c w reportagem uma rua chamada general osório a prin c i pal arté r i a da b o c a das m oto s , e m são pau lo, é um ce n tro q u e r e ú n e m ai s d e 5 0 0 lo j as . v e n ha co m a gente dar u m pass e i o p e l a r eg ião e co n hec e r a lg u n s d e s e u s p r i n c i pa is p e r s o n ag e n s por Moisés Rabinovici fotos Luís Blanco CYCLE WORLD Brasil 59 c w reportagem pelas ruas Conselheiro Nébias, Guaianases, Barão de Limeira e Avenida Rio Branco, pertencia ao bairro chique dos Campos Elísios, onde moravam as famílias tradicionais de São Paulo. O total de 80.350 metros quadrados abriga hoje cerca de 500 lojas de motos, peças e acessórios. Difícil saber quantas exatamente. Há oficinas e revendedores instalados até mesmo em apartamentos de prédios residenciais. MOTO A CARVÃO 60 CYCLE WORLD o polígono RAIMUNDA, A VESPA bran estação luz r. general osório co av. sen. queirós axi A Boca das Motos é um polígono formado pelas ruas General Osório, dos Gusmões e Aurora e suas travessas, no centro de São Paulo. É uma região que, dada à proximidade com dois terminais ferroviários, as estações da Luz e Júlio Prestes, viveu dias de esplendor, no fim do século 19, com os barões do café, e que já sediou a sede do governo de São Paulo – o Palácio dos Campos Elíseos. Hoje, vive a decadência da Cracolândia e da prostituição. de c Arnold, de chapéu, é artesão de mão cheia e curte boa música. Acima, a Honda S90 de Beto Rockfeller, o herói da novela, em exposição na loja do Corvo, o simpático senhor da foto ao alto, à direita s as av. r io que Na loja de Zezé, entre dezenas de motos, está estacionado um imponente Rolls Royce azul, direção à direita. Ano? Qual ano? “Por favor, não vamos falar disso”, ele apela. “É de um amigo que me pediu para reformar a tapeçaria”. Não fosse muito amigo, não faria. Dono de uma frota de motos, ele gosta de sair com Raimunda, sua Vespa. “Mas não põe no texto”, também pede. Quando compara sua Boca com a de hoje, baixa a voz, e, como se fosse um segredo, fala a palavra que marca uma enorme diferença: desmanche. Se o atendesse, censurando-me, cometeria um outro tipo de desmanche. O que não tem problema algum de contar é que Pelose/Zezé chegou à Boca no tempo em que reinavam seus indisputados três pioneiros: Edgard Soares, Felipe Carmona e Luiz Latorre. Começava a década de 1930. O polígono formado pelas ruas General Osório, dos Gusmões e Aurora, cruzadas jardim da luz av .t ir ad en te av. são joão av. ipiranga de motos. Faz das modernas, clássicas. Em cima do balcão, expõe a Honda S90 pilotada por Beto Rockfeller, na novela de 1968-69, na TV Tupi. Avisa, por escrito: “Não vendo”. Ele ainda guarda outra relíquia: a moto do pai, autenticada por uma foto já se apagando, amarelecida, em que aparece com a irmã com a altura já alcançando o selim. av. du M oto não fica velha; vira relíquia. Não fosse o pequeno relicário que conserva viva a paixão por motocicletas que venceram o tempo, a Boca das Motos no centro de São Paulo, talvez a maior do mundo, com mais de 70 anos, já estaria derrotada pela expansão da vizinha Cracolândia, pelos receptadores que vendem peças de desmanche e pela prostituição nas ruas quando as lojas fecham. A rua General Osório é a artéria principal da Boca, um quadrilátero plantado na cidade. Zezé, por exemplo, está aqui há 36 anos. Ele pega uma moto 2014 e a leva para a década de 1950. Tem clientes em Portugal, nos EUA e em todo o Brasil. “Continuo na década de 70”, diz José Pelose Filho, 56 anos, dono da Recar, na rua dos Gusmões, 777. “Sou