LARISSA APARECIDA SANTOS CLARO
A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE
MATO GROSSO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
CUIABÁ-MT
2010
LARISSA APARECIDA SANTOS CLARO
A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE
MATO GROSSO
Dissertação apresentada ao Programa Mestrado em
Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito final
para obtenção do título de Mestre em Estudos de
Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários.
Orientadora: Profª. Dra. Gilvone Furtado Miguel
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
CUIABÁ-MT
2010
11
FICHA CATALOGRÁFICA
C613p
Claro, Larissa Aparecida Santos
A voz de Arlinda Morbeck na poesia de Mato grosso./
Larissa Aparecida Santos Claro – Cuiabá: o autor, 2010.
100 p.
Orientadora: Prof. Dra. Gilvone Furtado Miguel
.
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Mato
Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiabá.
1. Literatura. 2. Crítica literária. 3. Estilística literária. 4. Literatura
Brasileira. 5. Literatura mato-grossense 7. Poesia matogrossense. I. Título.
CDU 82.09(817.2)
12
A VOZ DE ARLINDA MORBECK NA POESIA DE MATO GROSO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado
em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito
final para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA
EM CUIABÁ, 31 DE AGOSTO DE 2010
Profa. Dra. GILVONE FURTADO MIGUEL– UFMT (Orientadora)
Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite – UFMT
Examinadora Interna
Profa. Dra. Madalena Aparecida Machado-UNEMAT
Examinadora Externa
13
Dedico este trabalho aos meus pais:
Adenil e Antonia.
A meu irmão, Junior.
A meu companheiro. Moacir.
14
AGRADECIMENTOS
A meu pai, meu espelho, que sempre reflete os passos que sigo;
A minha mãe, por suas orações, apoio e carinho nesta caminhada;
A Junior, irmão amado, o maior incentivador de meus sonhos;
A Moacir, por este sonho compartilhado para cursar o Mestrado- pela espera,
carinho e força.
À professora Gilvone Furtado Miguel, sinto-me honrada por ser sua primeira
orientanda e agradecida pela confiança e pela delicadeza com que soube me
conduzir nessa escrita.
Ao professor Mario Cezar Silva Leite por suas aulas que me incentivaram e
pela leitura crítica de meu texto.
À professora Madalena Machado pelas valiosas sugestões;
Aos professores do Mestrado em Estudos da Linguagem-MeEL, que
contribuíram significativamente para minha formação enquanto pesquisador;
À CAPES, pelo financiamento concedido ao longo desta pesquisa.
15
Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa.
16
RESUMO
CLARO, L. A. S. A Voz de Arlinda Morbeck na Poesia de Mato Grosso. 2010, 100 p.
Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem), Instituto de Linguagem,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2010.
A presente pesquisa, que se desenvolveu no Programa de Pós- Graduação,
Mestrado em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos Literários, da
Universidade Federal de Mato Grosso, visa discutir e apresentar a poética da autora
mato-grossense, Arlinda Pessoa Morbeck (1889-1960) que, até o momento, se
encontra no anonimato. A pesquisa tem como objetivo identificar o estilo de escritura
feminina da poeta, relacionando-o com a literatura confessional- autobiografia.
Conquanto se trate de escritora mato-grossense, necessário se faz estudar,
também, o regionalismo, por ser nessa região o lugar em que a poeta escreveu a
maior parte de suas poesias. Arlinda Pessoa Morbeck viveu em Cuiabá de 1911 a
1916; seu esposo ,José Morbeck era Diretor de Terras, Minas e Colonização, motivo
que a trouxe a viver na região mato-grossense. Arlinda Morbeck deixou uma vasta
produção literária, em dezenove volumes de poesias e crônicas, tendo como
detentores os familiares. Apesar de não ter conseguido a publicação da sua obra, a
poeta escreveu para jornais em Cuiabá-MT e em Valparaíso-SP, cidade em que a
poeta teve leitores. Arlinda Morbeck teve como inspiração temática a região matogrossense e esteve presente no processo cultural do Estado, por isso, há a
necessidade de estudos acerca de sua poética, o que, pretende-se, muito contribuirá
para o preenchimento de lacunas existentes sobre a escrita da mulher na região. A
pesquisa toma como referencial teórico: PEREIRA (1957) VICENTINI (2005),
MAGALHÃES (2001), CANDIDO (2002), LEITE (2005), NADAF (1993), PAZ (1996),
FRIEDRICH(1991), BOSI (2000), entre outros.
Palavras-chave: Arlinda Morbeck, poesia, autobiografia.
17
ABSTRACT
CLARO, L. A. S. The Voice of Poetry in Arlinda Morbeck of Mato Grosso. 2010, 100
p. Thesis (MA in Language Studies), Institute of Language, Universidade Federal de
Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2010.
This research, which developed in the Graduate Program, MA in Language
Studies, area of concentration Literary Studies, University of Mato Grosso, aims to
present and discuss the poetry of the author of Mato Grosso, Arlinda Person
Morbeck (1889 -1960) who, until now, is anonymous. The research aims to identify
the writing style of the female poet, relating it with the literature-confessional
autobiography. While the case of Mato Grosso writer, make necessary study also
regionalism in this region for being the place where the poet wrote much of his
poetry. Arlinda Person Morbeck lived in Cuiaba 1911-1916; Morbeck her husband
Joseph was the Director of Lands, Mines and Colonization, the reason that brought
her to live in the region of Mato Grosso. Arlinda Morbeck left a vast literary output, in
nineteen volumes of poetry and essays, having family members as owners. Despite
not having achieved the publication of his work, the poet wrote for newspapers in
Cuiabá-MT-SP and in Valparaiso, a city where the poet had readers. Arlinda
Morbeck theme was inspired by the region of Mato Grosso and was present in the
cultural process of the state, so there is a need for studies about his poetry, which
aims to greatly contribute to filling gaps on the writing of women in the region. The
research takes as its theoretical framework: PEREIRA (1957) VICENTINI (2005),
Magalhães (2001), CANDIDO (2002), MILK (2005), Nadaf (1993), PAZ (1996),
Friedrich (1991), BOSI (2000) among others.
Keywords: Arlinda Morbeck, poetry, autobiography.
18
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA .......................................................................................................... IV
AGRADECIMENTOS ................................................................................................. V
RESUMO.................................................................................................................. VII
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
CAPÍTULO I .............................................................................................................. 13
I ARLINDA MORBECK: HISTÓRIA DE UM RESGATE ............................................ 13
I.1 LITERATURA E REGIONALISMO ....................................................................... 21
I.2 REGIONALISMO LITERÁRIO – BREVE PERCURSO ........................................ 24
I.3 REGIONALISMO EM MATO GROSSO ............................................................... 30
CAPÍTULO II ............................................................................................................. 37
II O QUE É POESIA .................................................................................................. 37
II.1 ESCRITA FEMININA- AUTOBIOGRAFIA ........................................................... 41
II.2 A MULHER NA ESCRITA LITERÁRIA ................................................................ 47
CAPÍTULO III ............................................................................................................ 53
III VOZES FEMININAS MATO-GROSSENSES ........................................................ 53
III.1 A VOZ DE ARLINDA MORBECK ....................................................................... 57
III.2 RUMORES, ROMEIROS, SERTÕES ................................................................ 62
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 96
19
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objetivo a apresentação da poética de Arlinda
Morbeck, desejo surgido na graduação em Licenciatura Plena em Letras, no campus
da UFMT, em Pontal do Araguaia, concluído no ano de 2005, época em que tive o
primeiro contato com a literatura mato-grossense e com a escrita da poeta. Meu
desejo era não só realizar a pesquisa sobre as produções de Arlinda Morbeck, como
também conhecer a literatura mato-grossense, até então pouco conhecida.
Com a oportunidade de cursar a pós-graduação – no Instituto de Linguagens
da Universidade Federal de Mato Grosso-pude dar continuidade aos estudos, antes
vistos na graduação, quando tive como grande incentivo os estudos realizados pelas
professoras Dra Gilvone Furtado Miguel e Dra Hilda Gomes Dutra Magalhães, que
têm suas pesquisas voltadas para as produções mato-grossenses.
A escolha do objeto de pesquisa não foi tarefa fácil. O material da escrita
de Arlinda Morbeck para a composição do corpus foi de difícil acesso, exigindonos trilhar um longo caminho que se tornou uma tarefa de responsabilidade, uma
vez que tivemos que recriar uma trajetória iniciada pela poeta pelos sertões
mato-grossenses.
Com o material de Arlinda Morbeck em mãos,correspondências, diários,
cadernos, matérias de jornais, homenagens e anotações, seguimos para o
próximo passo, buscar dentro de sua escrita a temática utilizada desenvolvida,
na escrita de suas poesias, sendo este o nosso foco de análise.
No primeiro momento, estava estabelecido analisar a poética e suas
temáticas, porém sob o olhar da discussão estabelecida na qualificação,
percebemos a necessidade de uma reconstrução a respeito do corpus da
pesquisa, tarefa que nos fez entender que Arlinda Morbeck não fornecia material
suficiente para compormos a primeira proposta, além de que o termo “Poética”
torna o estudo muito amplo.
E, nessa perspectiva de mudança, pensamos também em uma poeta que
está no anonimato, por isso, a criação de Arlinda Morbeck se faz não só na
literatura, mas sua escrita está inserida no campo da memória, e este exige a busca
pelo que foi essa mulher, em que meio estava inserida, por que escrevia e o seu
material responde e anseia por tudo isso. Assim, encontramos uma mulher que
20
produziu, testemunhou e evocou o passado não só para registro próprio, mas existe
em sua escrita o desejo do reconhecimento, a tristeza da não oportunidade e o mais
importante nessa teia discursiva, Arlinda Morbeck assume o papel de imprimir a sua
versão sobre si mesma, visto que a memória autobiográfica percorre a tessitura da
sua escrita e de seus depoimentos.
E nessa rede de memórias que, são suas poesias, não podemos, por ora,
pelo material de que dispomos, confirmar que sua escrita contribui para a literatura
mato-grossense com temas voltados para essa terra, como fizeram grandes nomes
reconhecidos por leitores, porém nosso papel, neste momento, fica em posicioná-la
como mulher que viveu na região mato-grossense e que, nos cenários dos sertões,
deu voz a suas memórias, o que possibilita “luz” nesse caminho, ainda em
construção, da literatura feminina mato-grossense
Nossa pesquisa está estruturada em três capítulos. Em Arlinda MorbeckHistória de um Resgate, o nosso objetivo é apresentar sua biografia, para entrelaçar
obra e história de vida, e, assim, a instituímos como poeta, e suas poesias ganham
sentido, por se tratarem de suas memórias vivas (família, amigos, amor, solidão,
filhos).
Em Literatura e Regionalismo e em seus subtítulos “Regionalismo LiterárioBreve Percurso” e “Regionalismo em Mato Grosso”, discutimos o tema da literatura,
como uma forma de expressão da realidade e de falar sobre o mundo; é pela,
literatura que
percorremos outros caminhos, permitindo que desvendemos a
escritura de um autor. Devido a busca nesse processo de reconstrução de história
de vida, há a necessidade de demarcamos em que meio a poeta se insere; visto que
a literatura é a expressão da realidade a qual se vive, o regionalismo neste momento
não servirá como matriz de análise e, sim, para delimitarmos o meio em que a poeta
viveu e inspirou-se para composição de suas poesias.
Em ,“O que é poesia”, abordamos, de forma sucinta, a arte da escrita , sua
essência, conceitos, expressão,sua ligação e o tempo. Contextualizando a poesia
como uma linguagem e suas modalidades, conseguimos estabelecer a ligação com
a escrita de Arlinda Morbeck na qual encontramos movimento, imagem, tempo,
expressão e ritmo; a poesia foi para ela não só uma forma de escrita, mas a
salvação de uma vida solitária.
Em A Mulher na Escrita Literária fazemos uma abordagem geral da critica à
literatura feminina, no século XX, para compreendermos o silêncio vivido por tantas
21
mulheres, como Arlinda Morbeck, que escreveram em uma época em que o papel
da mulher era estabelecido por grades dos casamentos, uma censura estabelecida
dentro de seus próprios lares. Os Cadernos como os de Arlinda ainda estão
guardados em alguma gaveta, sendo destruídos pelo tempo, porque a escrita
feminina ainda hoje luta por espaço. Se vivemos da memória, como seres humanos,
necessitamos das lembranças para a construção do futuro, é nas leituras, de cunho
autobiográfico que podemos seguir por outros mundos e, a cada página, sabermos
que tudo foi realmente vivido.
No quarto capítulo, intitulado “Vozes Femininas Mato-Grossenses”, “A Voz de
Arlinda Morbeck” e “Rumores, Romeiros, Sertões”, seguimos para a análise das
poesias de Arlinda. Com o seu material selecionado e, depois de muitas leituras, a
indagação sobre a escrita feminina em Mato Grosso foi uma busca necessária, no
sentido de que precisávamos ter o conhecimento de mulheres que produziram na
região, e, se muitas dessas vozes não se cruzam, sejam elas reconhecidas, na
prosa ou na poesia. A teoria de Pareyson (1997) e de Lejuene nortearam essa Voz
de Arlinda Morbeck, uma mulher que escreve sua trajetória pessoal por meio de
suas memórias que deixam lacunas para nós, leitores, refletirmos sobre a dúvida
estabelecida pela autobiografia: houve priorização de sentimentos? Omissão de
fatos?
