“Bons e sacudidos” - o carnaval negro e seus impasses em Maceió. Bruno César Cavalcanti* A Luiz Sávio de Almeida, passaporte diplomático do país da Cocanha. A história cultural da presença negra em Maceió e Alagoas vem recebendo novas abordagens, desde aqueles pioneiros estudos de Alfredo Brandão e, depois dele, Abelardo Duarte; este último, seu principal estudioso. Atualmente, muitos aspectos apenas aventados por esses autores têm sido retomados e melhor enfrentados pela sofisticação da pesquisa histórica e etnográfica. Dentre os temas que ressurgem com força estão os da religiosidade afro-brasileira e da cultura lúdica presente nos folguedos e nas festas dos ciclos populares, particularmente no carnaval. Trabalhos recentes como os de Luiz Sávio de Almeida, Ulisses Neves Rafael, Priscila Mello e Janecléia Pereira Rogério são uma prova desse novo quadro temático e analítico em torno das populações e formas culturais negroalagoanas1. Esse interesse renovado e crítico dos estudos afro-brasileiros traz a substituição do modelo analítico outrora vigente, e que atribuía muito facilmente um caráter “essencialista” às formas culturais negro-brasileiras, observando-as então de um ponto de vista evolutivo, medidas por suas maior ou menor manutenção de antigas referências de África nas populações negras do Brasil, como no uso que se fazia correntemente do termo “sobrevivências”, encontrado com freqüência em Arthur Ramos ou Abelardo Duarte. Tratase, portanto, de abandonar os argumentos baseados seja na raça seja numa presumível “mentalidade” e de considerar as dinâmicas internas da vida social em que se deu a inserção do escravo, e depois do ex-escravo, negro no país e em Alagoas. Bem entendido, o retorno às fontes de referências histórica e cultural da presença africana no Brasil é condição necessária para a compreensão de dinamismos contemporâneos dessas formas socioculturais2. Este artigo busca colaborar com esse esforço de produção de conhecimentos, abordando alguns aspectos da participação negra no carnaval da velha Maceió, problematizando o caminho distinto que logrou o contexto maceioense se pensado comparativamente como o que se tornariam as manifestações festivas negras nas cidades de Salvador e do Recife. Por que, em Maceió, a participação negra na festa do carnaval redundou em malogro em suas possibilidades de atuar enquanto dispositivo da afirmação étnica? Para efeito de tornar mais delimitada a busca de resposta a essa questão, tomaremos como referência central o caso da trajetória descendente dos maracatus na cidade. Culturas negras e resistência branca no pós-escravidão É sabido o interesse despertado nos poderes político e religioso dominantes no Brasil colonial e imperial em torno das organizações católicas exclusivas dos homens pretos e pardos, com seus cortejos e autos de coroação de reis e rainhas de Angola e do Congo. Tratava-se de concessões às manifestações lúdico-festivas para escravos e homens livres, com o fito de aperfeiçoar o controle social sob o regime da escravidão. As ditas cerimônias de posse de reis e rainhas, através da escolha de um representante, escravo ou forro, para governar seus semelhantes, mantendo a ordem pública em sua área de influência, tinham “além do caráter lúdico, religioso e étnico, uma função administrativa e mesmo repressiva” (Araújo, 1996:34). Após a abolição, tais cerimônias perderam sua razão de ser, e foram abandonadas, mas, em todo caso, representaram algo relevante para a fixação de características e formas afro-brasileiras de arte e cultura nacionais, colaborando para a disseminação de ritmos, cantos e danças africanas no cotidiano festivo do nosso país3. Diferentes manifestações contemporâneas das festividades públicas negro-brasileiras, como os afoxés, os maracatus e congadas são derivações dos antigos Autos do período escravista. Nos casos do Recife e de Salvador tivemos mesmo a incorporação definitiva dessas na festa do carnaval popular e de rua4. Em Maceió, e apesar de não encontrarmos referências históricas às coroações de reis do Congo, os maracatus abundavam no início do século passado, como veremos. E talvez ainda tenhamos que aguardar o desenvolvimento de futuras pesquisas históricas para melhor avaliar as razões do seu futuro desaparecimento, após os acontecimentos traumáticos envolvendo as comunidades religiosas negras da cidade, e mesmo do Estado, por ocasião da deposição do então governador de Alagoas Euclides Malta, em 1912. O fato é que teríamos o desaparecimento progressivo dos antigos maracatus na festa do carnaval da cidade, e nem mesmo outras formas derivadas de participação do que poderíamos denominar de o carnaval negro maceioense. Por ‘carnaval negro’ estamos entendendo a presença afirmativa do elemento étnico na aparição festiva dos grupos sociais afro-descendentes. A pós-escravidão no Brasil, enquanto fase de reorganização sociopolítica na recente República e de redirecionamento no desenvolvimento das relações de trabalho sob o capitalismo, colocou problemas e soluções específicas em cada trato do Atlântico negro; não sendo diferente no Nordeste e em Alagoas. Em Maceió, cidade imperial e de lenta urbanização se comparada às supracitadas cidades coloniais do Recife e Salvador, a inserção tardia dos negros no espaço urbano tornou desfavorável a aceitação das manifestações mais africanizadas dessas populações, sobretudo a vida religiosa e lúdicofestiva, ou pelo menos a sua legitimação cultural nesses termos de exibição do pertencimento étnico. É neste contexto histórico que, por aqui, foram insuficientes, ou até mesmo inexistentes, as mediações sociais que possibilitariam a expansão da negritude nas comemorações momescas. Os agentes mediadores são indivíduos, grupos, empresas e mesmo eventos que possibilitam que uma dada referência