore
Idade: 38
Profissão: mãe a tempo inteiro
Morada: Brighton
Alergias: nenhuma
Razões para se inscrever no curso: A minha amiga Cat sugeriu-o
e eu pensei: porque não?
Nome: Sam McClusky
Idade: 44
Profissão: ex-corretor da Bolsa, agora desempregado
Morada: Londres
Alergias: nenhuma
Razões para se inscrever no curso: Para escrever um bestseller
Nome: Sally Hamilton
Idade: na casa dos cinquenta
Profissão: paisagista
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Morada: Salisbury
Alergias: frutos secos
Razões para se inscrever no curso: Frequentei todos os cursos
do Jeremy – para mim ele é a Escrita Criativa
Nome: Mary McMahon
Idade: 74
Profissão: ex-funcionária pública
Morada: Londres
Alergias: nenhuma
Razões para se inscrever no curso: Para visitar a Toscana e para
tentar fazer progressos na minha escrita
Nome: Jean-Pierre Charbonneau
Idade: 45
Profissão: advogado
Morada: Paris
Alergias: vinho italiano
Razões para se inscrever no curso: Para afinar a minha escrita
Nome: Dorothy Van Elsten
Idade: 61
Profissão: dona de casa
Morada: Vermont, Estados Unidos da América
Alergias: frutos secos, marisco, carne vermelha
Razões para se inscrever no curso: Encerrar um capítulo da
minha vida escrevendo sobre a minha infância
Ao olhar para o efectivamente impressionante rol de alergias de
Dorothy Van Elsten, Patricia não sente nenhuma da irritação que
regista perante as de Catherine Ferris-Merry. Talvez, pensa ela honestamente, tal se prenda com o facto de ter visto, pelas respectivas fotografias, que Catherine é uma morena incrivelmente bonita enquanto
Dorothy tem o cabelo cinzento e um ar maternal. E Catherine tem
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apenas menos cinco anos do que Patricia. Além disso, Dorothy é
americana e talvez ache normal os americanos terem alergias e falarem em «encerrar capítulos». Mas lá bem no fundo, Patricia sabe
que a razão se prende com o facto de Dorothy vir acompanhada
pelo marido, Rick. Infelizmente, Dorothy apenas o descreve como
empresário «no ramo do petróleo», mas, secretamente, Patricia decidiu que ele é um multimilionário benevolente que irá investir no
Castello della Luna, salvando-a da bancarrota. Se assim for, promete
a si própria, ignorará o incrédulo olhar de Aldo e banirá para sempre
o marisco do castello.
Já enfastiada com a lista, Patricia levanta-se e prepara-se para ir
procurar as toalhas do quarto amarelo. Duas jovens, ambas croatas,
estão a ajudá-la com os preparativos, mas estão ocupadas a fazer as
camas e a limpar as casas de banho. Além disso, e embora sejam
encantadoras, o seu inglês (tal como o seu italiano) é bastante limitado, o que faria com que Patricia demorasse provavelmente meia
hora para lhes explicar o que procura. Julga ter visto as toalhas em
falta na casa da piscina. Contrariando as regras da casa, terão sido
lá deixadas por algum hóspede recente.
Ao transpor a porta das traseiras é momentaneamente ofuscada
pela luz branca. É meio-dia e o sol está abrasador. Embora Patricia
use apenas um vestido leve sem mangas, fica de imediato inundada
em suor, sentindo-o pingar desconfortavelmente pelas costas abaixo
enquanto avança pelo sinuoso caminho que desce até à piscina.
O Castello della Luna está construído na encosta de uma montanha. De frente parece baixo e atarracado, demasiado pequeno para
a impressionante entrada ladeada por pinheiros-mansos. Mas nas
traseiras estende-se colina abaixo, com os inúmeros terraços a transbordarem de buganvílias, hera e rosas selvagens. É um castelo genuíno, construído no século XIII e restaurado no século XIX. Os anteriores
donos acrescentaram dez das quinze casas de banho existentes e
construíram uma piscina no último terraço. Dez anos antes, Patricia
e o seu marido Sean haviam-se apaixonado pelo edifício assim que
o tinham visto, convertendo-o então numa graciosa versão da sua
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antiga glória, redesenhada para albergar um máximo de vinte hóspedes de cada vez. O esforço do empreendimento acabara por ser
desastroso para o casamento e o casal divorciara-se três anos antes,
mas Patricia continua ali, a oferecer cursos recheados de adjectivos
– romântico, inspirador, maravilhoso, de parar o coração, autêntico
–, mas parcos em pormenores sobre o que os hóspedes irão efectivamente fazer ao chegarem ao seu romântico, inspirador, etc., destino.
