O CONCEITO DE NÚMERO CARDINAL EM OS FUNDAMENTOS DA ARITMÉTICA DE FREGE THE CONCEPT OF CARDINAL NUMBER IN THE FOUNDATIONS OF THE ARITHMETIC OF FREGE Eduardo Antonio Pitt LABLE-UFSJ Resumo: O livro Os Fundamentos da Aritmética de Frege mostra que seu objetivo de apresentar uma definição para o número cardinal tem por base preocupações matemáticas e filosóficas. Frege expõe suas concepções ontológicas e epistemológicas a respeito dos números que, inevitavelmente, o coloca em posição contrária aos matemáticos e filósofos das linhas Empirista, Formalista e Psicologista. Suas convicções o levam a definir os números como objetos lógicos que existem independentemente de os pensarmos por meio da intuição e que devem ser associados às extensões de conceitos. Apresentar essas idéias é o objetivo desse artigo. Palavras-chave: Equinumerocidade. Extensões. Conceitos Abstract: The book The Foundations of the Arithmetic of Frege shows that your objective of presenting a definition for the cardinal number has for foudation preoccupations mathematics and philosophical. Frege exposes your conceptions ontological and epistemological in respect of the numbers that, unavoidably, places him about opposite to the mathematical and philosophers of the liners Empirist, Formalist and Psicologist. Your convictions make him define the numbers like logical objects that exist independently of the think by mean of intuition and that must be associated at extensions of concepts. Introduce those ideas is the objective of that article. Key-words: Equinumerocity. Extensions. Concepts. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 28 | P a g e PITT, Eduardo Antonio 1. Introdução A obra de Frege, Os Fundamentos da Aritmética (1884) foi escrita longe do rigor técnico da Conceitografia de 1879. Nesta obra, Frege apresenta seu logicismo informalmente, em uma linguagem mais acessível, esta postura se deve muito a pouquíssima aceitação da Conceitografia. Os objetivos desta obra são de caráter matemático e filosófico. Diríamos que os motivos matemáticos de Frege são dois: Estabelecer uma definição de número cardinal Estabelecer um modo de construir provas sem lacunas Enquanto os motivos filosóficos se concentram na discussão do status epistemológico dos números. Frege argumentava contra Mill que era a favor da tese que os números têm um caráter sintético a posteriori e contra Kant que defendia o caráter sintético a priori dos números. Frege era defensor da idéia que o status epistemológico dos números é analítico a priori, uma vez que, considerava analítico tudo aquilo que é provado a partir de axiomas, teoremas, definições e regras de inferência, todos lógicos. Como sabemos, o projeto logicista de Frege visava fundamentar ou derivar a aritmética de axiomas lógicos, livres de qualquer intuição, e sendo assim, caso Frege tivesse sucesso no projeto logicista então estaria provado à analiticidade da aritmética. No entanto, para resolver a questão filosófica Frege precisava resolver as questões matemáticas primeiro. Em outras palavras, Frege precisava estabelecer uma definição de número cardinal a partir das noções primitivas da lógica e não poderia deixar lacunas nas demonstrações das provas da aritmética porque isto abriria espaço à intuição, veremos adiante como Leibniz comete tal engano. Todas as Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 29 PITT, Eduardo Antonio demonstrações e definições deveriam ser analíticas para que estivesse garantido o status epistemológico dos números. Nesse sentido, entendemos as razões de Frege ao considerar o número um objeto puramente lógico e as leis fundamentais da Lógica, assim como da Aritmética, sendo leis que não fazem apelo a fatos particulares porque são leis gerais que não necessitam de uma prova, daí o seu caráter a priori. Entendemos que Frege procurou fundamentar a aritmética em princípios puramente lógicos porque os matemáticos se encontravam no meio de uma crise nos fundamentos mais básicos de sua ciência. Então para resolver uma das motivações matemáticas de Os Fundamentos da Aritmética Frege precisava partir do conceito mais fundamental e necessário para a aritmética: “o conceito de número cardinal”. Como podemos ver em uma passagem da introdução de Os Fundamentos da Aritmética: Não constituirá então uma vergonha para a Ciência estar tão pouco elucidada acerca do seu objeto mais próximo, o qual deveria, aparentemente, ser tão simples? Menos provável ainda é que se seja capaz de dizer o que o número é. Se um conceito que está na base de uma grande ciência oferece dificuldades, investigá-lo com mais precisão com vista a ultrapassar essas dificuldades é bem uma tarefa inescapável (Frege, s/d, p. 30). Segundo Imbert (1971, p. 122), ao longo investigação Frege adotou três princípios fundamentais: da 1. É necessário separar com nitidez o que é psicológico do que é lógico; o que é subjetivo do que é objetivo. 2. Só podemos perguntar pela denotação de uma palavra no contexto de uma proposição e não a considerando isoladamente. 3. Deve manter-se sempre presente a distinção entre conceito e objeto. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 30 | P a g e PITT, Eduardo Antonio O primeiro ponto diz respeito à consideração de Frege a palavra ‘representação’1. Frege distingue nitidamente aquilo que é psicológico e provido de emoções, sem nenhuma utilidade para a Lógica, daquilo que é objetivo e constitui o seu interesse. O segundo ponto, diz respeito à denotação2 das palavras consideradas no contexto das proposições, onde estas aparecem. Isto é uma condição para não aceitarmos as imagens interiores que formamos quando analisamos as palavras numéricas isoladamente, isto é, fora de uma proposição completa e, portanto, insaturada. O terceiro ponto pretende separar nitidamente conceito e objeto. Enquanto o conceito (um tipo de função) é insaturado o objeto é saturado. Frege classifica de insaturado as expressões, como as funções, que possuem uma parte necessitada de conteúdo, uma parte que requer um complemento para exprimir um pensamento completo. Por exemplo, o objeto é saturado porque a expressão do seu nome próprio possui um sentido e uma referência. O objetivo desse artigo é fazer uma análise do livro Os Fundamentos da Aritmética. Para tanto, seguiremos a seguinte estratégia: em (2) faremos uma exposição das considerações de Frege a respeito da demonstrabilidade das fórmulas numéricas e apresentaremos a discussão a respeito do status epistemológico dos números, em (3) vamos expor as críticas de Frege ao Empirismo, Psicologismo e Formalismo, e em (4) apresentaremos a definição de número cardinal de Frege. 