O INVASOR Ronaldo de Noronha Fazemos abaixo uma leitura possível de "O Invasor", filme brasileiro realizado em São Paulo por Beto Brant e lançado nos cinemas em 2002. Além de uma descrição interpretativa do filme, das personagens e das situações dramáticas em que evoluem, e de uma caracterização estética do filme, sugerimos pontos de vista extra-cinematográficos que podem elucidar as determinações contextuais estruturantes da narrativa e do caráter das personagens. 1. O crime A narrativa de "O Invasor" é astuciosa e complexa. Pois, na aparente casualidade e espontaneidade dos acontecimentos que se sucedem em velocidade frenética nesta Grande São Paulo onde se passa a história, nada é o que parece. Pessoas aparecem onde não deviam estar e se comportam de modo inusitado, nossas primeiras impressões de cada personagem são desmentidas em cada encruzilhada narrativa, todo o mundo faz jogo duplo, conspira e trai e armadilhas e mascaradas se sucedem, embutidas umas nas outras. Vejamos a cena inicial do filme, que em si mesma já é um pouco estranha. Feita em um só plano que dura 88 segundos, mostra dois homens descendo de um carro e entrando em um bar, onde está a câmera. Dirigem-se para uma mesa onde alguém, que não é visto na imagem, os espera. Os dois, Giba e Ivan, sentam-se à mesa e conversam com a câmera, olhando para ela: "você é o Anísio?", pergunta Giba. "O que vocês querem?", pergunta a câmera-olho. A voz é insolente. Vemos, num relance, a mão da misteriosa personagem pegando o que parece ser um maço de dinheiro que um dos dois lhe passa. (Compreendemos já o que está acontecendo, que negócio fazem os três homens, quais circunstâncias dão sentido e contexto a esse misterioso encontro? Ainda não – isso só acontecerá aos poucos, nas cenas seguintes.) Vendo esses dois homens a falar com a câmera, o espectador alerta certamente compreenderá que Beto Brant, o diretor do filme, usa neste momento um recurso narrativo relativamente habitual do cinema de ficção, que podemos chamar de a convenção cinematográfica da câmera subjetiva. Ela ocorre quando, em algum momento de um filme, a câmera assume o ponto de vista de uma personagem e nos mostra o que ela vê. Portanto, os espectadores não podem ver a própria personagem, que só existe, na imagem, enquanto ponto de vista, isto é, uma posição no espaço da cena. O curioso desta cena – obviamente inventada para despertar a curiosidade do espectador e "amarrá-lo" à roda viva da trama que, a partir daí, avança em ritmo alucinante – é que o espectador não sabe como é Anísio, esta personagem oculta que, neste momento, coincide com o ponto de vista da câmera. Brant mantém durante os próximos 22 minutos o suspense sobre a identidade de Anísio, ao mesmo tempo que nos faz saber que ele foi contratado para matar uma pessoa. Por que o diretor do filme faz isso? Talvez porque tenha preferido, antes de nos apresentar Anísio em carne e osso, de certa forma "guardando-o" dramaticamente para depois, nos contar quem são, o que queriam ali e o que fazem na vida Giba e Ivan, sobre cujos rostos suados e incertos o homem-câmera da cena inicial focaliza o olhar. Quem são eles, afinal? Por qual improvável razão dois burgueses bem postos na vida, sócios-proprietários de uma empresa de construção civil de porte médio, vão parar num bar popular para tratar de negócios com um homem que eles aparentemente temem? Giba e Ivan são pessoas "normais", homens casados que farreiam escondidos das mulheres, que se esfalfam no trabalho, têm amigos, negócios, interesses. São empresários conhecidos, levam vidas confortáveis, ao abrigo da pobreza e da necessidade. Mas toda medalha tem um reverso. Descobrimos que, envolvidos em negócios escusos e ameaçados de ruína, nossos dois heróis pretendem matar Estevão, amigo e sócio principal deles numa empresa de construção civil, a Araújo Associados. Estevão descobriu e ameaça denunciar maracutaias feitas por Giba. Este convence Ivan