do tempo em que motociclistas se respeitavam e quando emparelhavam, cumprimentavam-se.” Outro exemplo é Sylvestre Martines Paschoal, o Corvo. Aos cinco dias de idade, já levava o primeiro tombo de moto. Seu pai, o espanhol Perez, foi tirar a mulher e ele, bebê, na maternidade, no Cambuci, montado numa Velocette Mark 350. Como levara ainda outros dois filhos, voltaram cinco a bordo. Mas havia uma boiada no caminho. Ia desviar, não fosse um caminhão cortar-lhe à frente, levantando muita poeira. Despencaram ribanceira abaixo. Mais que um recorde no Guinness, ganharam a vida. O Corvinho, com três anos, já brincava na oficina de motos e motonetas do pai. Hoje é dono da Silverstone Moto, na rua General Osório, 440. O Corvo, como Zezé, é um exímio restaurador A primeira moto nasceu em 1867, de pai americano, Sylvester Howard Roper. Com cilindros a vapor, exalava um fedor incompatível com os pedestres e produzia um barulho ensurdecedor que espantava os cavalos. A versão inodora, a carvão, foi testada numa corrida contra bicicletas, na pista de madeira de Charles River, EUA, pouco mais de 30 anos depois. Roper, então com 73 anos, chegou à frente, a 48 km/h. Tão empolgado ficou, que resolveu comemorar dando outra volta. Aí perdeu: teve um infarto fulminante, caiu morto. A história oficial, como no caso de Santos Dumont e a invenção do avião, consagra o engenheiro mecânico alemão Gottlieb Wilhelm Daimler como o verdadeiro pai das motos e Nikolaus August Otto como criador do primeiro motor de combustão interna de quatro tempos. Mas o motociclista pioneiro, oficial, estava mais interessado em quatro rodas. E dele viria, com Karl Benz, CYCLE WORLD Brasil 61 c w reportagem a Mercedes-Benz. O Brasil, perto de 1920, era apenas importador. Vinham as americanas Indian e Harley-Davidson, a belga FN de quatro cilindros, a inglesa Henderson e a alemã NSU. Depois, chegaram a japonesa Asahi, a italiana Guzzi e a tcheca Jawa. A Monark foi a primeira brasileira, com motor inglês BSA, em 1951. Em São Paulo já rodavam as motonetas Lambreta, Saci e Moskito, enquanto no Rio eram fabricadas a Iso, a Vespa e um ciclomotor, Gulliver. A ESQUINA DO VENENO O trio pioneiro da Boca era unido pela paixão comum às motos, mas separado pelos negócios. Carmona e Paco, pai de Edgard, montaram uma revenda de modelos americanos e europeus – Harley, Panther, Indian, BSA, NSU, Norton e Horex. A 50 metros de distância, Latorre abriu sua loja com as italianas Laverda, Guzzi e Ducati. Mais tarde, em 1958, Edgard proclamaria independência da sociedade herdada do pai, tornando-se um terceiro concorrente e levando a rivalidade comercial entre eles para as pistas e aos pegas da Barão de Limeira ao aeroporto de Congonhas. Os três competiam em vendas na mesma rua, General (Manuel Luís) Osório, o patrono da Cavalaria, que, de certa forma, guarda certo parentesco com o selim. nos anos 1930 surgiu a esquina do veneno, que reunia pilotos de competição e outros viciados em moto. Jô soares vivia por ali com suas motos Moto, então, era um veneno, por viciar seus aficionados. Daí para a famosa Esquina do Veneno foi um pulo semântico nos anos 1930. Era ali, no encontro dos barões de Limeira e do Erval, outro título do general Osório. Jô Soares, ainda motociclista, frequentava o point. Aqui Edgard tramava soldar a porta da loja do Carmona, e realmente a soldou um dia, para que ele não chegasse a tempo de ver os ajustes das motos rivais em Interlagos, antes da largada. A decadência coincidiu com a invasão das japonesas Yamaha e Honda. O nocaute