ANÁLISE JURÍDICA DIREITO IMOBILIÁRIO
Maio 2014
31
Novo paradigma excepcional e temporário
para a reabilitação urbana
Mariana Guedes da Costa · [email protected]
O regime jurídico da reabilitação urbana
consagrado no Decreto-Lei n.º 307/2009, de
23 de Outubro, alterado pela Lei n.º 32/2012,
de 14 de Agosto (doravante “RJRU”) integrou já um conjunto de reformas nos procedimentos administrativos, com vista a
agilização, flexibilização e simplificação das
operações urbanísticas, em áreas de reabilitação urbanas, assim como de edifícios
ou fracções, ainda que localizados fora de
áreas de reabilitação urbana, cuja construção tenha sido concluída há pelo menos 30
anos e em que se justifique uma intervenção de reabilitação destinada a conferir-lhes
adequadas características de desempenho
e de segurança.
No entanto, o regime aí estabelecido
para a “protecção do existente”, no âmbito do qual se permite a não observância
de determinadas normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária não passou apenas de uma transferência de responsabilidades para o técnico
autor do projecto de reabilitação, sem que
contemplasse todas as necessidades de
intervenção no edificado, atento o tipo de
construção em causa. Na verdade, através
do termo de responsabilidade, aquele deveria assegurar, de forma fundamentada, que
a acima referida não observância de determinados preceitos legais não originaria ou
agravaria a desconformidade com essas
normas, ou permitiria até a melhoria generalizada do estado do imóvel.
Ora, atenta a importância da reabilitação
urbana como factor de desenvolvimento
das cidades e da economia em Portugal, o
actual Governo Constitucional, através do
Despacho n.º 14574/2012, de 5 de Novembro, incumbiu a comissão, por si criada, de
elaborar um estudo sobre as «Exigências
Técnicas Mínimas para a Reabilitação de
Edifícios Antigos». Na esteira desta medida complementar está a intenção de dispensar as obras de reabilitação urbana da
sujeição a determinadas normas técnicas
aplicáveis à construção em geral. Na verdade, a complexidade e exigências de ordem
técnica do regime geral da edificação e urbanização sempre foram apontadas pelos
técnicos e profissionais do sector como
um entrave ao desenvolvimento da reabilitação urbana.
A publicação do DecretoLei n.º 53/2014 de 8 de
Abril estabelece um regime
excepcional à reabilitação
de edifícios ou de fracções
cuja construção tenha sido
concluída há,pelo menos, 30
anos ou localizados em áreas
de reabilitação urbana.
Assim, com a publicação do Decreto-Lei
n.º 53/2014 de 8 de Abril, estabelece-se
um regime excepcional aplicável à reabilitação de edifícios ou de fracções, cuja construção tenha sido concluída há, pelo menos,
30 anos ou localizados em áreas de reabilitação urbana.
Para este efeito, integram o conceito de
operações de reabilitação (cfr. n.º 2, artigo
2º), as obras de (i) conservação, (ii) de alteração, (iii) de reconstrução e (iv) de construção e ampliação, quando condicionadas por
determinadas circunstâncias preexistentes;
e (v) alterações de utilização.
Neste contexto, o acima referido diploma
prevê a dispensa do cumprimento de algumas normas previstas, quer no Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado
pelo Decreto-lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951 (“RGEU”)1, bem como noutros
regimes especiais aplicáveis à construção
(acessibilidades2, requisitos acústicos3, eficiência energética e qualidade térmica, gás
e telecomunicações), desde que a operação
de reabilitação não origine desconformidades ou um agravamento das existentes ou
que contribua para a melhoria das condições de segurança e salubridade existentes
(cfr. n.º 1, artigo 2º).
Do exposto resulta naturalmente que o
legislador pretende uma melhoria das condições dos edifícios, pelo que nos parece
desprovido de conteúdo o disposto no art.º
9 do regime excepcional, ao estipular que:
“As intervenções em edifícios existentes
não podem diminuir as condições de segurança e de salubridade da edificação nem a
segurança estrutural e sísmica do edifício.”
De apontar, porém, que este regime
tem um âmbito de aplicação restrito, assim
como um período de vigência temporário,
sem que se tenham apontado quais as razões que determinaram essas duas especificidades do regime.
Na verdade, o regime excepcional é apenas aplicável para edifícios ou fracções que
se destinem a ser afectos, total ou predominantemente, ao uso habitacional, sendo
que para este efeito, se considera afecto
quando, pelo menos, 50% da sua área se
destine a habitação e a usos complementares, designadamente estacionamento, arrecadação ou usos sociais.
