A CIVILIZAÇÃO E A ECONOMIA DO FUTURO - REFLECTIR PARA MELHOR AGIR (Fundação Betânia, Azóia, 5 e 6 de Março de 2011 Que Perspectivas para uma Nova Economia? O conceito de “negócio social” Cláudio Teixeira 1.Enquadramento 1.1 Esta reflexão sobre o conceito de “negócio social” é precedida de uma pergunta: “que perspectivas para uma nova economia?”. Mas tal pergunta enquadra-se, por sua vez, na reflexão mais ampla e profunda destes dois dias: “A CIVILIZAÇÃO E A ECONOMIA DO FUTURO”. Esta expressão “A Civilização e a Economia do Futuro” tem, pelo menos, um significado implícito: é que tratar de “Economia” não é (apenas) lidar com problemas (tais como o de adequar recursos a necessidades) enquanto questões técnicas e que, enquanto tais, seriam reservadas para “especialistas” – como costuma acontecer com questões “técnicas”. É que tratar de economia é lidar com questões de civilização, porque do que se trata é de SERVIR A VIDA. Já lá vão quase 15 anos quando li um livro (saído então em 1996) cujo título é todo um programa: A ECONOMIA, SERVIÇO DA VIDA – Crise do capitalismo, Uma política de civilização (de Henri BARTOLI, um dos economistas franceses de referência; a tradução portuguesa foi editada pelo Instituto Piaget, em 1999). 1.2 Mas, para ser um pouco mais concreto, há que perguntar: o que tem a ver o conceito de “negócio social” com perspectivas para uma “Nova Economia”, com o abrir de alternativas à forma, hoje dominante, como é entendida, ensinada e praticada a economia? Relendo o “Manifesto” intitulado “PARA UMA NOVA ECONOMIA - tomada de posição pública”, constato como aí a crise actual é vista como abrindo oportunidades que apontam para “…inovação em economia social e desenvolvimento local…” e também em “reformas do conceito de empresa”. A economia social (ou “terceiro sector” ou “economia solidária”) é uma realidade ampla e diversificada. Não vou desenvolver isto. Basta ver que da economia social fazem parte: cooperativas, mutualidades, associações sem fins lucrativos, fundações, empresas de economia social. 1 Ora, o “negócio social” e também a “empresa de economia de comunhão” são formas inovadoras de “empresas de economia social”. 2. O conceito de negócio social (social business, expressão de Muhammad YUNUS) 2.1 O autor do conceito de “negócio social” (social business) é Muhammad YUNUS, do Bangladesh (124 milhões de habitantes, superpovoado – o território é apenas o dobro do português – país pobre, embora um dos poucos a cumprir um dos Objectivos do Milénio, pois reduziu já para metade a sua taxa de pobreza, que, mesmo assim, ainda é de 40%). Yunus regressara dos EUA (onde se doutorara e era professor universitário) após a independência do país em 1971 e era Professor de Economia, numa das universidades do Bangladesh. Ao fim de poucos anos, não suportou mais a contradição entre as suas aulas de Economia do Desenvolvimento e a extrema pobreza envolvente, bem visível na aldeia de Jobra, perto da sua universidade, com gente tão pobre, apesar de tão laboriosa. O Professor Yunus durante bastante tempo acompanhou, estudou a vida daquela aldeia e procurava soluções para a situação. Analisou, especialmente um conjunto de 42 mulheres que não conseguiam mais que uns cêntimos por dia, a produzirem bancos de bambu. Constatou que o agiota que lhes emprestava dinheiro para comprarem o bambu lhes exigia que lhe entregassem o produto a um preço baixíssimo, que ele estipulava, para o comercializar depois. Yunus resolveu este caso com um empréstimo (não um esmola): emprestou, do seu próprio bolso, 27 dólares e, com este pequeno empréstimo, as mulheres “libertaram-se” do agiota, continuaram o seu pequenino negócio e pagaram a dívida a pouco e pouco. Yunus, com pequenos empréstimos, para negócios variados, de que foi muitas vezes fiador, procurando vencer a relutância dos bancos (emprestar dinheiro a pobres, a quem ninguém “dá crédito”?!