cultural passe a desfrutar de aceitação social ampliada, promovendo o que se poderia chamar de circularidade cultural do patrimônio afro-brasileiro, a exemplo do que sucedera com o samba carioca, erigido à condição de símbolo nacional5. Descrevendo o desenvolvimento do processo histórico soteropolitano dos festejos carnavalescos, os estudiosos apontaram as relações sociais que possibilitaram a participação negra no carnaval “civilizado” que sucedeu ao antigo entrudo português, tido como “bárbaro” e, portanto, “atrasado” para representar o novo momento do país e os anseios de civilidade e elegância que se queria para os eventos festivos públicos. Um desses mecanismos foi a participação negra nesse modelo europeizado, recém introduzido por segmentos renovados da elite social (cf. Fry et al., 1988), e que consistia nos desfiles com garbo e luxo, a partir dos quais, com o tempo, a influência negra se faria sentir, sobretudo no ritmo e nas danças; mesmo que tenha ocorrido também a aculturação negra pela festa branca (cf. Miguez, 1996; Fry et al., op. cit). O final do século XIX, assim, passou a ser interpretado como um primeiro capítulo do que se denominaria posteriormente de a “africanização” do carnaval baiano (cf. Miguez, 1996; Risério, 1981). No Recife, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, através das irmandades e da instituição dos reinados do Congo, os agrupamentos negros tomaram parte ativa na vida citadina, estando também ligados aos divertimentos do entrudo. Com o arrefecimento desses dispositivos coloniais de cooptação dos africanos e descendentes, os préstitos negros do maracatu deram a continuidade dessa presença étnica no espaço público das festas carnavalescas da cidade (cf. Araújo, op. cit). Evidentemente, em ambos os casos, a existência de manifestações coletivas e públicas negras não significou a fusão harmoniosa de classes e culturas, posto que a demarcação, inclusive territorial, dessas aparições era bem clara tanto em Salvador quanto no Recife e, de resto, em todo o país, mas fora sob essa possibilidade real e concreta dos cortejos e folganças negras que, posteriormente, ocorreria a sabida absorção das referencialidades afro-brasileiras na construção de representações locais dos respectivos modelos de carnaval. Foi num quadro histórico de fusão e repulsão que o diálogo das culturas dominante e subalterna se fez presente, e o carnaval era uma dessas formas ambivalentes, prestando-se seja à aproximação quanto ao distanciamento, conforme o movimento um tanto pendular de demarcação e de obscurantismo de fronteiras simbólicas (cf. Fry et al., 1988). No caso maceioense, a festa de momo continuaria formatando uma modalidade de carnaval que não integraria as formas marcadamente negras de aparição festiva. Ao contrário, aquilo que suportaria o peso dos anos era oriundo do mais evidente hibridismo cultural; e isto significava uma aproximação acentuada do universo do catolicismo, como nos exemplos do quilombo, do reisado e, destacadamente, do guerreiro, folguedos muito presentes na área alagoana de influência do sistema de plantation da economia da canade-açúcar. A longa permanência no campo dos grandes contingentes de negros alagoanos, entre outros, foi fator decisivo na pouca relevância aqui assumida pelos cortejos negros, com seus sambas e batuques no espaço urbano. E quando este expediente passou a ocorrer não obteve a tolerância das elites, e muito menos a sua necessária mediação. Mesmo os chamados folguedos populares, abundantes por ocasião do carnaval recifense, ficariam fora dos festejos de momo, salvo as iniciativas pioneiras e solitárias do Major Bonifácio Silveira, nosso maior mediador6. O Maracatu no carnaval de Maceió “Um magote de negros, bons e sacudidos”, foi o que escreveu o colunista Folião folia, ao se referir à presença negra no carnaval alagoano de 1901: “a folia não é só aqui, é também pelo interior, lá das bandas de Atalaia veio um cujo especialmente dizer me (sic) que um magote de negros, bons e sacudidos, se arregimentou sob o nome de Cavalheiro do Prazer, e vão pintar sinal de carapuça, na florescente cidade”7. O tom da coluna era, então, francamente favorável à festança do grupo de negros, muito embora a matéria não esclareça o estilo cultural da brincadeira carnavalesca do grupo de homens citados. E mesmo que houvesse certa obrigatoriedade de definir por uma sinalização racial esses alagoanos, o colunista escreveu, em tom simpático: “Estimo muito que os pobres matutos tenham isto para distrahir (sic) as amarguras da crise, a baixa do assucar etc., provando finalmente do que é bom”8. Em Maceió, a presença de corporações negras carnavalescas aparece na imprensa no mesmo ano, e ainda sem a condenação acelerada que se seguiria ainda naquela década. Na edição de 8 de fevereiro de 1901 o mesmo colunista Folião folia escreve: “Da Levada me consta que vem um bando de clubs: Club pretinho, Club, Club cor de canela, Club rouxinho, Club caboclo e muitas outras novidades atrahentes (sic) como têm saído daquelas bandas em outras épocas. Aquilo é que é gente: ao meio-dia ganha a rua e não há sol, nem poeira, nem suor, que a empate”9 No ano seguinte, a mesma coluna registra a saída de maracatus no Centro da cidade, informando que as ruas centrais estiveram “cheias de povo” (A Tribuna, 13.02.1902). Parece mesmo que a presença de representantes do carnaval negro servia às imitações jocosas do clima carnavalesco, existindo inclusive, no bairro de Jaraguá, um maracatu formado por bancos trajados à moda africana, num maracatu caricato. Esta característica apareceria em folguedos como as “Negras da Costa”, mas também em outras organizações carnavalescas conhecidas na cidade. Assim é que no dia 28 do mesmo mês de fevereiro daquele ano, a supracitada coluna informava que “Domingo, o Spada d´Água saiu a rua convertido em africanos, de ambos os sexos, dando sortes a valer e visitando amigos”. O jornal informava nesta edição a presença de maracatus e de paródias, como a acima descrita, não ficando claro o contexto dessa aparição; mas, possivelmente, tratavase de uma expressão carnavalizada do preconceito às manifestações negras no espaço urbano. Não esqueçamos, como também demonstrou Ulisses Neves Rafael (2004) em seu importante estudo, que foram algumas das agremiações carnavalescas as provedoras dos braços civis armados que redundaram na criação de ligas moralizadoras, respaldadas, inclusive, pelo poder policial constituído, todas atuantes no decorrer da década de 19001910 e além, como foi o caso dos blocos Gladiantes e Morcegos, este último enfileirando vários membros da futura “Liga dos Republicanos Combatentes em Homenagem a Miguel Omena”, criada no final de 1911. Miguel Omena, por sua vez, era membro dos Gladiantes, um outro bloco formado em torno de indivíduos componentes de organizações do mesmo tipo e propósitos10. Essas organizações, formadas por iniciativas de grupos sociais civis, tinham o apoio do poder constituído em auxiliar na manutenção da ordem pública, inclusive com recebimento de armamento. Amparavam-se genericamente nas indicações moralizadoras expressas em editais oficiais, recorrentes no período momesco, publicados na imprensa nos dias antecedentes às festividades11. Não sabemos até onde chegaram as mesmas em suas ações para com outros segmentos da sociedade, mas no tocante aos afrodescendentes atuaram na repressão aos cultos, cujo ápice ocorreu às vésperas do carnaval de 1912, como bem destacou Ulisses Neves Rafael (op. cit). Talvez um divisor de águas dessas ações tenha sido o ano de 1903, ao menos se considerarmos o tom da cobertura jornalística: “Correram friamente os festejos do carnaval no Domingo, o que se explica pela crise que a todos assoberba. As ruas da cidade estiveram regorgitando de povo para apreciar os poucos clubs que passavam. A r. Boa Vista foi a que esteve mais alegre, especialmente no trecho da Maison, onde houve muito conffetis. Apesar do desusado movimento popular, nenhum fato perturbou a ordem social (...) A tarde as ruas estiveram regorgitando de mascaras, se bem que de pouco espírito. Os clubs sahiram também às rua: vimos as caboclinhas, os ciganos, os morcegos, os maroins e muitos outros. Não faltaram os inevitáveis maracatus” (grifo nosso)12. Um outro jornal, o Gutemberg, que era o mais importante veículo da imprensa alagoana à época (cf. Brandão, 1961), na edição de 26 de fevereiro deste ano de 1903, também relataria em tom pejorativo a presença de maracatus no ‘carnaval de rua’ de Maceió, fazendo crescer o volume de aparições condenatórias, ou, no mínimo, depreciativas, sobre esta modalidade de comemoração na festa pública; reforçando a idéia de certa orquestração de rechaço à referida manifestação cultural. A verdade é que o epicentro do incômodo seria a vida religiosa dos africanos e seus descendentes, a prova inconteste aos olhos repressores do atraso e da insistência das populações pobres da cidade em cultuar forças temíveis e antagônicas com a moral e os costumes que se queriam “civilizados”; daí porque os maracatus seriam inviabilizados em pouco tempo, dado os nexos entre os mesmos e a vida religiosa; o que se concretizaria no “pós-quebra” de 1912. Nina Rodrigues, para o contexto de Salvador, chamara de “candomblé de rua” a manifestação desses grupos organizados de negros com seus desfiles à base de música, canto e dança de matriz africana, os afoxés, nos finais do século XIX (Rodrigues, 1932). Os maracatus, como outros clubes carnavalescos também, só desfilavam mediante a obtenção de licença das autoridades constituídas. Todo o problema maior na efêmera existência dos maracatus maceioenses seria sua associação com a vida religiosa, como dito, pois não raro chegaram mesmo a ser tomados com sendo a própria religião. E a isso responderiam os cronistas de plantão com sarcasmo: “Bico Doce é mestra de Maracatu, solemnidade (sic) que se effectua quando há necessidade de falar com o pae, que é o nome da divindade acceita pela gyria boçal della e de seus freqüentadores. A Casa estava cheia de crentes e No ano de 1905, o Gutemberg não deixa dúvidas sobre o crescimento da reprovação aos cortejos das “nações africanas”: “Este ano temos a registrar a sensaboria dos indefectíveis e detestáveis maracatus”14. Para o carnaval do ano de 1907 encontramos a seguinte referência, de notória ambivalência, mas demonstrando que a crescente violência discursiva, que acabaria na invasão e destruição concreta dos Xangôs de Maceió em 1912, seria obra de atores sociais específicos, a quem o ódio às coisas negras foi mobilizado com fins políticopartidários, e não resultante de ampla rejeição popular aos folguedos negros: “A gente que os navios negreiros, exercitando terrível faina, arrancou outrora de Loanda, Benguela e outras localidades do litoral de mares nunca dantes navegados, está agora sendo canonisada por seus descendentes n’um club denominado colônia africana. Não deixa de ser interessante e curioso o tal club, não só pelas cantigas no dialeto boçal dos primitivos escravos, como pela exquicitice das dansas quase macabras.Verdade é que a Colônia Africana não só arrasta a sua passagem a arraia miúda, como entretêm bastante às pessoas mais ou menos educadas. É o caso: cada qual enterra o seu pae (pai vôbis) como póde (...)”15 O mesmo jornal afirmara ainda naquela edição de 1907 que esse tipo de manifestação negro-festiva não era estranho ao gosto das populações pobres da cidade: “A Colônia Africana bastante numerosa, deu sorte. Trazia um séqüito immenso (...) muito agradou ao Zé Povo (...) vimos também o maracatu do Pharol e seu homônimo