Ensinamentos a retirar do Passado Histórico das Argamassas
José Alvarez
Secil Martingança, Lda
Portugal
[email protected]
Cristina Sequeira
Secil Martingança, Lda
Portugal
[email protected]
Marta Costa
IRP, SA
Portugal
[email protected]
Resumo
Hoje, uma parte significativa das argamassas utilizadas na construção são feitas em
fábrica. Até este ponto, as argamassas atravessaram um longo caminho e os seus ligantes
foram produzidos desde tempos imemoriais em equipamentos primários.
Nesta comunicação, serão realçados alguns componentes das argamassas com um papel
importante na história do seu desenvolvimento: cal aérea, gesso, pozolanas e, mais tarde,
cal hidráulica e cimento Portland.
Daquele passado histórico foi possível recolher alguns ensinamentos, certamente úteis
para o desenvolvimento actual e futuro das argamassas, quer na Obra Nova quer em
Reabilitação.
1. AS PRIMEIRAS ARGAMASSAS
As primeiras argamassas conhecidas foram descobertas na localidade de Yftah´el, Galileia,
hoje estado de Israel, com mais de 10 000 anos de existência.
Em Eynan, Jericó, (8000 – 7000 a C.) denota-se a presença de cal e gesso nas construções
e nas cabeças de estátuas votivas modeladas. Também na mesma época, em Çatal Hüyüc,
Turquia, usou-se gesso como reboco de paredes. Mais tarde, argamassas hidráulicas foram
encontradas nas cisternas de Jerusalém, que foram construídas com mão de obra fenícia.
A fabricação da cal era familiar à maior parte dos povos da antiguidade: chineses
egípcios, etruscos, fenícios, gregos, incas e romanos. Produziam a cal gorda, utilizando-a
como ligante na consolidação das alvenarias ou na elaboração de rebocos pintados com
cores naturais e destinados, na maior parte dos casos, à pintura de frescos.
Os fornos mais antigos não eram mais do que medas (figura 1) constituídas pela pedra de
cal que se queria calcinar. Na parte superior as pedras maiores eram colocadas em
abóbada, de modo a configurar um forno que era preenchido com pedra mais pequena. Os
primeiros combustíveis eram a lenha e ramadas de árvores.
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Fig 1 - Meda (calcinação ao ar livre por camadas) [1]
Uma vez lançado o fogo, a operação terminava quando se registava um assentamento da
massa incandescente, devido à expulsão do anidrido carbónico e da água. Neste processo
havia um desaproveitamento do calor e uma desigualdade na cozedura. Os revestimentos
que utilizavam cal fabricada nestas condições, tinham o seu ponto fraco na erosão que
sofriam face às águas pluviais, dado que a carbonatação era escassa.
O apagamento da cal fazia-se com água, mas através dos tempos foram utilizados
diferentes métodos. Certamente que no início se estendiam as pedras de cal viva numa
superfície resguardada da chuva expondo-a à acção do vapor de água que era absorvido
por aquela.
Esta transformação pecava por ser demorada, (cerca de três meses), e pelo problema
inerente ao da recarbonatação parcial da cal, em contacto com a atmosfera, pelo que os
resultados eram o da produção de uma cal de fraca qualidade
CaCO3 → CO2 +CaO (1)
Anos mais tarde, estendia-se a cal no solo para ser regada. A cal com 25 a 100 % de água
era depois recoberta com areia, afim de a isolar do contacto com o ar.
Precisamente os romanos extinguiam a cal, mergulhando-a em bacias de água, (extinção
por imersão) ou deixando-a ao ar livre misturada com saibro (extinção por fusão).
No primeiro caso, a cal era imersa em água, em enormes tanques, durante muito tempo, de
modo a proporcionar uma absorção lenta e a obtenção de cristais hexagonais, formando-se
a cal apagada ou hidróxido de cálcio, ou seja, um corpo branco pulverulento, em forma de
pasta fluida e untuosa.
Esta pasta fluida e untuosa era mantida em fossas impermeabilizadas com argila, cobertas
com uma camada de areia com cerca de 30 cm de espessura.
No princípio do século, matava-se a cal junto do estaleiro usando-se um sistema em que
esta era colocada em cestos de vime, mergulhada em água durante um certo tempo, até se
produzir efervescência, altura em que o operador emergia de novo o cesto.