Enfim, embasados na teoria de Barthes, Fragmentos de um Discurso
Amoroso, analisamos as poesias de Arlinda Morbeck, buscando a compreensão
desse discurso amoroso que é sempre estabelecido como efêmero, como algo
estabelecido, acabado; porém, as poesias aqui apresentadas são marcadas da
imaginação que abre as portas para os que as leêm e fundamenta-os.
É conveniente destacarmos que, para compreensão do corpus desta
pesquisa, foi necessário debruçarmos sobre a leitura de outras produções matogrossenses, como a de Dom Aquino Correa, que deixou em sua escrita temas
relevantes, para prensarmos na identidade cultural de Mato-Grosso.
22
CAPÍTULO I
ARLINDA MORBECK: HISTÓRIA DE UM RESGATE
Terminar um Livro é alcançar a vitória de nossas inspirações!
Arlinda Morbeck.
Em 2005, final da graduação em Letras, no momento de decidir o objeto
de estudo para a pesquisa final, as aulas de Literatura foram fundamentais para
a escolha do tema. As aulas da Professora Dra. Hilda Dutra Magalhães, de
Literatura Mato-Grossense, nas quais ela apresentou à turma o material
selecionado por ela e pelo historiador Valdon Varjão, intitulado Poesias,
despertaram minha atenção. Essas poesias eram de Arlinda Pessoa Morbeck.
Não há como negar que sua escrita encanta e desperta qualquer alma feminina;
sua fragilidade e seu tom confessional envolvem todos aqueles que tenham um
primeiro contato com suas poesias.
Decidido o objeto, hora de trabalhar, tarefa que não foi fácil. Apesar de
uma mulher que, como tantas outras, teve uma alma feminina repleta de alegrias
e dores, Arlinda viveu uma realidade diferente de outras. Sua escrita revela toda
uma vida envolta da historiografia mato-grossense da época, por isso, tivemos
que perpassar seus caminhos percorridos, em busca de sua história, de sua
escrita, para conseguirmos dar inicio à organização do corpus.
Inicialmente, convém relatarmos o período em que a poeta viveu. Filha de
Arquimedes Secundino Martins da Silva, desembargador da cidade de SalvadorBA, e de dona Maria Autímia Aragão Pessoa, Arlinda Pessoa nasceu em 04 de
abril de 1889, na capital baiana.
Aos 17 anos, colou grau no Instituto Normal da Bahia, tendo sido, logo
após, nomeada para lecionar na Terceira Escola do Distrito da Penha - BA.
Arlinda frequentava a alta sociedade de sua época e era uma moça refinada, que
gostava de bailes e saraus.
23
O gosto pela leitura e pela escrita surgiu em sua vida, já na mocidade. E foi
em um desses bailes, chamados na época de Saraus, em que aconteciam
declamações e boa música, que Arlinda conheceu aquele que viria a ser o motivo de
suas inspirações, para escrever, com grande esmero, poesia e prosa.
Arlinda conhece, no ano de 1905, José Morbeck, como ela nos descreve em
um de seus diversos poemas dedicados ao marido, engenheiro agrônomo que
residia na cidade de Caiapônia, em Goiás, por motivos de sua profissão. Arlinda,
durante todo o tempo de namoro, que durou seis anos, alimentava esse sentimento
de amor por meio de cartas e cartões-postais. Foi então que, no ano de 1908, ela
escreveu, numa caderneta intitulada “O Livrinho Verde”, desde o momento em que
conheceu José Morbeck até toda sua espera e saudade.
No dia 10 de junho de 1911, Arlinda e José Morbeck casam-se na cidade de
Salvador-BA de onde embarcam, em um navio, rumo à cidade de Cuiabá. Tudo
nesse momento era estranho para a dama, mas o amor falava mais alto dentro de si.
Arlinda deixa toda a família para trás e, por entre as águas do mar escreve suas
poesias nessa, então, lua-de-mel.
A viagem foi longa; muitos dias se passaram, e Arlinda, a cada poema escrito,
confirmava o amor que sentia pelo esposo. Salvador, Rio de Janeiro, Buenos Aires
e, finalmente, a cidade de Cuiabá-MT, onde o Dr. José Morbeck iria ocupar o cargo
de Diretor de Terras, Minas e Colonização. É no Estado de Mato Grosso que essa
mulher, professora e mãe, vem nos abrilhantar com suas poesias; mesmo hoje,
permanecendo no anonimato, podemos afirmar que, de tão longe, veio uma dama,
para aqui exercer o que ela considerava como o de melhor que existia em sua vidasua escrita. Por isso, para compreendermos sua escrita, precisamos percorrer os
caminhos trilhados na região mato-grossense.
Permaneceu na cidade de Cuiabá até o ano de 1916, quando foi nomeada
para as Escolas Urbanas da Prelazia de Registro do Araguaia, hoje, cidade de
Araguaiana, passando a lecionar nesses agrestes sertões para onde transferiu seu
domicílio, tendo sido seu marido afastado de seu cargo, por não aceitar as injustas
imposições fiscais do governo local; em detrimento dos garimpeiros, assumindo a
liderança destes.
O Estado de Mato Grosso teve sua história marcada por bandeirantes
paulistas que buscavam ouro na região; que foi descoberta por ser rica em
24
mineração e sofreu todas as condições que a exploração aurífera é capaz de
causar. Cuiabá foi fundada em 1719, e foi o maior garimpo de ouro do País. E foi por
meio de um Bandeirante, Dr. Deocleciano do Canto Menezes, que José Morbeck
veio a trabalho para o Estado de Goiás e, depois, para Mato Grosso.
No ano de 1915, Cuiabá tinha como governador Dom Aquino Corrêa que
passou uma concessão de exclusividade de garimpagem no vale do rio Garças e
seus afluentes, até a sua foz no rio Araguaia, para uma Multinacional Inglesa “Cia
Indústria e Comércio”, provocando o desemprego de milhares de garimpeiros.
Morbeck, com um parecer contrário, pede demissão de seu cargo ao Governador,
que revoga, então, a concessão dada à Multinacional Inglesa, evitando, com isso,
uma revolta armada dos garimpeiros que estavam ao lado de José Morbeck.
Arlinda teve de deixar, com saudades, a cidade de Cuiabá, onde tivera muitos
amigos, dentre eles o Arcebispo e poeta Dom Aquino Corrêa que tinha o grande
desejo de prefaciar seus poemas, por ter uma admiração pela coragem dessa
mulher de deixar sua terra natal, para viver nas selvas do leste mato-grossense. No
entanto, foi o Dr. Agrícola Paz de Barros quem publicou, no Jornal de Cuiabá “A
Cruz”, um de seus poemas.
Em
Valparaíso-SP,
cidade
para
a
qual
Arlinda
Morbeck
muda-se
posteriormente com a família, dedicou sua escrita a um jornal local e, dentre muitos
de seus poemas, podemos destacar este que marca sua emoção de retornar à
cidade de Cuiabá.
25
Percebemos que, apesar das dificuldades enfrentadas pela escritora nos
sertões mato-grossenses, ela carrega dentro de si um orgulho de ter vivido em Mato
Grosso e, principalmente, na cidade de Cuiabá.
O jornal “A Cruz”, órgão da Liga Católica Brasileira de Mato Grosso,
incorporou um ideário político, trazendo em suas manchetes a natureza matogrossense e seu espaço geográfico; a igreja em Mato Grosso divulgava as riquezas
da terra e a implantação que o movimento modernizador oferecia:
No paiz dos diamantes – as riquezas do nosso subsolo ainda pouco
conhecidas e quase inexploradas, são de um valor incalculável e
constituirão num futuro não muito remoto preciosa fonte de renda
para o thesouro e de prosperidade para o Estado. Por agora
conduziremos o leitor ao paiz dos diamantes, ao legendário rio da
Garças (...) Os afluentes da margem direita do Garças são os mais
importantes (...) carregam as riquezas diamantíferas, deve haver
uma quinzena de anos que indivíduos vindos da Bahia ali se
estabeleceram e descobriram o primeiro garimpo do Garças, esses
26
indivíduos garimpeiros em seu Estado foram influenciados pelos
cascalhos semelhantes aos dos rios que já haviam trabalhado. (...)
realizados as suas esperanças (...). Ali foram encontrados os mais
belos diamantes um deste é de propriedade do Coronel Carrige, em
Mineiros, Goyaz. A esperança de riqueza rápida e fácil levou ao
Garças muita gente, hoje, cerca de 1500 a 2000 pessoas ali
trabalham exclusivamente do garimpo numa extensão de mais de 60
léguas, a partir da nascente do rio . ( A Cruz, órgão da Liga Católica
Brasileira de Matto Grosso, n. 464, 2 maio 1920, p. 2).
Esse tipo de discurso foi insistentemente construído sobre Mato Grosso,
tanto pelas fontes da imprensa escrita, como por diversas reportagens que
funcionavam como um dos atrativos mais sedutores para as pessoas de toda a
nação, seja pelas cartas, ou, ainda, pelos movimentos políticos que se juntaram
aos discursos do governo. Morbeck esteve atento aos movimentos do
povoamento e das descobertas dos garimpos. Em pouco tempo, tornou-se líder
dos garimpeiros do Garças e região. Fixou residência em Santa Rita do Araguaia
(hoje Alto Araguaia) e, a partir de 1.920, com os seus adeptos, tornou-se o
administrador, de fato, dos garimpos do leste de Mato Grosso.
O jornal O Araguaya, órgão noticioso e defensor dos interesses dos
garimpeiros, indiretamente encarna e legitima o discurso oficial, quando destaca, em
sua matéria, várias temáticas, no sentido de que Mato Grosso se encontrava ainda
inexplorado e que estaria aberto para a exploração de suas riquezas. De qualquer
ângulo que se queira olhar a notícia, a busca é pelo envolvimento emocional da
população brasileira para as questões mato-grossenses:
Matéria: O Brasil desconhecido – O que se passa pelo coração do
Brasil – Os garimpos e os Garimpeiros – uma rápida palestra com o
eng. Morbeck. A historia do diamante (almejada). O conceituado
vespertino Folha da Noite de são Paulo publicou a seguinte
entrevista com o Dr. Morbeck, a qual data vênia transladamos para
estas colunas. A terra: lá bem para a parte oriental do Brasil,
ocupando a parte central, existe uma enorme faixa de terra quase
inexplorada que no mapa geográfico é conhecido comoMato Grosso,
conhecido como um lindo recanto da terra brasileira. Mato Grosso
um estado grande pela sua extensão, não logrou ainda conquistar no
seio da União o destaque a que pela sua riqueza tem feito jus. Suas
riquezas naturais: a mineração como a maior fonte de riqueza do
estado, esta compreendida na extensa zona do Araguaya e seus
tributários. Existe, entretanto uma região a que aflui grande número
de forasteiros. Da Bahia, do Pará, do Amazonas destacam
ininterruptamente levas e levas degarimpeiros. Vão para o garimpo
27
dos Garças onde já encontram numa atividade assustadora, o
argentino, os norte-americanos e holandeses. O Araguaya, edição da
gazeta mercantil (cerca de 1926), Ano I,. n. 8, p. 1.).
A nova posição do marido de Arlinda, defensor dos direitos e interesses
dos garimpeiros contra as injustas pretensões tributárias do governo do Estado
de Mato Grosso, fato que determinou o conflito armado - Revolução Morbeck X
Carvalhinho e Pedro Celestino, tornou sobremaneira agitada a vida de nossa
poeta, a qual, a despeito dos ásperos contratempos, continuou exercendo o
magistério, com dedicação e desprendimento, chegando a lecionar para mais de
3.000 alunos, dentre os quais, muitos índios bororós e carajás. A contenda
Morbeck X Carvalhinho, representou um dentre os muitos conflitos ocorridos na
região leste mato-grossense. Os grupos se desfizeram, porém os resquícios de
vingança e revide persistiram por muitos anos.
Arlinda, com sua escrita, registra momentos que viveu na região matogrossense , em que seu marido foi um grande líder político regional e defensor
dos garimpeiros. A escritora tem em suas produções relatos desses fatos que
comprovam todo o tom confidencial de sua vida de mãe, esposa, professora e
poeta:
Nota 2- Diante das expressões desta carta meu marido, José
Morbeck tendo na fronte o selo nobre do amigo, seguiu urgente num
automóvel com 3 amigos armados a fuzil, na ânsia de poder ainda
salvar a vida de Ondino Rodriguês, aquele moço singelo de caráter
verdadeiro, que lhe conhecera no Registro do Araguaia, dando-lhe,
como pequeno auxílio, trabalhos na sua fazenda Patagônia. Eram 7
da manhã e ainda estávamos sonolentos, porque tínhamos passado
a noite em animadíssimo baile, na casa de Serafim de Carvalho,
onde morava Candinho e realizou o casamento de sua Pupila
Joana. Com os olhos inundados de lágrimas, abracei meu Morbeck,
que me beijou na face, indo até de sua filhinha Dirce, com 3 meses
de idade, depositou-lhe também um beijo na cabecinha inocente.