de Jaraguá, iguaes em tudo e no todo”. Em Maceió o recorte operado pelo modelo de clubes sociais carnavalescos, muitas vezes agremiações “de rua” e de bailes em sede própria, quase que exclusivamente distanciados de outras formas brincantes (e mesmo que envolvessem muitos mestres de folguedos em seus comandos), não permitiria que o carnaval se desenvolvesse na direção da diversidade includente. Não apenas o maracatu sairia da festa como também o folclore alagoano nele não se estabeleceria. Alguns folguedos presentes no carnaval recifense, a propósito, têm antigos laços com Alagoas ou Maceió. Uma das razões para este hiato em nosso modelo local de carnaval popular se encontra no vazio que se estabeleceu nos anos posteriores às grandes manifestações de rejeição cultural da cultura popular negro-brasileira. No caso maceioense, antes do folclore no seu conjunto, foram as formações afro-dançantes que se tornaram inviabilizadas16. Dois anos depois, em 1909, A Tribuna voltaria a lembrar os riscos de excesso e atentado à moral: “Alguns espíritos obsecados costumam tirar partido dessas fraquezas para o abuso, mettendo a ridículo coisas sérias. Como se a orgia torpe e o deboche dos apaixonados pelas obscenidades e as allusões repelentes (...)Felizmente, o nosso povo ordeiro e sensato faz do carnaval o que elle é simplesmente, e em clubs, em cordões, nos bailes e nas ruas, brinca sem exageros diverte sem offensa à moral”17. Na verdade, seria apenas necessário que alguns lançassem a suspeita da imoralidade e do atentado aos costumes para que uma determinada modalidade carnavalesca se tornasse vulnerável às ações coibitivas, dependendo, evidentemente, de quem partisse a voz condenatória, ou seja, do seu poder em ser ouvido e influenciar as autoridades constituídas. E parece que fora deste modo, e sob tais pretextos, que os representantes civis das ligas moralizadoras chegaram à invasão das casas de cultos em 1912. Pouco antes que ocorresse tal iniciativa, contudo, ainda era possível a participação negra nas festanças carnavalescas. Assim, naquele mesmo ano de 1909: “O povo transitava offegante, apinhando-se em pontos diversos: no café Colombo, na rua Boa Vista, no Bloco Alagoano, na praça Tavares Bastos e, sobretudo, na praça dos Martyrios, era sempre crescente o ajuntamento popular (...) Caboclinhos, vassourinhas, morcegos, ciscadores, operários, jacutinguenses, bahianas, filhos da montanha, caras duras, jardineiras, maroins, africanas, a mocidade, veteranos, Costa Rica, Cabindas (...) a praça dos martyrios, o pittoresco logradouro preferido pelo nosso publico para rendez-vous elegante, esteve esplendido”18. De todas as formas carnavalescas, os maracatus, juntamente com os chamados “máscaras” (estes apenas durante a noite) eram alvos mais vulneráveis à repressão e/ou desaprovação; e por razões sabidas. Os mascarados pela possibilidade de cometerem crimes e abusos sob o anonimato da fantasia, e os maracatus pelo que já afirmara o nosso maior folclorista: “o Maracatu é, de todos os folguedos populares do Nordeste o de mais nítida e flagrante origem ou influência africana”19. Ora, dentre as referências culturais africanas a vida religiosa era, sem dúvida, aquela mais lastimada pela “opinião pública” em formação naqueles anos pós-escravatura. Segundo ainda Théo Brandão o maracatu era um auto natalino que passara a apresentar-se no carnaval, lembrando este autor que sua sobrevida em Alagoas só foi possível sob outras denominações e composições culturais híbridas. Dentre estas, algumas desaparecidas desde os primeiros anos do século XX, como a Dança do Buá, e outras mantidas apenas como “folguedo” no interior do Estado, como Cambindas, Sambas—de-Matuto, Negras da Costa e Taiêiras. Na verdade, nessa passagem de nomenclatura também estava contida a perda da referência explícita com a vida religiosa dos terreiros de Xangô, como acontece com os chamados maracatus de “nação” do Recife20. A razão do combate às formas negras dos cortejos dançantes era a presumida característica anti-civilizatória das mesmas, música e dança que evocavam o que (música, canto e dança) em termos de gestos corporais vistos como obscenos, ou de desregrada e patológica euforia de vozes e gritos, num afrontamento à polidez e civilidade dos préstitos familiares e grupais da elite citadina. O consenso em torno da superação desses modelos de festa atingia desde conservadores monarquistas até entusiastas do progresso e da civilização republicana. Assim é que muitos abolicionistas, por exemplo, rejeitavam a cultura herdada dos escravos, mesmo que, por outro lado, condenassem o regime do trabalho servil. Somente dentro deste quadro histórico de compreensão poderemos melhor entender os conflitos culturais que marcaram o período inicial da vida republicana21. O “quebra” de 1912 e o “passo” quebrado O cenário paradigmático de nossa argumentação é a repressão desencadeada contra as formas negro-africanas locais, cujo ápice foi a violenta ação coletiva sobre os terreiros de Xangô, fenômeno mais conhecido como “operação Xangô”, e mis correntemente, como o “quebra de 1912”e que, a nosso ver, mas também na opinião de Rafael (2004) e Brandão (1961), teve definitivas conseqüências quanto à manifestação cultural negro-alagoana, visto a determinação e violência levada a efeito pela denominada Liga dos Republicanos Combatentes22. O combate aos africanismos não era uma exclusividade dos segmentos contrariados com a nova ordem econômica pós-abolição, mas, bem entendido, envolvia conceitos e valores de superação de mazelas julgadas como herança cultural indesejada na formação social brasileira. Para muitos, portanto, era uma espécie de obrigação civilizatória expurgar os sambas e batuques dos africanos e seus descendentes do espaço público, e até mesmo do espaço privado