Trigésima Bienal de São Paulo A iminência das poéticas espaço do professor encontro 2 O que acontece quando você anda? Como você se move? O que motiva seu caminhar? Imersos no cotidiano, frequentemente não damos atenção ao modo como nosso corpo se move, às histórias que se desenrolam a nossa volta. Na maior parte do tempo, vivemos a vida no automático. subida que enfrentará em seguida, com a certeza de que, quando a pedra rolar novamente, aproveitará mais um momento de descanso. O que acontece quando, como Sísifo, ficamos conscientes de nosso próprio andar e paramos para enxergar tudo o que há em torno de nós, o que determina e é determinado por nossos caminhos? Luis Pérez‐Oramas, curador da 30ª Bienal, diz que são esses os momentos em que a arte pode acontecer, quando desautomatizamos nossa forma de olhar. Na mitologia grega, Sísifo, um mortal, é condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o topo de uma montanha, na terra dos mortos. Toda vez que chega lá, a pedra rola em direção ao vale. Esse ciclo se repete infinitamente. Imagine fazer diariamente essa escalada, sofrendo a imensa pressão do pedregulho sobre suas costas. No que você pensaria? O que você sentiria cada vez que a rocha caísse até a base da montanha? Como a arte pode nos mover? Você está atento ao que acontece ao seu redor? Quando você anda, é apenas seu corpo que se desloca? Albert Camus* propõe que Sísifo, nos momentos de descida, é feliz. É quando, enfim, pode parar, pensar em seu trajeto, ter consciência de sua rotina. Ao refletir sobre sua caminhada, Sísifo sai do automático: subir e descer a montanha é um castigo dos deuses, mas também é tudo que tem na vida. Assim, prepara‐se para a Fazer arte é uma forma muito específica de caminhada, em que a atenção do público se faz necessária para o desfrute das obras. Nesta constelação, abordaremos o processo de criação dos artistas e, de forma análoga, o trabalho dos educadores em contato com essas obras. Em muitas delas, precisamos reconstituir os passos de um processo que aconteceu há muito tempo. Em outras, usamos nosso corpo para experimentar algo que o artista propôs. Às vezes, sentimos instantaneamente algo que nos atrai ou repele, que interrompe nossa caminhada. “Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê‐la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície. É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. [...] essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo”. (Albert Camus, O mito de Sísifo) * Filósofo e escritor argelino. Sísifo, Tiziano Vecellio, 1549 Constelação Criação como caminhada “Algumas vezes, acordava ao lado de alguém que eu amava e escutava nossa respiração sem sincronia (e supunha que era por isso que eu tinha acordado). Eu praticava a inspiração e a expiração, imitando a mulher que dormia, e me perguntava se aquela dança estava ecoando em seus sonhos. Estes são pensamentos sobre a consciência de respirar. Essa consciência do que fazemos e sentimos a cada dia, sua relação com a experiência alheia e com a natureza a nossa volta, torna‐se, de modo real, a performance da vida. E o próprio processo de prestar atenção a essa sequência está no limiar da performance artística”. (Allan Kaprow, artista da Trigésima Bienal) Há muitos modos de fazer e pensar artísticos. A arte contemporânea é um terreno amplo que pode ser percorrido nas mais variadas direções e maneiras. Um evento como a 30ª Bienal de São Paulo abrange uma série de obras muito distintas entre si. Um dos modos de estabelecer relações entre elas é pensar em seus processos de criação. Cada artista possui métodos, vontades e conhecimentos particulares. Tudo isso, junto ao contexto em que a produção do artista se insere, faz parte de sua poética. Muitos artistas sabem exatamente onde querem chegar com seus trabalhos, quais são suas intenções. Outros, transformam a própria busca no centro de sua poética. O caminhar torna‐se obra. Os artistas desta constelação possuem trabalhos muito processuais, focados tanto na experiência deles mesmos, como na de quem vê. Alguns deles incorporam literalmente o movimento: caminham pela cidade, equilibram objetos, deixam‐se levar pela gravidade... Outros são menos explícitos, mas todos trazem o processo como elemento central de suas obras. "Lingwood: Podemos dizer que andar é uma linguagem para você? Alÿs: Andar é um jeito muito imediato de desdobrar (essas) histórias. Lingwood: Andar gera uma concepção particular do tempo, de um corpo humano que se move a um passo em que as pernas se movem facilmente. A escritora Rebecca Solnit sugere que a mente se move a 3 milhas por hora. Andar é para você uma ferramenta de pensamento?... Alÿs: É um espaço perfeito para processar pensamento. Você pode funcionar em múltiplos níveis simultaneamente... Além