Todo empenho em vingar a causa de Ondino Rodrigues, lhe falou
no meio dos seus amigos que enchiam a sala, assistindo-lhe a
partida: “Nesta hora sou um homem solteiro, não tenho mulher, não
tenho m filhos, serei um mostro, sacrificarei tudo, a vida por esta
causa de Pombas”. Seus filhos: Walton, Newton, Milton, Circe, Nilce,
Clinton, Elce, olhavam espantados. E dando um beijo na testa de
um por um, entrou no auto. Calçava botas e roupa de palmebiche
escura. E eu fiquei chorando, rezando ao meu glorioso S. José,
sentindo na face ainda o seu beijo quente, beijo que me deu, junto
ao berço da filhinha adormecida. Aquele sacrifício era feito por José
28
Morbeck, o homem de tempera de aço, o homem raro entre os
homens, que ia defender a causa de Ondino Rodrigues. S. Rita do
Araguaia- Arlinda – Dezembro 1924.
Arlinda passa a morar na fazenda Patagônia, situada no município de
Pontal do Araguaia-MT, já com seus seis filhos. A mãe, muito dedicada, relatou
com grande orgulho o nascimento de cada um de seus filhos no livro que
denominou “Heróis das Selvas”:
Clinton primeiro ente que viu a luz do dia, nesta plaga selvagem de
40 léguas quadradas, onde o diamante habita no leito dos ribeiros e
nos monchães arenosos, sob a música das araras azuis, das aves e
dos passarinhos sobre as palmeiras extensas e as florestas
seculares. (s/d).
Escreveu também o livro “Os Domingos da Fazenda Patagônia”, em cuja
introdução, porque era assim que a poeta escrevia, sempre seguindo as normas
de um livro: prefácio, dedicatória e sumário, ela explica o motivo por que está
escrevendo: “Este livro será o bálsamo de minhas chagas abertas por uma
cruciante saudade no meu sensível coração. Nas selvas, nas paragens enfiais do
Leste mato-grossense, o escreverei insuflada por meu pensamento. È esta a
realidade da vida!... “E foi morando tão distante que a poeta teve que se mostrar
essa mãe dedicada, situação que ela tinha que, por muitas vezes, guardar dentro
de si ou em caneta e papel, para expressar os relatos de sua alma feminina:
suas angústias, saudades, solidão... Para não demonstrar aos filhos, que
também sentiam a ausência do pai, foi capaz de proporcionar a eles momentos
inesquecíveis, mesmo vivendo longe de um convívio com o restante da família e
de uma vida melhor.
Essas produções literárias estão compostas em dezenove volumes, entre
poesias e crônicas. Apenas a coletânea denominada Poesias, foi editada
artesanalmente após a morte da poeta. Podemos notar todo o caráter
confessional que as obras de Arlinda possuem, e o grande desejo de vê-los
publicados é por ela mesma escrito, em um poema-desabafo:
29
Não é vaidade, é um desejo somente,
que tenho de te ver encadernado
meu fiel companheiro, o confidente
dos meus segredos! Oh!... Meu livro amado!
Quantas vezes meus dias tristonhos
suavizastes com teu meigo encanto?
precioso relicário dos meus sonhos,
que contém os mistérios do meu pranto!
Quantas vezes chorando eu te escrevia
deixando nas tuas páginas a confissão
da amargura cruel que padecia
o deserto de minha solidão?!
Quantas vezes recordando ausente
em ti um ameno alivio eu encontrava
minha pena te escrevia lentamente
gemendo sobre ti quando eu chorava!
Não é orgulho nem também vaidade
meu desejo de te ver encadernado,
em cada letra tens uma saudade
em cada página lembras meu passado.
Nomeado seu marido Prefeito de Alto Araguaia, de 1924 a 1925 e de 1928 a
1930, passou Arlinda a lecionar nesse município, nas Escolas Reunidas,
prosseguindo infatigavelmente em prol da alfabetização e desenvolvimento da
cidade, junto à Congregação Salesiana, de padres e freiras. Nessa cidade, nasceu
sua última filha, Dirce, a quem ela escreveu alguns poemas, por ser sua filha caçula
e por ela a ter deixado, tempos depois, para ingressar no convento.
Em 1940, por motivo da educação superior de seus filhos, a poeta transferiu
sua residência para Valparaíso-SP; nomeada pelo então governador, passou a
lecionar na Terceira Escola Municipal, anexa ao grupo escolar ,onde permaneceu
até o ano de 1942, quando afastou-se
do magistério, em consequência de
problemas de saúde.
Cronista ágil e poeta de grande inspiração, como percebemos, durante largos
anos de sua vida, desenvolveu intensas atividades literárias, ensinando os alunos a
produzirem poesias, motivo pelo qual surgiu-lhe o título “Àguia da Cultura”; fundou
clubes de sarau feminino e escreveu para 18 jornais nos Estados de Mato Grosso,
Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo.
30
O jornal “O Valparaíso” teve o prazer de ter em suas publicações textos em
prosa e poesias de Arlinda, tendo eles sido muito apreciados pela população; então,
a escritora utilizava-se do pseudônimo de “Tesourinha”.
Apesar de ter produzido, também, em Valparaíso, uma vasta obra literária, e
ser lembrada pela população como uma grande poeta, não se pode deixar de
ressaltar o que foi para o Estado do Mato Grosso e suas cidades, a presença de
uma mulher tão culta, que soube admirar com os mesmos olhos as diferentes
pessoas que aqui encontrou; diferentes daquelas que havia deixado em sua terra
natal; e foi também onde suas maiores produções poéticas foram escritas. Não
encontramos nos textos da autora uma obsessão pela métrica e muito menos o seu
distanciamento, o que faz com que, aos nossos olhos, as emoções surjam a cada
leitura, o que a difere de outros poetas.
A poetisa diz: “Minha pena só está contente, quando escreve minhas
inspirações, que são o bálsamo de minhas chagas!”. Com reflexos de paixões,
saudades, amor e vários outros temas deles derivados ela escreve,sem distanciarse de sua condição de mulher, e, apesar dos preconceitos da época conservadora
em que viveu, exprimiu, sem medo, o mais íntimo da alma feminina.
Foi no dia 13 de julho de 1960, que nossa grande poeta veio a falecer na
cidade de Valparaíso-SP, após o agravamento do seu estado de saúde. O que falta
a essa poeta é apenas a sua realização, e de muitos que leem suas poesias é ver
publicado tudo aquilo que brotava do mais íntimo de seu ser. Superar o anonimato
da poeta, no campo literário, é também reconhecer o legado histórico vivenciado por
ela na região mato-grossense. A importância de se identificar Arlinda Morbeck
perante a cultura regional define o caminho crítico, para que a poética produzida
ganhe mais força e vitalidade, no contexto da história da literatura mato-grossense.
I.1 LITERATURA E REGIONALISMO
[...] a ligação entre a literatura e a sociedade é
percebida de maneira viva quando tentamos
descobrir como as sugestões e influências do
meio se incorporam à estrutura da obra – de
modo tão visceral que deixam de ser
propriamente sociais, para se tornarem a
substância do ato criador.
Antonio Candido
31
Literatura é uma forma de falar sobre o mundo, contudo defini-la não é
simples assim; com o passar do tempo esse termo foi ganhando muitos
significados, sempre relacionados com os fatores socioculturais.
Na antiguidade, de acordo com a Poética de Aristóteles, que é entendida
como o primeiro tratado da teoria literária, a literatura se enquadra como imitação
(mimese) por recriar uma situação, ou seja, imitação de ações dos homens,
como diz Aristóteles. A arte poética é também colocada como o prazer de
agradar e instruir, e, assim, foi reconhecida por Horácio. É somente no século
XIX que a literatura, com o declínio dos gêneros literários, que antes eram
descritos na Poética somente como épico e dramático, reconhece o gênero lírico,
e, a partir de então, ele se legitima como romance, teatro e poesia.
Observando a evolução do termo literatura, Gustavo Bernardo (1999,
p.135) ressalta: “É necessário não apenas conceituar, mas estar sempre
conceituando, ou seja, encontrar-se sempre perguntando sobre o fundamento”.
Entre os estudos poéticos, essa necessidade se faz presente; legimitar um poeta
é, antes de tudo, afirmar a literatura como arte e como meio de expressão
humano para concretude de seus sentimentos e, assim, Candido nos adverte:
Com efeito, entendemos por literatura [...] fatos eminentemente
associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos
homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma
socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única
e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência. Um
esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma
'expressão'. A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer
uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e
mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um
lugar e de um momento - pra chegar a uma 'comunicação'. Assim,
não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e
formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um
grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre
tenham consciência dele); enquanto não houver um sistema de
valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade;
enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar
ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer
a continuidade (uma transmissão e uma herança) que signifique a
integridade do espírito criador na dimensão do tempo (CANDIDO;
2000, p. 127-128).
32
O ato criador que envolve a essência da literatura é assim discutido por Lima
(1992), como algo concreto que, em sua constituição, é inata; o homem nasce poeta
e é a cultura que se encarrega de desenvolver e aperfeiçoar esse dom.
A literatura perpassa esse ato criador e se estabelece como difusora da
tradição e tem o seu sentido completo quando transmite algo entre os homens.
Esse conjunto de elementos transmitidos podem ser ou não aceitos, conforme são
vivenciados e retomados.
Para Candido:
Sem essa tradição não há literatura como fenômeno de civilização.
[...] do ponto de vista histórico [...] as obras podem aparecer em si,
na autonomia em que manisfestam, quando abstraímos as
circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva
escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado, e ao
influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma
tradição (CANDIDO, 2000, p. 26).
A literatura adquiriu, com o passar do tempo, diversas funções, porém não
é somente o que a ela se associa, sendo muitas vezes voltada para ela mesma,
por existir na criação uma manifestação inesperada, em que não há explicação.
Paz adverte sobre o processo de criação em que para o poeta,
È indiferente que tenha plano ou não, que tenha meditado
longamente sobre o que vai escrever ou que tenha consciência de
que esteja vazia e em branco como o papel imaculado que ora atrai
ora o repele. O ato de escrever encerra, como primeiro momento, um
desligar-se do mundo, algo como lançar-se no vazio (PAZ, 1982, p.
215).
Na criação o poeta encontra-se envolto em palavras, com suas incertezas e
dificuldades de como trabalhá-las e traduzi-las do seu íntimo para a escrita. Cria-se
um novo mundo, num novo olhar, a criação e o criador.
Ainda, em torno da importância da literatura, encontramos o seu papel que
consiste no resgate e no estabelecimento de ligações com diversas culturas.
Candido considera:
Literatura propriamente dita, [...] um sistema de obras ligadas por
denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
33
dominantes duma fase. Estes denominadores são além das
características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos
de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados,
que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto
orgânico da civilização (CANDIDO, 1982, p. 215).
Enfim, a literatura tem acompanhado o desenrolar do caminho da
humanidade desde, o inicio dos tempos, primeiramente, através da fala e, depois
pela escrita. È feita por homens e por eles deve ser absorvida. Somente ela é capaz
de brotar no homem reflexões acerca do mundo, o desejo de mudança, as emoções
mais escondidas, a identidade de um povo, fomentando, assim, a liberdade de
expressão, de vida mais justa e humana.
I.2 REGIONALISMO LITERÁRIO – BREVE PERCURSO
Quando pensamos em regionalismo, o entendemos logo como uma produção
artística de uma determinada região, em conjunto com a sua identidade local.
Porém, ainda encontramos nessa definição muitas incertezas, que tornam
necessária a busca por outros estudos. Com o objetivo de construirmos um texto
historiográfico sobre o conceito do regionalismo literário, recorremos aos autores:
Antonio Candido, Lúcia Miguel Pereira, Afrânio Coutinho, Nelson Werneck Sodré e
Alfredo Bosi.
Na metade do século XVIII, encontramos escritores preocupados com a
formação de uma literatura brasileira, com isso, os textos literários voltam-se para a
realidade local e regional. Nos decênios de 1870, surgem polêmicas entre escritores
sobre as obras regionalistas, e, a partir daí, os escritores preocupam-se com a
divulgação do Brasil na literatura.
Antonio Candido, em sua obra Formação da Literatura Brasileira (2007),
ressalta que a literatura produzida na década de 1940 era voltada para o homem
urbano conhecer somente o que havia fora de sua cidade; a mudança só ocorre
quando outros escritores das regiões retratadas conseguem produzir obras que
desmistificavam as paisagens criadas, mostrando o homem rural e seus problemas
oriundos da virada do século, deixando de lado o homem, antes mostrado como
selvagem e desconhecido. O regionalismo ganha, a partir desse momento, não só a
34
visibilidade de um movimento literário, mas, sim, o de uma tradição cultural que, ao
longo da história literária, ora reforça um determinado movimento, ora se opõe a
outro, de acordo com seus autores e temas neles envolvidos.
Ainda com base em Candido, faz-se necessário conceituarmos alguns
pontos específicos desse processo formativo nacional, que se adapta às
situações específicas locais:
a) o importante não é saber quando a nossa literatura brasileira se tornou
brasileira, mas sim quando se concretiza como conjunto de obras;
b) em meados do século XVIII forma-se como um sistema literário, com a
inter-relação entre obras e autores;
c) a função ideológica, como vontade de ser nacional e específico,
contribui no processo formativo;
d) o regionalismo aparece como uma verticalização do nacionalismo
dentro da sua própria nação.
Essas afirmações podem ser complementadas com a seguinte reflexão do
autor, contida no prefácio da 11ª edição de sua obra Formação da Literatura
Brasileira:
[...] há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura.