32
DIREITO IMOBILIÁRIO ANÁLISE JURÍDICA
Maio 2014
Compreende-se que o principal objectivo da reabilitação urbana prende-se com o
regresso das populações aos centros históricos das cidades e que se encontram
maioritariamente votados ao abandono. No
entanto, a promoção da reabilitação tem
sido apregoada como sendo de implementar, de forma integrada, uma vez se impõe
que a reabilitação do edificado seja orientada para o uso habitacional, sem descurar da
oferta de serviços que tem que estar associada a essa reabilitação.
ca às operações urbanísticas que tenham
por objecto partes de edifício ou fracções
autónomas destinados a usos não habitacionais. Ora, se o âmbito de aplicação do
regime excepcional é restrito às operações
reabilitação de edifícios ou de fracções, cuja
construção tenha sido concluída há pelo menos 30 anos ou localizados em áreas de reabilitação urbana, sempre que se destinem a
ser afectos total ou predominantemente ao
uso habitacional, não se vislumbra o alcance
daquela excepção.
Assim, é de certa forma incompreensível
que para um edifício, constituído em propriedade horizontal, para determinada fracção, destinada à habitação se aplique um
regime e, por exemplo, para uma fracção,
sita no mesmo prédio, destinada a comércio os requisitos sejam distintos. Aliás, esse
tratamento distinto poderá gerar determinados entraves à reabilitação, na medida em
que alguns dos requisitos de cumprimento
dispensável, à luz do novo regime, dizem
respeito a aspectos da construção transversais a todo um edifício e não individualizável
por fracção.
Outro paradoxo do regime instituído é o prazo de vigência do mesmo. Aparentemente,
apenas poderão usufruir da não observância
de determinados requisitos/regimes aplicáveis à construção, os agentes que se envolvam numa operação de reabilitação urbana
aqui prevista, nos próximos sete anos4.
Com vista a salvaguardar esses entraves,
o regime excepcional prevê que, sem prejuízo da dispensa dos requisitos do RJUE,
pode-se fazer a alteração de parte de edifício ou de fracção autónoma de uso habitacional para uso não habitacional, sem que
se altere o uso predominantemente habitacional do edifício, mantendo-se o pé-direito
preexistente.
Por outro lado não se compreende o preceito relativo à dispensa de aplicação dos
requisitos acústicos, o qual refere que a dispensa do cumprimento destes não se apli-
Prevê-se que o regime se aplique aos
procedimentos de controlo prévio das operações urbanísticas de reabilitação de edifícios ou fracções à data da sua entrada em
vigor, bem como aos pendentes à data da
cessação da vigência do mesmo. Se estivermos perante uma operação urbanística
de reabilitação urbana isenta de controlo
prévio, o regime excepcional aplica-se ainda
às obras pendentes à data da cessação de
vigência do mesmo. Desta forma, alarga-se,
de certa forma, o período de vigência acima
referido.
O normativo que regula o período de vigência determina ainda que as operações
realizadas ao abrigo do presente regime não
são afectadas pela cessação da vigência do
referido decreto-lei, enquanto os edifícios
ou fracções mantiverem um uso predominantemente habitacional.
Ora, tal período de vigência apenas encontra respaldo numa medida de incentivo
às operações de reabilitação urbana para os
próximos anos, uma vez que outra justificação não se retira para a fixação de um período de vigência relativo a um regime que se
reporta a exigências técnicas mínimas.
Resulta assim que o novo regime excepcional e temporário vem aprofundar o
regime da protecção do existente, previsto
no artigo 51º do RJRU, por um lado especificando quais os requisitos que passam a
ser dispensáveis de observar, por outro, no
entanto, restringindo apenas esse regime a
edifícios e fracções para uso predominantemente habitacional.
De todo o modo, os técnicos autores dos
projectos mantém-se como os maiores protagonistas de toda a teia, na medida em que
é a estes que caberá sempre identificar quais
os requisitos passíveis de serem dispensados,
responsabilizando-se por essa interpretação e
fundamentação com a entrega do termo de
responsabilidade. Acaba apenas por tornar
mais salvaguardada a identificação dos requisitos passíveis de dispensa, uma vez que estes
passaram a estar especificamente elencados.
NOTAS
1 Artigos 45º a 52º e 59º a 70º, 71º (sem prejuízo da
existência de um vão em cada compartimento de habitação),
72º, 73º, 75º a 80º, 84º a 88º e 97º do RJEU.
2 Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de Agosto.
3 Decreto-lei n.º 129/2002, de 11 de Maio, na sua versão
actualizada pelo Decreto-Lei n.º 96/2008, de 9 de Junho.
4 Uma vez que o diploma foi publicado no dia 8 de Abril
de 2014 e o mesmo prevê que a sua entrada em vigor no
dia seguinte ao da sua publicação, o regime excepcional
vigorará até ao dia 9 de Abril de 2021.
Download

Novo paradigma excepcional e temporário para a reabilitação urbana