IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental
X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental
PROPOSTA DE TRABALHO – MESA REDONDA
Clínica e amor à Verdade
Rafael Ribeiro Mansur Barbosa1, Raquel Coelho Briggs de Albuquerque2 e Renato
Diniz Silveira3
Uma paciente se interna em um hospital psiquiátrico com o objetivo, dela
própria, de se submeter à eletroconvulsoterapia (ECT), a fim de se livrar de vozes que a
atormentam com insultos de desgraçada e vagabunda. Segundo ela, este foi o único tipo
de terapia que a trouxe benefício em sua última crise, quatro anos atrás. Ao não ver uma
clara indicação de ECT, de acordo com os protocolos atuais, o psiquiatra insiste em
outras formas de terapia, oferecendo opções de fármacos e interesse por sua história.
Mas permanece surdo à colocação da paciente de que nada daquilo iria funcionar. Após
quinze dias de internação ela relata importante melhora e recebe alta. Em dez dias é
reinternada e diz, a um novo psiquiatra, que nunca havia melhorado, apenas percebeu
que o médico anterior não lhe daria o “choque” e desta forma não queria mais ficar ali
internada.
Pretende-se destacar deste fragmento de caso clínico os perigos do amor à
verdade na prática clínica. Quando trabalhamos com uma verdade a priori, ficamos
surdos a escutar a novidade que cada pessoa pode nos trazer com sua construção
sintomática, e fechados às inúmeras soluções que podem ser “inventadas” por cada
sujeito.
1
Graduado em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2007). Residente do terceiro ano de
psiquiatria pelo Instituto Raul Soares – IRS, hospital de ensino vinculado à Fundação Hospitalar do
Estado de Minas Gerais – FHEMIG.
2
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Pós-graduanda em
Dependência Química pela Universidade Federal de São João del Rey. Mestranda em Psicanálise pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Experiência profissional na área de saúde mental.
3
Médico Psiquiatra, Doutor em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008) e Mestre em
Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000). Atualmente é Professor de
Psicopatologia, Nosologia e Elaboração de Monografia da Pontifícia Universidade Católica, e Preceptor
da Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares/FHEMIG, onde leciona Psicopatologia e Psiquiatria
Social. Tem larga experiência docente na área de Medicina com ênfase em Psicopatologia e Saúde
Mental, atuando principalmente nas seguintes áreas: psiquiatria, psicologia, psicopatologia, educação
médica, saúde mental, capacitação em saúde mental, oficinas terapêuticas, cidadania do doente mental,
políticas públicas e reforma psiquiátrica. Coordena há dez anos o Programa Extensionista em Saúde
Mental da PUCMINAS em parceria com a Prefeitura Municipal de Betim/MG.
A partir do exposto, propõe-se abordar os efeitos do amor à verdade na prática
clínica a partir de uma reflexão sobre a aula ministrada por Michel Foucault (197374/2006) no Colége de France em doze de dezembro de 1973, durante seu curso sobre o
poder psiquiátrico.
Nela Foucault (1973-74/2006) investiga qual a prática médica que habita o
espaço disciplinar do asilo e em que sentido este espaço deve exercer uma função
terapêutica. Para tanto, retoma exemplos do que ele chamou de cura clássica – a que se
dava ainda nos séculos XVII-XVIII e no início do século XIX.
Um dos exemplos é a cura, realizada por Pinel, de um doente que se imaginava
perseguido pelos revolucionários, prestes a ser levado aos tribunais e ameaçado da pena
de morte. Para isto, organiza em torno dele um pseudoprocesso, com pseudojuizes, no
qual foi absolvido.
Do mesmo modo, Mason Cox, no início do século XIX, dá o seguinte exemplo
de cura: um homem, que havia alterado sua saúde mental por uma paixão demasiada
pelo comércio, passou a acreditar na idéia de que sofria de todo o tipo de doenças, sendo
a “sarna disseminada” a principal delas, e pela qual mais se sentia ameaçado. A técnica
clássica para curá-lo foi fazer a referida sarna eclodir e tratá-la como tal.
O que esses procedimentos supõem e põe em prática é que o núcleo da loucura é
uma falsa crença, uma ilusão ou um erro e que basta reduzir este erro para que a doença
desapareça. Só que o erro de um louco não é um erro qualquer. O louco é aquele cujo
erro não pode ser reduzido pela demonstração. Para ele a demonstração não produz
verdade.
Neste sentido, o meio pelo qual se consegue a redução do erro não deve passar
pela demonstração. Para tanto, o psiquiatra atua de forma a manipular a realidade para
que o erro se torne verdade e, no momento em que o juízo falso tem um conteúdo real
na realidade, ele se torna um juízo verdadeiro e a loucura deixa de ser loucura, já que o
erro deixa de ser um erro.
Foucault aponta aqui uma diferença fundamental deste psiquiatra em relação ao
professor e ao cientista. Se estes, enquanto detentores da verdade, manipulam o juízo, a
proposição, o pensamento; o psiquiatra manipula a realidade, ele “irrealiza” a realidade
para agir sobre o juízo errôneo que é sustentado pelo doente. Pode-se dizer, portanto,
que este psiquiatra funciona olhando para a verdade que o louco diz.