A cal era posteriormente colocada em caixas para continuar a absorção da água
atmosférica, acabando por se tornar em pó. Quando se tratava de pequenas quantidades, as
pedras de cal viva eram colocadas geralmente em estância de pedreiro na qual o operador
realizava uma cratera num monte de areia especialmente preparado; ao juntar-se três vezes
o volume da cal em água, obtinha-se uma pasta. Se se juntasse água em maior proporção,
obtinha-se uma leitada ou leite de cal, produto utilizado para a caiação.
Uma vez em repouso, o leite de cal dá origem a um depósito e a um líquido límpido, água
de cal, que era utilizado para consolidação de alvenarias, tijolos e pedras em degradação.
A conservação da cal viva era feita em depósitos, na qual se cobria a cal com uma pasta
de leite de cal com cerca de 20 centímetros de espessura. O hidróxido de cal tem a
propriedade de endurecer lentamente ao ar, unindo fortemente as partículas sólidas a que
se junta. Trata-se de uma reacção química de carbonatação, ou seja, o hidróxido de cálcio
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em contacto com o anidrido carbónico da atmosfera carbonata-se, formando de novo
carbonato de cálcio, produto branco. Esta reacção inicia-se cerca de vinte e quatro horas
após a amassadura da pasta e vai durar cerca de seis meses.
Ca(OH) 2 + CO2 = CaCO3 + H2O (2)
Então podemos concluir que os romanos desenvolveram a formulação e o fabrico das
argamassas melhorando a cozedura e seleccionando os componentes daquelas.
Hoje o processo de fabricação de cal utiliza matéria prima extraída da pedreira,
previamente seleccionada através de equipamento de britagem e crivagem, sendo
posteriormente transportada para o forno. No forno, elemento fundamental do esquema
fabril, a cal é elevada a uma temperatura de descarbonatação, entre os 800-900ºC,
sofrendo a reacção química (1).
De seguida, a cal é apagada, através de um hidratador, sofrendo a seguinte reacção:
CaO + H2O → Ca (OH)2 + calor (3)
A hidratação da cal viva dá origem à formação de cristais, plaquetas hexagonais
correspondentes ao hidróxido de cálcio, Ca(OH)2, as quais contém elevada porções de
água adsorvida, pelo que a cal hidratada torna-se retentora da água de amassadura na fase
inicial da cura do reboco. Os romanos, senhores de uma técnica apurada para a extinção
de cal, porque eram desconhecedores da análise química, atribuíam as propriedades
daquela, à natureza da matéria prima.
Cerca de 1250 a. C. ocorreu uma terrível erupção na actual ilha de Santorini, situada no
Mediterrâneo oriental, com a explosão da parte superior da cratera do vulcão Tera, de que
resultou uma nuvem de cinzas que cientistas calculam ter atingido 300 mil quilómetros
quadrados, nuvem essa que daria várias voltas ao mundo.
As cinzas resultantes da erupção do vulcão Tera, situado na ilha de Santorini e mais tarde
do vulcão Vesúvio, na baía de Nápoles, irão ter um papel decisivo, quando integradas na
formulação de argamassas ao tempo das civilizações clássicas grega e romana.
As cinzas, provenientes do Vesúvio, por se encontrarem na baía de Nápoles junto à
povoação de Pozzuoli, ficaram conhecidas por pozolanas.
2. O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO DAS ARGAMASSAS
NO TEMPO DE ROMA
Progressos tecnológicos evidentes surgiram com a junção de pozolanas antes do
cozimento da cal no forno, obtendo-se com este processo, argamassas mais duradoiras.
Foi ainda compreendido que a moagem de cal com argila antes de se proceder à cozedura,
estimulava a mistura obtida, concedendo-lhe melhores propriedades de resistência.
Em resumo, a prática de se modificar as argamassas de cal com a adição de materiais
contendo silicatos reactivos e aluminatos era, por consequência, do conhecimento dos
construtores romanos. Após as pesquisas arqueológicas realizadas em Roma, foi possível
concluir-se que a maioria das argamassas romanas utilizavam unicamente a cal como
ligante. Estas argamassas (ditas aéreas) endureciam apenas pela acção do anidrido
carbónico da atmosfera. A construção da grande Roma, ou seja da Roma popular, era por
isso frágil, não permitindo edifícios de grande porte. Nas obras públicas e do Império, os
romanos usaram outro tipo de argamassa, mais elaborada, em que havia junção de
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material pozolânico, o que implicava melhoria das características dos rebocos assim
produzidos. Os materiais pozolânicos combinam-se com a cal não carbonatada, hidróxido
de cálcio, para formar compostos estáveis, nomeadamente silicatos de cálcio.