a contratar a morte de Estevão: eis a razão do encontro com o famoso Anísio. Mas Ivan hesita, duvida, quer voltar atrás, manifesta medo e remorso antecipado pelo crime iminente. Nesta situação extrema, Ivan se mostra um fraco e podemos recear desde logo pela sua sorte no final da história. Pois nestes tempos em que tudo que é sólido se liquefaz e desmancha no ar, neste grande país onde lavra a guerra surda e permanente dos que têm contra os que não têm e as apostas no campo do poder são altas e fatais, a caprichosa deusa Fortuna costuma aos fracos abater e aos fortes exaltar. Vê-se que Ivan não está preparado para tamanhas e tão terríveis batalhas. Seu coração não é duro o bastante e talvez ele ainda tenha uma consciência. Giba procura persuadir e animar o tíbio Ivan: ouvindo-o, é impossível não lembrar certos entendimentos culturais, correntes em nossa sociedade: o tema hobbesiano do homem lobo do homem, da luta de todos contra todos; a valorização onipresente do propósito de subir na vida e se dar bem, de ser um vencedor neste mundo competitivo;. a cínica justificação do "sujar as mãos" como condição do sucesso. Tais entendimentos são os pressupostos evidentes do discurso de Giba, dotados da força lógica de um argumento que a realidade confirma diariamente, o argumento que enuncia nuamente, sem retoques, a ideologia da eliminação dos mais fracos pelos mais fortes, em nome da própria sobrevivência: "o mundo é assim!", conclui a lição de vida que ele dá a Ivan. Vê-se que Giba é um forte e podemos confiar que, armado de tanto realismo, ele se dará bem no fim da história (seja qual for o significado de se dar bem). É possível dizer que Giba "funciona" no filme como uma condensação e personificação, ao modo de uma sinédoque (pars pro toto), do capitalista arrivista, a clássica figura do "furão". Ambicioso, implacável, cínico, age com a prontidão e o expediente do jogador consumado e disposto a tudo. Joga dos dois lados da lei, sabe que as cartas são marcadas e o jogo roubado de antemão. Ele blefa e trapaceia. O retrato que Beto Brant faz deste "empresário racional", maximizador estratégico de oportunidades, é minucioso e duro. Giba (assim como Anísio, Ivan e os outros) é, no entanto, uma personagem complexa e, de certa forma, opaca. Beto Brant evita usar esquemas psicológicos ou sociológicos cujo efeito seria reduzi-la a um tipo abstrato, fazendo dele apenas mais uma dessas caricaturas com que nos presenteia regularmente o cinema brasileiro. Há, entre as pesadas determinações estruturais (coletivas) e as práticas e as disposições dos indivíduos, inúmeras mediações, entre elas a da biografia individual e familiar dos indivíduos e as formações culturais e políticas emergentes (isto é, históricas), que as teorias da sociedade não têm como prever. Certamente por isso, Brant evita as armadilhas do cinema de tese, em que as personagens e as situações dramáticas são, quase sempre, reduzidas a idéias abstratas e dogmáticas. As personagens de "O Invasor" simplesmente agem e existem como pessoas, e Brant semeia, em imagens e sons, pistas para disparar a imaginação e o espírito inquisitivo do espectador acerca dos mundos sociais, culturais e psicológicos dessas personagens. O espectador de "O Invasor" goza de grande liberdade ao assisti-lo, liberdade que exige atividade e presteza do pensamento nas operações de entendimento e interpretação, seja dos significados mais gerais da obra, seja da atribuição de sentidos às ações das personagens. Brant, no mais das vezes, só nos presenteia com fragmentos do tempo e do espaço de cada personagem para a qual aponta a câmera. Raramente temos uma "ação completa" – digamos, um diálogo do começo ao fim. Temos somente momentos esparsos de cada uma – por exemplo, alguns segundos de Giba encenando a fábula dos três porquinhos para a filha no cinematográfico living do seu apartamento. Exceções a este princípio construtivo (talvez fosse melhor dizer "desconstrutivo"), et pour cause, são, entre outras, a cena inicial e aquela em que Anísio afinal aparece, no minuto 25. Por sua vez, a sucessão das imagens, que resulta do trabalho na sala de edição, é imprevisível e obedece antes à lógica do caos do que à lógica da identidade. Os tempos passado, presente e futuro são embaralhados e incertos, não lineares. Memórias, sonhos e alucinações se misturam a registros quase documentários do cotidiano da cidade. A câmera invade espaços reais (prostíbulos, prédios em construção, escritórios, danceterias), filma o mundo tal qual é, mas o reveste de um ar de alucinação e urgência inteiramente mentais: as imagens do filme são como que as imagens fantasmagóricas de uma consciência que vê e sente em estado de perdição e desesperança e, por isso, ironiza e fere. Digamos que Beto Brant nos sugere as mediações antes referidas mais através do estilo do filme que do que pelas ações das personagens. É certo que ele localiza muito bem e torna plausíveis essas personagens, tanto nos espaços sociais quanto nos privados. Mas é pelo estilo cinematográfico, pelas escolhas estéticas propriamente ditas, que ele nos abre o acesso à verdade íntima do mundo onde elas vivem. Brant como que reconstrói as estruturas essenciais e invisíveis do tempo-espaço moderno através do modo como filma e monta suas imagens-sons. Vejamos como ele lida com o problema de como filmar uma cena, à luz da distinção entre imagem subjetiva e imagem objetiva. Depois da cena inicial, até o aparecimento de Anísio, a câmera de Beto Brant torna- se objetiva e filma as ações do ponto de vista do narrador. O ponto de vista do narrador quer dizer: o ponto de vista do demiurgo, do metteur en scène, o realizador-criador que faz e manipula as imagens-sons, mostrando coisas, pessoas, espaços, cores, movimentos, o tempo ao mesmo tempo vivido e objetivo. Chamemos às imagens que correspondem ao ponto de vista do narrador de imagens objetivas, resultantes da convenção cinematográfica inversa simétrica à acima referida: a convenção da câmera objetiva. É ao regime das imagens objetivas que se refere a noção de que o cinema é uma arte do real. Vemos então, em imagens febris, descontínuas e sombrias, ou ternas, flutuantes e pungentes, Giba e Ivan tocando ansiosamente suas vidas, querendo, esperando e receando a notícia fatal; pessoas variadas em bares, puteiros, ruas e escritórios; Estevão despedindo-se dos amigos e entrando no carro, antes de morrer; o desespero e a revolta fingidos de Giba e Ivan ao ver Estevão e a esposa, mortos friamente a mando deles, dentro do carro, num terreno baldio (enquanto, na trilha sonora, toca um rock pesado e alguém urra "bem-vindo ao pesadelo da realidade"); a figura solitária e enigmática de Marina, filha de Estevão. E muito mais. Mas de algum modo, temos a impressão de que estas imagens, aparentemente objetivas, são também, sub-repticiamente subjetivas, quer dizer, como se elas fossem o que "alguém" está vendo, um alguém oculto, fora-da-imagem, espreitando sem ser visto. Alguém que impregnou as imagens com sua perspectiva, suas próprias sínteses e impressões mentais. Quem? O diretor do filme, que coloriu tais imagens objetivas com seu sentimento, seu senso estético e seu sentido moral? Sem dúvida, sim – sabemos que toda imagem tem seu autor e que é impossível separar a imagem enquanto tal, e seu encadeamento com outras, da perspectiva que o autor adota quando filma. Mas, talvez (por que não?), esse alguém poderia ser justamente ele, o matador, o Anísio sem rosto. Esse matador experiente, infalível, que antes de agir estaria pacientemente observando a caça para melhor lhe conhecer os hábitos e as maneiras, os pontos fortes e os fracos, aguardando a hora exata de entrar em cena e dar o golpe decisivo. Das sombras, Anísio descortina e radiografa – e, como vemos em seguida, calcula, tem idéias e mede bem as oportunidades (essa é só uma conjectura possível, entre outras, de um espectador dotado de imaginação). Esta possibilidade, esta hesitação que nos acomete neste momento do filme sugere, ademais, que o próprio Beto Brant poderia estar vendo tudo o que nos mostra com os olhos de sua personagem-título. Ou, pelo menos, nos convidando a ver as coisas (o mundo de Giba e Ivan) com os olhos de Anísio. Os olhos do predador, um ser de espécie diferente, um rapinante. Ou, para usar outra metáfora: os olhos do jogador, cuja estratégia é infiltrarse, conquistar e ocupar o espaço do adversário (ou inimigo). 