dos terreiros. Evidentemente as ações eram desencadeadas segundo objetivos políticos bem precisos, como a queda do Governador de Alagoas por ocasião da “operação Xangô”, mas, muitas vezes, para seus atores e defensores essas ações coletivas de moralização davam a exemplaridade dos propósitos ordeiros da cultura urbana pública, inclusive a festiva, possibilitando a todos a chance de alcançarem níveis de civilidade e bom tom, quer na vida cotidiana quer, em decorrência, nos momentos de lazer coletivo, onde a sociedade deveria se reconhecer num processo de aproximação estética e espiritual com o mundo julgado mais adiantado em “civilização” ou modernidade. O carnaval deveria ser tomado pelas autoridades como uma vitrine ou um medidor do grau de progresso dos costumes nacionais. Portanto, na nova ordem republicana, a idéia de modernização do Brasil estendida à cultura e aos momentos de lazer, como no “carnaval da civilização”, representava uma forma de a boa sociedade vir às ruas, numa demonstração cívica de convivência tida como saudável e instrutiva. A festa não deveria representar uma oportunidade de desregramento das “boas maneiras”, muito ao contrário. Os desfiles luxuosos das primeiras sociedades carnavalescas do início do século XX seriam, então, espetáculos de descontração e alegria, mas, também, uma espécie de pedagogia massiva de orientação civilizadora, uma vez que possibilitariam às elites transporem o espaço seleto dos bals masqués e ganharem as ruas em cortejos e temas à moda européia, num esforço disciplinador do modelo cultural que se desejava para o país, e que era inspirado no mundo cada vez mais conhecido pelos grupos socialmente dominantes, viajantes ou consumidores dos bens requintados do Velho Mundo. Assim é que por toda a parte cresciam essas agremiações nascidas em torno da elite social, ou nela inspiradas, ao tempo em que se desenvolvia o comércio de adereços e produtos importados para a ocasião do carnaval, com acesso mais ou menos permitido àqueles menos favorecidos na escala social, através da exemplaridade dessas iniciativas, que expressavam valores e comportamentos vistos como provas da capacidade evolutiva dos costumes locais, tendo a Europa como centro irradiador. Nesse caso, não apenas as coisas negras foram abandonadas, mas também os folguedos populares não almejaram aqui o sucesso e prestígio que gozam até hoje no carnaval do Recife. Mas nem sempre fora assim, na capital pernambucana. Uma demonstração clara das dificuldades das elites em aceitar os elementos mais africanos da cultura popular urbana é dado por ocasião da organização do I Congresso Afro-brasileiro, ocorrido em 1934, e para o qual colaboraram líderes religiosos do Xangô, artistas e intelectuais recifenses como Cícero Dias, Ulisses Pernambucano e Gilberto Freyre. As críticas e represálias à iniciativa foram sentidas de pronto, notadamente por parte de outros setores da elite social que, curiosamente, fundariam a Federação Carnavalesca Pernambucana, em 1938, entre os quais o escritor Mário Melo (cf. Araújo, 1996). Mesmo que a dita federação carnavalesca reconhecesse nos maracatus a legitimidade da cultura popular de Pernambuco, e uma autêntica manifestação do carnaval do Recife, não estava interessada em legitimar o conjunto mais amplo de vínculos destes com a vida religiosa dos Xangôs da cidade, e assim observaram com imensa desconfiança a organização daquele congresso que reunia o mundo acadêmico em torno de lideranças religiosas dos cultos afrobrasileiros. Na cidade de Salvador, também naquela década de 1930, semelhante iniciativa agregaria expressivo número de intelectuais e artistas em torno do mundo dos Candomblés, à época da realização do II Congresso Afro-brasileiro, o que favoreceria o desenvolvimento de manifestações tanto religiosas quanto estéticas do patrimônio cultural negro-baiano, criando e legitimando a autoridade citadina de muitos personagens deste universo, seja pelo prestígio social de babalorixás e ialorixás seja pela criação de organizações negras de luta por direitos civis. Em Maceió jamais ocorrera semelhante iniciativa, e, assim, não presenciamos a mesma ordem de mediação social capaz de trazer à luz o universo Afro-alagoano. O “quebra” dos terreiros inviabilizou em definitivo esse movimento de expansão da cidadania dos negros, representando o ápice de uma intolerância que vinha paulatinamente sendo construída, inclusive na imprensa, como vimos, desde o início do século XX. A própria criação da liga dos republicanos combatentes apenas no final do ano de 1911 atesta o quanto acirrado tinha se tornado o movimento de rejeição às manifestações religiosas dos negros, às quais se ligava diretamente os maracatus. O contexto político por volta de 1911, então, favoreceu a ação da referida Liga logo nos meses subseqüentes, nas vésperas do carnaval de 1912. Do ponto de vista do modelo de festa carnavalesca, esta ação representou o início de uma longa era de silêncio dos sambas e batuques negros da cidade; que acompanhou a manifestação religiosa do “xangô rezado baixo”. Enquanto a mediação social dos formadores de opinião e autoridades civis garantia o espaço de continuidade da cultura negra lúdico-festiva do samba carioca, do afoxé baiano ou do maracatu pernambucano, em Alagoas apenas uma forte hibridização do chamado “folclore negro” possibilitaria a manifestação implícita das formas negro-alagoanas. O carnaval de Maceió, ao menos aquele brincado na área central da cidade, se desenvolveu inicialmente sob a forma do corso e dos desfiles das agremiações baseadas no requinte à européia, embalado em marchas, foxtrot e polcas. E quando veio a influência maciça do frevo pernambucano na segunda metade da década de 1920, de andamento mais acelerado e executado em maior volume, apareceriam blocos