1 Toda vez que ‘representação’ aparecer nesse artigo será no sentido de ato psicológico. 2 A palavra ‘denotação’ é usada nesse artigo no sentido de significar, exprimir e não como a tradução de ‘Bedeutung’. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 31 PITT, Eduardo Antonio 2. Considerações preliminares 2.1 A respeito do número e das fórmulas numéricas Na seção introdutória do livro, Os Fundamentos da Aritmética, Frege expõe o seu ponto de vista a favor da possibilidade das fórmulas numéricas serem demonstráveis. Segundo Frege, as tentativas anteriores não alcançaram o devido sucesso porque a demonstrabilidade das fórmulas numéricas careciam de um enquadramento rigoroso dos conceitos dos números individuais em conceitos lógicos e de uma lei geral lógica (Princípio de Hume) da qual todos os corolários resultantes dela pudessem assegurar a provabilidade lógica das fórmulas numéricas. Frege estabelece uma distinção entre fórmulas do tipo “2 + 3 = 5” que tratam das leis gerais válidas para todos os números e apresenta opiniões divergentes como seguem: 1: Filósofos como Hobbes, Locke, Newton consideram essas fórmulas numéricas indemonstráveis porque elas são tratadas como axiomas e assim imediatamente evidentes. 2: Kant as considera indemonstráveis e sintéticas, mas não as considera axiomas dado à sua falta de generalidade e porque o seu número é infinito. 3: Frege apresenta a opinião de Hankel que classifica como paradoxal essa pressuposição de infinitas verdades primitivas indemonstráveis. Como fica a necessidade da razão em ter uma visão panorâmica dos primeiros fundamentos? E ao contrário do que pensam os filósofos do tópico ‘1’, será que é de fato imediatamente evidente que 135 664 + 37 863 = 173527? A resposta não é justamente o motivo que levou Kant a considerar tais proposições sintéticas. Então como ficaria a indemonstrabilidade de tais proposições se estas não são imediatamente evidentes? Kant Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 32 | P a g e PITT, Eduardo Antonio recorre à ajuda da intuição de dedos e acaba esbarrando, contra a sua própria posição, em condições empíricas, já que a intuição de 37 863 dedos não é de todo uma intuição pura. O que Kant quis considerar com tal posição foi a de que para números pequenos recorremos à intuição e para números grandes estes seriam demonstráveis. Mas, para Frege, essa distinção entre números pequenos e grandes é um tanto vaga na medida em que falta limites para traçar tal distinção. Frege também expõe a opinião da demonstrabilidade de Leibniz que não concorda com a evidencia imediata de tais proposições. Tal opinião decorre do seguinte ponto de vista: que 2 e 2 sejam 4 não constitui de todo uma verdade imediata; isto pressupõe que 4 designa 3 e 1. Definições: 2é1e1 3é2e1 4é3e1 Axioma: Se numa equação substituirmos iguais por iguais, a igualdade mantêm-se. Demonstração: 2 + 2 = 2 + 1 + 1 = 3 + 1 = 4 Def. 1 Def. 2 Def. 3 Logo, 2 + 2 = 4 Porém, Frege nos alerta para uma lacuna que se apresenta devido à omissão dos parênteses. Falta na demonstração de Leibniz a proposição: 2 + (1 + 1) = (2 + 1) + 1, a qual é um caso particular de: a + (b + c) = (a + b) + c. Outra definição errada é a de H. Grabmann e de H. Hankel, segundo Frege. Vejamos a definição: Se ‘a’ e ‘b’ são qualquer membros da série fundamental, então entende-se pela soma “a + b” aquele membro da série fundamental para o Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 33 PITT, Eduardo Antonio qual é válida a fórmula “a + (b + 1) = a + b + 1”. A objeção de Frege é que nessa explicação a soma está sendo elucidada a custa de si própria sem sabermos previamente o que significa “a + b”. Aqui parece que os autores confundem adição e soma3. A outra objeção é que se na série fundamental não existisse qualquer membro ou vários com tais especificações, “a + b” seriam sinais vazios. A falta de rigor nos faz abandonar tais demonstrações. Para Frege, então, as fórmulas numéricas seriam deriváveis e demonstráveis a partir de três etapas; (i) chegar a um conceito geral lógico de número cardinal, (ii) a partir do conceito geral chegar a uma lei geral lógica (PH), (iii) tendo satisfeito as duas condições anteriores chegar a uma correta definição dos números individuais. Entretanto, essas definições de números individuais não afirmariam fatos observados porque, para Frege, número é um objeto lógico de existência autônoma e de caráter objetivo e não um objeto empírico. 2.2: A respeito do caráter analítico a priori das leis aritméticas Ainda na parte introdutória de Os Fundamentos da Aritmética, Frege expõe a controvérsia com Kant a respeito do caráter analítico e não sintético a priori como definiu Kant. Como foi dito acima, um dos motivos que levou Kant a optar pelo sintético a priori foi o fato dele não considerar como imediatamente evidente a fórmula 135 664 + 37 863 = 173 527. Kant recorre à intuição pura para cálculos com números pequenos e para números grandes seria necessária a demonstração desses a posteriori. A distinção que Kant faz para as fórmulas numéricas também se estende aos nomes ou sinais de objeto. Segundo Frege (1978, p. 61), Kant leva 3 “Adição” é a operação matemática de adicionar, acrescentar e “Soma” é o resultado de uma adição. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 34 | P a g e PITT, Eduardo Antonio em consideração as diferentes relações de igualdade a=a e a=b. Kant considera as duas expressões como sentenças de valor cognitivo diferentes. Enquanto a=a sustenta-se a priori e, segundo Kant, deve ser considerada analítica, as sentenças da forma a=b contêm extensões que ampliam nosso conhecimento e nem sempre podem ser estabelecidas a priori. Juntamente com Kant podemos colocar os matemáticos Baumann, Lipschitz e Hankel, pois todos eles invocam uma intuição pura como último fundamento cognitivo. Segundo Frege, Hankel recorre a três princípios para fundamentar a teoria dos números: 1: eles tornam-se completamente evidentes uma vez explicitados; 2: são válidos para todos os campos de grandezas de acordo com a intuição pura de grandeza; 3: podem ser transformados em definições sem perderem o seu caráter na medida em que se diga: por adição de grandezas entenda-se uma operação que satisfaz estas proposições. Nesta última afirmação, encontra-se uma falta de clareza porque nos leva a entender os números cardinais como grandezas. Além disso, a expressão “intuição pura de grandeza” levanta algumas resistências. É verdade que existem coisas que estão subordinadas ao conceito de grandeza como, os números cardinais, comprimentos, áreas, volumes, ângulos, massas, intensidade de luz, etc. Agora a expressão “intuição pura de grandeza” não é realmente apropriada, pois não somos capazes de admitir uma intuição pura de uma grandeza de valor 100 000, por exemplo. Então é inevitável a pergunta de Frege, será que queremos entender a adição dos números cardinais no sentido de grandeza? Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 35 PITT, Eduardo Antonio Frege adverte que a concepção de Kant de intuição tem uma ampla ligação às nossas representações interiores. O próprio Kant (s/d, p. 49) a definiu: “a intuição é uma representação singular (repraesentatio singularis), o conceito uma representação geral (repraesentatio per notas communes)”. Para deixar ainda mais evidente na Crítica da Razão Pura tematizada na Estética Transcendental, Kant escreve: “os objetos são-nos, portanto dados através da sensibilidade e só esta nos fornece intuições”(s/d, p. 49). A intuição tomada nesse sentido se enquadra bem no contexto da Geometria. Só conseguimos distinguir os pontos, retas e planos quando estes são sensivelmente apreendidos simultaneamente numa mesma intuição. Isto se explica porque os pontos, retas e planos não possuem um caráter individual e, portanto, podem funcionar como representantes de toda a espécie. No caso dos números o problema é diferente porque cada número tem a sua especificidade. Ao estabelecer uma comparação entre a Geometria e a Aritmética constata-se uma diferença entre as verdades de cada uma em função dos domínios que elas regem. Esta constatação testemunha contra a natureza empírica e sintética das leis aritméticas. As verdades geométricas regem o domínio do espacialmente intuível quer seja realidade física ou psicológica e disso conclui-se que os axiomas da geometria são independentes das leis lógicas gerais primitivas, sendo, portanto, sintéticos. Ao contrário, as leis primitivas fundamentais dos números são analíticas porque podem ser obtidas pelas leis lógicas. Outro ponto de vista a respeito do status epistemológico dos números é de John Stuart Mill. A sua definição, como dissemos anteriormente, aponta para o sintético a posteriori. De acordo com Dummett (1991, p. 58) Mill afirma que “O fato observado que corresponde à definição de '3' é reivindicado ser que coleções de objetos existem que, enquanto elas impressionam os sentidos assim ‘οοο’, podem Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 36 | P a g e PITT, Eduardo Antonio ser divididas em duas partes, assim ‘οο ο’”. Mill também deriva os cálculos de fatos observados a partir de coleções de objetos. Frege em suas argumentações não economiza críticas à Mill por assumir tal postura. As considerações destinadas a rebater a posição a favor do sintético a posteriori parecem que essa posição assumida por Mill é menos plausível do que a posição defendida por Kant. Frege destina as seguintes perguntas à Mill. Como ficaria então o número 0? O ‘0’ seria um sinal vazio sem sentido? Quem alguma vez observou um fato que represente um número do tipo 1 000 000? Como poderia evoluir a aritmética com tais exigências empíricas? Estas são perguntas colocadas por Frege diante da explicação apresentada por Mill. Para terminar a discussão sobre o caráter analítico das leis aritméticas, Frege concorda com o caráter indutivo do desenvolvimento da aritmética, mas aponta que as leis estabelecidas indutivamente não são suficientes, pois sempre será necessário derivar delas proposições que ampliem nosso conhecimento. No entanto, o que interessa para o caráter da discussão não é o modo de obtenção dos juízos, mas, sim o tipo de fundamentos sobre os quais se apóia a sua demonstração. E é justamente nesse ponto que Frege estabelece a origem analítica das leis aritméticas. 