As pozolanas têm um comportamento inerte na ausência da água. Todavia, quando se
introduz água numa mistura de pozolanas e cal, a cal não carbonatada (CaO) reage com a
água, formando hidróxido de cálcio. Por outro lado as pozolanas que na sua constituição
têm alumina, sílica e cálcio, reagem com o hidróxido de cálcio formando silicatos de
cálcio, os quais, devido à sua estabilidade, permitem uma maior resistência mecânica da
argamassa e uma redução da sua porosidade.
As argamassas com pozolanas permitiram construções de outro porte, dada a introdução
na arquitectura romana das abóbadas e dos arcos abobadados, feitos com a ajuda de
moldes de madeira (figura 2). Os espaços interiores dos edifícios aumentaram
grandemente, assistindo-se à construção de edifícios públicos de grande dimensão, tais
como aquedutos, arcos triunfais pontes, basílicas, banhos públicos, teatros, mercados,
templos e palácios.
Figura 2: Obras romanas. Panteão de Roma e Aqueduto de Pont-du-Gard, França
Entre os principais aditivos usados pelos arquitectos de Roma contavam-se:
• a caseína e determinadas colas naturais utilizadas para melhorar a aderência das
argamassas;
• as gorduras, como o sebo de boi e as ceras, (cera das abelhas) usadas como
repelentes da água;
• ovos, borras de azeite, produtos usados para retardar a entrada de água nos
rebocos;
• cerveja e urina (ureia) usadas como agentes introdutores de ar, e portanto
protectores dos ciclos de gelo-degelo, provocado pelas geadas.
• os romanos também utilizavam sangue de boi, que juntavam à cal, como
pigmento natural.
Ao todo, conhecem-se hoje 240 aditivos orgânicos utilizados para melhorar as
características das argamassas [2].
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Julga-se hoje, após correcções feitas às traduções realizadas do Tratado do Vitruvius, que
as argamassas romanas da alta qualidade usadas nas grandes obras dispunham na sua
constituição, além da cal apagada, de outros produtos como:
• areia vulcânica activa, também denominada harena fossicia.
• pozolana artificial, obtida a partir de barro moído (telhas), denominada em
latim por testa;
• argila caolítica calcinada a cerca de 800 graus centígrados, que em latim se
denominava carbunculus
Na prática, os romanos tinham conseguido, com a adição de aluminatos e silicatos
reactivos provenientes das pozolanas e do pó de telha, melhorar as anteriores argamassas
feitas à base de cal. No concernente a muros ou paredes, os romanos erguiam-nos à base
de pedras, ou pedras e tijolos, colocados segundo diversos tipos ou aparelhos, colados
com argamassas, as quais podiam ser formuladas de formas diferenciadas. Podemos
destacar três tipos, dos quais o último era preferencialmente usado em trabalhos
marítimos:
• Opus cementicium, composição mais generalizada das argamassas utilizadas
pelos arquitectos romanos. Era formada por cal, misturada com areia e
pozolana, ou pedaços de tijolo ou turfa.
• Coccio pisto, argamassa resultante de uma mistura de cal com pedaços de
tijolo
• Opus Signinum, uma argamassa na qual era utilizada um tipo de areia
proveniente do norte de Roma denominada por Carbunculus, (argila caolítica)
calcinada a cerca de 800 ªC. Caracterizava-se pela sua enorme dureza. Por isso
era usada preferencialmente em cisternas, salgadeiras, tanques de água e
fontes.
Com o final do Império Romano, os problemas económicos que daí resultaram vão-se
traduzir na elaboração de argamassas de pior qualidade, já que a cal, por ser o elemento
mais caro, é integrado em menor percentagem. Assim, surgem argamassas com mais areia
e argila. Esta situação prolongar-se-á pela Idade Média, sendo notório a existência de
argamassas de fraca qualidade em catedrais importantes como a de Leon, em França.