disso, quando estamos andando, estamos cientes de, ou acordados para, tudo o que acontece em nossa visão periférica: os pequenos incidentes, cheiros, imagens, sons. Andar nos põe em um rico estado de consciência. Na era digital, é também um dos últimos espaços privados”. (Entrevista do crítico Lingwood ao artista Francis Alÿs) A caminhada criativa do professor No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra (Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia, 1930) Todos os dias nosso percurso está suscetível ao inesperado, a assumir rotas não antes planejadas. Seja um deslocamento, um olhar, um plano, seja por conta do hábito ou de um projeto, esperamos sempre chegar a algum lugar, alcançar uma meta. Existem encontros que nos afetam e podem modificar nossa relação com o dia, com as pessoas, conosco mesmos: um sorriso gratuito, um pneu furado, uma chuva forte ou uma mensagem de um amigo com quem há muito não falamos. Assim, do mesmo modo como há sempre a possibilidade do imprevisto se entrepor ao planejado, a diferença – e com ela algo novo – pode surgir de um contexto de repetição. Um professor habituado a utilizar a lousa em suas aulas chega à sala e é surpreendido por uma placa de “tinta fresca”. É claro que ele não deixaria de dar sua aula. No entanto, é no momento em que para por um instante e se pergunta “o que fazer” que a iminência da criação se apresenta. Os artistas estão constantemente criando meios para que a diferença, ou seja, uma distorção ou deformação, se estabeleça ante o comum, ainda que por um breve momento – um modo diferente de olhar para o mundo, um modo diferente de pensar. Os artistas desta constelação utilizam processos ligados a práticas comuns vistas por um outro prisma, como caminhar ou relacionar‐se com a gravidade. Promovendo ações insuspeitadas, tornam presentes para o público realidades por vezes esquecidas ou ainda não imaginadas. Podemos pensar a experiência educativa como prática de promoção de encontros ‐ e de natureza essencialmente relacional. De que maneira, então, o exercício cotidiano do professor pode se aproximar do trabalho do artista? Como pode mobilizar recursos para a inauguração de novas perspectivas? E que recursos são estes, pedagógicos ou pessoais, que cabem às competências do professor? Sabemos que atualmente a rotina escolar apresenta inúmeros desafios tanto ao professor quanto aos alunos. Muitas vezes, os conteúdos a serem abordados em sala não se alinham às necessidades ou questões surgidas na relação com as complexidades do mundo dos alunos e do próprio professor. No entanto, como em arte contemporânea, também são diversas e variadas as estratégias e procedimentos didáticos que o professor pode escolher para o percurso que pretende fazer junto a suas turmas. Além disso, o processo de trabalho pode revelar mais coisas do que o resultado final. Mobilizar recursos, escolher caminhos, promover encontros, coordenar perspectivas, ensinar a aprender, reaprender constantemente a ensinar: o que quer que escolhamos como motivações de nossa prática. Ao retomarmos Sísifo, lembramos também da importância do estado de consciência em nossas ações, através da qual adquirimos mais convicção e propriedade sobre o que estamos fazendo. Se a prática cotidiana do professor pode ser pensada como uma caminhada, pode ser criativa – e até mesmo poética – a partir do momento em que prestamos atenção aos detalhes no caminho, que podem conferir a diferença significativa capaz de transformar um encontro singelo em um acontecimento singular. Pontuação: Charles Baudelaire “E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?" (Charles Baudelaire, Os projetos, Pequenos Poemas em Prosa, 1869) Charles Baudelaire (Paris, 1821 – 1867) Charles Baudelaire, principal poeta simbolista, era um flanêur — isto é, um homem que vagava por Paris e descobria na cidade moderna as inspirações para seus pensamentos e escritos. Vários de seus textos contam os encontros do poeta com pessoas de todas as classes sociais em situações banais, que, ao olhar do autor, ganham importância e significados próprios. O flanêur compreende a cidade e a si mesmo através de seus deslocamentos. É caminhando, também, que Baudelaire pode deixar as ruas agitadas para visitar o campo e apreciar a paisagem. Andar não é apenas ação mecânica, mas ferramenta de produção artística e modo de vida. “Flanar” significa caminhar sem rumo e nenhum outro objetivo que não a própria caminhada e suas consequências, significa estar aberto às experiências que surgem no simples ato de se deslocar. Falar imagens Poéticas: Tehching Hsieh Franz Erhard Walther Bas Jan Ader Tehching Hsieh 1950, Nan‐Chou, Taiwan. Vive em Nova York, EUA. Tehching Hsieh reflete sobre o tempo e seus efeitos em suas performances. Na primeira delas, Tehching