3: Crítica de Frege a concepções sobre a natureza dos números 3.1: Crítica ao Empirismo A crítica de Frege ao empirismo se encontra fortemente no capítulo II dos Fundamentos da Aritmética e é norteada pela seguinte pergunta: Será o número cardinal uma propriedade das coisas exteriores? Para os empiristas os números teriam por base a experiência psicológica oriunda de nosso conhecimento sensorial do mundo físico. Segundo Claude Imbert (1971, p. 27), as dificuldades que Frege Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 37 PITT, Eduardo Antonio encontrou na definição de número cardinal se devem ao fato dos matemáticos e filósofos frequentemente confundir a aritmética racional com o ato de contar, vejamos como isso decorre. Frege se preocupa com a questão porque pretende esclarecer se o conceito de número individual pode ser retirado da linguagem vulgar que o associa sob uma forma adjetiva e num contexto atributivo semelhante ao que acontece com palavras como duro, pesado e vermelho, as quais denotam propriedades das coisas exteriores. Com esta posição concorda M. Cantor (s/d, p. 54) que classificou a Matemática como uma ciência experimental, na medida em que principiaria com a observação de objetos do mundo exterior. Desta maneira, o número se formaria por abstração a partir de objetos. Uma concepção igual tem também E. Schrôder (s/d, p. 55) ao considerar que obtemos o número a partir da realidade, a qual ele reproduziria, na medida em que as diversas unidades reais seriam retratadas pelo um. Ao serem retratadas, as unidades seriam representadas apenas em função da sua frequência, neste caso, frequência é apenas outra expressão para número cardinal. Schrôder coloca, então, a freqüência ou número cardinal a par com a cor e a forma e a considera como uma propriedade das coisas. Como contraponto, Frege apresenta a concepção de Baumann (s/d, p. 55) que rejeita a idéia de abstração dos números a partir das coisas exteriores, como acontece com as cores, por exemplo. Para Baumann, chegamos ao número a partir do nosso ponto de vista. Com isso podemos explicar a situação em que pedimos a duas pessoas para classificar a Ilíada e obtemos as respostas: para uma pessoa a Ilíada é um poema e para a outra a Ilíada são 24 cantos. Da mesma forma, a diferença essencial entre cor e número consiste no fato da cor azul pertencer a uma superfície independentemente da nossa vontade. Ao contrário, eu nunca Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 38 | P a g e PITT, Eduardo Antonio poderei dizer que o número 1 pertence a um baralho completo porque posso me referir ao mesmo baralho como 52 cartas ou 4 naipes. Isso acontece devido ao nosso modo arbitrário de apreensão. Mill, Locke e Leibniz (s/d, pp. 56-57) estão de acordo sobre a aplicabilidade dos números serem amplas. Mill é da opinião que tudo aquilo que é composto de partes é composto de partes dessas partes. Essa é uma verdade válida para todos os fenômenos da natureza. Locke afirma que os números encontram aplicação em pessoas, anjos e todas as coisas que existem ou podem ser imaginadas. Leibniz concorda com Locke que os números devem ser aplicados a coisas incorpóreas e mais, chama o número uma figura incorpórea, originada pela reunião de qualquer coisa como Deus, anjo, uma pessoa e o movimento. Daí ele pensar ser o número algo de sumamente universal e pertencente à metafísica. Frege, até esse ponto, concorda com tais idéias, com restrição à de Leibniz, porque acredita que os números podem ser aplicados a todas as espécies de coisas e não somente a corpos físicos. Contudo diverge da opinião que devemos aplicar aquilo que é de natureza sensível ao que não é sensível. Por exemplo, quando vemos uma cor azul temos uma impressão específica, a qual corresponde à palavra azul e voltamos a reconhecê-la quando olhamos para outra superfície azul. Se partirmos do princípio análogo, algo de sensível corresponde à palavra três quando olhamos para um triângulo. Então teríamos que voltar a deparar com a mesma entidade sensível, no caso de nos encontrarmos diante de três conceitos. E isso sabemos não ocorre. Entretanto, enquanto que para Mill o número é algo de físico, para Locke e Leibniz ele consiste apenas numa idéia. Com efeito, Mill afirma que dois cavalos é algo de fisicamente diferente de três cavalos, mas, como pergunta Frege: concluiRevista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 39 PITT, Eduardo Antonio se daqui que a díade ou a tríade sejam algo de físico? Ou como apontar as diferenças físicas entre dois conceitos e três conceitos? Outro ponto que Mill parece não atentar é que existe uma igualdade de fenômeno sensível entre um par de botas e duas botas. Ele não enxergou a diferença numérica entre dois e um par de botas. Outro ponto de vista interessante, mas igualmente equívoco é o de Berkeley (s/d, p. 58) que vê o número inteiramente como criação da consciência e não como algo que exista realiter nas coisas mesmas. A consciência então pode combinar idéias e a partir desse momento conceituá-la de unidade. De acordo com a combinação de idéias variaria a unidade e assim variaria o número. É claro que Frege rejeita esta idéia por ela estar carregada de psicologismo, o qual irei tratar agora. 3.2: Crítica ao Psicologismo Continuamos a analisar o capítulo II dos Fundamentos da Aritmética porque nele se encontra a controvérsia entre Frege e os psicologistas. Estes defendem que os números têm por fundamento objetos de natureza psicológica e subjetiva produzidos pelas leis inerentes ao pensar. Com essa teoria eles queriam incluir a lógica como um mero ramo da psicologia. A argumentação que Frege irá usar será no sentido: Será o número algo de subjetivo? Negar que o número seja abstraído das coisas exteriores para cairmos em uma representação psicológica como fundamento deste é o erro que Berkeley cometeu, mas, em compensação ele não se encontra sozinho. Em companhia a Berkeley podemos citar Lipschtz que precede a concepção do número uma visão panorâmica de coisas, para tanto, é necessário criar uma visão de algo particular e ir acrescentando sempre uma coisa nova à anterior. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 40 | P a g e PITT, Eduardo Antonio Ora nessas condições não se chegará nunca à demonstração rigorosa de uma proposição aritmética e nada se acrescenta a respeito das propriedades dos números. Frege argumenta que a concepção de número não depende em nada das representações mentais porque o número não é objeto da psicologia, mas sim algo de objetivo. Frege estabelece uma distinção entre aquilo que é objetivo, subjetivo e aquilo que é espacial, real. Por exemplo, o eixo da terra ou o centro de gravidade do sistema solar são objetivos do ponto de vista do sentido, a representação em nossas mentes desses nomes é subjetiva, mas ambos não são reais como o planeta Terra. Deste modo, Frege entende por objetividade a independência em relação às nossas faculdades sensoriais, intuitiva e representativa, bem assim como em relação à nossa faculdade de formar imagens interiores a partir de memórias de sensações anteriores, mas não a independência em relação à razão. Assim, Frege lança a sua crítica também a descrição de Schlomilch (s/d, p. 60) pois este chama ao número uma representação do lugar de um objeto numa série. Ora, se número fosse representações deveria existir vários números ‘5’, pois cada um de nós teria a sua representação. Também a mesma pessoa pode representar o mesmo ‘5’ de diferentes maneiras ao decorrer de um dia porque nossas representações carregam bastante das emoções que sentimos. E, se isto fosse verdade, operações numéricas nunca teriam qualquer objetividade porque o que representaria para mim “2 + 2” não representaria a mesma coisa para você e para outras milhões de pessoas que existem. Sendo assim, Frege chega à conclusão de que o número nem é espacial e físico tal como são as demonstrações de Mill, nem é algo de subjetivo como o são as representações, sendo antes insensorial e objetivo. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 41 PITT, Eduardo Antonio 3.3: Crítica ao Formalismo As críticas de Frege recorrentes às teorias formalistas se encontram precisamente na conclusão de Os Fundamentos da Aritmética e apontam para a discussão da natureza dos números negativos, fracionários, irracionais e complexos. Não é de se estranhar controvérsias entre as teorias formalistas e o logicismo proposto por Frege quando se toma conhecimento do método arbitrário proposto por Hankel e Kossak que são citados na obra que é fonte de análise desse artigo. Segundo Dummett (1991, p. 252), “o Formalismo radical é a doutrina em que a fórmula de uma teoria matemática não expressa enunciados genuínos que podem ser verdadeiros ou falsos, mas são meramente seqüências desinterpretadas de símbolos – letras em um alfabeto no sentido generalizado – conforme regras prescritas da manipulação matemática”. O que Dummett diz é que o Formalismo radical apresenta tais pressupostos: privilegia a forma das fórmulas matemáticas e não dá valor ao conteúdo das mesmas, considera a matemática uma ciência livre de contradições, considera não existir objetos matemáticos e sim fórmulas matemáticas livres de significado e valor lógico e por fim considera a matemática pura um mero “jogo lingüístico” sem sentido com regras estabelecidas (axiomas) assim como o xadrez. Com isso, somos obrigados a reconhecer o salto qualitativo que o logicismo de Frege deixou para a ciência analítica. Hankel em sua obra Theorie der Komplexen Zahlensysteme (s/d, p. 103) comenta: O número não é uma coisa, uma substância que exista autonomamente fora do sujeito pensante e dos objetos que o suportam, como aconteciam na época dos pitagóricos. Por conseguinte, perguntar pela existência é algo que só pode ser feito Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 42 | P a g e PITT, Eduardo Antonio a propósito do sujeito pensante ou dos objetos pensados, cuja relação os números apresentam. Para Frege, isso não faz sentido nenhum porque os números não existem no interior dos sujeitos ou dos objetos. Pelo contrário, Frege dá ao número um caráter objetivo porque o mesmo número pode pertencer a várias pessoas e a dependência deste aos estados interiores das pessoas retoma a visão psicológica da questão e já demos, neste artigo, atenção às considerações de Frege a respeito de tal fundamentação. Na seqüência, Hankel (s/d, p. 103) mostra outro ponto de vista seu: “Para o matemático, só conta como impossível em sentido estrito aquilo que é logicamente impossível, isto é, que se contradiz a si mesmo. Que não se podem admitir números impossíveis nesse sentido é algo que deve ser demonstrado”. Para Frege, um conceito continua sendo admissível mesmo quando suas características envolvem uma contradição o que não se pode pressupor é que algo caia sob esse conceito. Outro detalhe, nem sempre a contradição é evidente e quem poderá com certeza afirmar que ela não está ali? Frege esclarece que em sentido estrito, a ausência de contradição num conceito só pode ser mostrada por meio da apresentação de uma prova de que algo caia sob esse conceito. Hankel e Kossak parecem não se preocupar com a fundamentação dos conceitos porque são acusados por Frege de caírem nesse erro quando a respeito da equação “x + b = c”, dizem (s/d, p. 104): “É óbvio que, se b > c, não existe qualquer número x na série 1, 2, 3, ... que resolva o problema: a subtração é então impossível. Nada nos impede, no entanto, de considerar, neste caso, a diferença (c – b) como um sinal que resolve o problema...”. Há, porém, para Frege, algo que nos impede de admitir o sinal (c – b) como um sinal que resolva o problema. