O realizador Rosemberg Cariry fala a “LATITUDES” Daniel Lacerda ivemos ocasião de ver em ante-estreia o filme Corisco e Dadá apresentado pelo cinema Latina* no início de Dezembro, obra que se inscreve na tradição mais profícua do cinema brasileiro, o “filme de cangaço”, que fora estudado no n° 1 de Latitudes por Sylvie Debs. Rosemberg Cariry, seu realizador e argumentista, deslocara-se a Paris para o apresentar. E assim tivemos oportunidade de estabelecer conhecimento com uma personalidade que nos impressionou em diversos aspectos, pela seu gosto e atenção pela cultura popular brasileira, intimamente ligada à portuguesa pela história. Cativou-nos ainda a sua capacidade de síntese desse fenónemo social complexo em que se inscreve o Cangaceiro e que resumiu para os espectadores. Assim nasceu a intenção de comunicar a um maior número as suas tão ajustadas apreciações, resultado pelo que sabemos duma demorada pesquisa, que tem sido a sua obra de jornalista e de cineasta. T Algumas questões a Rosemberg Cariry Após a visão do seu filme “Corisco e Dadá”, um campo vasto de questões se abrem daí derivados e que se encerram nesse tema central da história do Brasil que é o Cangaço. D.Lacerda —O seu filme indica uma preocupação estética tão grande quanto o intento de captar as formas de “funcionamento” do povo entre o qual surgiu e se movia o cangaceiro. Como explica essa perspectiva de distanciação existente no seu filme, em que a acção nos é contada e ilustrada de modo estilizado, enquanto a problemática da 18 terra nordestina permanece presente e aparentemente não se colocarem hoje no Brasil, sob o regime democrático, obstáculos à livre expressão artística e cinematográfica ? R. Cariry — A preocupação do filme “Corisco & Dadá” é narrar a história do cangaço, movimento armado popular, de feição anárquica e sem ideologia clara, dentro de uma estrutura mítica e trágica. O social e o político existem como pano de fundo na cena onde movem-se os personagens trágicos em luta contra os poderosos, contra a terra seca e contra Deus, para afirmação do seu destino. O político está implícito no filme e permeia todo o filme, como por exemplo, quando Corisco humilha os autoridades e toca fogo nos títulos de propriedade e fala em destruir o velho sertão, cheio de dores e injustiças, para construir um novo sertão : um sertão utópico. D.L. — Durante o debate, você apontou, muito pertinentemente, o facto de a coluna Prestes e as colunas de cangaceiros de Corisco e Lampião, todos perseguidos pelo exército governamental, se colocarem a hipótese de se unirem. Todavia, como referiu, a cultura do comunismo brasileiro, embora possua uma implantação antiga no país, tem-se mostrado incapaz de compreender os sectores populares influenciados pelo sincretismo religioso ou revoltado em armas por chefes que caem no dilema do cangaço. Que resposta encontrou na sua pesquisa para tal disparidade ? Algo distingue, na verdade, a figura que nos dá de “Corisco”dum revoltado humanista. R.C. — É fato histórico que o célebre cangaceiro Lampião recebeu o pomposo título de «Capitão» das forças patrióticas do Nordeste, bem como dinheiro e armamentos modernos, no Juazeiro do Padre Cícero, para combater a Coluna Prestes. Só que esse combate jamais aconteceu. Em 1989 eu entrevistei a cangaceira Dadá e ela afirmou-me que Lampião sempre evitou combater a Coluna Prestes e que o cangaceiro tinha vontade de encontrar-se com o Comandante Luiz Carlos Prestes e, mesmo, de colocar as suas armas a serviço da coluna. Posteriormente, eu entrevistei o Comandante Luiz Carlos Prestes e ele afirmou-me que os “cangaceiros” eram bandidos e que jamais aceitaria esse encontro. A Coluna Prestes tinha uma missão clara : despertar o povo brasileiro para a revolução. Os cangaceiros não tinham ideologia política clara e suas ações eram contraditórias. Ora aliavam-se aos poderosos da terra para conseguirem armas e dinheiro, ora agiam como “Robin des Bois”, como justiceiros. Para o povo ficou essa imagem do justiceiro, do homem que se revolta contra a miséria e a opressão e luta contra os poderosos. D.L. — Pela importância que tomou no cinema, será o Cangaceiro o depositário principal da mitologia brasileira ? Como aceitar a identidade da brandura da música actual do Brasil, a suavidade extrema da bossa-nova, com a figura do Cangaceiro sendo esta inconcebível sem a prática duma violência extrema ? Eis algumas questões que sei poder elucidarnos depois do trabalho de investigação que desenvolveu para conceber em diversos dos seus aspectos “Corisco e Dadá”, filme votado a grande sucesso. R.C. — O