2. A invasão Quando, no minuto 25 do filme, o matador aparece onde "não devia" (descobriremos logo que não existe "não devia" para Anísio), já estamos preparados. Esta história tenebrosa de assassinatos de inocentes e traições fraternas exigia aos brados um justiceiro, um enviado de destino, e eis que enfim ele dá as caras na Araújo Associados. Para sermos mais exatos, ele literalmente invade a cena. E que justiceiro, que instrumento dos deuses maliciosos ele é! Mas – isto é importante –, durante algum tempo, tal como na cena inicial, durante exatos 20 segundos, ele aparece "fora" da imagem, tão somente como ponto de vista. Ele, Anísio, é a própria câmera que entra pelas portas, que sobe escadas, anda por corredores e espia os gabinetes da construtora. É o retorno do recurso da câmera subjetiva, agora se movendo, percorrendo o espaço para frente, como quem toma posse de um lugar. Tudo isto é bem astucioso por parte de Beto Brant. Este avançar desinibido da câmera subjetiva nos atiça novamente a curiosidade e antecipa momentos de incerteza e deslizamentos imprevistos de terrenos. Pensamos: o que está acontecendo? Os rostos dos funcionários da construtora viram-se em sua direção, como que interditos por aquela presença inesperada. O que eles estão vendo? Finalmente, eis à nossa frente, entrando sem ser convidado na sala de Ivan, o surpreendente Anísio. Quem esperava um negão mal-encarado, quiçá estúpido, exibindo à flor da pele um passado de violência e maldade (o estereótipo do bandido preto, inculto e desumanizado), talvez se espante ao vê-lo branco, comum, cabelo mal cortado, roupas largas e baratas, magro como um chacal. Uma figura que passaria despercebida num ônibus cansado e arquejante em demanda dos distantes subúrbios; mas seguro de si, maneiras desembaraçadas, falando sem parar, olhos arregalados e desafiadores, ultrajante, claramente fora do lugar. Anísio mostra-se incontornável depois dessa entrada forçada, recusa-se a desaparecer nos distantes subúrbios, cumprindo sua parte no negócio. Chantageia, acotovela, intimida, intromete-se. Em resumo, invade. Invadir, lexicalmente, significa "penetrar em determinado lugar e ocupá-lo", "apoderar-se, tomar e conquistar"; ainda melhor: "ocupar um lugar de forma maciça e abusiva" (Houaiss). Sem rebuços, ele cobra um lugar no pódio dos vencedores, uma posição de patrão, de quem manda, porque, como todo o mundo sabe, diz Anísio, "dono pode tudo". Sua inesperada entrada em cena, pulando da coxia para o palco como um trickster descarado e maligno, em flagrante desrespeito às regas do jogo, produz um desarranjo e um reordenamento súbito da posição dos jogadores e dos cacifes com que garantem sua capacidade de fazer jogadas vantajosas. A posição de Giba e Ivan no jogo do poder familiar-empresarial, razoavelmente vantajosa depois de matarem Estevão, periclita e se mostra de repente prenhe de incertezas e ameaças. A narrativa se bifurca a partir daí, como duas linhas de força entrelaçadas que seguem desenvolvimentos próprios, mas dependentes uma da outra. De um lado, temos Ivan, sua crise pessoal e o progressivo enfrentamento com Giba; de outro, Anísio e seu valoroso assalto às posições inimigas. Para tal, Beto Brant e Marçal Aquino (autor do livro homônimo que deu origem ao filme e co-roteirista do filme) servem-se do recurso da montagem paralela, o correspondente cinematográfico do "enquanto isso" da