…), criou e desenvolveu um sistema de microcrédito, desde meados dos anos 70. Em 1983, conseguiu institucionalizar legalmente em termos de Banco o microcrédito: esse Banco chama-se Banco Grameen (Banco Aldeia). O Professor Yunus veio a ser conhecido como “o banqueiro dos pobres” (que é, aliás, o título de um livro publicado em 1997, com Alan Jolis). O microcrédito desenvolveu-se, não só no Bangladesh, como se difundiu por variadíssimos países em todo o mundo. Em Portugal, desde 1998, a Associação Nacional para o Direito ao Crédito tem um papel destacado nesse processo. O potencial de erradicação da pobreza e de factor de paz que o microcrédito evidenciou levou a que fosse atribuído em 2006 o Prémio Nobel da Paz ao Professor Muhammad Yunus e ao Banco Grameen. Mostro esta foto para acentuar que o Nobel da Paz foi também para o Banco Grameen, cuja Administração é aqui representada por estas senhoras. 2.2 Ora, do microcrédito, Yunus passou ao negócio social. Ele explica essa evolução no seu penúltimo livro Criar Um Mundo Sem Pobreza - O Negócio Social e o Futuro do Capitalismo (ed. DIFEL, 2008). Como fazer um “negócio social” é desenvolvido no seu 2 último livro (de 2010) Building Social Business: The New Kind of Capitalism That Serves Humanity’s Most Pressing Needs (já há tradução brasileira). A variedade de problemas a que o Banco Grameen tinha que responder com apoio de crédito, fez com que viesse a desempenhar o papel de “viveiro de sementes para o empreendedorismo” (como diz Yunus). Hoje, a “família Grameen” (ou o Grupo Grameen) são 27 organizações, quase todas empresas. O Banco Grameen não é propriamente um “negociozito”: o crédito concedido atinge os 8 mil milhões de euros e o Banco tem agências em 95% das aldeias do país. As 27 organizações da “Família Grameen” têm uma grande variedade de actividades correspondente à diversidade de problemas sociais a resolver. Vão desde o apoio à promoção do microcrédito em vários países e do apoio à concessão de créditos superiores aos “normais” de microcrédito (pois estes limitam-se a pequenos montantes entre 60 a 200 euros) a programas de viveiros de peixe e de criação de gado – “melhorando o modo de vida rural” (como é intitulada a secção, com exemplos desse tipo, no livro Criar Um Mundo Sem Pobreza). Ou ainda desde telecomunicações – “ligando cada aldeia ao resto do mundo” – com a Grameen Telecom e Grameen Phone, as quais, tendo associadas a TeleNor (Noruega) e uma empresa japonesa e outra americana, tinham, em 2007, mais de 16 milhões de assinantes - até a “energias renováveis para o Bangladesh rural” (pois 70% da população não está ligada à rede de electricidade), procurando instalar painéis solares em todo o país, sendo já hoje a empresa Shakti um dos grandes fornecedores do mercado dessa tecnologia à escala mundial. Dadas as enormes insuficiências do sistema de saúde no Bangladesh, do Grupo Grameen faz parte uma empresa, com mais de 30 clínicas, que disponibiliza seguros de saúde a preços baixos para pobres e um pouco mais altos para outros. Desde 2006, outra empresa do Grupo investe em Hospitais de Oftalmologia, havendo já um com capacidade para 10.000 operações a cataratas. Em 2007, começou a funcionar uma “joint venture” do Grameen com a multinacional francesa Danone, com vista a melhorar a alimentação e crescimento de crianças pobres, através de yogurtes localmente produzidos e dieteticamente enriquecidos. Aliás, o livro atrás citado começa com a história de como nasceu este “negócio social”. O que há de comum entre empresas tão diferentes é o objectivo partilhado por todas: “melhorar a vida das pessoas do Bangladesh, especialmente a vida dos pobres” (Criar Um Mundo Sem Pobreza, p. 120). Mas além deste objectivo social – “melhorar a vida…” -, outro aspecto comum é serem empresas, com sustentabilidade financeira. E, a partir daí, chegamos a uma “definição” (não no sentido estrito do termo), expressa aqui através de frases que cito, quer textualmente quer aproximadamente, tendo como fonte principal o livro agora mesmo mais uma vez referido: 3 - “Um negócio social é uma empresa que é movida por uma causa e não pelo lucro…não é uma instituição de caridade…”(op. cit. p.46). - Num negócio social, os investidores podem recuperar gradualmente todo o dinheiro investido, mas não podem ter dividendos. Os investidores não procuram nenhum ganho pessoal. Negócio social é, como diz Yunus “um negócio sem prejuízos nem dividendos”, mas em que o lucro é reinvestido na empresa. “Uma vez recuperado o investimento inicial, caberá a cada um dos investidores decidir o que fazer com esse capital. Poderão reinvesti-lo na mesma empresa, noutro negócio social ou num