Contudo, em Andernach, entre Bona e Coblenz, na região renana da Alemanha, trabalhos
de mineração descobrem grandes extensões de turfa. Estas foram, durante o século XVII,
procuradas por holandeses, que as transportavam, uma vez moídas, para a Holanda,
conseguindo obter produtos do tipo das pozolanas para serem empregues em argamassas,
nas construções portuárias e em consolidação de diques. Estes produtos ficaram
conhecidos por Trass ou Tarras. Mais tarde, os mesmos foram importados para a GrãBretanha, constituindo-se assim como as novas pozolanas da época.
Nos séculos V,VI e VII as argamassas preparadas com cal, eram qualitativamente mais
fracas que as romanas.
No século VIII depois de Cristo, o gesso, introduzido na Europa pelos árabes, passará da
Andaluzia para Toledo, e daí invadirá a zona de Castela-a-Velha.
A invasão da Península pelos árabes vem de novo trazer importantes modificações em
matéria de argamassas, já que os árabes eram possuidores de uma elevada técnica
construtiva. A decoração dos edifícios nobres é feita com argamassas que são preparadas
preferencialmente à base de gesso, dada a presença desta matéria prima na zona
magrebiana do Norte de África.
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A cal reserva-se para determinadas utilizações, quase sempre misturada com aditivos. O
tijolo substitui a pedra nalguns locais. As argamassas de gesso, tal como as de cal,
recebem aditivos para melhoria das suas prestações.
Com os califados árabes da Península Ibérica, o gesso atravessou a barreira dos Pirinéus,
para passar a ser profusamente utilizado na Europa, por vezes, misturado com uma
espécie de cola, de modo a constituir-se num material próximo do estuque. Assim vamos
dar conta de sarcófagos merovíngios feitos com gesso modelado.
As argamassas peninsulares do século VIII denominam-se trabadillos [2] sendo
constituídas por uma percentagem de gesso e de cal viva, areia calcária e ainda, aditivos.
Entre os aditivos mais usados contam-se as gorduras de animais, ceras (ambos lípidos),
resinas como o látex da figueira e azeite.
Os trabadillos eram utilizados em argamassas para juntas, estuques e rebocos, quer para
interiores, quer para exteriores, o que significava que os árabes dominavam o processo de
hidrofugação do gesso, impedindo que os sulfatos se dissolvessem com a água.
Assim, desde a antiguidade até ao século XIX, os materiais usados na constituição das
paredes eram mais deformáveis e porosos do que actualmente, acumulando a função de
resistência com a de protecção aos agentes atmosféricos, pelo que exigiam grandes
espessuras. As paredes admitiam assim a entrada de água para o seu interior, mas também
deixavam-na sair com relativa facilidade.
3. O APARECIMENTO DOS LIGANTES HIDRÁULICOS
Foi sem dúvida a necessidade de se construir em zonas marítimas e fluviais que levou o
mundo científico a procurar aglomerantes capazes de endurecerem debaixo de água. No
século XVIII a Inglaterra era a primeira potência mundial e o seu desenvolvimento
económico passava pela circulação marítima. A necessidade de melhorar as instalações
portuárias motivou pesquisas sobre esta matéria. A investigação do fenómeno de
hidraulicidade das argamassas vinha sendo desenvolvido pelo engenheiro inglês John
Smeaton, em 1756. O seu principal problema era encontrar um cimento à prova de água
que conseguisse ganhar presa em contacto com pedras molhadas. Após uma longa série de
experiências sobre as causas de endurecimento das argamassas hidráulicas das obras
daquela época, ainda exclusivamente constituídas por cal e pozolana, em que variando a
natureza da matéria prima para calcários argilosos, afirmava que a presença de argila no
calcário proporcionava uma notável melhoria de produto, após sua calcinação. Em 1812,
Collet-Descotils, ilustre professor francês da École des Mines, de Paris, descobre que a
cozedura de calcários siliciosos provoca a dissolução da sílica dos ácidos e a sua
combinação com a cal, conferindo-lhe propriedades hidráulicas. Este fenómeno iria ser
estudado com precisão pelo engenheiro e cientista francês Vicat, (1786-1861) o qual pôde
assim compreender o mecanismo que leva ao endurecimento das cales com pozolanas e
dos cimentos, seguindo o raciocínio de Smeaton e de Collet.