O caminho que desce até à piscina está inundado por lavanda.
Distraidamente, Patricia esmaga uma flor entre o polegar e o indicador e inspira o inebriante e condimentado odor. Nos respectivos
quartos, os hóspedes irão encontrar lavanda fresca nas gavetas e uma
única flor delicadamente pousada sobre o conjunto de boas-vindas.
E Catherine será certamente alérgica a isso, aposta Patricia.
As toalhas amarelas estão de facto na casa da piscina, atiradas
numa pilha negligente sobre as espreguiçadeiras, e, deitada numa
delas ao lado da piscina está Myra Hamdi.
Myra frequentara um dos primeiros cursos organizados por
Patricia – «Descobrir o Artista que há em Nós» – e tornara-se uma
amiga. Agora passa os verões no castello e, em troca das férias gratuitas, ensina ioga e técnicas de relaxamento, ajudando também
Patricia a entreter os hóspedes. Este último aspecto é crucial, pois,
embora Patricia seja incrivelmente organizada e sempre cortês, não
tem muito jeito para socializar: para as conversas íntimas, as confidências, os «oh, aconteceu o mesmo comigo, sei exactamente como
se sente». Myra, pelo contrário, tem genuíno interesse pelos outros,
parecendo de facto gostar de conversar sobre os amigos e a família
dos hóspedes e as inexplicáveis razões por que ainda não conseguiram alcançar a fama. Amanhã estará pronta para receber, tranquilizar e cativar os candidatos a escritores; mas, por agora, está deitada
ao sol, esbelta, serena e besuntada em protector solar.
– Espero que estejas a usar factor quarenta – diz Patricia,
parando para enfiar a ponta do pé na água, tão reluzente e azul que
quase parece sólida, como tinta.
– Claro, querida – responde Myra sem abrir os olhos.
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– Viste o Matt? Queria que ele limpasse as folhas da piscina.
Myra abre os olhos pequenos, escuros e brilhantes. Todos os seus
movimentos são ágeis e concisos, como os de um pássaro.
– Creio que saiu de mota.
– Com este calor!
– Os miúdos não sentem o calor como nós – diz Myra, que
não se importaria de passar os dias ao sol como um lagarto.
– Ele já não é um miúdo – diz Patricia, sentindo-se irracionalmente zangada. – Tem dezasseis anos. E prometeu ajudar.
– Não é hoje que começa o novo faz-tudo?
– Só chega às três. E não sei como será. A agência pode perfeitamente enviar outro tontinho como o do ano passado.
– Eu gostava do fulano do ano passado.
– Myra, ele fornicou com um colchão insuflável.
Myra solta uma gargalhada enquanto se estica na espreguiçadeira.
– Estou certa de que serão muito felizes juntos. Tu preocupas-te demasiado. Eu limpo a piscina. Não vale a pena suares as estopinhas.
Aquela é sem dúvida a frase menos apropriada para o verão toscano, reflecte Patricia, regressando caminho acima após ter aceitado,
agradecida, a oferta da amiga.
Matt O’Hara, também conhecido por Matteo, ou Mattino, e
por Lupo (o lobo), ou por vezes, para a mãe, por Matthew, espreguiça-se na erva alta no sopé da colina. Ao seu lado está a respectiva
motorizada, deitada, ainda a vibrar baixinho. Se ficar absolutamente imóvel, consegue distinguir, por cima do barulho dos grilos,
os sons do castello a preparar-se para os hóspedes que chegarão no
dia seguinte. O zunido de mosquito da Vespa de Aldo à medida
que vai subindo, a custo, a íngreme curva da entrada, o zumbido
dos aspersores da rega no relvado e, ao longe, a voz da mãe a dar
ordens.