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 43 PITT, Eduardo Antonio Este sinal é um sinal vazio, isto é, sem conteúdo. Enquanto sinal ele possui determinadas propriedades físicas, mas não a de somado com 3 dar 2. De modo análogo, poderíamos dizer que não existe nenhum número que satisfaça simultaneamente ambas as igualdades, “x + 1 = 2” e “x + 2 = 1”, mas nada nos impede de introduzir um sinal que resolva o problema. É este o erro que padece a teoria formal dos números fracionários, negativos e complexos, segundo Frege (s/d, p. 105), “desde que em lado nenhum se esbarre com uma contradição, considera-se como justificada a introdução dos novos números, como se não fosse ainda possível encontrar uma contradição escondida e como se a ausência de contradição justificasse tal atitude arbitrária”. Com esse método formalista de introdução arbitrária de sinais vê-se que esses matemáticos se preocupam em dar as instruções para a obtenção das definições, mas não as próprias definições, ou seja, os formalistas não se preocupam em estabelecer o sentido de um juízo de reconhecimento para o caso dos números introduzidos. E isso perante a lógica conceitual de Frege é inadmissível. Kossak (s/d, p. 108) chega mesmo a afirmar a respeito do número complexo que “ele consiste na representação composta que reúne grupos heterogêneos de elementos iguais entre si”. A respeito dessa afirmação não se chega à denotação de “1 + i” porque pelo termo ‘representação’ entendemos que “1 + i” pode ser qualquer coisa menos a definição de número complexo. Antes é necessário sabermos o que ‘i’ denota para não introduzirmos na Aritmética algo que lhe é alheio. Se recorrermos a representação geométrica dos números complexos conseguimos precisar o contexto em que este ocorre, mas de acordo com esta interpretação todo número complexo fica dependente de uma intuição geométrica o que o tornaria a posteriori ou, pelo menos, sintético. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 44 | P a g e PITT, Eduardo Antonio Então, Frege elucida a questão de como são dados os números negativos, fracionários, complexos e irracionais sem recorrer à ajuda da intuição e sem introduzir sinais sem conteúdos. Estes não serão misteriosos se estabelecermos o “conteúdo de um juízo de reconhecimento, em outras palavras, temos que procurar um conteúdo judicativo que possa ser transformado numa igualdade, cujos lados serão então precisamente os novos números” (Imbert, 1971, p. 35). Há, portanto que se estabelecer corretamente a relação biunívoca entre os objetos que caiam sobre os conceitos para que os números sejam dados como extensões de conceito. 4: A definição de número cardinal em Frege Uma das asserções preliminares de Frege a respeito dos números cardinais é que cada número individual é um objeto autônomo, isto é, um objeto saturado cuja existência não depende de agentes externos. Como dissemos, os objetos são saturados, porém a autonomia que Frege reivindica ao número não é no sentido que uma palavra numérica tenha denotação fora do contexto de uma proposição porque já vimos em Frege, só no seu contexto é que as palavras têm realmente uma denotação. A autonomia que Frege ordena aos números é no sentido de excluir o uso desses como predicados ou atributos muito comuns na linguagem natural. O uso vulgar da linguagem, que empresta ao número um caráter atributivo, pode ser alterado em favor da lógica quando remodelamos proposições do tipo “Júpiter tem quatro luas” para “O número das luas de Júpiter é quatro”. Aqui o “é” não ocorre como simples cópula como na proposição “O céu é azul”, mas com a semântica do sinal da identidade aritmética, “é igual a” ou “é o mesmo que”. Se remodelarmos a proposição “O céu é azul” para o “O céu é o mesmo que azul”, Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 45 PITT, Eduardo Antonio estaremos falando que o termo “azul” tem existência própria da mesma maneira que o termo “céu”. O uso como predicados é equívoco se repararmos em proposições do tipo “Para o conceito F vem o número 0”. Nessa sentença 0 é apenas uma parte do predicado, considerando as quatro primeiras palavras da mesma como sujeito real. É nesse sentido que Frege entende o número individual como um objeto autônomo, na medida em que ele surge como uma parte independente da asserção. O número nas asserções é um objeto lógico constituinte de sentido completo e autônomo nas relações com as outras partes da asserção. Mesmo sendo o número um objeto autônomo, Frege reconhece ser impossível pensar sem recorrer a representações. No entanto, é preciso saber o que essas representações denotam. Podemos disser com clareza que as palavras nos induzem a representações de objetos, principalmente se tomadas isoladamente. Quando essas são tomadas em uma proposição completa, o todo da proposição ganha um sentido e com isso as partes constituintes da proposição acabam adquirindo um conteúdo. Desta maneira, o número para Frege nunca pode ser um objeto de uma representação porque não é algo sensível e menos propriedade de qualquer coisa, o número é objetivo, mas sua existência é autônoma. Outra asserção preliminar de Frege é que para se obter o conceito de número cardinal é necessário determinar o sentido de uma igualdade numérica porque esta é uma forma dominante na Aritmética. Frege tem o olhar voltado para a importância de se estabelecer um critério geral para a igualdade entre números, um critério que nos permita reconhecer um número como sendo o mesmo em outra ocorrência. Estando de posse de tal critério poderemos atribuir uma palavra numérica como nome próprio de um número. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 46 | P a g e PITT, Eduardo Antonio Segundo comentário de Imbert (1971, p. 49), a importância da igualdade numérica “é que ela enuncia uma relação entre dois objetos representados a um e outro por um sinal simples, interpretado como nome próprio de objeto”. O critério de identidade de números que Frege adotou é o conhecido Princípio de Hume: “o número que pertence a ‘F’ é igual ao número que pertence a ‘G’ quando existe uma correspondência 1-1 entre os ‘Fs’ e os ‘Gs’. Uma vez estabelecido que o PH é um critério de identidade de números o problema é que ele não estabelece o que é um número. Isto nos leva ao conhecido problema de Julio Cesar, isto é, determinarmos se Julio Cesar é um número ou não. De qualquer forma Frege acabou por denominar um “conceito de segunda ordem F equinumérico4 ao conceito de primeira ordem G” sempre que ocorrer tal possibilidade. Se na proposição “α está logo à direita de A” substituirmos