literatura. Mas, veja-se bem, uma montagem paralela desconstruída, fragmentária, imprevisível, perturbadora, delirante. A narrativa cinematográfica de "O Invasor" rompe com os pressupostos de ordem e lógica da narrativa cinematográfica clássica, metódica, dita "transparente", apanágio do cinema mainstream. É interessante que Beto Brant filme suas cenas também como um invasor, como se vê no making of do filme1: a equipe de filmagem entra num lugar (um salão de beleza, uma danceteria, um apartamento), filma como quem rouba uma imagem e vai embora, para outra cena, outra imagem. Beto Brant tem um pouco de Anísio... 1 Ver o DVD do filme, editado pela Europa Filmes, assim como o site: www.oinvasor.com.br. É evidente que um filme assim só podia ser feito com som direto, tão direto e bruto como as imagens visuais. A própria idéia de um estúdio de dublagem é anômala em relação ao estilo documentário adotado pelo realizador. O espectador preste atenção: o som ambiente é sempre rico e veraz, uma espécie de ruído de fundo "natural". Pode, portanto, passar despercebido; mas está sempre lá (como, por exemplo, quase no fim do filme, o barulho da festa acima do apartamento de Cláudia, aliás Fernanda, que Ivan arromba e invade e, depois, quando ela volta para casa). Por sua vez, a posição de Anísio no campo do poder começa a melhorar quando ele descobre, bem ali na construtora que ele invade uma segunda vez, uma jovem corça pastando solitária na pradaria: é Marina, órfã e herdeira, moça burguesa sem preconceitos, constitutivamente disponível para baladas, aventuras e transgressões várias. A filha do casal que ele assassinou sem piedade, uma "menina que tem escolha", como constata sabiamente Anísio. Vítima ideal de um tal predador, ela é soberanamente indiferente a jogos de poder – seu campo preferido de ação é o do prazer. Marina corresponde mais ou menos ao tipo literário-cinematográfico da ingênua maliciosa, amoral, uma expressão impura do desejo liberado: espontânea, deliciosa, desfrutável, facilmente deleitável. Marina ignora o papel de Anísio na morte dos pais; para ela, ele é apenas alguém que sabe conversar com ela num nível intuitivo, instintivo, quase animal. Anísio conquista-a com presentes: um cachorrinho, um baseado e um passeio de carro no subúrbio. Ele é gentil, insinuante, maneiro, quase poético. Joga sobre ela a conversa-chavão para-esotérica, pseudo-mística sobre príncipes, deuses e céus azuis, infalível em se tratando de seduzir adolescentes desconfortáveis com a própria vida. Abrelhe as portas da periferia de São Paulo como um pretendente abrindo o coração para a amada – ao lhe mostrar onde vive, mostra quem ele é. Um homem respeitado, com conexões, amigos, recursos. Em retribuição, ela se entrega a ele graciosamente, dentro do carro, num terreno baldio, depois se atribuírem mutuamente os papéis de Romeu e Julieta, ou de Adão e Eva. Giba e Ivan estão bem dispostos a conceder-lhe este espólio, concessão que, afinal, não os prejudica em nada. Mas, se Giba é um pragmático que sabe adaptar-se às condições estratégicas e às conjunturas táticas do jogo, o mesmo não ocorre com Ivan, que padece do mal imperdoável num jogo onde o sangue-frio é de rigueur: o medo de ser a próxima vítima, medo que cedo se converte em paranóia. Ironicamente, é exatamente este medo que leva Giba e Anísio a decidir eliminá-lo (Giba diz: "ele está fora de controle"; Anísio responde: "mata ele"). Ivan tornou-se o elo fraco da corrente. Entrementes, outra personagem entrou em cena: Cláudia, mulher-monumento, o eterno ideal masculino das revistas eróticas, que conquista Ivan com o velho truque do cigarro e do isqueiro. Quem será? Um encontro casual numa danceteria, um recanto de paz e amor para Ivan, como ele crê, ao abrigo da tempestade que ruge lá fora, a tábua de salvação com que ele sonha ingenuamente? Se você, como Ivan, acreditou nisso, caro leitor, a decepção o aguarda na próxima virada