Em 1826, nasce a primeira fábrica de cal hidráulica artificial na povoação francesa de
Moulineaux, perto de Paris, cozendo uma mistura proporcionada de calcário e argila.
Todavia, esta fabricação era notoriamente mais cara que a realizada a partir de calcários
margosos, pelo que o e seu êxito comercial foi limitado.
O fabrico de cal hidráulica iria ser melhorado através da utilização de fornos mais
sofisticados em que se podiam atingir temperaturas de cerca de 1000º centígrados,
calcinando a temperaturas mais elevadas e melhorando-se os níveis de hidraulicidade.
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O índice de Hidraulicidade definido por Vicat como sendo a medida da quantidade de
óxidos de ácidos presentes nas argilas (SIO2, Al2O3 e Fe2 O3) sobre a quantidade de
óxidos de ácidos presentes nos calcários (CaO e MgO).
Em 1825, Aspdin coze o seu primeiro cimento no forno construído por ele e seu filho em
Kirgate, Wakefield. Joseph e seu filho William guardam religiosamente o segredo de
fabricação do cimento patenteado, o que lhes permite serem os primeiros a instalar
fábricas de cimento no seu país. O segredo bem guardado não era mais do que um novo
processo de aquecimento dos fornos, que lhes permitia obter temperaturas mais altas e
portanto, obterem no seu processo de cozedura, uma zona de clinquerização. Em 1853,
Emile Dupon, fabricante francês de cimentos naturais, apoiado pelo químico Charles
Demarle, consegue um notável processo de homogeneização da matéria prima, moendo-a
com o auxílio de moinhos verticais e juntando uma quantidade de água de modo a fazer
uma pasta plástica. Esta pasta era transformada em briquettes, seca e levada ao forno. Os
resultados não se fizeram esperar e Dupont patenteava o produto fabricado na sua fábrica
de Boulogne-sur-Mer como um cimento hidráulico artificial análogo ao inglês. Assim,
em1853, o cimento Portland artificial que fora exclusivamente produzido em Inglaterra,
passava a ser fabricado também em França.
O mercado de cal hidráulica iria confrontar-se com o mercado cimenteiro nos anos
seguintes e o resultado desse confronto pendeu de uma forma impressionante para os
fabricantes do cimento Portland, dadas as características deste produto e devido ao
incremento de vendas de betão.
Após a instalação da indústria cimenteira em Portugal no princípio do século dezanove, o
cimento Portland passa a ser usado na realização da esmagadora maioria dos rebocos de
enchimento e acabamento, como ligante hidráulico das respectivas argamassas,
substituindo na maioria das obras de construção civil a cal hidráulica e a cal hidratada.
Assim, durante largos anos (e hoje ainda) passou a ser corrente a realização de rebocos
constituídos a partir de argamassas em que se utilizava um único ligante hidráulico: o
Cimento Portland. Com esta metodologia, alterava-se de certa maneira a organização do
estaleiro tradicional, ao evitar a armazenagem de outros ligantes, facilitando-se a tarefa do
operador da betoneira e abreviando-se o tempo de presa do reboco, já que as argamassas
Bastardas, anteriormente utilizadas, apresentavam tempos de presa mais elevados. Esta
alteração respondeu muito positivamente, ao encurtamento de prazos em obra, já então
exigidos. Quanto aos inertes continuou-se a utilizar saibros ou areias amarelas (por vezes
com elevada percentagem de argila), para melhoria da trabalhabilidade (conjunto de
propriedades de aplicação de uma argamassa, que caracterizam a sua adequação ao uso
(EN 1015-9)) da argamassa.
4. AS ARGAMASSAS DO SÉCULO XX
Esta opção por um único ligante hidráulico veio a constatar-se trazer alguns
inconvenientes, por vezes graves, aos rebocos, tornando-os mais fissuráveis, dado o
comportamento das argilas perante a água. De facto, as argilas, silicatos de alumínio
hidratados, possuem estrutura lamelar e apresentam-se sob forma coloidal (pequeníssimas
partículas com grande superfície específica). A água (absorvida), cuja molécula dipolar,
envolve a superfície destas pequeníssimas partículas, é atraída (sinal contrário) pelo
colóide negativo. Esta película coloidal constitui uma barreira à difusão dos iões,
impedindo por exemplo uma boa cristalização dos componentes hidratados de cimento.