outros objetos nos lugares de α e A simultaneamente, a parte do conteúdo do juízo que permanece imutável no decorrer dessas alterações é a essência da relação. Essa essência recebe o nome de conceito relacional. Ou seja, “ao extrairmos a e b de um conteúdo judicativo que trate de um objeto a e de um objeto b, aquilo com que ficamos é um conceito relacional”. Uma vez detectado o conceito relacional podemos no lugar de a e de b colocar c e d e outros pares mantendo o sentido que denotava antes. Para Frege, o conteúdo relacional pertence como o conceito simples à Lógica pura porque ao considerar a sua forma lógica detectamos um caráter analítico a priori. Assim, nós podemos ter um conteúdo judicativo que trate de um objeto a, seria “a cai sob o conceito F” e podemos 4 “O critério de equinumerosidade constitui o critério de identidade para reconhecer um número”. ZILHÃO, Antonio. Prefácio In: GOTTLOB, Frege. p.13. s/d. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 47 PITT, Eduardo Antonio ter um conteúdo judicativo que trate da relação entre dois objetos a e b, “a está na relação φ com b”. Se cada objeto que cair sob o conceito F estiver na relação φ com um dos objetos que caem sob o conceito G, e se cada objeto que cair sob o conceito G estiver na relação φ com um dos objetos que caem sob o conceito F, então os objetos que caem sob F e G estão entre si em correspondência por meio da relação φ. Para que essa correspondência seja biunívoca é preciso que a relação entre as proposições seja uma função. Podemos entender o caráter lógico que Frege empresta à sua definição de correspondência biunívoca a partir dessas inferências: 1- Se d estiver com a na relação φ e se d estiver na relação φ com e, então, quaisquer que sejam d, a e e, a é em geral o mesmo que e. 2- Se d estiver com a na relação φ e se b estiver na relação φ com a, então, quaisquer que sejam d, b e a, d é em geral o mesmo que b. Desse modo, Frege estabelece a correspondência biunívoca a meios puramente lógicos e apresenta a seguinte definição: a expressão “O conceito F é equinumérico ao conceito G” significa o mesmo que a expressão “Há uma relação φ que faz corresponder biunivocamente os objetos que caem sob F com os objetos que caem sob G”. Partindo desse raciocínio, Frege mostra que os números cardinais que vem para dois conceitos equinuméricos são os mesmos se a extensão do conceito “equinumérico ao conceito F” for a mesma que a extensão do conceito “equinumérico ao conceito G”. Frege quer demonstrar que na base desse pressuposto se obtêm as seguintes proposições: 1- Se o conceito H for equinumérico ao conceito F, então também é equinumérico ao conceito G. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 48 | P a g e PITT, Eduardo Antonio 2- Se o conceito H for equinumérico ao conceito G, então também é equinumérico ao conceito F. A partir dessas definições podemos ver que Frege na sua definição de número utiliza termos lógicos como conceito, extensão de conceito e equinumerosidade. O objetivo do seu logicismo em fundamentar a Aritmética em princípios lógicos necessitava que o objeto mais próximo dessa ciência, digo, o número cardinal, fosse desvendado a partir de noções elementares da lógica. A inovação de Frege ao relacionar os números a conceitos e não a objetos possibilitou a definição dos números individuais como um objeto lógico definido como a extensão do conceito de segunda ordem “equinumérico a...”. Sem dúvida, o princípio que uma atribuição numérica contém uma predicação de um conceito, é considerado por Frege o resultado mais importante de Os Fundamentos da Aritmética. Uma vez associado os números aos conceitos, quais conceitos poderiam ser associados aos números cardinais finitos? Existiria um conceito para o número ‘0’? E seus sucessores? Frege recorre a um conceito que envolve uma contradição para definir o número ‘0’ e o define da seguinte forma: a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘ser desigual a si mesmo’”. Sabemos que o logicismo de Frege não descarta tais conceitos contraditórios. Diante um conceito do tipo “desigual a si mesmo”, o que é inadmissível é cair um objeto sob esse conceito. Afinal o que a Lógica exige como um rigor demonstrativo de seus conceitos é que eles delimitem com precisão os objetos que sob eles caem. Nesse sentido, um conceito que nada subsume, digo, um conceito que possui um escopo vazio, só será equinumérico aos conceitos da mesma categoria, aqueles que possuem escopo vazio. Não haverá equinumerosidade entre Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 49 PITT, Eduardo Antonio um conceito que nada subsume com um conceito que ocorre a presença de um ou mais objetos. Se associarmos o número ‘0’ à extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘ser desigual a si mesmo’” porque esse conceito apresenta uma extensão vazia. Então associamos o número ‘1’ à extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘ser igual a 0’” porque sob esse conceito cai exclusivamente o objeto ‘0’. O ‘2’, por sua vez, é definido como a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘igual a 0 ou 1’” e assim, as demais definições dos números individuais seguem-se conforme esse critério. Quando for o caso em que sob um conceito F cair dois ou mais objetos e que o número que relacionamos a extensão desse conceito for o número ‘1’ é porque os objetos que foram subsumidos pelo conceito F são os mesmos, isto é, ocorre o caso da identidade aritmética x=y=z=w... . Portanto, para Frege, segundo as suas elucidações, o número cardinal que vem para a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘ser igual a 0’” é ‘1’ e este segue imediatamente na série natural dos números a ‘0’. Da mesma maneira, a relação de sucessor faz com que o ‘2’ siga imediatamente na série natural dos números a ‘1’ e assim por diante. Somente a elucidação lógica de seguir-se