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Ela é exímia a dar ordens. Faz tudo o que ele certa vez viu num
programa sobre assertividade. Fala com calma, designa prioridades,
permite que os outros pensem que foram eles a ter inicialmente as
ideias, e nunca, nunca se esquece de agradecer. O problema é tudo
soar tão falso. Matt prefere o jeito do pai, que se esquece das coisas
até ao último instante e depois entra em pânico e perde as estribeiras. Pelo menos é real. Pelo menos não faz os outros pensar que o
desapontaram com uma ninharia que parece importante. Efectivamente, quando o pai entra em pânico, fica de tal forma agradecido
por qualquer forma de ajuda que os outros acabam por se sentir
bem consigo próprios. Matt recorda-se bem de quando o pai perdera o bilhete de regresso no Verão; ficara de tal forma impressionado com Matt por este ter encomendado um bilhete novo através
da Internet que foram os dois jantar fora num restaurante indiano
com direito a garrafa de vinho e tudo. E mesmo quando o pai acabara por encontrar o bilhete inicial no bolso das suas calças de ganga
acabadas de lavar, já não importava. Já tinham ido jantar fora.
A mãe nunca perde nada. Tem as suas listas (item n.º 1: interferir de todas as formas possíveis na vida do Matt), o seu calendário
com os dias cuidadosamente riscados, o seu itinerário, com todos
os instantes dos detestáveis cursos apontados, o seu Blackberry, qual
reluzente mantinha de apoio, sempre a seu lado. E, caso alguma vez
perdesse alguma coisa, formaria imediata e eficientemente uma
equipa de busca. «Matt, tu vais para o andar de cima. Myra, começa
pelo rés-do-chão. Aldo, ficas com as cozinhas.» A sua mãe, conclui
tristemente Matt, é óptima a delegar.
Mas nem sempre fora assim. Matt gosta de afligir a mãe fingindo não se recordar de nada do que viveu antes do seu décimo
aniversário – «De que adiantou proporcionar-te todas aquelas experiências», lamenta-se ela, «se tu não te lembras de nada?» Mas a verdade é que Matt se lembra de quando chegaram a Itália. Tinha seis
anos e recorda-se de morarem num apartamento em Sinalunga: o
mercado com galinhas vivas dentro de cestos, o parque infantil onde
se podia andar de pónei num minúsculo e mal-humorado Shetland,
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o elevador com portas de vidro e um acolchoado banco de veludo
verde. Recorda-se de quando inicialmente foram viver para o castello, acampados em três quartos enquanto vários operários impassíveis arrancavam as tábuas do chão e infestavam os tectos com fios
multicoloridos.
Depois fora maravilhoso, um verdadeiro paraíso. Matt lembra-se de encontrar um porco-espinho nos bosques, quase do tamanho
de um pequeno cão. Lembra-se do Natal, com uma árvore que parecia tocar o céu e estranhos bolos de castanha. Lembra-se da neve e
de descer a colina de trenó com o pai, enquanto a mãe corria ao
lado deles com o riso a ecoar atrás dela no ar frio.
Tudo mudara com a chegada dos primeiros hóspedes. Então,
o castello deixara de ser o paraíso. Era arrumado e compartimentado
e gerido exclusivamente em função dos outros. Matt recorda-se de que o pai adoptara uma nova forma de andar, com as pernas
ligeiramente arqueadas, a cabeça deferentemente inclinada para o
lado, enquanto carregava malas e escutava as infindáveis queixas
sobre o ar condicionado, a comida, o calor – por amor de Deus,
estavam em Itália, em Agosto! – a falta de verdadeiro chá inglês.
Fora então que a mãe se aperfeiçoara a dar ordens. «Sean, o toalheiro
do Quarto Azul não está a funcionar. Matt, podes ir comprar o The
Times para Mr. Lessiter? Aldo, por favor, menos alho nas bruschette.»
E Matt não era tolo. Via perfeitamente que o pai começara a aperfeiçoar técnicas para se esconder dos hóspedes. Tinha uma série de
esconderijos: o telheiro da lenha ao fundo do caminho, a divisão
ao lado da cozinha onde Aldo guardava o seu vinho caseiro, a casa
de banho que os hóspedes não usavam, aquela com o assento de
madeira rachado – o pai desaparecia sempre lá dentro no dia em
que o jornal The Guardian chegava de Inglaterra. Matt via que a
mãe acabava por arcar com quase todo o trabalho. Via que o pai
não estava propriamente a apoiá-la, escondendo-se no telheiro da
lenha enquanto ela conversava durante horas acerca de aguarelas
com algum idiota enfadonho. Mas quando o pai partira, o castello
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deixara simplesmente de ser um lugar divertido. Já não era um lar.