populares os mais diversos naquele confusional sonoro que dispensaria parte de certo requinte estilístico, mas, contudo, sem deixar espaço ideológico e/ou estético para o modelo dos desfiles dos antigos batuques. Também outras formas folclóricas de se brincar o carnaval, e que conquistaram lugar social em meio ao carnaval do Recife, não encontrariam a mesma sorte em Maceió, salvo as iniciativas pessoais do Major Bonifácio Silveira. Após o seu afastamento do carnaval em meados dos anos 1930, os folguedos populares pouco ou quase nada se desenvolveriam no ambiente carnavalesco da cidade. Noutras palavras, a restrição aos negros se tornara parte de uma restrição ampliada aos pobres, no que tange às escolhas das formas de participação na festa de momo de Maceió de outrora23. Contudo, certa demanda reprimida, por assim dizer, em termos rítmicos parece ter ocorrido, e mesmo tentado vir à luz através de outras manifestações da cultura popular. Assim é que Théo Brandão notou a intromissão de sonoridades típicas do maracatu nalguns grupos de guerreiros, o folguedo mais festejado em Alagoas após seu advento, ocorrido sintomaticamente nos mesmos anos da chegada do frevo pernambucano. Também o que se manteria sob a forma de “Sambas-de-Matuto”, segundo o mesmo autor, reproduziria a rítmica e sonoridade assemelhadas com os antigos e já então quase desaparecidos maracatus. Mas essas modalidades eram absolutamente discretas para derivarem num movimento qualquer de retomada étnica. Mesmo assim, notícias sobre a presença de maracatus no carnaval de Maceió apareceriam na imprensa, mesmo que muito esporadicamente, até os finais dos anos 1950; mas já não sendo possível afirmar se representava a permanência de “nações” vinculadas à vida religiosa. Muito provavelmente, ou eram meras caricaturas, paródias “brancas” do costume negro ou, por outro lado, uma aparição popular sob a forma de folguedo desvinculado de sua matriz étnica. Seria através das escolas de samba, novidade da era do rádio aqui aportada pelo sucesso que passaram a desfrutar a partir do Rio de Janeiro, o veículo de manifestação festiva da cultura negro-brasileira, mas já então sem os incômodos e impasses das formas locais24. Maceió passou a ter um modelo de festa do frevo cuja forma de dança acabou sendo chamada de “passo quebrado”, denominação utilizada pelo Major Bonifácio e que Théo Brandão anotou como uma recriação local, talvez por influência rítmica do coco alagoano, da dança do “passo” do frevo do Recife. Nada mais que isso25. Refletindo sobre os antigos carnavais, Luiz Sávio de Almeida chamou a atenção para a imensa referência de uma personagem construída a partir de uma letra de frevo: a Nega Jujú. E este autor insiste sobre a importância e popularidade deste frevo que louva a negra sururuzeira, mas, em todo caso, uma negra imaginária, um ser que no plano discursivo substituiria a antiga factualidade das manifestações grupais existentes nos maracatus e batuques maceioenses, ligados aos cultos afro-brasileiros (cf. Almeida, 1996b). Evidentemente os ditos costumes negros permaneciam vivos na memória das populações pobres e adeptas da crença no Xangô, e mesmo na memória social mais ampliada. Os acontecimentos do “quebra de 1912” também. O colunista carnavalesco João Mascarado, de A Notícia, na edição de 15 de fevereiro de 1933, ao compor versos em torno de personalidades locais brincantes do carnaval lembrava um desses babalorixás perseguidos nos acontecimentos violentos de 1912, o Chico Foguinho: O Fortunato é de fato / Na união e no pinho / Fez fantasia a rigor / Modelo Chico Foguinho”. Mas nada além que discursos vagos poderiam aludir às tradições negras e religiosas. Ora, se os ritmos estavam como que silenciados no espaço fechado das Casas de Xangô, que dirá no espaço aberto das ruas? Por outro lado, se essas antigas manifestações fortemente ligadas aos afro-brasileiros, onde o maracatu representava sua forma mais eloqüente, existiram na cidade por que os mediadores sociais, que tornaram possível a participação popular nos festejos inicialmente elitistas do carnaval de rua de Maceió, não possibilitaram as condições para o retorno dessas tradições proibidas naqueles anos mais duros da repressão desencadeada pelas ligas civis moralistas da primeira década? Não nos parece Certamente, será preciso tempo, das culturas dos pensemos nos motivos ainda possível oferecer nada além de respostas provisórias. considerar o lugar social das culturas negras, mas, ao mesmo pobres; o que não raro redunda na mesma coisa. Basta que pelos quais até hoje as elites locais não amam essas manifestações folclóricas, independentemente de vincularmos ou não ao ambiente afrobrasileiro. Portanto, talvez esteja nesta rejeição de fundo ao popular aquela que explica, ao menos para os dias de hoje, a ausência do carnaval negro, ainda. O Major Bonifácio, por exemplo, que tanto incentivou, assistiu e manteve os grupos populares de folguedos os mais diversos, e que foi pelo menos desde o ano 1903, e até meados da década de 1930, uma espécie de organizador “oficial” do carnaval de rua da capital, trazendo para o Centro da cidade esses grupos de suas margens, não parece ter desejado a promoção do retorno negro. Devemos ao Major, entre outras iniciativas, a organização para o carnaval de folguedos tipicamente natalinos, e até juninos, num movimento que parecia completar a diversidade adotada no modelo do carnaval de rua da vizinha e influente cidade do Recife. Já no caso dos ritmos negros, e em especial o maracatu, a atuação de Bonifácio Silveira não é de todo sabida, sendo um aspecto ainda não suficientemente esclarecido sobre a biografia do velho Major. Mas talvez tenhamos indícios não exatamente favoráveis à simpatia deste mediador social com o chamado mundo afro. Oriundo do