numa série é que torna possível reconduzir as leis lógicas gerais à forma de inferência de n para (n + 1) que é tão comum na Matemática. Frege, a partir dessas definições, considera que cada número cardinal, à exceção do ‘0’, segue-se imediatamente na série natural dos números a um número cardinal. Frege apresenta o conceito “ser equinumérico ao conceito ‘pertencente à série natural de números que termina em n’” para designar o último número pertencente à série natural dos números. Frege, entretanto, quer provar que não há um número que seja o último número da série. A intenção é mostrar que o Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 50 | P a g e PITT, Eduardo Antonio número que vem para a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘pertencente à série natural de números que termina em n’” se segue imediatamente a n nessa série. Frege no livro, Os Fundamentos da Aritmética, não chega a demonstrar o que ficou dito acima, mas apresenta um esboço do mesmo. Para Frege a elucidação dos números infinitos começa por demonstrar que a é o número cardinal que vem para a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘pertencente à série natural de números que termina em n, mas não idêntico a n”. Para tanto é preciso demonstrar que esse conceito tem a mesma extensão que o conceito “ser equinumérico ao conceito ‘pertencente à série natural de números que termina em n’”. Além disso, temos que ter por base a proposição que diz “nenhum número na série natural que começa em ‘0’ segue a si mesmo”. Será essa demonstração que nos permitirá concluir que n pertence à série natural dos números que começa em ‘0’ e que o número cardinal que vem para a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘pertencente à série natural de números que termina em n’” segue imediatamente a n nessa série. Sendo assim, podemos concluir: a proposição “n pertence à série dos números naturais que começa em 0” significa o mesmo que “n é um número cardinal finito” e em seguida, “nenhum número cardinal finito se segue a si mesmo na série natural dos números”. Frege define que o número cardinal que vem para a extensão do conceito “ser equinumérico ao conceito ‘número cardinal finito’” é infinito e lhe dá o seguinte sinal, ∞1. Como vimos ao longo do livro Os Fundamentos da Aritmética, Frege obtém os números infinitos da mesma maneira que os números cardinais finitos. Tanto os cardinais finitos como os cardinais infinitos são produtos de associações puramente lógicas e a priori porque estão em íntima relação com as leis Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009 P a g e | 51 PITT, Eduardo Antonio do pensamento. O fato de não conseguirmos uma representação mental ou uma constatação empírica de um número infinito é aqui deixada de lado como o foi no caso dos números cardinais finitos. Como vimos, Frege para definir os números cardinais usou uma linguagem com termos lógicos do tipo conceito, extensão de conceito e equinumericidade. Com isso, pôde definir o número individual como um objeto abstrato puramente lógico, autônomo e objetivo definido como a extensão do conceito de segunda ordem “ser equinumérico a...”. Tendo esclarecido o conceito de número cardinal finito fez considerações a respeito da infinitude dos números cardinais a partir de relações lógicas mais complexas, assim como ocorre à sucessão da série dos números cardinais. Para concluir, reafirmamos que Frege no livro, Os Fundamentos da Aritmética, considera que os números existem independentemente de os pensarmos por meio da intuição. Sendo assim, a existência dos números é autônoma e Frege os associa às extensões de conceitos. As leis responsáveis pela mediação entre os números e as extensões dos conceitos são leis básicas da lógica e mostramos que Frege usa o critério de equinumericidade para caracterizar um número como sendo o mesmo se este aparecer como a extensão do conceito de 2ª ordem equinumérico ao conceito de 1ª ordem. Portanto, mesmo havendo uma discussão a respeito do status ontológico dos números, Frege inovou ao relacionar os números a conceitos e não a objetos. Isto possibilitou a definição fregiana de número através de uma linguagem estritamente lógica, sendo estes, objetos lógicos que associamos às extensões de conceitos. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27- 52, 2009 52 | P a g e PITT, Eduardo Antonio Referência Bibliografia básica Dummett, Michael (1991). Frege Philosophy of Mathematics. EUA. Harvard University Press. Frege, Gottlob. Les Fondements de l’arithmétique. Tradução, prefácio e notas de Claude Imbert (1971). Paris: Ed. Du Seuil. Do original Die Grundlagen der Aritmetik. Eine logisch mathematische Untersuchung uber den Begriff der Zahl (1884). Breslau. _____. Lógica e Filosofia da Linguagem. Introdução, tradução e notas de Paulo Alcoforado (1978). São Paulo. Ed. Cultrix/Ed. da USP. _____. Os Fundamentos da Aritmética. Uma investigação lógicomatemática acerca do conceito de número. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d. Tradução, prefácio e notas de Antonio Zilhão do original Die Grundlagen der Arithmetik. Eine logisch mathematische Untersuchung uber den Begriff der Zahl. Primeira edição 1884. Breslau. _____. Posthumous Writings. Tradução Long Peter e Roger White (1979). Ed. Universidade de Chicago. _____. The Frege Reader. Tradução de Michael Beaney (1997). Ed. Blackwell Publishing Ltd. Referencia Bibliografia secundária Mendelsohn, Richard (2005). The Philosophy of Gottlob Frege. Ed. Cambridge. Noonan, Harold (2001). Frege A Critical Introduction. Ed. Polity Press. Primeira edição. Weiner, Joan (2005). Frege Explained. From Arithmetic to Analytic Philosophy. Open Court P. C. _____ (2008). Frege in Perspective. Cornell University Press. Revista Eletrônica Print by (http://www.ufsj.edu.br/revistalable) Metanóia, São João del-Rei/MG, n.11, p.27 - 52, 2009