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O endurecimento nas argilas realiza-se por perca da água contida na sua estrutura
coloidal, provocando a criação de vazios. As partículas, ao preencherem esses vazios,
aumentam o número de pontos de contacto entre si e, consequentemente, originam um
complexo fenómeno químico-mecânico (Plasticidade). A perda da água no interior da
massa dá lugar a um fenómeno de contracção o que, em termos de reboco, pode significar
fissuração.
Acontecia que, antigamente, se sabia operar razoavelmente com saibros, através de uma
cuidada mistura de componentes da argamassa. Ora esta arte foi-se perdendo e em
resultado da maior pressão no cumprimentos de prazos, cada vez mais curtos em obra,
passou-se a fabricar sistematicamente argamassas demasiadamente rígidas, com
resistências mecânicas muito elevadas para o fim em vista, e com trabalhabilidade
reduzida, o que implica com frequência retracção significativa do reboco, e
correspondente fissuração.
Por outro lado, tem-se verificado em estaleiro, a escolha de areia do rio como agregado.
Esta opção reduz a possibilidade de fendilhação do reboco, mas piora a trabalhabilidade
do mesmo.
Assim sendo, a utilização de um único ligante e também de um único agregado no fabrico
de argamassa em obra, não aportou nada de bom em termos qualitativos para o reboco.
Finalmente, o abuso da percentagem de cimento no traço da argamassa, situação muito
frequente em obra, (o que implica uma junção de maior percentagem de água de
amassadura) teve como consequência retracção ainda mais acentuada dos rebocos, (já que
as partículas de cimento se vêem rodeadas de menor quantidade de partículas de inertes) e
a consequente fissuração. Contrariando este cenário, surgiria uma nova indústria na
construção civil, a das argamassas Industriais fabricadas em fábrica, o que vem
possibilitando uma progressiva melhoria na qualidade das argamassas utilizadas e também
a criação de uma vasta gama de produtos, com maior grau de especialização.
Entre 1950 e 1960, tanto na Europa Central como nos Estados Unidos, a nova indústria de
construção, com maior exigência em qualidade e rapidez de execução, iria obrigar à
substituição da mistura dos componentes das argamassas in situ (na obra), por argamassas
secas prontas a aplicar. Evolui-se também no transporte, com a sistematização do
transporte a granel e a mecanização dos sistemas de mistura. Por estes motivos, têm-se
multiplicado na Europa, os fabricantes de Argamassas Industriais, localizados geralmente
junto dos grandes centros consumidores.
5. ARGAMASSAS DE REABILITAÇÃO
Se os ensinamentos a retirar do passado histórico são interessantes quando aplicados às
novas argamassas feitas em fábrica, destinadas a obra nova, eles são sobretudo
importantes no concernente à reabilitação dos edifícios. Neste caso, vamos cingir-nos
apenas a edifícios classificados ou em vias de classificação, edifícios antigos em geral,
excluindo por consequência os monumentos nacionais que consideramos casos
específicos.
Tendo em conta que o material de reparação não deve ser mais resistente mecanicamente
que o material a reparar, a fim de se evitar a introdução de tensões num suporte
eventualmente fraco, não é recomendável a utilização de cimento como constituinte
principal nas Argamassas de Reabilitação, os quais apresentam uma estrutura física muito
fechada, impedindo a passagem de humidade do reboco antigo para o exterior, e retendo a
água no suporte, em vez de facilitar a sua evaporação.
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Por outro lado alguns cimentos contêm sais solúveis, em particular sulfato de potássio que
pode causar estragos em antigas alvenarias de pedra.
Como esquema de aplicação de uma Argamassa de Reabilitação julgamos ser
aconselhável a aplicação desta por camadas e sempre que possível armada com redes.
Finalmente, mesmo uma pequena adição de cimento pode dar origem a segregação do gel
coloidal constituinte do cimento, que provoca o preenchimento dos poros da estrutura e
impede os fenómenos posteriores de carbonatação [3].