Era apenas um negócio.
E os hóspedes! Matt considera-se uma pessoa razoavelmente
tolerante – não obstante a opinião contrária da mãe –, mas, meu
Deus, as alminhas que vêm para o castello conseguiriam enlouquecer
a própria Madre Teresa. Que espécie de gente gasta milhares de
libras para ter aulas numa casa velha no campo? Se ele tivesse milhares de libras, compraria uma mota nova e daria a volta ao mundo
ou algo do género. Não ficaria na certa sentado num terraço, a beber
vinho e a falar da luz. E afinal, que conversa era aquela sobre a luz?
Havia luz em todo o lado. Quem os ouvisse julgaria que moravam
todos no fundo de um poço ou algo assim pela forma como repetiam incessantemente, «Ah, a luz!» Haja paciência!
Os escritores eram os piores de todos. Os pintores ao menos
costumavam ser divertidos. Certo ano, uma série deles embebedara-se e tinham feito uma orgia – ou pelo menos era o que Matt suspeitava pelas conversas que ouvira entre a mãe e Myra. Elas não lhe
tinham contado a ele, naturalmente. Ainda no ano anterior tinha
havido um fulano fabuloso que fazia esboços, que bebia uma garrafa
de grappa por noite e que estava sempre a falar de sexo – tudo lhe
servia de inspiração, desde prosciutto melone aos pistões da mota de
Matt. Mas os escritores – a única coisa que gostavam de fazer era
ficarem sentados a queixarem-se da trabalheira que era escrever
livros. Trabalheira! Até parecia que eram construtores ou assentadores de tijolos ou lutadores de wrestling. Limitam-se a escrever
palavras e a lê-las em voz alta, vozes estupidamente pretensiosas
enquanto se queixavam dos editores – «Eles só querem os livros
óbvios. Só querem campeões de vendas.» Obviamente, dah! E Matt
reparara também que nenhum deles estava verdadeiramente interessado nos outros. Faziam perguntas acerca dos livros dos companheiros, mas todos tinham uma espécie de olhar petrificado como
se estivessem apenas à espera da vez para falarem de novo acerca de
si próprios. E se alguém se mostrava interessado na sua escrita, ficavam logo agitados, como se essa pessoa estivesse a tentar roubar-lhes
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as ideias. Alguns tentavam falar com ele, mas Matt sabia que era
apenas por lhes agradar a ideia de poderem vir a ter um rapaz adolescente num dos seus romances. Quem diria que o Uma Agulha
no Palheiro teria tanta influência.
E Jeremy, o professor, era um verdadeiro idiota. A mãe diz que
ele é um grande escritor, mas Matt procurara-o no Google e só
encontrara meia dúzia de livros de sua autoria, tendo o último sido
publicado há imenso tempo. Era verdade que havia muita coisa
sobre a excelência desse derradeiro livro, que tinha o poder de transformar a vida de quem o lia, que era uma verdadeira obra de arte e
coisa e tal, mas, efectivamente, ele não escrevera nada em vinte anos
e andava por ali a dizer aos outros como deviam escrever. E, imagine-se só, também achava que isso dava imenso trabalho. «É esgotante», dizia ele todas as noites, escondendo-se dos hóspedes no
escritório da mãe. «Eles querem tudo de mim.» Bem, talvez fosse
verdade, pois certa vez Matt apanhara Jeremy e uma das hóspedes
a «fazê-lo» na casa da piscina, mas na altura Jeremy não parecera
propriamente contrariado. E visto que a mulher ainda não publicara
nada, Jeremy não devia ser grande coisa como professor.
Todos eles pensam que vão escrever o livro, aquele que vai vender milhões e torná-los ricos e famosos. Bem, perdoem-me a ignorância, mas J. K. Rowling já não o fez? Falar mal de Harry Potter
era uma das ocupações preferidas dos hóspedes. Bem, de qualquer
forma, nenhum deles vai escrever o livro, pois será Matt a fazê-lo.