Suponhamos que, para se configurar plenamente como sistema
articulado, ela dependa da existência do triângulo “autor-obrapúblico”, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da
tradição. Sendo assim, a brasileira nasce, é claro, mas se configura
no decorrer do século XVIII, encorpando o processo formativo, que
vinha de antes e continuou depois. Foi este pressuposto geral do
livro, no que toca ao problema da divisão de períodos. Procurei
verifica-lo através das obras dos escritores, postas em absoluto
primeiro plano, desde o meado daquele século até o momento em
que a nossa literatura aparece integrada, articulada com a
sociedade, pesando e fazendo sentir a sua presença, isto é, no
último quartel do século XIX (CANDIDO, 2007, p.18-19).
Lúcia Miguel-Pereira, em seu livro Prosa de Ficção (1870 a 1920), define com
maior precisão qual seria a especificidade da narrativa regionalista, ao assinalar que:
Para estudar, pois, o regionalismo, é mister delimitar-lhe o alcance:
só lhe pertencem de pleno direito as obras cujo fim primordial for a
fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo
perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se
passem em ambientes onde hábitos e estilos de vida se diferenciem
35
dos que imprimem a civilização niveladora. (...) o regionalismo se
limita e se vincula ao ruralismo e ao provincialismo, tendo por
principal atributo o pitoresco, o que se convencionou chamar de “cor
local”. Essa definição lhe indica por si só as vantagens e as
fraquezas. (MIGUEL-PEREIRA, 1957, p.179).
Para a autora, essa caracterização do regionalismo é entendida como um
desvio do caminho habitual da ficção:
[...] esta, de fato, parte em regra do particular para o geral, isto é, vê
um homem em seu meio - ou contra o seu meio - mas vê também o
homem, alguém que por suas razões mais profundas se irmana, por
sobre a diversidade de expressão, aos outros seres; interessa-se
pelos indivíduos especificamente, porém na medida em que se
integra na humanidade. O regionalismo, ao contrário, entende o
indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence, e na medida
em que se desintegra da humanidade; visando de preferência ao
grupo, busca nas personagens, não o que encerram de pessoal e
relativamente livre, mas o que as liga ao seu ambiente, isolando-as
assim de todas as criaturas estranhas àquele. Sobrepõe, destarte, o
particular ao geral, o local ao humano, o pitoresco ao psicológico,
movido menos pelo desejo de observar costumes – porque então se
confundiria com o realismo – do que pela crença o seu tanto ingênua
de que divergências de hábitos significam divergências essenciais de
feitio. É por isso fatalmente levado a conferir às exterioridades - à
conduta social, à linguagem etc. - uma importância exclusiva, e a
procurar ostensivamente o exótico, o estranho (MIGUEL-PEREIRA,
1973, p. 179-180).
Percebemos que, para a autora, a noção de regionalismo só se realiza a
partir do momento em que ela se contrapõe a uma outra, que é a da “civilização
niveladora”.
O regionalismo pode ser entendido, então, como uma formação
social, na qual os espaços sociais, culturais e econômicos não estejam ligados
às formas de agir, pensar e sentir da modernidade capitalista.
Ao lado dos estudos formulados por Lúcia Miguel-Pereira, percebemos que o
conceito de literatura regionalista, de um modo geral, carrega em si, o estigma de
uma literatura artificial, menor e ingênua; mesmo que a autora tenha delimitado nos
seus estudos apenas a ficção dos séculos XIX e XX. Nessa mesma linha, é
interessante observamos que a autora vê o romance regionalista como um desvio do
“caminho habitual da ficção”; por se prender somente ao exterior do mundo, os
autores regionalistas dão ênfase somente aos traços pitorescos e exóticos do
homem e de sua relação com o meio e com os outros indivíduos; assim ela ressalta:
36
Certo, toda arte condensa e deforma, mas o regionalismo, pondo nas
exterioridades e nas peculiaridades o seu acento tônico, erigindo
estas em aspectos habituais e aquelas em manifestações únicas de
personalidade, leva tão longe essa condensação que, devendo, por
sua índole, ser simples e espontâneo, cai freqüentemente num
artificialismo quase teatral: a língua, os gestos, os sentimentos
típicos demais emprestam às figuras aparências de atores (MIGUELPEREIRA, 1973, p. 180).
A autora assemelha o romance regionalista ao turista, que na sua ânsia
por “descobrir encantos peculiares de cada lugar que visita sempre pronto a
extasiar-se ante as novidades e a exagerar-lhes o alcance” (MIGUEL-PEREIRA,
1973, p. 180). E ainda, em outro conceito de regionalismo ela considera o caráter
de semelhança existente na literatura regionalista:
[...] logicamente, deveria estar entre as primeiras manifestações
literárias de um povo, marcar-lhe a tomada de consciência, exprimirlhe as tentativas iniciais na arte escrita. Nesse sentido, o elemento
pitoresco, tão importante nele, resultaria na identificação completa
do escritor com o seu meio, ao qual se prenderia não só pela
identidade como pela inteligência. Não é isso entretanto o que via de
regra sucede; significa, ao contrário, quase sempre, antes uma volta
do que uma expansão, um movimento de dentro para fora,
nascendo do encontro, com formas de vida rudimentares, de
espíritos que lhes sentem a sedução precisamente por conhecerem
outras mais complexas. Foi o que sobretudo aconteceu no Brasil,
onde a literatura não surgiu espontaneamente, não se originou da
necessidade de expressão: fruto da imitação, antecedeu essa
necessidade, mormente no que ela pudesse conter de
genuinamente brasileiro. Não é esse, aliás, um fenômeno restrito ao
nosso, mas comum a todos os países colonizados. A cultura
intelectual, vinda da Europa, atuando em sentido diverso da cultura
na acepção dada ao termo pela sociologia, retarda nos escritores o
amadurecimento da mentalidade nacional. Daí as anomalias da
nossa evolução literária, indo do universalismo clássico para o
americanismo romântico, deste para o brasileirismo, e descobrindo
tarde o regionalismo, quando, naturalmente, o sentido local deveria
anteceder o nacional, este o continental, que, por sua vez, viria
antes do universal (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 181).
Ainda, em seus estudos, Miguel-Pereira ressalta que:
Só nos fins do século passado foi que se implantou aqui o
regionalismo puro, traduzindo o desejo de fixarem os escritores em
todos os seus aspectos o viver da nossa gente, da parte da
população livre de influências e contactos estranhos. Iniciaram-no o
paulista Valdomiro Silveira, o mineiro Afonso Arinos e o cearense
Manuel de Oliveira Paiva [...] A partir desse momento a vida
37
brasileira desloca-se nitidamente de um pólo a outro, com a transição
para a “urbanocracia” que só de então em diante se impõe
completamente. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p.181-182)
Perpassando
esse
estudo
de
Lúcia
Miguel-Pereira
encontramos
semelhança com os estudos de Afrânio Coutinho. Em sua obra, A literatura no
Brasil (1986), ele define o regionalismo sob dois prismas. Primeiro, no sentido
amplo de que “toda a obra de arte é regional quando tem por pano de fundo
alguma região em particular ou parece germinar intimamente desse fundo”. Em
segunda definição, “mais estritamente, para ser regional, uma obra de arte não
somente tem que ser localizada numa região, senão também deve retirar sua
substância real desse local” (COUTINHO, p. 235).
De acordo com Coutinho (1986), desde o Romantismo, o Brasil regional
passa a ter mais importância, com isso, temos a narrativa regional romântica
mais independente, priorizando o seu localismo e tradição, mesmo tendo sido
influenciada pelo subjetivismo dos românticos. Temos, então, a busca de uma
identidade nacional independente da literatura portuguesa. Para Coutinho, o
regionalismo “nasceu, sem dúvida, sob o signo do Romantismo para, depois,
misturar-se às receitas naturalistas e realistas, sob a influência de Zola e Eça de
Queiroz” (COUTINHO, p. 250).
Por esse prisma, o autor defende o regionalismo, pensando nas regiões
culturais e suas produções, e não na divisão geográfica do país. Assim, estabelece
as regiões em grupos: nortista, nordestino, baiano, central, paulista e gaúcho. No
romantismo, temos: no grupo central, Bernardo Guimarães que representa o cerrado
mato-grossense e, Visconde Taunay, a região centro-leste, em Inocência (1875), no
grupo nordestino, Franklin Távora em O Cabeleira (1876) e Lourenço (1881), e,
finalmente, José de Alencar, fundador da prosa de ficção, em O Sertanejo (1875).
Esse alcance do autor, Lúcia Miguel- Pereira cita e
nos adverte quando
pensamos no conceito de regionalismo, pois é latente o posicionamento de todos
aqueles que pesquisam uma arte regionalista, por sentirem necessidade de vê-la
reconhecida e afirmada, como, por exemplo, Franklin Távora, com a sua literatura do
Norte, pois, no Brasil, encontramos o Nordeste e o Rio Grande do Sul, com profunda
e coerente consciência regionalista. Percebemos, contudo, sua influência teórica nos
estudos de Coutinho:
38
Para ser regional uma obra de arte não somente tem que ser
localizada numa região, senão também deve retirar sua substância
real deste local. Essa substância decorre, primeiramente, do fundo
natural--clima, topografia, fauna, flora etc.-- como elementos que
afetam a vida humana na região; em segundo lugar, das maneiras
peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que
fizeram distinta de qualquer outra. Este último é o sentido do
regionalismo autêntico (COUTINHO, 1986, p.202).
Nelson Werneck Sodré1, em sua obra História da literatura brasileira: seus
fundamentos econômicos (1995), reconhece o regionalismo romântico e naturalista;
o romântico, entendido como “sertanismo” e o realista como “regionalista”, defende,
então, a diferença entre ambos e afirma que o “regionalismo, a rigor, começa a
existir quando se aprofundam e se generalizam, a ponto de surgirem em zonas as
mais diversas manifestações, a que o romantismo não poderia fornecer os
elementos característicos”( SODRÉ, 1985,p.403). Outra diferença importante, citada
pelo autor, é a da transplantação da cultura europeia sobre a formação colonial, no
caso a do Brasil, provocando, assim, a sensação de exílio em nossa própria terra.
Percebemos, dessa forma, a diferença no sertanista por sua deformação e o
regionalismo que, por mais que as deformações e fraquezas aconteçam, se
encontra mais próximo do ideal romântico.
Sodré ressalta que a prosa do Romantismo também resultou em muitos
excessos, como o de colocar o ambiente acima da criatura e, também, por dar muita
importância ao exterior, ou seja, à conduta social e à linguagem, e, ainda à busca
pela ostentação e pelo exótico. Porém o autor inutiliza esses excessos, pois a ficção
regionalista enriqueceu-se com os traços que o naturalismo acolheu: “‘o
regionalismo’ revelou o Brasil aos brasileiros, apesar de seus quadros pejados de
natureza ou dos entraves da erudição verbalista que proporcionou em muitos casos.
Procurou dar à cor local um sentido mais profundo do que o trazido pelo sertanismo”
(SODRÉ, 1985,408).
Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (2006), ressalta que
a formação do Romantismo está ligada ao nacionalismo, presente em José de
Alencar, e acrescenta que: “as várias formas de “sertanismo” (romântico, naturalista,
1
Nelson Werneck foi um historiador nacional que escreveu sua obra sob a visão marxista, por isso a
busca por uma identidade nacional que, para ele está ligada ao período Naturalista. Recolheu o
material para seus estudos em: Augusto Meyer, Afrânio Coutinho, Sílvio Romero, Lucia Miguel Pereira e Alcides Maia, procurando aproximar-se do regionalista brasileiro.
39
acadêmico e até modernista) que têm sulcado as nossas letras, desde os meados
do século passado, nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a
matéria bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico.” (BOSI, 2006, 155).
Portanto, segundo o historiador, o regionalismo está em segundo plano na
literatura, pelo fato de a criação literária do “sertanismo”, no século XIX, estar
subjugada ao fato de o escritor “projetar os próprios interesses ou frustrações na sua
viagem literária à roda do campo” (BOSI,2006,155). Bosi, também em seus estudos,
ressalta os três nomes mais importantes dentro da prosa de ficção, representando,
assim, o regionalismo: Franklin Távora, Visconde de Taunay e Bernardo Guimarães.
Na construção da História da Literatura Regional, percebemos a preocupação
de Bosi na concretização do fazer literário dos textos românticos e realistas, que ele
julga sem modelo ideológico e estético, o que resulta, em sua opinião, em uma
deformação mimética. Para a concretização do seu estudo, Bosi utilizou-se das
teorias de Sodré, José Aroldo de Carvalho, Hugo de Carvalho Ramos e outros.
Em suma, dos estudos e autores aqui trabalhados, tentamos compreender
o romantismo e suas variadas manifestações que levaram ao processo formativo
da literatura regional. O romantismo revelou as diferentes características de cada
região, criando um formato de descoberta do próprio país, contribuindo para o
passo seguinte desta pesquisa, a abordagem do regionalismo mato-grossense.
I.3 REGIONALISMO EM MATO GROSSO
Ao tentarmos resgatar a produção literária de Arlinda Morbeck, é necessário
pensarmos na produção artístico-literária da região mato-grossense; no primeiro
momento, a noção de regionalismo foi fundamental para se iniciar o estudo. Por se
tratar de uma poeta mato-grossense, é fundamental situarmos o local (região) de
sua escrita para compreendermos os aspectos temáticos em suas poesias.