NML (negocio de maximização de lucro) ou ainda utilizar esse mesmo dinheiro para objectivos pessoais.” - A finalidade do investimento é alcançar um ou mais objectivos sociais, através da actividade da empresa. Mas “como negócio” (“in a business way”): isto é, com produtos, serviços, clientes, mercados, despesas, receitas, com preços e remunerações. E deve ser sustentável, de forma a poder continuar prosseguindo os seus objectivos. - A empresa tem de cobrir todos os custos e ter lucro e, ao mesmo tempo, atingir o objectivo social, tal como cuidados de saúde, serviços financeiros para os pobres, melhorar a nutrição de crianças, abastecimento de água potável, introdução de energia renovável, etc. Com efeito, a sustentabilidade da empresa é indicador de estar a ser gerida “como um negócio”. Mas a medida do sucesso do “negócio social” é o impacto que ele tem sobre a vida das pessoas. Segundo Yunus, o capitalismo tem acentuado apenas a dimensão “egoista” como se fosse a única dimensão do ser humano que motiva o fazer negócio, que orienta a economia. O ser humano é multidimensional e é, nessa perspectiva, que o “apelo ao lado altruísta” inspira o negócio social. Mas isto exige uma atitude radical que resista à visão dominante, segundo a qual fazer negócio só faz sentido pela procura e obtenção de ganho pessoal. Por isso, Muhammad Yunus insiste em que “negócio social tem que ver com prescindir totalmente (“making complete sacrifice…”) da retribuição financeira vinda do negócio. Tem que ver com o desligar-se totalmente do velho enquadramento. Não se trata de acomodar novos objectivos dentro do enquadramento existente” (in Social Business, http://www.muhammadyunus.org/Social-Business/social-business/ YunusCentre.org 2009) A última frase também é coerente com a crítica, por ele feita, a algumas iniciativas de “Responsabilidade Social de Empresa” que pretenderiam apresentar-se como “negócio social” Há exemplos de “negócio social” em Portugal? Há que dizer que não há, ainda, em Portugal “negócios sociais”, que correspondam ao sentido estrito da expressão, atrás referido. Há, porém, muitas organizações e iniciativas com propósitos sociais, e recentemente o tema do “empreendedorismo social” tem estado muito em foco. Nomeadamente, em 2008, foi criado o “Instituto de Empreendedorismo Social” (organização sem fins lucrativos), cujo Conselho Académico Consultivo integra professores do ISCTE-IUL, Universidade CatólicaPorto, INSEAD – Fontainebleau, França. Este Instituto tem desenvolvido no concelho 4 de Cascais e também no distrito de Vila Real (7 municípios) iniciativas que procuram estimular a criação de negócios sociais. 2.3 E a “Economia de Comunhão”? O “apelo ao lado altruísta” (Yunus) que leva ao investimento em “negócio social” é uma expressão dos valores altruístas. Para nós, cristãos, a caridade (que tem a sua fonte em Deus que é Amor) é o significado mais profundo desses valores. A Economia de Comunhão é um projecto que Chiara Lubich (criadora do Movimento dos Focolares, em 1943 em Itália) lançou em São Paulo em 1991, perante o esmagador escândalo e contradição representado pelas inúmeras miseráveis favelas com tanta gente excluida da vida da rica cidade de São Paulo. Os proprietários cristãos das empresas que voluntariamente aderem ao projecto, decidem dedicar toda a vida empresarial à cultura de comunhão e pôr em comum os lucros da empresa, segundo três finalidades de igual importância: - ajudar as pessoas que estão em dificuldade, criando novos postos de trabalho, através de projectos de desenvolvimento, começando com os que partilham o espírito do projecto; - difundir “a cultura do dar” e da reciprocidade, sem a qual é impossível realizar uma Economia de Comunhão; - desenvolver a empresa, que deve manter-se eficiente ao mesmo tempo que aberta à gratuitidade. O que há aqui de novidade?: - a Economia de Comunhão (EdC) nasce de uma espiritualidade de comunhão vivida na vida económica e “civil”; - procura conjugar eficiência e solidariedade; - dá origem a “pólos produtivos” como lugares industriais que procuram ser uma espécie de laboratórios vivos onde se pratique uma cultura que vá no sentido de transformar os comportamentos económicos; - propõe a reciprocidade e a proximidade como caminho para combater a pobreza. Há