As Argamassas de Reabilitação, devem por um lado, permitir a respiração da parede,
dando passagem ao vapor de água, (pelo que é importante a utilização de ligantes com
estruturas relativamente abertas e agregados com curvas granulométricas criteriosamente
escolhidas), e por outro lado, impedir a passagem de águas pluviais, para que no reboco
antigo, normalmente rico em sulfatos e cálcio, estes não venham a ser dissolvidos pela
água em circulação no interior da parede e arrastados para a interface, contribuindo para o
destacamento do reboco de Reabilitação.
Seguindo o curso histórico das argamassas é possível formular Rebocos de Reabilitação
com ligantes não hidráulicos como, a cal hidratada, desde que se adicione uma
percentagem de material pozolânico. Dado que não existem pozolanas no nosso país e
uma vez que os custos destas, quando importadas, podem encarecer em demasia a
formulação, é possível proceder-se à junção de pozolanas artificiais, como por exemplo
metacaulinos, ou ainda, material cerâmico cozido a baixas temperaturas e também cinzas
(Centrais Térmicas).
Outra alternativa é trabalhar com argamassas bastardas de cal hidráulica natural e cal
hidratada em proporções adequadas [4].
Dado o risco da utilização de produtos correntes nas argamassas destinadas a Obra Nova
para melhoria da respectiva aderência, nomeadamente:
• as resinas, que segundo algumas opiniões, dificultam a permeabilidade do vapor
de água
• a metil celulose sendo um material orgânico pode ser portadora de bactérias para
junto do reboco antigo, com consequências por muitos julgadas perniciosas.
Dados estes pressupostos, sugere-se a aplicação do Reboco de Reabilitação por camadas
diferenciadas.
Assim, o sistema de aplicação envolveria três camadas de reboco:
• primeira camada de aderência, a aplicar de forma não contínua, como se tratasse
de um salpico, podendo ser utilizada como encasque.
• segunda camada constituída pelo Reboco de Reabilitação propriamente dito, cuja
resistência deverá ser igual ou inferior à camada de aderência.
• terceira camada de Acabamento, com granulometria fina e características
mecânicas semelhantes à anterior.
Com a utilização de uma mistura de cal hidráulica e cal hidratada é possível obtermos
argamassas mais resistentes mecanicamente do que as Argamassas Aéreas formuladas
com aditivos pozolânicos, situação que em determinados casos pode ser importante.
Importa realçar que muitos dos rebocos antigos, argamassas aéreas, eram rebocos de
sacrifício, destinados apenas a proteger as alvenarias durante um certo período de tempo.
De facto, as Argamassas Aéreas são, entre as demais, aquelas que sofrem maior retracção
no processo de secagem, constituindo-se como estruturas abertas e porosas, permitindo
uma fácil respiração do suporte e ganhando resistência ao longo do tempo por acção do
dióxido de carbono. Todavia, num ambiente de grande pluviosidade as águas das chuvas
podem preencher os poros e causar a dissolução do hidróxido de cálcio, à razão de uma
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parte de hidróxido para 800 partes de água, a uma temperatura de 20 ºC, Neste caso não se
realiza a carbonatação e o reboco tardará a endurecer [5].
A carbonatação para se realizar necessita que em volta dos cristais de hidróxido de cálcio
exista uma certa quantidade de água absorvida, o que implica humidades relativas entre
60% e 80%[5].
CO2 + H2O ↔ H2CO3 (5)
Ca (OH)2 + H2CO3 ↔ CaCO3 + 2 H2O (6)
A utilização de argamassas aéreas permite, de forma exemplar, que os suportes respirem,
mas indiciam porém alguma fragilidade mecânica e vulnerabilidade aos efeitos de
poluição. São, por isso, soluções de curta durabilidade.
Estas características podem ser corrigidas com a inclusão na argamassa de material
pozolânico ou o seu abastardamento, com a utilização de cal hidráulica. Esta é obtida a
partir de uma marga de que damos como exemplo, uma composição. Na composição do
produto cozido pode-se verificar a presença de CaO mais de 50% e de silicatos
(assinalados a cor de laranja), Figura 3.
Pedra Crua
Pedra Cozida
P.F.
P.F.