foi o golpe militar de 1964, que dificultou as importações com inúmeras barreiras alfandegárias. Os filhos dos patriarcas da Boca romântica tiveram que se virar com máquinas rodando no mercado, restaurando-as, customizando-as, ou montando as Vespas que recebiam em peças de Manaus ou direto da Itália. A Lambreta era fabricada perto do Pico do Jaraguá, em São Paulo. Outros nomes se juntaram aos pioneiros, como o dos irmãos João e Zé Loco Benedetti – autoproclamado o primeiro motoboy, porque entregava as peças para os clientes. A Esquina do Veneno morreu, ou mudou-se para algumas quadras adiante, onde se instaurou a Cracolândia. Como manter o romantismo e charme antigos num Estado que hoje tem cerca de 5 milhões de motos? Para conquistar o enorme mercado, vale tudo. Comprar moto roubada para desmanche é, talvez, a principal estratégia. Peças sem origem e sem nota fiscal, portanto abaixo do preço, são o que procuram alguns visitantes da região nos sábados de grande movimento. A Boca aparece mais nas páginas policiais dos jornais do que nas esportivas. A Polícia e fiscais da Receita fazem batidas de quando em quando, emparedando os cubículos que não têm como justificar a origem de suas mercadorias. Já fecharam por quatro meses uma das grandes lojas, pretendendo dar um exemplo intimidador. O policiamento hoje inclui duas peruas com soldados, na fronteira com os craqueiros. Grupos de haitianos e africanos fazem parte agora da paisagem. Por eles florescem pequenas lan houses, a conexão via Wi-Fi com famílias distantes. A demarcação de terreno lembra a passagem entre quarteirões étnicos em Nova Iorque. A ESQUINA DO MEDO The King of Helmets, Luiz Cláudio, dono da loja de capacetes Xaparral, na rua Conselheiro Nébias, 507, faz uma constatação bastante elucidativa: só poucos lojistas hoje têm motos. Há 20 anos, não havia quem não as tivesse. Mais que negócio, era e continua sendo um hobby apaixonante. Ele pró62 CYCLE WORLD prio, a mulher e três filhos, usam quatro scooters, uma 750 e uma 650 montada artesanalmente. Na família, porém, Lucas Xaparral partiu noutra direção: adotou o skate, com o qual foi campeão no Circuito Plasma, de SP, em 2004. Carro? Há um, sim, mas fica na garagem. Todos o conhecem na Boca, para onde veio de Londrina na década de 1970. Seu celular não para. Como para os outros veteranos, a parte melhor de seu negócio é o restauro do passado. “Está na moda capacete antigo”, ele diz. “Faço réplicas.” Os lojistas do ramo de viseiras são seus bons e fiéis clientes, não concorrentes. Confiam-lhe os ajustes para as cabeças dos compradores, principalmente mulheres. Devolve-os sob medida. Luiz Xaparral atribui a decadência da Boca ao crescimento do centro de SP. A Esquina do Veneno virou Esquina do Medo para muita gente. Nunca foi assaltado, e lá se vão 30 anos. Mas reconhece: “Os malandros respeitam quem é daqui.” Foi ele quem nos introduziu a um mundo invisível e inesperado entre centenas de lojas. São pequenos apar- Xaparral é o rei dos capacetes da Boca, um lugar que já viveu seu auge. Sua especialidade: réplicas de cascos clássicos CYCLE WORLD Brasil 63 c w reportagem aqui tem peças sem origem e sem nota fiscal, portanto abaixo do preço, são o que procuram os visitantes da região nos sábados tamentos em prédios residenciais transformados em revenda, fábrica e retífica de peças para motos. Uma proeza subir tornos escadas acima. O filho de húngaro Janos Arpad Danicz estava na cozinha de ladrilhos brancos, ocupada por máquinas, quando o visitei. “A vida é aqui”, ele explicou