já, nomeadamente em Itália, teses sobre o tema e outra actividade académica com vista a melhor compreender “o segredo” de empresas que conseguem ser competitivas 5 em mercados globalizados ao mesmo tempo que vivem a actividade económica como um lugar de relações autenticamente humanas. “É este um novo caminho?...Estas empresas são excepções ou esta cultura económica pode tornar-se a regra num mercado global que tem que tornar-se solidário se quiser sobreviver?” Este site http://www.movimentodeifocolari.com/it/peco.html e o site português http://focolares.org.pt/edc/sobre-a-economia-de-comunhao?tmpl=component&print são a base desta apresentação da “economia de comunhão”, Luigino Bruni, professor de economia da Universidade de Milão – Bicocca e do Movimento dos Focolares refere como categorias teóricas relativas ao conteúdo desta economia: reciprocidade, gratuitidade, fraternidade, bens relacionais. As relações de reciprocidade são precisamente o oposto do individualismo que impregna ou formata quase toda a nossa civilização/economia. E, claro, as relações vividas como fraternas mesmo em organizações empresariais contrastam com a perspectiva dominante das empresas como definidas (e geridas) apenas como organizações competitivas. No mundo, as empresas de “economia de comunhão” são mais de 800, com destaque para a Itália e Brasil. Em Portugal, foi inaugurado em 2010, na freguesia de Abrigada – Alenquer, um “pólo industrial” com 3 das 15 empresas de “economia de comunhão” existentes no país: uma empresa de consultoria, uma empresa de reciclagem de plásticos 6 e cartão, um centro de reabilitação que recebe material doado e tem serviços de fisioterapia e outras valências de saúde a preços acessíveis. Este tipo de empresas contribui para o que se poderia chamar “economia do dom”. Segundo a encíclica “Caridade na Verdade” (36), “ O grande desafio…- resultante das práticas do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira – é mostrar, ao nível tanto de pensamento como de comportamento, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio da gratuitidade e a lógica do dom como expressão de fraternidade devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica.”. 3 Algumas questões 3.1 Que estatuto/função para o capital? Apenas o de “propriedade” dos meios de “produção” (no sentido amplo de bens e serviços)? Na encíclica “Laborem Exercens” (14), no ponto sobre “Trabalho e Propriedade” João Paulo II diz que “continua a ser inaceitável a posição do capitalismo “rígido” que defende o direito exclusivo da propriedade privada dos meios de produção, como “dogma” intocável na vida económica. O princípio do respeito do trabalho exige que tal direito seja submetido a uma revisão construtiva, tanto em teoria como na prática”. Pois bem, tal revisão, em minha opinião, já não decorre apenas do “respeito do trabalho”. As consequências do funcionamento dominante do sistema financeiro sobre a vida socioeconómica e mesmo sociocultural e civilizacional (ao nível de difusão/proclamação e prática dos valores) são de tal dimensão que os cidadãos (e não apenas os sindicatos, o trabalho/labour no sentido económico e político anglosaxónico) têm que questionar se a função do capital é ser apenas dinheiro que tem dono – dominantemente individual – e que é dono: pois quase sempre, esse “possuído” torna-se “possuído”, dominador, ditando as regras da política e do quotidiano. 7 3.2 A existência de verdadeiros “negócios sociais” e de empresas de “economia de comunhão” faz parte de um caminho em direcção a um novo “paradigma” (maneira diferente de colocar os problemas económicos e de contribuir para a sua resolução)? E, se sim, a que ritmo e de que formas se faz esse caminho? Não fará parte do “paradigma” passar da multiplicação do capital com fins de acumulação apropriável como ganho pessoal à aplicação sustentável em “objectivos sociais”? Por outras palavras mais simples ou simplistas: passar de “o meu dinheiro é para fazer mais dinheiro para mim” a “o meu dinheiro é para fazer o bem, para fazer desenvolvimento humano”. Como é que isto nos interpela em termos de “democratização da economia”? 3.3 “Negócio social”, “Economia de Comunhão”, Economia Social face ao capitalismo: alternativa? contraponto? complemento? “almofada” social? 8