A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] A FLOR E O CARCARÁ “Carcará Lá no sertão É um bicho que avoa que nem avião É um pássaro malvado Tem o bico volteado que nem gavião...” — trecho da canção Carcará composição: João do Vale/José Cândido Ana? Eu, uma ex-gorda, esquisita, só queria saber hoje, quem matou a Ouvi o canto do Carcará. Arrepiei. “Os burrego novinho num pode andá Ele puxa o umbigo inté mata Carcará Pega, mata e come Carcará...” — trecho da canção Carcará composição: João do Vale/José Cândido — Ana, minha fia, já tardou e cê ainda tá assentada aí tristonha, amuada... Qué cume macaxeira com leite de vaca e farinha? Ou intão é coisa de sal, um toucinho naquela farofa que fiz? A menina queria nada não, no dialeto local: “agradecida mãe Maria!”, mas na voz dela saiu muito mais que isso. — Quero morrê é de fome. Dito isso abaixou a cabeça e só ouviu o suplício da mãe. — Diga isso não minha fia, agradeça a Deus pela comida boa que teu pai põe na mesa, ela é santa, é boa, é farta. Pensa no sertanejo. 104 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] Pensa nos seus amigos de culégio, que ocê cunheceu hoje, que passam fome. — Ela é boa, santa e farta. E me engorda. Preferia eu passar fome e ser magra. Preferia eu morrê. Nhá Maria escutou o barulho do vôo do Carcará. Ele voava naquele sertão seco e as vistas da menina amarelaram, mas amarelo que as roupas sertanejas e ela comeu. Foi o primeiro dia de aula de Ana naquela região, junto a ela chegaram Pedro e Luís. — Tá com fome minino? Tá calado a tarde toda. Se for fome vai continuar assim. Tem jeito não. Corta a cana. O menino com olhos de cobra criada olhou pro pai e perguntou: — Por que cê passô carvão ni mim? — Cala a boca minino! Cunversa mole e besta, qué empretejar ainda mais o oi? O pai percebeu a raiva do filho. E descontou na cana. Mas não cortou ela na raiz. No meio do sertão, em baixo da sombra quente, estava Luisinho da mãe. Chutava a poeira. Mas com uma leveza diferente que chegou a cair de cara no chão. Estava sujo, coberto de pó. “Isso num é de Luisinho, meu fio.” — Quê cê cumeu e num gostou? — Ainda num desceu, mainha. — Cói flô pra mãe. sabe. — Tem flô nesse sertão não, até parece que a sinhora num 105 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] A mãe dele enxergava bem. E enxergou o que devia enxergar. Pegou o filho sentou no colo e disse. — Tem flô sim, e mainha vai buscar. Umas sensíveis iguazinho ocê. Tem di toda cor. — Acho que não, o Carcará deve ter arrancado ou esmagado. O Carcará fez barulho. Naquele dia os Carcarás tinham ido à escola. Sim, eles estudam, e por vezes até tiram nota boa. Não são bons alunos por isso. Mas vão à escola. A professora sabia que teria três novos alunos na sala. Mas no sertão eles não eram novidade. Já existiam há muito. disse: Para saber de quem se tratava corretamente, ela já chegou e — Temos alunos novos na sala. Por favor, tratem com a mesma educação de sempre. Dona Rosa era boa, e não era surda nem cega como pode parecer. — Pra ajudar a conhecer melhor vocês, eu vou ver seus nomes na chamada e quando eu falá-los vocês se levantam. — concluiu Dona Rosa. Mas já estavam os nomes dos três na lousa verde, escrita em giz. E eles levantaram. Mas assim se viam no pedaço quebrado de espelho daquela sala de aula de terra? — Gorda. — a menina levantou-se. — Nêgo. — o menino levantou-se. — Veadinho. — o menino levantou-se. 106 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] O sinal tocou e um carcará cantou. Era a merenda. Os alunos merendavam menos Luís e Pedro. O lanche deles já tinha dono. “Carcará pega mata e come.” — Dizem que sou a mais bela da escola. Eu e minha família somos bastante respeitadas aqui na região, conquistamos isso de um jeito bem especial. Então acredito que você também me respeitará. A Carcará disse isso e olhou para cada dobrinha de Ana com olhos de ave de rapina, assim era, poxa vida! E com os mesmos olhos viu a matula dela. Bateu as asas nela. Caiu no chão a comida. E ela terminou dizendo. — É meu remédio para você. menina. Não, aquilo era um pouco de veneno. Começaram a envenenar a Meses quentes passaram, um dia espinho de cacto, outro dia seca, outro dia veneno, em três doses bem medidas para três crianças. Realmente parecia terem arrancado todas as flores. Mas quem? Alguns disseram ver flores dias depois, pois... Ana morreu. Quem matou a Ana? Irônico isso, ela tem nome flor. É Rosa. A mãe de Luís procura flor. Elas só precisam se encontrar. No caso de Luis nem um banho de flores brancas como receitava a curandeira, vó de Pedro, adiantava mais. Valei-me São Cosme e Damião! 107 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] O menino pegou o facão que deveria ser instrumento de Pedro. Colocou na Capanga e partiu antes do galo cantar. Era caderno, facão, lápis e livro, e chão vermelho, e raiva, e sangue nos olhos. E sensibilidade. Mas ave se mata é com espingarda. O Carcará pousou. Pedro se calou, abaixou a cabeça, era negro e se negava. Olhou em volta de si. Arrepiou. No balanço sertanejo daquele tempo, além das pragas, das secas, da fome, tinha ainda uma morte, um mudo e alguém que queria matar Carcará. Dona Rosa chegou à sala, os Carcarás sacudiram as penas. Ela percebeu, tinha pena nela. Luís esperou a professora pegar o pano para apagar o quadro, esperou ela virar e não esperou sua mãe. Foi matar Carcará. Mas Carcará mata é com espingarda. E isso ele não tinha. — Fio, mainha foi procurar flô. Ela encontrou Dona Rosa. — Dexe esse facão de lado minino. Machuca, corta, dói. O facão caiu e levantou a poeira do chão. A poeira levantou. A mãe de Luís havia encontrado uma flor para cada um. Dona Rosa fazia questão de entregar uma para cada, inclusive para Ana. Ia demorar um tempo para ela entregar, mas apesar da seca do sertão, do pó que por vezes subia, a mãe de Luis fazia questão de estar com água do lado. Não ia deixar as flores morrerem. Poucos resquícios de 108 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 Seção Verbare, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 104-9, jan./jun. 2011 Autor: Khal Rens Cândido | e-mail: [email protected] água que nas mãos daquela mãe ficavam fartos diante daquela tristeza sertaneja. Carcará se mata com flor e água. Eu, uma ex-gorda, esquisita, que vim lá do sertão, eu que matei aquela Ana. Os venenos eram dolorosos e eu quis encurtar sua dor. Sou outra. E a flor que ganhei de minha professora, hoje a deixo aqui em cima dessa mesa, para que o Carcará não cante mais. 109