sorridente. Não está exagerando: nasceu a três quarteirões da General Osório há 53 anos. O Corvo/Paschoal, da Silverstone, aquele do tombo de moto aos cinco dias de idade, tem uma escada em caracol, no fundo da loja. Por ela, entra-se em apartamentos acoplados com o tempo, depósitos de incrível parafernália juntada em aparente desorganização. Só não tem, com certeza, uma vassoura, ou espanador. Mas vi uma relíquia, uma enceradeira Arno, encostada num canto há anos. Muita poeira, graxa, máquinas, peças – e desse caos o dia a dia continua. CORVO, O MALUQUINHO O Corvo gosta do apelido. Sua trajetória passa por anos em que foi preparador de motos dos pilotos Mário Tamburro (Honda MT), de José Casarini (TZ 350) e do chinês King Man Hol (RS 125). Um dia, não resistiu, e foi para as pistas com uma RD 50. Competia com canhões, sem dinheiro nem patrocínio, e ainda chegava em terceiro lugar. Apelidaram-no de Maluquinho. Depois, Loukinho. Já o diminutivo Corvinho ficou para o 64 CYCLE WORLD Sábados são dias de maior movimento na região. E vale tudo para atrair a clientela – até mulher gostosa com roupa provocante seu filho. Em outra fase de sua vida, atuou como dublê em cenas perigosas de filmes e novelas de TV e ainda assessorava agências na escolha da moto ideal para anúncios. O Corvo decidiu homenagear a Honda CB 400, de 1981, que deixou um séquito de saudosos órfãos. E a recriou tal qual. Recebeu propostas de vendê-la. Mas a conservou em família, como as máquinas usadas por Beto Rockfeller e a do seu pai. COISA DE CINEMA Lembra de filmes como Easy Rider, com as suas Harley-Davidson Panhead 1951? De O Selvagem, com Marlon Brando na sua inglesa Triumph Thunder- bird? Ou o Top Gun Tom Cruise montado numa Kawasaki GPZ 900R? Do Exterminador do Futuro pilotando uma HD Fat Boy? Che Guevara na Norton 500? Do Batman, com sua Batcycles? Você entra na Hot-V2, na rua Conselheiro Nébias, 532, e o clima é esse, de cinema. Está lá escrito: Legends never die. A loja vende life style, diz o dono Arnold Santos, 57 anos, baiano de Feira de Santana com vivência nos EUA. Ele está na Boca há 19 anos. As tampas de filtros de ar de suas duas Harley têm o formato de caveira. Os rostos de suas duas filhas tatuados num braço, relojão, anéis, calça de couro, bota e um pipe de duas bocas para fumar não sei o quê preso na cintura, como revólver Em um polígono de mais de 80 mil metros quadrados encravado no coração de São Paulo sobrevivem mais de 500 lojas especializadas em motocicletas, muitas delas estabelecidas em apartamentos residenciais. É um dos maiores centros do mundo – talvez o maior: aqui, você encontra de parafuso a motos clássicas. E, sim, muitas peças e componentes de origem desconhecida. Dica? Não compre esses produtos: é fria. Outra dica: evite visitar o lugar aos sábados, dia de maior movimento. Para conhecer as principais lojas da Boca das Motos, entre no site guiadageneral. com.br em faroestes, seriam de um hippie conservado em formol, se os tempos não fossem outros. Arnold é um artesão bem conceituado. Seus alforjes para motos são cobiçados. Na sua loja cult tem tudo que um easy rider possa pretender, até bandeira americana desbotada. Tanta quinquilharia, será preciso muito tempo para ver tudo. Mas a música é boa para quem se identifica com os sinais ostensivos da era de Aquário, Beatles, Califórnia e Harley estradeiras. Um casal bull terrier, Chayene e Spy, completa o cenário. Montam nas motos e, nos selins, adormecem. Alguns motoqueiros também não envelhecem; viram relíquias. CYCLE WORLD Brasil 65