Brasil é um país novo em busca de uma identidade possível, já que nascemos dos encontros e desencontros de muitos povos. A região do Nordeste brasileiro, pelas características do processo de colon° 2 - février 98 nização, recebeu uma forte influência da cultura ibérica portuguesa que mesclou-se com as culturas ameríndias e afro-brasileiras. A cultura que desenvolveu-se nos sertões adquiriu características bastante originais que a identificou com a buca de “brasilidade”. O cangaceiro é uma figura emblemática dessa cultura, profundamente adaptado a um meio geográfico hostil, corajoso e romântico, herdeiro das sagas guerreiras dos cavaleiros andantes medievais. O cangaço é violento e a história do Brasil é uma história marcada por conflitos e violências. A bossa-nova é uma manifestação da alma lírica brasileira e acontece no início da década de 60, no momento histórico em que o Brasil acreditava-se como o “país do futuro” e ingressava em uma época de industrialização e tranformações sociais e políticas mais profundas. D.L. — E, terminando, espero que nos descreva o seu projecto dum novo filme histórico situado na fase colonial, à volta da figura dum bandeirante que se lançou para o interior do vasto sertão brasileiro numa aventura inconsiderada. R.C. — O projeto de meu próximo filme trata da saga trágica de Dom Pero Coelho de Sousa, um nobre aventureiro português, de origem açoriana, que no início do século XVII adentrou-se pelos sertões do Ceará, no Brasil, em companhia da mulher, dos filhos e de um exército de mercenários em busca do Paraíso Terrestre e do Eldorado. Essa expedição resultou numa grande tragédia, apenas uma dezena de pessoas escaparam com vida dessa expedição. Esse acontecimento histórico marcante serve como ponto de partida para a elaboração de um amplo painel sobre a grandeza e o extraordinário desafio que representou a conquista do Novo Mundo pelos europeus. O filme será uma reflexão, um olhar poético e trágico, sobre a origem do Brasil, sobre o nascimento de uma civilização mestiça, nova e tropical. No fundamento dessa origem estão a tragédia e o messianismo sebastianisto ibérico. * Le Latina 20 rue du Temple Paris 4° n° 2 - février 98 Rosemberg Cariry com Chico Diaz e Dira Paes, principais actores de “Corisco e Dadá” Résumé en Français Venu du Nordeste brésilien à Paris présenter son film Corisco et Dadá, le réalisateur Rosemberg Cariry a donné à Latitudes un entretien centré sur la problématique du “Cangaceiro” que sa dernière péllicule aborde avec une perspective légendaire, et qui est le thème central de l’identité culturelle du peuple nordestin, où le cinéaste vit le jour. Il commence par préciser que le social et le politique demeurent dans son film en arrière-plan des actions violentes du “Cangaceiro”. Après il explique l’idée de liaison entre la colonne du commandant Prestes et les célèbres «cangaceiros» poursuivis par l’armée. Rosemberg Cariry situe ensuite la figure emblématique du “Cangaceiro” originaire du Sertão où la recherche de la “brasilidade” dans le métissage des cultures amérindiennes et les afro-brésiliennes est une préoccupation permanente. Et il conclue en évoquant le sujet de son prochain film fondé sur le personnage du “bandeirante” Don Pero Coelho de Sousa, qui au XVIIe siècle a entrepris l’exploration du Sertão ayant été contraint à affronter des situation tragiques. BIOGRAFIA Rosemberg Cariry, pseudónimo de António Rosemberg de Moura, nasceu em Farias de Brito, região de Cariri, estado do Ceará, em 1953. Depois de frequentar o seminário Franciscano de Juazeiro do Norte, fez estudos de filosofia na Universidade de Fortaleza. Nos anos 70 toma parte nos movimentos artísticos do Crato ao lançar a revista Nação Cariri, que se publicou de 1981 a 87 em Fortaleza. Realizou em seguida dois filmes documentários sobre o poeta nordestino Patativa do Assaré e, em 1986, a longa-metragem documentário: O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, sobre a destruição governamental, em 1936, duma comunidade camponesa, a qual provocou várias centenas de mortos. Realiza em 1993, A Saga do Guerreiro Alumioso, longa-metragem de ficção filmada inteiramente no Nordeste, já sobre o cangaço. E em 1994, após uma entrevista com a companheira do cangaceiro Corisco, Dadá, isto é, Sérgia da Silva Chagas, R. Cariry começa a trabalhar no projecto Corisco e Dadá. A sua produção cinematográfica está marcada pela vontade de dar a palavra às minorias e de celebrar o povo que trabalha e luta, através da reconstituição da história e das raízes da cultura popular do Nordeste brasileiro. 19