O psiquiatra, tal como funcionará no espaço da disciplina asilar é bem diferente
deste. Ele vai ser o senhor da realidade, aquele que deve dar ao real uma força coativa,
pelo qual o real vai poder se apoderar da loucura e fazê-la desaparecer enquanto tal.
Portanto, a partir do século XIX, o psiquiatra é um fator de intensificação do real, e é o
agente de um “sobrepoder” do real, ao passo que, na época clássica, de um certo modo,
ele era o agente de um poder de “irrealização” da realidade.
A psiquiatria do século XIX não elide a questão da verdade, mas, em vez de
colocar a questão da verdade da loucura no cerne da cura e no meio de suas relações
com o louco, no choque entre médico e paciente, o poder psiquiátrico a coloca somente
no interior dele próprio. Ele a faz sua de saída, desta forma, o problema da verdade é
resolvido de uma vez por todas pela psiquiatria a partir do momento em que ela se deu
como estatuto de uma prática médica e como fundamento ser a aplicação de uma ciência
psiquiátrica.
É como esse suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em nome
de uma verdade - detida de uma vez por todas por esse poder sob o nome de ciência
médica, de psiquiatria - que Foucault (1973-74/2006) define então o Poder Psiquiátrico.
Neste momento, Foucault (1973-74/2006) nos chama atenção para a curiosa
relação entre a prática psiquiátrica e os discursos de verdade. A prática psiquiátrica dá
lugar a dois tipos de discursos científicos. Um discurso clínico ou classificatório,
nosológico, que trata de descrever a loucura como doença, constituindo uma espécie de
analagon da verdade médica. E um outro discurso que se desenvolve a partir do saber
anatomopatológico, que coloca a questão do substrato ou dos correlativos orgânicos da
loucura, sua etiologia e relação com as lesões neurológicas. Este tem a função de servir
de garantia materialista à prática psiquiátrica.
O paradoxo para o qual Foucault (1973-74/2006) nos chama atenção é que,
apesar de se apoiar nestes dois discursos, nada do saber constituído por eles era levado
em conta na maneira pela qual os loucos eram manipulados no asilo. Eles funcionavam
apenas como espécies de garantias de verdade de uma prática psiquiátrica que queria
que a verdade lhe fosse dada de uma vez por todas e não fosse mais questionada.
È no momento que a psiquiatria torna-se a grande senhora da verdade, que ela
trás para si um grande entrave. A simulação foi o problema histórico da psiquiatria do
século XIX. Não se trata aqui da não-loucura simulando a loucura, mas de uma
simulação interna à loucura. A maneira como a loucura simula a loucura, a histeria
simula a histeria, a maneira como um sintoma verdadeiro é uma certa forma de mentir e
como um falso sintoma é uma forma de estar verdadeiramente doente que constitui para
a psiquiatria do século XIX um problema insolúvel, o limite e, finalmente, o fracasso a
partir do qual se produziria certas ressurgências.
Foucault trata o problema da simulação como o processo pelo qual os loucos
responderam ao poder psiquiátrico que se recusava a colocar a questão da verdade. A
mentira da simulação, a loucura simulando a loucura, foi o “antipoder” dos loucos em
face do poder psiquiátrico. É aí que ele localiza a importância histórica do fenômeno da
simulação e da histeria.
A partir do exposto acima Foucault (1973-74/2006) acredita que a psicanálise
pode ser interpretada como o primeiro grande recuo da psiquiatria a partir do momento
em que a questão da verdade do que se dizia no sintoma foi imposto à força, pelos
simuladores e pelas histéricas, ao poder psiquiátrico. Tal situação pôde ser ilustrada no
caso clínico apresentado, no qual a verdade do sujeito se impõe, às expensas do saber
médico.
Não se trata aqui de sugerir que se atue como nos exemplos de cura clássica
trazidos por Foucault, mas de assinalar a importância da implicação da verdade do
sujeito na condução dos casos. Conscientes da importância da prática do psiquiatra em
saúde mental, concluímos com uma proposição feita por Barreto (1999), que é a de
concebermos a psiquiatria como uma práxis sustentada por uma teoria e a antipsiquiatria
como o permanente desafio crítico que existe (ou não existe) dentro de cada psiquiatra.
Acreditamos com ele, na importância do psiquiatra, qualquer que seja seus referenciais
teóricos, abrir espaço para aquilo que será seu questionador impiedoso e imperecível.
Desta forma, ele estará advertido dos limites de suas verdades, e mais qualificado a
acolher os sujeitos que o procuram. Aponta-se então, como bem colocou Foucault, a
importância da contribuição trazida pela psicanálise para a questão da importância da
verdade do sujeito.
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. (1973-1974) O poder psiquiátrico. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 2006.
BARRETO, Francisco. Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano.
Horizonte: ed. Itatiaia, 1999.
Belo
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Saúde mental | Mental health - Laboratório de Psicopatologia