CaO
CaO
MgO
MgO
Fe2O3
Fe2O3
Al2O3
Al2O3
SiO2
SiO2
SO3
SO3
N/ Doseado
N/ Doseado
Fig 3 - Composição da marga e do produto cozido de cal hidráulica natural
Acresce que na actualidade, os rebocos de Reabilitação devem responder aceitavelmente
aos novos desafios da poluição em geral, em particular às chuvas ácidas. De facto, a
possibilidade de se usar uma terceira camada fina de Acabamento, a qual não está em
contacto directo com o Reboco Antigo, pode permitir a utilização de produtos que
defendam quimicamente a fachada, face ao estado de poluição existente na atmosfera dos
dias de hoje, desde que não reduzam a respiração da parede e ajudem à inibição da
passagem das águas pluviais.
A utilização da cal hidráulica nas Argamassas de Reabilitação proporciona várias
vantagens, dado que é detentora de dois tipos de cura.
A primeira cura (Hidratação) deve-se:
• ao início de presa devido à rehidratação do sulfato de cálcio (gesso) que dá
origem a pequenos cristais circulares que, emaranhados uns nos outros, vão
tornando mais dura a pasta;
• à sua presa hidráulica, devido às reacções químicas dos seus sulfatos bicálcicos
com água, que se vão transformando em silicatos de cálcio hidratados, num
processo de hidratação lenta
-
A segunda cura (Carbonatação), ocorre lentamente pela acção do anidrido carbónico que
se vai introduzindo na sua estrutura, relativamente aberta, para reagir com o hidróxido de
cálcio, formando carbonato de cálcio.
Enquanto o endurecimento num primeiro estágio de uma Argamassa de Cal Hidratada se
deve à libertação da água de amassadura, sendo o seu estado de coesão reduzido, com a
presença de Cal Hidráulica numa Argamassa, garante-se um endurecimento seguro pela
via hidráulica, corrigindo alguma debilidade na coesão da Argamassa nos primeiros dias.
Variação da Resistência para dois tipos de cura
Resistência (MPa)
20,0
15,0
Flexão Ar
Flexão Câmara
10,0
Compressão Ar
Compressão Câmara
5,0
0,0
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100 110 120
Tempo de cura (dias)
Fig 4 - Variação da Resistência da cura de uma amostra de Cal Hidráulica NHL 5,
realizada em provetes de 4x4x16 cm [6]
7 dias
90
90 dias
dias, ar
28 dias
90 dias, câmara
Fig 5 - Fotos feitas ao microscópio de uma argamassa de cal hidráulica em diferentes
idades de cura [6].
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Comparando as microestruturas da cal hidráulica aos 7, 28 e 90 dias, curada em câmara e
ao ar (temperatura 20± 2 ºC e Humidade Relativa ≥ 95%), (foto 5), verifica-se o aumento
do número e de dimensão das agulhas, as quais vão tornando a estrutura mais coesa e
fechada. O aumento da resistência à compressão está intimamente ligado com o processo
de carbonatação, que ocorre em simultâneo com a eliminação da água em excesso, a partir
da idade de 28 dias[6].
Ca(OH)2 +CO2 → CaCO3 + H2O (7)
Em conclusão, verifica-se hoje, de forma generalizada, um crescente interesse pela
utilização da cal hidráulica em argamassas de reabilitação, pelas vantagens atrás descritas,
competindo aos fornecedores daquele produto o desenvolvimento tecnológico que
permita, além do respeito pela Norma Europeia NP EN 459, o fornecimento deste produto
em condições de elevada homogeneidade de propriedades.
Por outro lado e tal como a norma europeia prevê, deverão os fornecedores proporcionar
ao mercado outras variedades de cal hidráulica, como NHL 2 e NHL 3,5 com
interessantes aplicações no mundo da Reabilitação.
Referências
[1] J. Paz Branco, Manual do Pedreiro, Lisboa, LNEC, 1981
[2] Fernando Dorrego e Maria Pilar de Luxán, El Yeso, Material de Construcción a través
de los Tiempos, Madrid, Instituto Eduardo Torroja .
[3] Graham O´Hare, Lime Mortars and Renders: The Relative Merits of Adding Cement.
www.buildingconservation.com
[4]
John
Ashurst,
The
Technology
and
Use
of Hydraulic
Lime.
www.buildingconservation.com
[5] Gaspar Nero, Os Rebocos. Revista de Arquitectura e Vida. Outubro e Novembro
2001.[6] Tânia Alexandra Vidigal Ribeiro, Caracterização da Cal Hidráulica Estudo de
Argamassas. Estágio da Universidade de Aveiro realizado na Secil Martingança em 20042005.
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