dramática: ela é um instrumento de Giba, uma espiã. Ivan estava dormindo com o inimigo. O destino dele está traçado. Já o estava desde o começo. Ao denunciar à polícia o crime cometido, para se salvar, entrega-se de mãos e pés amarrados aos seus algozes. Ele diz, pateticamente: "sou engenheiro, tenho uma vida perfeita". Perfeita, mas perdida, pensamos nós, do lado de cá da tela, a essa altura já condoídos de tanta ingenuidade. Ivan descobre, enfim, que o tal Norberto (derradeira virada dramática), sócio de Giba no puteiro onde todos vão se aliviar da mesmice dos seus casamentos, o mesmo Norberto que indicou os serviços de Anísio para Giba, é delegado de polícia. Norberto o entrega a Giba exigindo: "dá um jeito nele!", enquanto Anísio, emergindo da cama de Marina nessa torva manhã paulista, envergando um vistoso e caro roupão que atesta simbolicamente sua conquista de um lugar entre os que mandam, olha para Ivan como se ele fosse um saco de lixo que se joga fora, como dever matinal. À luz da manhã que entra pela janela, Marina, o prêmio dos esforços de Anísio, dorme em seu quarto um sono inquieto, se mexe na cama e afinal se imobiliza. Fim. 3. Um mundo em crise Seria equivocado entender "O Invasor" como mais um "retrato do Brasil" oferecido pelo cinema nacional ou como um "reflexo" cinematográfico da nossa realidade histórica e social. Este filme pertence àquela espécie de obras culturais que admitiram a impossibilidade de totalizar seja o que for, inclusive esta construção intelectual, "a sociedade". Brant parece partir da premissa geral de que tudo o que podemos obter com uma câmera e um microfone são fragmentos, pedaços mais ou menos autônomos do real, blocos de realidade cujas conexões mútuas são problemáticas, ambivalentes, provisórias. Adota como sua a idéia de H. G. Wells, segundo o qual metade da arte do escritor (ergo, do cineasta) consiste em "deixar coisas por dizer", em manter obscuros alguns pontos que a imaginação do leitor (ou espectador) se encarregará de interrogar e responder, através de suas próprias conjecturas e suposições. "O Invasor" pertence a uma linhagem de filmes chamados de "fora do sistema", ou de filmes "impuros", quase sempre pouco vistos e resenhados. Como, por exemplo, o filme chinês de Hong Kong "Amores Expressos", de Wong Kar-Wai (1995), o iraniano "O Círculo" (2000), de Jafar Panahi, ou o francês "Adeus Filipina", de Jacques Rozier (um antepassado mais ou menos remoto, de 1962). Poderíamos falar também – é inevitável – dos filmes de Jean-Luc Godard, já que Godard é o pai, ou o tio, de todo o cinema em que o mundo é "capturado vivo" (embora Godard faça também uma pesquisa metalingüística em seus filmes, coisa que evitam os outros autores citados). São filmes onde se improvisa, se cria no lugar e na hora da filmagem e da montagem, em que o realizador da obra se abre aos acasos e imprevistos que lhe cruzam o caminho e diz "bem-vindo" ao real que invade a ficção. A idéia de retratar um país enquanto tal (ou a sua "realidade social") é inadequada ao seu objeto. Pois a "realidade brasileira" (e não só a brasileira, aliás – também a francesa, a chinesa, a iraniana) é fugaz, contraditória, desconectada internamente, é uma paisagem que não oferece pontos fixos e seguros à representação em perspectiva ortogonal, como se ela só tivesse pontos de fuga. Não tem estabilidade, coerência interna, e parece privada de senso comum e de lógica. Desta realidade, só podemos capturar momentos acidentais, blocos heterogêneos de coisas e de acontecimentos que não se ajustam uns aos outros. A arte em nossa modernidade globalizada e desencantada não quer mais ser uma representação fiel do mundo, como tentou sê-lo outrora, quando aspirava ao realismo. Agora, ela se diz somente uma visão: um ponto de vista, uma perspectiva cambiante, um recorte arbitrário, visceralmente suspeitosa da noção de "correspondência ponto a ponto" entre o objeto e sua imagem, pressuposta