O conceito de regionalismo tem passado por muitas interrogações, nos
estudos críticos mais recentes. O respaldo teórico dessa pesquisa se estria nos
estudos de Albertina Vicentini, e nas abordagens do regionalismo mato-grossense,
por Hilda Gomes Dutra Magalhães e por Mário Cezar Silva Leite.
40
Albertina Vicentina, em seu livro O Regionalismo de Hugo de Carvalho
Ramos (1997), busca esclarecer como o escritor denomina o regionalismo, a partir
de duas figuras centrais: Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, sendo estes
criadores de imagens típicas do homem rural: o sertanejo e o caipira.
É com Euclides da Cunha (1902) que o regionalismo finissecular se inicia na
região nordestina, por meio da literatura das secas e do cangaço. Em Monteiro
Lobato, percebemos uma influência de Euclides da Cunha, que cria um sertanejo
atrasado, porém busca modificar a imagem do caipira em suas obras.
Para
Vicentini, essas mesmas preocupações se encontram em Sílvio Romero, que vê no
sertanejo um problema a ser solucionado.
Este era um jogo de espelhos: entre a nação brasileira e as outras
nações mundiais; entre a ausência de caráter brasileiro e o seu
caráter nacional fixado; entre a cidade querendo-se civilizada e o
campo visto como atrasado; entre o real e um imaginário centrado
nas noções de autenticidade e modernidade (VICENTINI, 1997,
p.39).
Nessa perspectiva, o texto literário privilegia aspectos que vão da identidade
do Estado à identidade de escritor regionalista:
Assim, inicia-se o escritor no imaginário típico que a oposição
cidade-campo oferece à literatura e aos sentimentos, principalmente
a partir de 1850: a ficção da pureza de sentimentos, principalmente
autenticidade de vida, da vida mais plena e dos sentimentos mais
intensos, que, aliados à situação histórica tradicional e conservadora
do campo, gerou pelo menos parte da má vontade que a crítica da
cidade ou dos grandes centros hegemônicos teve (tem) para com o
regionalismo (numa afirmação de identidade essa, também). Dessa
forma, o regionalismo é uma espécie de luta da periferia contra a
hegemonia do centro ou uma espécie de afirmação do escritor da
província perante o escritor da capital, contestando a hierarquia
hegemônica estabelecida, tanto no sentido econômico, quanto no
histórico e no literário (VICENTINI, 1997, p. 53).
Destarte, fica definida a proposta para os escritores nacionalistas, que, com
seus diversos temas, puderam fazer do Brasil um país conhecido por todos, o que
só veio a acontecer, quando se formaram grupos nacionalistas modernistas.
Podemos entender essa proposta na literatura mato-grossense que faz, em sua
produção literária, um reconhecimento da região, mostrando uma imagem positiva
do seu povo e de sua terra. Afirmamos, ainda, segundo Vicentini:
41
Oscilar entre identidades, buscar espaços e tempos que mantêm
relações e objetivos diferenciados resultam em oscilações de formas
e estilos, num certo desnorteamento entre buscar a forma original,
necessária ao tema específico, ou trabalhar com as formas
disponíveis, reconhecidas pelo centro (VICENTINI, 1997, p. 69).
Hilda Magalhães, em A História da Literatura de Mato Grosso, nos apresenta
um marco definitivo na historiografia literária de Mato Grosso, realizando um
levantamento da produção literária dos anos 30 aos 90 do século XX, apresentando
autores de reconhecimento e pouco conhecidos, o que faz com que seus estudos
tragam uma contribuição fundamental para a movimentação literária regional,
estabelecendo o passado literário para conseguir o respaldo necessário à trajetória
literária do século XX. A escritora considera mato-grossenses:
Os textos escritos por autores que nasceram em Mato Grosso ou
que nele residem ou tenham residido, contribuindo para o
enriquecimento da cultura do Estado. Por “Mato-Grosso”
entendemos o estado indiviso até a década de 1970, após o que,
levamos em conta apenas a unidade do norte, por entendermos que,
embora apresentem, em princípio, aspectos semelhantes, a partir da
divisão os dois estados tendem a acentuar suas diferenças culturais,
apresentando ritmos e traços diferenciados de desenvolvimento
(MAGALHÃES, 2001, p.18).
A escritora Hilda Magalhães percorre, um caminho muito importante, a partir
dos registros de Rubens de Mendonça, em sua obra História da literatura matogrossense (1970). Essa obra nos situa no caminho necessário para entendermos
como e quando nasceu a literatura no Estado de Mato Grosso. Ressalta ela:
O historiador compila, desde a ata fundação de Cuiabá, lavrada por
Barbosa de Sá, nos idos de 1719, até os autores contemporâneos
do autor. È ele quem nos apresenta o ciclo cronístico matogrossense no Brasil colônia. Do mesmo modo, por seu intermédio,
temos acesso a um minucioso relato das obras deixadas pelas
expedições cientificas enviadas por marquês de Pombal e
Castro.(MAGALHAES, 2005, p.205).
Rubens de Mendonça afirma que o primeiro documento escrito em língua
portuguesa “nestes confins do Oeste da Pátria foi a ata de 08 de Abril de 1719, e
o livro foi as Crônicas de Cuiabá, escrita em 1765 de Barbosa de Sá”
(MEDONÇA, 1970, p.9). Adiante, o autor Carlos Gomes de Carvalho em seu
42
livro A Poesia de Mato Grosso, tendo a obra de Rubens de Mendonça também
como esteio para sua pesquisa, nos confirma:
Se tomarmos a literatura como parte de uma expressão mais ampla
da cultura, isto é como a manifestação compreensível que o homem
faz através da linguagem para se tornar entendível, e não apenas o
trabalho esteticamente elaborado, então poderemos considerar o
nascimento da literatura em Mato Grosso como sendo a lavratura da
“Ata de Fundação do Arraial do Bom Jesus de Cuiabá”, no ano da
graça de 1719. Com efeito, no dia 08 de abril desse ano, Paschoal
Moreira Cabral e vinte e um outros firmaram em solo do extremo
oeste a certidão de batismo de novas terras para o Senhor El Rei de
Portugal, embora o fizessem em domínios de Espanha. A partir de
então, a característica mais marcante da “produção literária” nestas
paragens foi as dos documentos informativos, em forma de atas,
crônicas, cartas e relatórios de viagens. Bandeirantes, aventureiros
de todas as estirpes em busca de metais preciosos, e, sobre a fauna
e a flora desse novo mundo, alimentaram o imaginário e construíram
o conhecimento sobre as distantes regiões a Oeste (CARVALHO,
2003 , p.19).
Mendonça enfatiza o nome de José Zeferino Monteiro de Mendonça como o
primeiro poeta local; ele deixou várias poesias escritas e, apesar de não ter deixado
nenhum livro publicado, teve uma participação cultural significativa dentro de Mato
Grosso, no século XIX. A obra de Mendonça é de extrema importância, quando
pensamos na questão regionalista mato-grossense, pois nela encontramos o
respaldo teórico fundamental para a construção da presente pesquisa.
Mato Grosso foi também marcado pelo teatro, devido à descoberta aurífera
na região pelos bandeirantes paulistas; com isso, a população urbana se torna
mesclada e superlotada, dando lugar a muitas festas e à produção teatral que
seguiu-se pelo século XVIII e XIX. Encontramos relatos que nos confirmam essa
atividade, nos estudos de Povoas, na obra História da Cultura Mato Grossense.
Tanto Hilda Magalhães quanto Carlos Gomes, em seus estudos, destacam a
importância que teve o teatro para a região, o que nos leva à conclusão de que a
região tem uma história cultural muito rica e repleta de fatos marcantes que são
necessários para entendermos o inicio da literatura mato-grossense.
Ainda, nos estudos de Hilda Magalhães, é necessário enfatizarmos, entre os
grandes nomes de escritores mato-grossenses do século XX, o de Dom Aquino que,
de acordo com a autora, sofreu influências na primeira fase (1917), das
características romântico-parnasianas.
43
Dom Aquino Corrêa é o nome que mais enaltece a literatura matogrossense; com sua poesia patriota enriqueceu a cultura de Mato Grosso. Bispo,
governador do Estado e único poeta mato-grossense a fazer parte da academia
de Letras. O poeta é considerado parnasiano, por prezar a forma, em seus
poemas; encontraremos em sua temática o caráter religioso e a exaltação da
terra e, nela, ainda, presenciamos a poesia romântica em suas odes de
idealização da terra. Padre Raimundo Pombo definiu-o:
Os versos desse poeta mimoso ostentam um sincretismo todo
original. São clássicos pela perfeição da forma e apurada correção
da linguagem; são românticos pela liberdade da inspiração; são
parnasianos, pela hierática solenidade escultural dos seus poemas,
do ponto de vista da técnica, e finalmente são místicos, pela
natureza religiosa da maior parte dos seus motivos. (POMBO Apud
MAGALHAES, 2001, p.49).
Falar do regionalismo mato-grossense é lembrar sempre o nome de Dom
Aquino, não só pela sua escrita patriótica e religiosa, mas porque marcou com seu
poder a literatura e a cultura cuiabana. O poeta teve uma grande influência na vida
de Arlinda Morbeck, foi seu amigo e a incentivou para que publicasse seus poemas;
adiante, no estudo de sua temática, reconheceremos traços da escrita aquineana.
Mário Cezar Silva Leite, na obra Mapas da Mina: Estudos de Literatura em
Mato Grosso, afirma que o regionalismo em Mato Grosso se divide em dois
movimentos:
Primeiro movimento, em torno de figuras emblemáticas da
região/regionalismo e em torno de temas e tratamentos, também
emblemáticos, como se viu, engendrados pelas figuras
emblemáticas. Muito do discurso regionalista contemporâneo na
literatura, na música regional, nas propagandas da mídia ou do
estado é devedor, consciente ou não, de um discurso e de um Mato
Grosso elaborado pelos autores desse sistema. O segundo
movimento dá-se na tentativa- efetivamente realizada- da
constituição de um novo, outro, padrão literário, mas também
assentado e reconhecido como legitimamente mato-grossense. De
modo geral, é bom que esses movimentos não só são convergentes,
no sentido em que buscam o re-conhecimento dentro do quadro
literário-identitário instituído, como são criadores desse quadro e de
suas variações. Não se pode perder de vista que se trata de um
campo de lutas entre grupos, forças literárias, culturais e sociais que
tentam não apenas se sobrepor uns aos outros, mas
fundamentalmente tornarem-se hegemônicos - assumirem na
totalidade o estatuto de verdadeiros, legítimos e únicos
44
representantes de uma cultura local. Assim o jogo amplo entre o que
inventamos que somos e o que inventamos que queremos ser está
posto na essência da produção literária chamada regional e no
embate das forças para sua legitimação. Trata-se, nos vários
aspectos, de uma literatura que é reconhecida e se reconhece
enquanto mato-grossense, ou de Mato Grosso, e se identifica como
um dos elementos definidores de uma região. “O que não se pode
esquecer é que a região, as identidades e a cultura estão sempre no
fluxo de criação, elaboração e disputa” (LEITE, 2005, p.253).
Para o crítico, pensar em regionalismo é, antes de tudo, constituir as
produções literárias regionais, como sistema, entendendo, assim, sistema, a partir
da definição de Antonio Candido. Mário Cezar afirma que, em Mato Grosso, o
sistema organiza-se em torno do discurso regionalista e, por isso, para pensar esse
sistema, não se pode deixar de citar as figuras emblemáticas, segundo ele, os
escritores Dom Aquino e José de Mesquita, que são considerados os fundadores do
regionalismo local. Escritores, como Arlinda Morbeck, contribuíram para esse “fluxo
de criação e elaboração” das produções do século XX da região mato-grossense;
por mais que sua escrita não apresente uma identidade mato-grossense, não fale
dos rincões desta região, é necessário um reconhecimento de escrita feminina
poética autobiográfica que tratou de temas universais, como o amor, o ódio, as
angústias, a solidão.
Complementando
o
regionalismo
mato-grossense,
Hilda
Magalhães
considera:
Ao analisarmos a literatura de Mato Grosso não estaremos
interessados em achar um fio condutor que caracterize a produção
literária rumo a uma situação literária ideal, mas sim a sua variedade
no tempo e no espaço, enquanto manifestações de formas
diferenciadas de percepção do universo, estética e culturalmente
(MAGALHÃES, 2001, p.17).