Recife, comerciante, abolicionista, tendo sido Intendente Municipal no final do século XIX em Maceió, amante das coisas populares, influente junto à classe política, e, inclusive, com destacado papel enquanto dirigente da segurança pública da cidade nos anos imediatamente posteriores à “operação Xangô”, o Major muito reunia das melhores condições para criar o devido espaço à retomada dos préstitos negros tão vigorosos anteriormente. Talvez resida aí uma pista importante para o avanço da pesquisa sobre o carnaval negro de Maceió. O que, por ora, cabe afirmar é que o alinhamento político progressista do Major Bonifácio Silveira quanto à condenação da escravatura não nos autoriza a estender seu espírito liberal até a própria liberdade de expressão cultural dos ex-escravos e seus descendentes. Porque era uma cultura geral, pública e homologada pelos valores da sociedade “civilizada” que, parece, almejava o Major; e não a livre escolha de um modelo de carnaval que assim definisse a população em sua dinâmica própria26. Enquanto mediação social, a importância inconteste da atuação do Major, e de outros atores sociais menos expressivos em se tratando de festejos populares, necessita ser ainda melhor qualificada. No atual estágio dos estudos sobre o nosso passado festivo, podemos afirmar que se tratou de uma mediação social altamente seletiva. As personalidades mais destacadas do nosso carnaval de rua são dois negros, queridos e famosos no passado. O Moleque Namorador, passista campeão de frevo, e um outro campeoníssimo dos concursos de clubes carnavalescos, o Ras Gonguila, criador e líder do Cavaleiro dos Montes. Mas em nada suas reputações remetem ao pertencimento étnico. Já outras ilustres representantes dos folguedos negro-alagoanos, como Joana Guajurú, para o passado recente, ou Mestra Hilda no presente, não contam como personalidades do carnaval de Alagoas, mas apenas do seu folclore. Moleque Namorador e Ras Gonguila fizeram fama no mundo da festa à base exclusiva do frevo pernambucano, e não porque fizessem um carnaval afro-negro. Claro que a dança do passo origina-se de tal matriz afro-brasileira, mas conta pouco no quadro da nossa discussão específica. O fato é que nada sabemos sobre a existência de grandes nomes do carnaval de Maceió que, afirmando a etnia, tenha resistido ao contexto opressor dos anos duros. As formas negras de carnaval no país, ao menos no que concerne à eleição de valores étnicos de auto-afirmação e promoção da matriz africana, são notadamente condensadas nos afoxés e maracatus. Nem mesmo o samba faz, necessariamente, o elogio desse pertencimento, e muito menos o frevo pernambucano. O que esta última modalidade de festa carnavalesca possibilitou, no Recife, foi a co-participação dos cortejos negros do maracatu. Portanto, a transferência do modelo recifense para a cidade de Maceió não se fez sem um recorte interessado. Em termos de “carnaval negro” estamos, assim, mais empobrecidos? Muito provavelmente, mas isso depende sempre do ângulo da análise. O mesmo caberia perguntar, também, sobre a localização das formas afro-alagoanas: o carnaval negro deve ser perseguido em suas manifestações de afirmação étnica ou, ao contrário, deveríamos ser capazes de reconhecer-lhe as hibridações do nosso folclore e, como tal, trazê-los de volta para o rito coletivo das massas carnavalescas? Se respondermos positivamente a essa última indagação, deveremos reconsiderar as fronteiras do reconhecimento da negritude e de seu papel nessa festa de massa. Provavelmente, e ao menos desse modo, a discussão em torno da questão étnica se poria em outros termos, trazendo, quiçá, de volta os velhos maracatus pelo encorajamento provocado por um tardio, mas ainda possível reconhecimento de sua beleza e importância na história cultural dos afro-alagoanos. E, quem sabe, entenderíamos melhor o alcance que pode estar contido na sugestão tanto do Major quanto de Théo Brandão de que por aqui se faz um “passo” mais “quebrado”. Notas * Professor de Antropologia e pesquisador no Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC) do Instituto de Ciências Sociais, Universidade Federal de Alagoas. 1 De Luiz Sávio de Almeida há vários trabalhos que tocam no universo cultural acima descrito, mas pode-se consultar seus “Carnaval e carnavais” (Almeida, 1996a), “A Nega Jujú e o Moleque Namorador — uma notícia ultra preliminar” (Almeida, 1996b), e ainda sua História Escrita no Chão (Almeida, 1997). Ulisses Neves Rafael nos brindou com sua importante Tese de doutoramento em Antropologia “Xangô rezado Baixo — um estudo da perseguição aos terreiros de Alagoas em 1912” (Rafael, 2004). Priscila Leal Mello prepara Tese de doutoramento em História abordando o tema dos muçulmanos em Alagoas, e em particular os chamados “malês” em Penedo; e Janecléia Pereira Rogério prepara Dissertação de mestrado em Antropologia sobre as Casas de Cultos Afro-brasileiros de Maceió. Tanto as pesquisas envolvendo a religiosidade negra quanto o estudo sobre o “quebra de 1912”, objeto da citada tese de Ulisses, foram pioneiramente tratados por Abelardo Duarte. 2 A perspectiva evolucionista foi mais rapidamente superada que a concepção essencialista da identidade e culturas negras nas populações afro-brasileiras, que aparecem em Ramos (1935), Bastide (1974) e Duarte (1975). A história das interpretações sociológicas e antropológicas deste tema no Brasil é abundante em exemplos deste tipo de perspectiva, implicando, inclusive, no modo como se analisou, se reinterpretou, e se construiu várias Áfricas , conforme relata Sansone (2002). A própria idéia de herança cultural africana tem sido revisitada, demonstrando o quanto essa implicou em construções ideológicas forjadas no contexto da escravidão. Para uma apreciação sobre o modo como foram classificadas nas Américas nações e culturas africanas ver, entre outros, Mintz e Price (2003), Soares (2004) e Gilroy (2001). 