pela noção realista da transparência do real ao olhar do observador. O mundo de hoje é opaco, ou, se quiser, embaralhado. O olhar do artista tornou-se mais modesto, mais conformado às suas limitações epistemológicas. Nesse tipo de cinema, o autor não "possui" o significado do filme que oferece ao público. Um cineasta da estirpe de Brant, de Godard ou de Kar-Wai se contenta (seria melhor dizer: se desespera?) com ser a testemunha mais ou menos casual de alguma coisa que seu olhar surpreende em momentos e lugares que ele não escolheu propriamente, mas encontrou porque estava ali, naquele instante. Movimentos que a câmera apanha em pleno vôo e registra como instantâneos. Há, contudo, nesses instantes fugazes capturados pela câmera, alguma coisa que ele adivinha ser essencial, necessária na própria evidência do seu acontecer. Ora, o essencial, no caso de "O Invasor" parece ser uma figura do tempo, mais do que do espaço: a figura da crise, a figura fundamental do desequilíbrio e da incerteza. Só como sinédoque problemática e insatisfatória da crise das personagens podemos dizer que este filme faz um "retrato do Brasil". Esta é só uma opção, porém, uma conjectura possível feita durante a atividade de decifração do filme pelo espectador. Este, ao invés, poderia perfeitamente entender tudo o que se passa nos 96 minutos que o filme dura como uma expressão das agruras da inefável "natureza humana". "O Brasil", como conceito e como realidade, seria então apenas uma condição intelectual-afetiva da nossa simpatia de brasileiros pelas personagens e seus dramas e do nosso entendimento do que se passa na tela. Simpatia talvez não seja o termo certo, assim como entendimento, para falar deste filme que recusa fechar-se em uma fórmula, já pronta antes de tudo começar. Nossa universal propensão a nos identificar com as personagens de um filme (de qualquer filme) periclita diante da dificuldade de aplica-la às personagens de "O Invasor": talvez nenhum deles, Giba, Ivan, Anísio e Marina, mereça que soframos ou nos regozijemos com seus fracassos e sucessos. Ou talvez sim, por que não? Eles são apenas pessoas como nós, demasiado humanas. Mas nosso entendimento do que eles fazem vacila ao encontrarmos a Razão, este mito essencial da ideologia da modernidade, em tal estado de demência e perdição. Contudo, nem tudo é misterioso nas ações das personagens, pois parece haver estrutura nas condições em que tais ações ocorrem. Diretor e roteiristas situam nitidamente as personagens (ou, talvez, elas mesmas se situem) no espaço social, nesta cidade de São Paulo fortemente estruturada como sistema de inclusões/exclusões móveis, encaixadas umas nas outras. Basta perguntar, por exemplo, por que Anísio, o invasor, é uma personagem tão eficaz dramaticamente, tão bem construída como tipo e pessoa. Não é exatamente pelo que ele faz que podemos desvendar sua natureza como pessoa e como ser social, mas pelo quê ele representa na ordem/desordem das coisas. Não é difícil de ver que Anísio é de uma "outra" classe social, que ele é o representante extremo (ao ponto de ser monstruoso) das mal reputadas "classes perigosas". Devemos, é claro, perguntar: "outra" e "perigosa" para quem? A resposta é fácil e deixo-a para o leitor. Anísio vem "de lá", da periferia, daquela massa indistinta e cinzenta de ruas sujas e habitações mal acabadas e conservadas empilhadas umas sobre as outras, de terrenos baldios e melancólicos, de paredes grafitadas e de pequenos negócios de portas escancaradas para a rua. Quando ele leva Marina para passear ali e "dar um trato no cabelo", o rap que cobre a imagem fala de "subúrbio, mundo cão". Anísio é o lídimo morador dos bairros populares apinhados onde não se vê o poder público, em que a bandidagem prolifera como uma metástase e ele se sente à vontade, em casa. Se o mundo burguês é duro e feroz, se na guerra infindável, obsessiva, por poder e por dinheiro não há mercê para os vencidos, o mundo