Contudo, ao pensarmos na concretização do regionalismo mato-grossense já
organizado por seu grupo de poetas e escritores, encontramos lacunas nos estudos
literários, que esperam e necessitam de iniciativas para serem supridas. Rubens de
Mendonça antecipou essa preocupação, com o resgate das obras e registros de
autores, para que não sejam relegados ao esquecimento:
Apesar de ser fato incontestável, não podemos nada adiantar sobre
essa amarga ocorrência, vez que a humanidade é inconstante mesmo
em vida, quanto mais post-mortem. Há todavia um consolo para os que
45
ficam e vêm depois... Os admiradores sinceros, embora que bem
poucos estes nunca esquecem os seus ídolos, nunca o abandonam. Os
de sua época que o leram nele viram cultura e primor de estilo,
trabalharão para que os provindouros o conheça (sic) melhor e mais
profundamente, prestando-lhe homenagens, das quais são merecedores
e formando ao lado dos que brilharam com rara intensidade, dos que
souberam viver, ofertando páginas evocadoras do mundo, reflexos da
vida, vida que não passa, enfrenta o tempo e este escoa-se nos dias
que ficam na poeira das estradas percorridas. Nem sempre uma valor à
margem, desconhecido dos coevos, e inteiramente olvidado. Aqueles
que souberam se impor, galgaram as montanhas e, no ápice delas,
deixaram inscritos nomes, como santos, deuses, poetas, espíritos
imortais e notáveis, estes serão, em certas épocas, por vezes
abandonados pela força do tempo que corre, mas nunca esquecidos,
por que eles deixaram a obra que perdura como mármore empedernido
que não corrói, não se gasta, não se estraga jamais. E quando os
nomes entram na penumbra do abandono, voltam à superfície as suas
obras, que os tornam vivos, redivivos como outrora, Tornam-se
contemporâneos, porque as sua páginas possuem vivacidade e brilho, e
esses elementos que entram nessa composição são como essências
finais que não perdem o aroma, ficando mais fortes e mais apreciadas,
cada vez que se abre o vidro. Assim são os livros (MENDONÇA, 2005,
p. 220).
A obra História da Literatura Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça, é
indispensável para os estudos de literatura e crítica mato-grossenses, pois não só
ressalta a importância de uma memória literária, para que não seja perdida no
tempo, como a apresentação de autores cujos escritos mostram a qualidade e
condições diante da literatura nacional. Rubens de Mendonça abre caminho para
que as lacunas da história e da literatura mato-grossense sejam preenchidas por
novas pesquisas.
46
CAPÍTULO II
O QUE É POESIA
A poesia é uma forma especial da linguagem.
Quando o coração sente a si mesmo...
Nasce a poesia.
Octávio Paz
O presente estudo reflete sobre a poesia. Especificamente, a Poética de
Arlinda Morbeck. A principal e intrigante pergunta: O que é Poesia? Muitas são
as respostas entendidas por diversos estudiosos. Seguimos com algumas:
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação
capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária
por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior.
A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento
maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal.
Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, dialogo
com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo
desespero […]. Obediência ás regras; criação de outras. Loucura,
êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do
inferno, do limbo. […] O poema é um caracol onde ressoa a música
do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos,
da harmonia universal. (PAZ, 1982, p.15).
Octavio Paz definiu Poesia como uma arte que transforma, liberta e revela
o mundo, porém cria suas regras e obediências a outras. Para Ezra Pound
(1990, p. 40), “Literatura é linguagem carregada de significado […] A Grande
Literatura é simplesmente linguagem carregada de significados até o máximo
grau possível. Começo com a poesia porque é a forma mais condensada de
expressão verbal”.
Ainda em Pound, Basil Bunting, poeta inglês, ao folhear um dicionário
alemão-italiano, descobriu que a ideia de poesia, como concentração, é quase
tão velha como a linha germânica. O verbo alemão “Dichten” corresponde ao
substantivo “Dichtung”, significando poesia, traduzido pelo verbo italiano significa
“condensar”.
47
Nossa linguagem foi herdada como nossa etnia a deixou. A palavra contém
significados que “estão na pele da raça”, como se fossem “nascidas do seu bico”, de
acordo com Pound. Por isso o escritor escolhe as palavras, “como o ourives o faz ao
criar jóias”.
Encontramos três modalidades de poesia:
1- Melopeia: as palavras são concentradas de propriedades musicais (ritmo,
som), seguem seu significado sem deixar “marcas ou falhas”, como a arte
dos trovadores Homero e outros poetas provençais, em que a poesia era
composta de seis estrofes econsiderada “arte total”.
2- Fanopeia: a imagem sobre a imaginação visual; devido ao ideograma os
chineses conseguiram atingir a fanopeia.
3- Logopeia: não se manifesta na música ou plástica, e, sim, nas
manifestações verbais.
De acordo com Pound, na obra ABC da Literatura (1990), no poema, esses
três níveis poéticos entrelaçam-se. O primeiro, ligado à parte sonora do poema,
recursos melódicos que se aproximam da música e da dança (rimas, assonâncias,
metrificação). Pound cita como exemplo as poesias trovadorescas.
A fanopeia refere-se às imagens propostas pelas palavras, como verificamos
na poesia visual, em que há uma aproximação da letra e das artes plásticas. Para
Pound o “máximo” da fanopeia é alcançado pelos chineses, pelo tipo particular de
sua linguagem escrita.
Em último, a logopeia que remete à realização das associações emocionais
ou intelectuais que permanecem na “consciência do receptor em relação às palavras
ou grupos de palavras efetivamente empregados” (POUND, 1990, p.60).
Para acrescentarmos o que é poesia recorremos também aos estudos de
Hênio Tavares que afirma serem várias as definições e ressalta:
Se cada escola literária tem uma concepção de realidade estética, se
cada artista também pode ter sua própria concepção, compreendese desde logo não ser possível uniformizar um conceito para a
Poesia. Etimologicamente, do grego “poíseis”, significa ato de fazer
algo; portanto, implica a idéia de ação, de criação. E este é o seu
sentido mais vasto. Mas fazer ou criar como, e com que objetivo?
Aqui é que há divergência entre artistas e também entre os críticos.
A distinção que se fazia tomando-se em consideração apenas o
aspecto exterior e formal para contrastá-la com a prosa, já não
48
satisfaz; serviria para diferenciar prosa de verso, pois pode haver
poesia na prosa, como também haverá verso sem poesia
(TAVARES,1981,.162).
O autor continua citando definições de grandes nomes da literatura e
afirma que, dentro da nossa tradição, dizemos que poesia é lírica ou emotiva, e
que poema é prosa ou prosa poética. Podemos também afirmar que a poesia é
potência capaz de dar sentido à vida. Ao buscar a essência da linguagem, o
artista realiza o poder mágico por meio das palavras, como mediação,
comunicação e exercício de construção de sentidos.
Além das definições de Poesia aqui abordadas, outra interrogação é
inevitável: a figura do Poeta, por ser essa a que completa o sentido de poesia.
Na obra Amor, poesia, sabedoria, o filósofo Edgar Morin define poesia como:
“amor, estética, gozo, prazer, participação e, principalmente, vida” (1998, p. 59).
Ela é repleta de manifestação com possibilidades infinitas da indeterminação
humana. Já a criação poética tem poder sobre os conceitos analógicos e
mágicos do mundo e é capaz de despertar as forças adormecidas do espírito,
para reencontrar os mitos esquecidos.
Nessa perspectiva, a poesia não é entendida apenas como um modo de
“expressão literária”, mas um “estado segundo” vivido pelo poeta e que deriva da
participação, da exaltação, da embriaguez e, acima de tudo, “do amor, que
contém em si todas as expressões desse estado segundo. A poesia é liberada do
mito e da razão, mas contém em si sua união” (MORIN, 1998, p. 9). Essas forças
conseguem realizar uma grande transformação vital, ou seja, o amor se liga à
“poesia da vida”. Morin complementa:
A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e poesia.
Podemos chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e
materiais que são necessárias à existência. E de poesia aquilo que
nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em si
mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor
(MORIN, 1998, 59-60).
Em relação à figura do poeta, Morin (1998, p. 158) destaca que ele é portador
de uma competência plena, “multidimensional”, pois sua mensagem poética tem a
capacidade de reanimar a “generalidade adormecida”, ao mesmo tempo em que
49
“reivindica uma harmonia profunda, nova, uma relação verdadeira entre o homem e
o mundo”.
Para Octavio Paz, poesia é a “outra voz”, por ser “ a voz das paixões e das
visões, é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade
e sem datas” (PAZ,1993, p.140). A poesia é memória e o poeta é entendido como
um “rio de tradição”, porque fala pelos seus povos por meio da memória. O poeta
tem como tarefa ser o elo entre passado e presente, entretanto, no século XX, ele
“descobre que esta ponte está suspensa entre dois abismos: o do passado que se
afasta e do futuro que se arrebenta. O poeta se sente perdido no tempo” (PAZ,
1982, p.69).
A função do tempo é vista pelo autor como uma função essencial para a
estruturação de imagens. O tempo é uma direção para o homem, pois seus atos e
palavras são feitos de tempo. Na poesia encontramos o tempo revelado, o poeta,
quando diz “o que diz tempo, até quando o contradiz, pois ele é capaz de nomear o
transcorrer, e ainda, torna palavra a sucessão” (PAZ, 1991,p.98).
A linguagem poética é diálogo social porque envolve tanto quem fala quanto
quem ouve. O poeta utiliza as palavras de “todos os dias” que fazem parte de nosso
ser, quer dizer, “são nosso próprio ser. E por fazerem parte de nós, são alheias, são
dos outros: são uma das formas de nossa ‘outridade’ constitutiva. [...] A palavra
poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na
realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele
mesmo e o outro” (PAZ, 1982, p. 217).
A poesia é uma forma especial de linguagem, mais dirigida à imaginação e à
sensibilidade. Em vez de comunicar, principalmente informações, a poesia transmite,
sobretudo, emoções. É uma das mais antigas e importantes formas literárias. Ainda
em Paz:
Conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo. Convite à viagem; regresso à terra natal.
Inspiração, respiração. Súplica ao vazio, diálogo com ausência.
Oração, presença, conjura, magia. Experiência, sentimento,
emoção. Arte de falar em forma superior. Loucura, êxtase, nostalgia,
confissão, visão, música, símbolo. (PAZ, 1982, p. 15).
Enfim, por meio da poesia o homem é capaz de sentir seu coração exaltar-se,
dando sentido à vida, criando desventuras e alegrias. A poesia nem sempre é
50
inerente ao ser humano, às vezes, é preciso trazer à tona o que há de mais poético,
transcender as fronteiras do inconsciente e atingir o estado poético. O poeta é este
ser que não se limita às coisas que podem ser vistas, ele as sente, e para expressálas, sugere sons, imagens, movimentos.
Octavio Paz, em sua obra Signos em Rotação (1972), ao conceituar o fazer
poético, diz que o poema pertence a um tempo e lugar (histórico) e no mesmo
instante é capaz de transcender essa condição e superá-la: “O poema é tempo
arquetípico: e por sê-lo, é tempo que se encarna na experiência concreta de um
povo, um grupo ou uma seita” (PAZ, 1972,p 54). A contradição, que é essência do
poema, ao se encarnar, mostra-se histórica; no mesmo instante em que
se
apresenta, uma nova leitura atualiza-se e projeta-se como futuro.
O poeta jamais consegue fugir da história mesmo que sua escrita componha
algo diverso dela; as palavras são históricas e sociais. A poética revela e consagra a
experiência humana (PAZ, p.55), por a poesia ser imagem. A poética, quando
composta, revela uma imagem, o isto e o aquilo. Diz o indizível:
O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser
pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas ao falarnos de todos estes sucessos, sentimentos, experiências e pessoas,
o poeta nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está
sendo diante de nós e em nós. E mais ainda: leva-nos a repetir, a
recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, revelanos o que somos. (PAZ,1972: 57).
Ao abordamos a condição histórica do poeta e o conceito de imagem na obra
de Octávio Paz, buscamos uma leitura sobre o texto poético e a questão da literatura
confessional feminina, um conceito ainda em construção. Se a poesia é a expressão
de um eu lírico que expressa a visão de uma realidade, um sujeito que fala do
mundo, tal aproximação abre a possibilidade de entendermos a necessidade da
distinção de uma produção poética que quer ser reconhecida como feminina.
II.1 ESCRITA FEMININA- AUTOBIOGRAFIA
A literatura de cunho confessional, subjetivo e intimista é aquela que mais se
aproxima do leitor, por estar centrada no sujeito que fala, no Eu que desnuda a
própria vida, e se revela, estabelecendo um elo perfeito entre autor e leitor.
51
As narrativas de introspecção são compostas por diferentes gêneros:
autobiografias, biografias, diário intimo, ficção e autoficção. O melhor introspectivo
pode ser feito pelo próprio autor, de suas experiências vividas, e encontraremos que
quem narra é o mesmo que age, e pode-se narrar tanto em primeira quanto em
terceira pessoa.
O homem, desde os tempos imemoriais, tenta representar sua realidade
talvez com o intuito de perpetuar e deixar sua marca na existência. Essa
necessidade de expressão não é entendida como moderna, mas como inerente ao
ser humano. Por meio da literatura, o gênero autobiográfico torna-se mais forte e
nasce com o desejo de retratar na escrita a essência humana.
Essa busca do “eu” surge já na antiguidade, com a busca pela sabedoria
que se encontra nos textos de Platão e que podemos resumir na famosa frase de
Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”. Sheila Dias Maciel (2004, p. 58) afirma “o
instituto autobiográfico é tão antigo quanto a escrita, ou melhor, é tão antigo
quanto o desejo humano de registrar suas vivências”.
Embora a literatura intimista tenha ocorrido no século XVIII, seu despontar
aconteceu no início do século XX, pelo grande número de leitores interessados
em desvendar os segredos do autor que coloca sua vida exposta pela escrita
confessional.
Na década de 70, do século XX, os primeiros anos do movimento feminista, a
história da mulher ganhou uma atenção maior dos pesquisadores cujo interesse era
a descoberta dos mistérios do universo autobiográfico. A vida dessas mulheres, que
por tempo viveram enclausuradas, afastadas da vida pública, se torna uma fonte de
informações que revelam sentimentos vividos pela frustração dessa época.