Já vai a meio, mas não o irá mostrar a ninguém. Muito menos a
Jeremy.
O escritório de Patricia situa-se imediatamente a seguir ao salão
principal. Ao contrário do resto da casa, com os seus tectos abobadados e alvenaria meticulosamente restaurada, a sala é assumidamente
moderna. Armários de arquivos de aço revestem as paredes, a secretária é uma peça clássica da IKEA datada de 1981, adornada com
um reluzente portátil, um bloco de apontamentos e um antigo
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frasco de pesto repleto de canetas – todas a funcionar. Não há fotografias nem molduras, excepto se contarmos com o screen saver que
mostra Matt, com dez anos de idade, a mergulhar na piscina. A água
é de um azul tal que por vezes Patricia quase sente vontade de lamber o ecrã. Agora, porém, está sentada de testa franzida perante um
documento intitulado «escritacriativaAgosto07».
Patricia percorre-o com um dedo profissional, com um ouvido
nos sons do corredor, onde as raparigas estão a limpar o chão de pedra.
Chegada
17.00/19.00 Chegam os hóspedes e instalam-se
19.30 Bebidas e crostini no terraço
20.30 Jantar no Salão Grande
O Salão Grande é, efectivamente, uma das três salas existentes,
mas Salão Grande é muito mais sonante e a verdade é que tem uma
vista maravilhosa sobre o vale – as luzes de Siena conseguem-se discernir ao longe. Terá de se certificar de que há sumo de laranja para
além do prosecco, pois há sempre alguém que não bebe vinho. Estaria Jean-Pierre Charbonneau a brincar acerca do vinho italiano?
À cautela talvez seja melhor encomendar algum Chablis. Champanhe é que ele não vai beber. E tudo porque a Itália venceu a França
no mundial de futebol.
Primeiro Dia
07.30 Meditação e alongamentos (opcional)
08.00/09.30 Pequeno-almoço
10.00 Sessão de escrita
13.00 Almoço
Tarde: Tempo livre para a escrita
18.00 Visita a San Severino
Patricia sabe por experiência própria que é preferível marcar as
visitas para a manhã ou para a tardinha, quando o tempo fica mais
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fresco – tem más memórias de hóspedes a desmaiarem na piazza
em Siena. Revê então o itinerário da visita de um dia a Roma (terceiro dia), com alguma ansiedade, uma vez que é Aldo quem vai
conduzir.
As tardes estão educadamente rotuladas de «Tempo para a escrita», mas, efectivamente, a maioria dos hóspedes irá dormir ou
descontrair junto à piscina. Será então que Patricia ficará mais
inquieta. Não gosta que os hóspedes deambulem pela propriedade.
Gosta de os ter seguros e confinados: a escrever, a comer ou a fazer
alongamentos. Alguém irá certamente esgueirar-se até à cozinha e
interpelar Aldo acerca das suas técnicas culinárias – o que de nada
servirá, já que, educadamente, Aldo irá fingir que não compreende
– ou invadir o seu escritório queixando-se da falta de almofadas
hipoalergénicas.
Segundo Dia
07.30 Meditação e alongamentos (opcional)
08.00/09.00 Pequeno-almoço
09.30/11.30 Visita a vinhedo vizinho
Aquilo devia entretê-los o resto do dia, pensa ela com soturna
satisfação. Quem conseguir assistir à sessão de escrita da tarde após
passar a manhã a provar o Chianti de Gennaro merece, no mínimo,
um prémio literário.
Patricia detém-se mais uma vez, sentindo um vulto entrar na
divisão. Mas não é Myra, nem Matt ou Aldo. Nem Ratka ou Marija,
e sim um vulto muito mais gracioso e comedido. Um vulto absolutamente seguro de que vai ser bem recebido.
Um grande gato amarelo avança porta adentro e deita-se numa
mancha de sol. O gato olha para Patricia. Patricia devolve-lhe o
olhar.
– Ratka! – chama ela e a jovem croata loura aparece à porta.
– Sì? – inquire ela prudentemente.
– De onde veio este gato? – pergunta Patricia em italiano.
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domenica de rosa aquele verão na toscana