de Anísio, este mundo da pobreza, imenso e obscuro, sobre o qual Giba e Ivan nada sabem, é ainda mais duro. É a periferia da Grande Cidade, o espaço obrigatório e perverso onde são confinados e mantidos à distância os "desclassificados" e os "marginalizados" – os que não têm, o proletariado. Passa-se de um mundo ao outro, geograficamente no sentido horizontal (de um bairro a outro) e socialmente no sentido vertical (de uma classe a outra). Operando esta bem conhecida operação de simultâneas ascensão social e deslocamento geográfico, Anísio se torna patrão (quer dizer, ele não é mais aquele que mata, mas o que manda matar) quando vai morar no "palácio" de Marina. A descrição visual dos espaços é constitutiva do próprio modo de ser do cinema. Ora, segundo leis sociológicas e antropológicas bem conhecidas, a descrição dos ambientes onde alguém vive é essencial à sua devida caracterização. Esta é uma das tarefas da câmera no cinema. Vejam-se os ambientes onde moram e trabalham Giba e Ivan: limpos, espaçosos, fartamente mobiliados, caros (embora não seguros). A metragem quadrada por morador é o mais óbvio indicador do poder e da riqueza de uma família, em qualquer sociedade. Já as ruas, lojas, bares da periferia são sujos, super-povoados, mal iluminados, precários. Embora manifeste em relação às suas vítimas burguesas um desprezo e indiferença morais que beiram o ódio de classe, Anísio está longe de vestir as armas do herói transformador, do guerreiro do proletariado que quer mudar a ordem das coisas. Ele quer apenas se dar bem. Subir na vida, viver num palácio. Desde o início, ele sabe que o jogo do poder é roubado e que por trás de cada conspiração há uma outra, que cada jogada esconde uma outra, que esconde uma outra e assim por diante. O tema de fundo do filme é, parece-nos, a luta de classes à brasileira e dos impasses morais que ela acarreta. Mas, não apresentado diretamente, ou explicitamente. Pois o problema estético-político de Beto Brant e Marçal Aquino, já enfrentado por muitos outros com variados graus de sucesso, é como mostrar a luta de classes no cinema. Uma solução possível é a que eles encontraram: pelos seus efeitos, pelas suas manifestações pontuais na vida cotidiana, com seus desvios e invenções constantes, suas conseqüências multifárias, suas determinações flexíveis e onipresentes. A luta de classes é antes uma pressuposição do drama, como força estruturante de base dos acontecimentos visíveis, como condição de possibilidade das posições ocupadas pelos atores do drama e das suas estratégias de ação e dos seus estilos de vida, do que uma instância dramática per se. Anísio não é sindicalizado, não participa de movimentos sociais, não tem consciência de classe ou sentimento de solidariedade em relação aos seus iguais. Aliás, neste filme, ninguém tem. Ele não é otário, não acredita em redenção dos pecados. Ou, mesmo, em pecados. Ivan sim. No final, conseqüência necessária e irônica de tudo o que ocorreu antes, Anísio toma o lugar de Ivan na ordem do poder. Poderíamos dizer que Anísio efetua seu projeto de ascensão social da única maneira possível (e isto diz muito sobre a tal "realidade social brasileira") para quem não teve "berço": pela violência, como um conquistador. Ficha técnica O Invasor (2002) Diretor: Beto Brant. Roteiro: Marçal Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca, baseado na novela "o Invasor", de Marçal Aquino. Atores: Marco Ricca, Alexandre Borges, Paulo Miklos, Mariana Ximenes, Malu Mader, Chris Couto, George Freire, Jayme del Cueto e Tanah Correa. Fotografia e câmera: Toca Seabra. Direção de arte: Yuki Sato. Música original: Sabotage e Instituto. Música incidental: Pavilhão 9, Tolerância Zero, Alec Haiat e Yann Marcel, Professor Antena e Paulo Miklos. Som direto: Louis Robin. Sound designer: Beto Ferraz. Montagem: Manga Campion. Produção: Quanta Filmes. Para mais informações sobre o filme, visitar o site: www.oinvasor.com.br.