A autobiografia traz consigo experiências concretas e registros de uma
realidade pessoal. A escrita do eu está associada a fatos históricos e políticos,
por isso, trazem consigo informações muitas vezes preciosas que contribuem
para mudanças políticas e sociais.
A obra A Crítica literária no Século XX, de Jean- Yses Tadié (1992) nos
serve de respaldo para direcionarmos os passos seguintes de nosso estudo. A
escrita de Arlinda Morbeck evidencia um tom confessional de uma alma feminina
que relata, em seus poemas, de forma livre, os acontecimentos de sua vida,
52
deixando aos que leem a sensação de estar diante de um diário escrito em
versos e rimas, pois segundo Tadié:
A obra autobiográfica, determina a afirmação de um sujeito, de um eu
feminino: poesia lírica, cartas, diário, romance, romance por cartas. Certos
temas, ao contrário, serão tratados de passagem:
[...] a glória, a guerra, o poder”, enquanto os domínios do imaginário,
do poético, do fantástico, do gótico atraem as mulheres-e também o
romance policial. A literatura feminina reconstitui, com freqüência, o
mundo da infância, da mãe, no qual ela realiza seus desejos [...] O
próprio estilo é mais livre, mais “oral”, mais lento, mais sensível ao
tempo puro. A escrita feminina é, portanto, uma escrita do Interior:
corpo, casa, segundo o ciclo do eterno retorno (TADIÉ,1992, p.270).
Ainda nos estudos de Tadié encontraremos o enfoque sobre a
autobiografia. Como sabemos, a palavra autobiografia é um composto de três
termos gregos: autos que significa “próprios”, “de si mesmo”; bíos: “vida” e
gráphein: “escrever”, ou seja , é o autor quem escreve a história de sua própria
vida. A autobiografia só é aceita como literatura, se o autor fizer uso de uma
linguagem poética, utilizando-se de fatos de sua própria vida e trabalhando
sentimentos, ideias e emoções. As obras consideradas autobiográficas
apresentam a forma de confissões, diários, memórias, espitolografia e
autobiografia propriamente dita.
Tadié ressalta Beatrice Didier, em Stendhal Autobiógrafo (1983) no qual
cita como autobiografia: “esse gênero não é, unicamente, a narrativa do passado
de uma vida. Nada impede que se conte sua vida dia a dia. Um ato
autobiográfico ao qual o leitor é solicitado a dar testemunho” (TADIÉ, 1996, p
268).
O termo “autobiografia” aparece na Inglaterra no século XVIII de onde é
importado pela França, no século XIX, e tem como sentido, “vida de um indivíduo
escrita por ele mesmo” e este mesmo sentido permanece até os dias de hoje.
Os estudos de Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (1975), o
consagram um dos melhores especialistas da poética de autobiografia, tanto pela
diversidade de problemas abordados, como pelas ideias originais que dele brotam.
Buscamos nele o respaldo teórico para definirmos a escrita de Arlinda Morbeck, que
53
é marcada por uma temática recorrente, em que a escritora se utiliza de fatos de sua
vida pessoal, do mundo a sua volta, como se quisesse fixar sua história de vida em
todos aqueles que dela se apoderam.
A evolução do gênero autobiográfico, segundo Lejeune, pode ser traçada a
partir de Santo Agostinho e continuada por outro escritor africano, Wole Soyinka.
Para alguns críticos não só houve uma evolução da forma religiosa para a secular,
como, inclusive, poética, conforme observamos em T. S. Eliot, em sua
“autobiográfica poética”.
O estudo da autobiografia é complexo e foi a preocupação de muitos teóricos,
principalmente nos dias atuais, em que a autobiografia tem crescido em número
considerável. A literatura confessional define-se no século XVIII com a ascensão da
burguesia, quando o homem ocidental adquire consciência de sua existência e,
então, essa literatura alcança uma função cultural. O homem passa a se
compreender como centro do espaço em que está inserido e volta-se para si
mesmo.
Ainda Lejeune, estudou o percurso histórico da autobiografia, na França, e
analisou textos confessionais ou íntimos, alcançando a formulação de princípios
fundamentais do gênero autobiográfico; preocupou-se em estabelecer a diferença
entre romance autobiográfico e autobiografia, considerando diferentes níveis de
identidades entre autor-narrador-personagem. O autor estabelece categorias
diferentes: formas de linguagem (narração), tema (a vida individual), situação do
autor (identidade do autor como pessoal e narrador). Com essas categorias
estabelecidas Lejeune coloca em dúvida a autenticidade da pessoa gramatical, pois
para ele nem sempre a afirmação da identidade indica a autenticidade do narrado.
A delimitação de Lejeune entre romance autobiográfico e autobiografia, sendo
esta última considerada também como um ato literário, torna frágil e difícil, na
literatura confessional, delimitar as fronteiras entre autobiografia e diário íntimo,
entre memórias, poema autobiográfico e autor-retrato. O autor alerta ser difícil, mas
não impossível realizar essa diferenciação, com base em evidências textuais
internas.
Segundo Lejeune, a autobiografia pode ser definida como: “Relato
retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo
ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”
(LEJEUNE, 1975 p. 41).
54
Segundo o autor, a identidade pré-textual é condição fundamental para a
autobiografia. Por isso, o leitor até pode questionar a veracidade dos fatos, mas não
a identidade do autor. A escrita confessional busca por meio dos relatos íntimos
resgatar, nos instantes da escrita um tempo perdido, portanto, convém ressaltar que
os escritos do eu não são capazes de englobar a complexidade da teia da existência
humana.
O autor da autobiografia possui a liberdade linguística e formal; cabe a ele a
decisão sobre sua escrita, se será guiada por um calendário, como um diário, ou se
irá fazer menção ao passado e usar a memória para trazer à tona fatos recorrentes
do passado. De acordo com Viana:
A autobiografia, entendida como narrativa em que o autor, narrador e
personagem são figuras coincidentes, não é certamente um gênero
uniforme, sujeito a regras fixas. [...] O estilo ou a forma da narrativa
autobiográfica pode se definir como a maneira própria década
autobiógrafo satisfazer as condições de ordem ética e relacional, que
só exigem a narração verídica de uma vida. Assim, a escolha da
modalidade de escrita, bem como o tom, o ritmo e a extensão, ficam
sob inteiro encargo do escritor. Se o enunciado na obra
autobiográfica tem como obrigatoriedade a referência ao passado,
seja ele remoto (memórias) ou próximo (diários), o estilo, a forma de
enunciação, em contra partida está ligado ao presente do ato da
escrita. (1995, p.14-15).
É essa liberdade lingüística que faz com que o discurso da memória
abarque algumas problematizações; ao retornar ao passado por caminhos
diversos o autor não tem consigo uma fórmula que o ajude no desencadear das
lembranças, por ser este um processo pessoal. Podemos observar que Arlinda
Morbeck recupera seu percurso existencial por um procedimento pessoal,
singular. Podemos afirmar que o autobiográfico é historiador de si mesmo, o que
pode abarcar problemas na escrita; um distanciamento temporal pode não tornar
o relato tal como ele se deu; por isso, o autor utiliza-se, muitas vezes, da
imaginação para amenizar as lacunas causadas pelo tempo (memória
fragmentada).
Outro ponto a ser considerado é a reconstrução da vida na autobiografia que
sempre se dará por uma construção discursiva; o próprio autor plasma sua figura no
papel. Não encontraremos o autor em sua totalidade, visto que no papel temos
55
apenas uma face do sujeito, face esta escolhida por ele para se eternizar na escrita.
Falar de si mesmo é dar liberdade de selecionar alguns fatos e descartar outros,
construindo a imagem que deseja.
As memórias, são, portanto, a busca do passado, no momento presente.
Construída, a partir de suas necessidades, sobre fatos comprovados, mas antes
de tudo, a melhor forma de passar a limpo o passado. Interessa ressaltar que a
memória oferece uma infinita possibilidade para que o sujeito revisite sua própria
história, na fase madura, fazendo com que uma lembrança traga outra. O escritor
tem consciência da tarefa que realiza, ou seja, no seu íntimo sabe que está
escrevendo uma autobiografia, por isso, no limite do relato, ele escolhe o que
realmente deseja que perpetue em sua escrita, não registrando determinadas
lembranças que possam distorcer a imagem desejada, e, até mesmo, estende a
escrita infinitamente.
Para Philippe Lejeune a definição total de autobiografia seria um fracasso,
ele afirma: “A autobiografia se define a esse nível global: é um modo de leitura
tanto como um tipo de escritura, é um efeito contratual que varia historicamente”
(LEJEUNE, 2008, p. 60). O autor aponta para a relatividade que existe nessa
definição, e ressalta que seus estudos a respeito são apenas um documento (de
estudo) e não cientifico. Ressalta os pontos positivos que a escrita autobiográfica
traz como gênero contratual, pelo qual pode ir além das estruturas textuais
colocando em questão as posições do autor e do leitor.
O interesse que o pesquisador tem pela autobiografia feminina brasileira,
foi discutido por Maria José Mota Vianna (1995), que também aponta para a
relação que existe entre escrita e poder, ressaltando a importância de quem não
escreveu, ou não publicou o que escreveu. São livros de difícil circulação; além
de poucos; a circulação foi restrita, outros, estão perdidos com receitas de
culinárias,
ladainhas,
orações,
poemas,
cadernos
de
pensamento,
e
permanecem abandonados em alguma gaveta. Essas escritas se aproximam de
uma realidade, do papel social, do imaginário e vivência que podem guardar
fatos históricos e políticos, além de demonstrar os sentimentos guardados de
uma mulher diante de determinadas realidades. Muitos desses escritos se
perdem pelo tempo, privando os pesquisadores.
56
A
matéria
poética
de
Arlinda
Morbeck
está
calcada
na
teoria
autobiográfica, como veremos no capítulo Rumores, Romeiros Sertões, cujos
ingredientes foram recolhidos do seu cotidiano, que vai se configurando no
recordar. Esse ato de rememorar é uma atitude de transcender o tempo, uma
necessidade de fixar a essência do que passou e reexperimentar as sensações,
dispondo de uma liberdade plena para manipular suas lembranças, tornando sua
poesia mais lúcida, na medida em que mais penetra nas fontes da memória
transformando os diferentes níveis de tempo em um único. Recordar é a trilha
lírica da memória; na escrita de Arlinda encontramos uma memória referenciada
do vivido.
II.2 A MULHER NA ESCRITA LITERÁRIA
[..]. um texto descoberto em um arquivo empoeirado
não será bom e interessante, só porque foi escrito por
uma mulher. É bom e interessante porque nos permite
chegar a novas conclusões sobre a tradição literária
das mulheres, saber mais sobre como as mulheres
desde sempre enfrentaram seus temores, desejos e
fantasias e também as estratégias que adotaram para
se expressarem publicamente, apesar de seu
confinamento ao pessoal e ao privado.
Sigrid Weigel
Na indagação sobre a escrita feminina, constatamos nos livros de história da
literatura sua ausência no meio literário. Virginia Woolf propõe em seus estudos uma
reflexão sobre tal escrita, mais propriamente, a reflexão sobre o que as mulheres
escrevem, e a possibilidade de semelhança entre as suas produções. Como
sabemos, foi por volta do século XVIII que as mulheres entraram em cena no mundo
literário; antes, já existia uma escrita, não com tanta visibilidade, como nessa época,
uma mudança tão brusca que, segundo Virginia Woolf, foi mais importante que as
Cruzadas e ainda ressalta:
57
As mulheres começam a respeitar seu próprio sentido dos valores. E
por esta razão que a substância de seus romances começa a
mostrar certas mudanças. Parece que as mulheres que escrevem
estão menos interessadas por si próprias e mais pelas outras
mulheres. No inicio do século XIX os romances de mulheres eram
em grande parte autobiográficos. Uma das razões que as
impulsionava era o desejo de descrever seu próprio sofrimento, de
defender uma causa própria. Agora que este desejo não é mais tão
imperioso, as mulheres começam a explorar o mundo das mulheres,
a escrever sobre as mulheres como nunca se escreveu antes; pois,
até época recente, as mulheres na literatura eram, certamente, uma
criação dos homens (WOLLF, 1996,p.43).
Não só tivemos, com a presença das mulheres, uma produção literária,
como também essa presença provocou consequências de ordem política, cultural
e econômica. Então, passamos a não só ter mulheres que liam e compravam
romances, como também as que os produziam, e esse comércio intensificou-se a
partir do século XX; se, antes, tínhamos produções literárias, de cunho
masculino, agora, a literatura estava em um novo processo de “feminização”.
Torna-se, então, a literatura o principal lugar em que se manifestam as
mais diversas interpretações de mundo feitas pelas mulheres, e, de acordo com
Nelly Novaes Coelho (2004), percebemos o crescente amadurecimento da
consciência crítica: de uma literatura lírico-sentimental, cujos valores se
pautavam nos padrões impostos pela sociedade cristã/patriarcal, vistos como
únicos e absolutos (ingenuidade, submissão, castidade e descrição); a mulher
chega a uma literatura ético-existencial que expressa o rompimento de sua
imagem padrão (esposa/cortesã, anjo/demônio etc.). A mulher não opta por um
apenas desses comportamentos, mas, sim, assume ambos e revela a
ambiguidade,que é inerente ao ser humano. Encontramos uma mulher em busca
de uma nova imagem o que lhe permite identificar-se com segurança.