Hsieh prendeu‐se em uma cela de madeira dentro de seu estúdio, sem ler, escrever e assistir TV. Durante um ano, viveu sozinho, marcando os dias que passavam na parede. Como guardar e comunicar ao público experiências tão intensas? Segunda performance de um ano, Tehching Hsieh, 1980 Imaginamos o tempo como um fluxo contínuo de acontecimentos, impossível de se interromper. Dependendo do que fazemos, as horas parecem passar mais rápido ou mais devagar. Como flui o tempo quando você está no trabalho? E em casa? No trânsito? No ano seguinte, em sua segunda performance, Tehching Hsieh se propôs bater ponto a cada hora, todas as 8760 horas do ano, das quais perdeu somente 133. Uma fotografia foi tirada a cada vez que ele bateu ponto, na hora exata — por isso, todas mostram o ponteiro dos minutos apontando para o número 12. Essas fotos não apenas provam que o artista seguiu as regras da performance, mas também ilustram a passagem do tempo: seu cabelo começou raspado e cresceu no decorrer do ano. As regras extremamente restritivas dos projetos de Tehching Hsieh transformam seu corpo, sua vida e seu tempo em materiais artísticos. É como se o artista fosse, ao mesmo tempo, os deuses que puniram Sísifo e o próprio herói trágico, que transforma seu castigo em experiência. Franz Erhard Walther 1939, Fulda, Alemanha. Vive na Alemanha. No início da carreira, Franz Erhard Walther pintava formas geométricas e letras coloridas sobre tela e cartão. Mas alguma coisa o incomodava na experiência apenas visual. Aos poucos, as formas se libertaram da superfície e passaram a ocupar o espaço do espectador. O artista constrói objetos geométricos, de madeira ou tecido, para que o público interaja com o corpo e todos os sentidos. Linha reta, semi‐círculo. Três direções, Franz Erhard Walther, 1977 Quando criança, você caminhava sobre calçadas com polígonos desenhados, evitando ora as figuras escuras, ora as claras? Talvez não percebamos, mas as formas geométricas estão muito presentes no mundo, seja nos objetos feitos pelos humanos ou na natureza. Como a geometria pode afetar nosso andar? Cada obra sugere experiências diferentes para quem participa ou assiste. Nessa imagem, por exemplo, duas linhas, uma reta e outra curva, têm o mesmo comprimento e podem ser percorridas simultaneamente pelos participantes. Qual a diferença entre andar em linha reta e em círculo? O corpo se comporta da mesma forma? O tempo é o mesmo? Bas Jan Ader 1942, Winschoten, Holanda. Desaparecido no Oceano Atlântico em 1975. Cair pode ser um acidente ou o objetivo inicial do percurso. Bas Jan Ader realizou uma série de ações em que se registrou caindo de diversos lugares: do telhado de sua casa, de uma árvore, de bicicleta num rio. Na maioria dos filmes, o artista parece resistir ao máximo antes da queda. A espera é mais tensa e dramática do que o próprio momento em que seu corpo cai. Broken fall (organic), Bas Jan Ader, 1971 Andar envolve uma série de negociações, por exemplo, entre os pés, que empurram o solo e nos lançam para cima, e o resto do corpo, que está sempre na iminência da queda. Quando caminhamos, é como se “caíssemos para frente”, nos reequilibrando a cada passo. A força fundamental que nos permite fazer esses movimentos é a mesma que nos mantém presos ao chão: a gravidade. Bas Jan Ader tem consciência da gravidade e, justamente por isso, precisa testá‐la em seu corpo, sentir seus efeitos e consentir suas consequências. Você consegue imaginar o que ele sentia exatamente no momento em que, ao não aguentar mais, soltou o galho da árvore e se lançou ao córrego? Para saber mais: ALBUQUERQUE, Fernanda. Por dentro da arte contemporânea. In: Revista Aplauso. Porto Alegre: Editora Amanhã, 2004‐2005. Segundo artigo, “De tudo um pouco”, e entrevista com Agnaldo Farias, “Tem de tudo mas não vale tudo”. FARIAS, Agnaldo. Introdução: Pequeno guia para os perplexos. In: Arte Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002. VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Editora Iluminuras, 1991. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. TOZZI, Devanil et al (Org.). Horizontes culturais: lugares de aprender. Secretaria da Educação, Fundação para o Desenvolvimento da Educação. São Paulo: FDE, 2008. Ver especialmente texto de Stela Barbieri, Tempo de experiência. PERNIOLA, Mario. Os situacionistas: o movimento que profetizou a sociedade do espetáculo. São Paulo: Editora Annablume, 2009. Legendas do falar imagens: Terceira performance de um ano, Tehching Hsieh, 1981 Linhas de errância de Janmari (criança autista), em preto, e trajetos de um adulto "próximo", em marrom, na aldeia de Graniers, em 23 de julho 1977, Fernand Deligny, 1977 No caminho para um novo Neoplasticismo, Bas Jan Ader, 1971 Estudo para horizonte, Sigurdur Gudmundssonn, 1975