3 Segundo informa Théo Brandão, em “Reinado dos Congos e origem dos Maracatus” (Brandão, 1982b), esses Autos de coroação de reis do Congo tinham uma estrutura herdada das reinagens européias, e, citando Arthur Ramos, lembra o autor que, ao menos no Congo, já se encontrava cerimônia similar de coroação simbólica de reis, sob o patrocínio do poder religioso católico. 4 Para uma melhor compreensão do contexto do Recife, ver ”Festas Públicas e Carnavais — o negro e a cultura popular em Pernambuco” (Araújo, 1996), Festas: Máscaras do Tempo — entrudo, mascarada e frevo no Carnaval do Recife (Araújo, 1997) e Carnaval — cortejos e improvisos (Amorim e Benjamin, 2002). Para Salvador, “A Cor da Festa — cooptação & resistência: espaços de construção da cidadania negra no Carnaval baiano” (Miguez, 1996), “Bahia com H — uma leitura da cultura baiana” (Risério,1988), Carnaval Ijexá (Risério, 1981), “Negros e Brancos no Carnaval da Velha República” (Fry et al., 1988) e A Trama dos Tambores — a música afro-pop de Salvador (Guerreiro, 2000). 5 Sobre o tema da mediação social aplicada ao contexto de desenvolvimento do samba carioca ver O mistério do samba (Vianna, 1995). 6 Abordaremos esta questão da mediação social do Major Bonifácio no final do artigo. 7 A Tribuna, 9 de fevereiro de 1901, p. 2. Agradeço a Ulisses Neves Rafael a gentileza de disponibilizar sua pesquisa neste jornal, entre os anos de 1900-1909. 8 Idem. 9 A Tribuna, 8 de fevereiro de 1901, p.2. 10 Sobre esse aspecto, ver o terceiro capítulo da Tese de Ulisses Neves Rafael, “Os Negros na Vida social de Alagoas” (Rafael, 2004). 11 Exemplo disso aparece em edital publicado na edição de 22 de fevereiro de 1903 de A Tribuna. 12 A Tribuna,24 de fevereiro de 1903, p.1. segundo Ulisses Neves Rafael, o ano de 1903 aparece como emblemático de certo redirecionamento ideológico quanto à presença dos maracatus por tratar-se de ano préeleitoral, tendo o irmão do então Governador Euclides malta como um dos candidatos e, como se sabe, seria sobre Euclides que recairiam, durante o seu segundo mandato, a ira dos combatentes que invadiram os terreiros de Xangô de Maceió. Segundo argumenta este autor, apenas a desaprovação aos Xangôs não seria, em si mesma, uma motivação para o episódio da destruição dos terreiros, mas a trama política dos adversários de Euclides malta que, deste modo, valeram-se do ataque à religião para provocar a desestabilização do Governo estadual. 13 Matéria intitulada “Feitiçaria e feiticeiros”, publicada em A Tribuna de 26 de abril de 1904, p. 1, reproduzida por Ulisses Neves Rafael (Rafael, 2004: 199). 15 A Tribuna de 10 de fevereiro de 1907, p. 1. Por economia de espaço e tempo não desenvolveremos aqui uma discussão sobre o significado de “Xangô”, ao mesmo tempo um orixá e a denominação corriqueira das mais diferenciadas casas de cultos afro-brasileiros de Alagoas. Para uma apreciação das variedades de linhas e nações envolvendo os Xangôs de Maceió, ver o artigo de Janecléia Pereira Rogério nesta coletânea. 16 Evidentemente existiram, e existem, formas minoritárias da participação dos folguedos no carnaval local, mas, e é isso que interessa aqui destacar, jamais lograram ocupar lugar relevante e reconhecido no modelo hegemônico e massivo da festa carnavalesca. Sobre os folguedos carnavalescos alagoanos ver Rocha (1978). 17 A Tribuna, de 18 de fevereiro de 1909. 18 A Tribuna de21 de fevereiro de 1909. 19 Théo Brandão, “Reinado dos Congos e origem dosMaracatus” (Brandão, 1982b: 97). 20 Théo Brandão, “Autos Folclóricos de Alagoas” (Brandão, 1982a:77 e segs.). 21 Sobre a visão “civilizada” de intelectuais negros, em se tratando de carnaval, ver Leonardo Affonso de Miranda Pereira, O Carnaval das Letras (Pereira, 1994). 22 Para melhor compreender este importante episódio ver “A Coleção perseverança — bosquejo histórico” (Duarte, 1974) e, especialmente, “Xangô Rezado Baixo : um estudo da perseguição aos terreiros de Alagoas em 1912 (Rafael, 2004). 23 A propósito, Katarina Real em seu O Folclore no Carnaval do Recife (Real,1990) refere-se à existência na folia pernambucana de um grupo de Reisado oriundo de Maceió, e, como sabemos, foi a acolhida de diferentes folguedos populares que transformou o carnaval do Recife numa festa além do frevo, seu ritmo e dança majoritários. 24 Redutos do samba seriam antigas áreas de presença negro-africana e de populações afro-descendentes de Maceió, como o tradicional bairro do Poço, a Ponta da Terra e, posteriormente, o Jacintinho. 25 A propósito, em 28 de janeiro de 1928 o jornal Gazeta de Notícias se refere a um grupo carnavalesco denominado “Samba de Matutos”, localizando-o no bairro do Poço, mas informando serem os mesmos brincantes ao ritmo do frevo. Também em 1932 o jornal A Notícia, em sua edição de 6 de fevereiro, dava conta de “um grupo de rapazes” de Jaraguá desfilando numa agremiação denominada Cambindas de Jaraguá, sem, contudo, esclarecer se tratava-se de um agrupamento relacionado à vida dos terreiros de Xangô, mas levando a crer que não. 26 Sobre o papel de mediador do Major Bonifácio Silveira nos antigos carnavais maceioenses ainda não se tem informações suficientemente tratadas num estudo com esse propósito; aparecendo alguns aspectos desta questão em Cavalcanti (2006). Para uma discussão mais ampla acerca o lugar das representações sociais sobre a “herança negra” na memória social em Alagoas, e sua conseqüência para a circularidade cultural do afro-alagoano ver Cavalcanti (2005). Referências Bibliográficas ALMEIDA, Luiz Sávio de. “Carnaval e Carnavais”, in ALMEIDA, L. Sávio de; CABRAL, Otávio e ARAÚJO, Zezito. O Negro e a Construção do Carnaval no Nordeste. 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