Perpassando o silêncio a que a mulher havia sido condenada, ela passa a
fazer presença no mundo literário; é pela escrita de poesias que ela se liberta e
se torna digna de respeito e faz dessa escrita uma profissão e, quando não,
como uma superação da sujeição no espaço em que somente o homem era o
dominador. Encontramos textos construídos, a partir de suas experiências, em
contextualização com o universo; a mulher passa a ser sujeito de sua
experiência, ou seja, de sua palavra, uma vez que essa mesma palavra esteve
58
relegada à autoria masculina; “a sociedade não reconhecia na mulher outras
aptidões a não ser a maternidade e a da senhora do lar” (STEIN,1984,p.22).
Ainda em Virgínia Woolf, encontramos: “Vocês ganharam seu próprio
espaço na casa até agora possuída exclusivamente por homens” (WOOLF, 1996,
p.50). A autora se dirigia às mulheres que se preparavam para o mercado de
trabalho, pois surge uma preocupação com o trabalho de mulheres escritoras;
em relação a isso, a própria autora diz: “Minha profissão é a literatura, e nessa
profissão há menos experiências de mulheres do que em qualquer outra, com
exceção da arte dramática - menos quero dizer que são peculiares às mulheres”
(WOOLF,1996,p.41). Assim, a autora deixa clara a dificuldade do mercado de
trabalho feminino, que, apesar de muito ter se evoluído, ainda havia muito para
ser conquistado.
Norma Telles, em seu artigo Escritoras, escritas e escrituras, afirma que:
As mulheres excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da
possibilidade de ocuparem cargos públicos, de assegurarem
dignamente sua própria sobrevivência, e até mesmo impedidas do
acesso a educação superior, as mulheres no seculo XIX ficavam
trancadas, fechadas dentro de casa ou sobrados, mocambos e
senzalas, construídos por pais, maridos e senhores. Além disso,
estavam enredadas e constritas pelos enredos da arte e ficção
masculina. Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado
aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a
autora. As representações literárias não são neutras, são
encarnações “textuais” da cultura que as gera (TELLES, 2008,
p.408).
Trancadas, as mulheres permanecem em seus casulos. A literatura
feminina do século XIX retrata não a questão de nação, mas a condição
vivenciada pela mulher, e foi por todo o contexto histórico dessa época que a
mulher brasileira não acompanhou as transformações sociais e culturais,
principalmente no âmbito educacional.
Lygia Fagundes Telles apresenta uma visão sobre a escrita feminina, a partir
de suas condições femininas e culturais. A autora cita entre as características
predominantes na sua escrita, o seu tom confessional, na maioria das escritoras, em
que o dia a dia, os anseios, a realidade e os desejos são universo particular de suas
vidas e de suas obras; encontramos, portanto, uma mulher de escrita sobre mulher e
para mulher. Por isso, cartas, diários, crônicas são o espaço de manifestação único
59
dessas mulheres, que vão, assim, rompendo com a sociedade em que estão
inseridas e, antes de tudo, consigo mesmas. A mulher reaprende a viver, pois,
“excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas a
autoridade masculina” (TELLES, 2008, p.408).
A autora cita a condição da mulher brasileira e não sua escrita, reforçando
sempre a questão da educação feminina muito precária. No início do século XIX, a
maioria das mulheres eram iletradas, o que comprova o silêncio e a ausência de
vozes femininas na literatura. Quando encontramos essa mulher escritora, temos o
reconhecimento do predomínio de uma voz masculina, e isso ocorreu pelo fato de
que a temática feminina ainda estava voltada para questões íntimas e não para
temas políticos e históricos, como era esperado, o que fez da produção feminina
pouco relevante. Adverte Telles:
O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em ações
políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações
das mulheres armadas, em geral, denunciam incapacidade feminina
para a luta, física ou mental, donde concluem que as mulheres são
incapazes para a política, ou que esse tipo de idéia é apenas
diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair
(TELLES, 2008,p.406).
Nelly Novaes Coelho ressalta a questão de toda a diferença na escrita
feminina em relação à masculina:
A primeira, sendo de estrutura forte, criativa e agressiva,
evidentemente construiria uma arte idêntica à sua natureza viril;
enquanto a segunda, sendo sensível, frágil, psicologicamente sutil,
efetiva, ingênua, etc., criaria também uma arte delicada e frágil (...)
Não é possível pensarmos em criação artística e literária em sua
verdade maior sem pensarmos na cultura em que ela está imersa. È
através desta perspctiva que, sem dúvida, podemos falar em uma
literatura feminina e em uma literatura masculina, pois as
coordenadas do sistema sociocultural ainda vigente estabelecem
profundas diferenças entre o ser-homem e o ser-mulher. (COELHO,
1993, p.14-15).
Podemos entender, nas palavras de Coelho, esta divisão existente entre a
escrita feminina e a masculina, que se tornou uma questão de ordem cultural e
social estabelecida desde a sociedade patriarcal. Sabemos da existência de uma
linha crítica que não estabelece essa divisão na escrita, ou seja, para a escrita não
existe sexo.
60
E é na escrita feminina do século XIX que percebemos a posição crítica em
relação à posição delas mesmas, como mulheres, no meio social e cultural em que
estão inseridas. Mesmo tendo uma restrição no ambiente em que vivem, de uma
forma estratégica, apontam seus trabalhos, os desejos e anseios de suas vidas. A
literatura feminina vai ganhando força em salões literários onde encontramos as
mulheres declamadoras de seus textos, e, aos poucos, essa escrita deixa as
paredes dos salões, para o momento íntimo da criação, possibilitando-nos o
encontro com o teor confessional e de autorreferência.
Apesar de as mulheres escritoras dessa época saberem de suas posições,
como tal, havia ainda a questão do cânone, que, para ser alcançado, era necessário
que se adequassem aos preceitos masculinos, e estes estavam ligados aos modelos
europeus. Por isso, encontraremos na escrita confessional dessas escritoras uma
insatisfação por existir essa dependência . Embora tivessem consciência da situação
do meio literário em que viviam, raramente conseguiam alcançar a própria definição.
O século XIX é historicamente entendido como o da mulher leitora, pois a
mulher consegue ter acesso à escola e, com isso, passa a ler romances e refletir
sobre sua posição na sociedade. E é nesse processo de reflexão que a mulher, em
seus trabalhos, revela sua realidade e desejos, identificando-se, assim, com suas
leitoras, que veem seus anseios e necessidades não só revelados, mas com
possibilidades de ser mudados. A mulher, então, pode revelar-se e buscar sua
própria identidade na sua escrita literária.
A produção literária do século XIX e início do XX não era reconhecida e, sim,
tolerada; as mulheres não eram vistas capazes de escrever, por isso, encontraremos
nas críticas literárias da época um comedimento às escritoras, sendo tratadas com
muito respeito, e quanto aos seus textos, não eram nem mesmo citados como
literários, e sobre eles eram feitos comentários superficiais.
A maior dificuldade que encontramos nesse tipo de resgate documental, é
exatamente pela condição vivida por essas escritoras que não conseguiram o
devido reconhecimento no contexto histórico-literário da época. Não podemos
nos esquecer de que educação feminina foi um dos grandes motivos de não
termos uma construção literária feminina, e isso se refletiu no estético-literário, ou
seja, as mulheres não tinham uma linguagem literária adequada.
Por fim, a escrita feminina era considerada vazia, indiferente, em relação às
obras masculinas, porém venceram todas as críticas, e, hoje, essas mulheres são
61
objeto de estudos em todo o país e, a cada resgate dessas escritoras, percebemos
que elas superaram as críticas e conquistaram seu próprio espaço. É necessário
pensarmos que é justamente no momento desse resgate que se faz o
reconhecimento, e é esse reconhecimento que leva à legitimação da sua escrita.
Percebemos que, ao longo da história, a mulher sempre vem se impondo e
ganhando seu espaço, seja por ela mesma, ou por meio de seus pesquisadores.
62
CAPÍTULO III
VOZES FEMININAS MATO-GROSSENSES
No tear da memória, encontramos: histórias, amor e poesia, em muitas
vozes femininas, que se cruzam em palavras, tornando-se um só fio condutor,
contemplado na literatura feminina brasileira. Dentro desse enorme tear,
podemos pensar no encantamento das palavras femininas mato-grossenses,
palavras estas estudadas pela autora Yasmin Jamil Nadaf em seus livros: Sob O
Signo de Uma Flor (1993) e Presença Feminina (2004).
A citada autora contribui para a divulgação das poetas mato-grossenses,
facilitando, com isso, o caminho das pesquisas em torno dessas escritoras e
privilegiando as mulheres mato-grossenses e, principalmente, aquelas que se
encontram esquecidas em papéis empoeirados.
Em sua obra Sob o Signo de Uma Flor (1993), a autora faz um
levantamento pelas bibliotecas, jornais e revistas, e, entre eles, encontrou a
revista intitulada “A Violeta”, escrita por um grêmio literário feminino matogrossense; surge, então, diante dela, o corpus de sua pesquisa que traz também
consigo um número abrangente de mulheres escritoras.
A autora faz uma classificação da coleta de “A Violeta” em duas partes. A
primeira parte desse estudo relata o surgimento da revista, que se dá a partir do
surgimento do Grêmio Júlia Lopes (1916-1950); podemos com isso compreender
que assuntos eram tematizados por essas mulheres mato-grossenses, em se
tratando da primeira metade do século XX.
A idéia de seu aparecimento surgiu de um grupo de jovens
normalistas, da “Escola Normal de Mato Grosso”, ligado a algumas
senhoras e senhoritas simpatizantes da cultura, que desejava a
instalação de uma agremiação onde pudessem cultivar as “letras
femininas e patrícias”, criando para divulgação uma revista
bimensal. A agremiação foi fundada em 26 de novembro de 1916
com o nome de Grêmio Literário “Júlia Lopes” e no mês
subseqüente `a instalação fez circular o primeiro exemplar de sua
revista, A Violeta. (NADAF, 1993, p.23).
63
O aparecimento da revista foi reconhecido e divulgado pela imprensa,
inclusive pelo escritor e um dos fundadores da Academia de Letras Matogrossense, José de Mesquita. A Violeta tinha um status próprio e, com isso,
conseguiu desencadear muitas lutas para melhorias dentro da capital, CuiabáMT. As conquistas alcançadas surgiram com ajuda financeira de sócias de
diversas profissões. Percebemos a organização que cercava esse grêmio que
visou não só à publicação bimensal da revista, como a atuação feminina na vida
política e social do meio mato-grossense.
A pesquisa da autora evidenciou também que outros grêmios surgiram, a
partir do “Júlia Lopes”, como é ressaltado por ela mesma:
Para ilustrarmos citamos a fundação, em 1925, do Grêmio “Castro
Alves”; em 1936, do Grêmio “José de Mesquita”; em 1937, do
Grêmio “Álvares de Azevedo”;e, em 1940, do Grêmio “Machado de
Assis” e do Grêmio “D. Aquino Corrêa”. Essas entidades se
diferenciaram do Grêmio Literário “Júlia Lopes” apenas pela
constituição do sexo que as compunha, restrigindo-se a homens e
não a mulheres matogrossenses. O grêmio feminino antecedeu,
também, a instalação do Instituto Histórico, fundado em Mato
Grosso em 08 de abril de 1919 e o Centro de Letras, hoje
Academia, cja instalação em Cuiabá data de 07 de setembro de
1921. (NADAF, 1993, p.28).
O estudo da revista perpassa o Nascimento, a Descrição (estruturaperiodicidade- formato- capa- assinatura –direção –impressão –paginação -seções
publicidade-ilustração), Conteúdo e Colaboração. Entre esses elementos não
podemos deixar de destacar o estilo da revista, pelos temas diversos encontrados
que são marcados pelo movimento literário romântico presente na época.
A começar pelos temas, alguns mais detalhamente descritos no item
seguinte, relacionamos: o amor, a pátria, a natureza expressiva, a
religião, como fé e valor espiritual, a morte, a noite, o luar, as flores,
o desejo de evasão, a valorização da história, do passado nacional e
da vida simples, em natureza, o anseio do progresso e a
preocupação social. Tudo isso aliado ainda a um estado de espírito
ora melancólico e pessimista, ora terno e singelo, e ora ufanista e
ousado. Sentimentos idênticos àqueles experimentados pelos
nossos expressivos escritores do Romantismo (NADAF, 1993, p.36).
A revista surpreende-nos pelos muitos assuntos tratados; as mulheres, por
estarem presentes em épocas da sociedade mato-grossense em que tudo acontecia
64
tardiamente, assim mesmo, conseguiram manter a circulação da revista com maior
durabilidade que qualquer outra.
A segunda parte é composta por um índice temático, ou seja, as divisões
que compunham a revista, entre elas: Educação, Música, Política, Medicina e
Saúde, Sociologia e Femininos e outros.
Essas mulheres romperam com a figura feminina imposta no Brasil,
composto por uma sociedade misógina que, por sua vez, via a figura feminina
apenas como ornamento do lar, seres inferiores, a classe do imbecilitus sexus –
sexo imbecil, pois a produção intelectual era reservada apenas para os homens.
No livro Presença de Mulher (2004), Yasmin apresenta-nos um estudo sobre
as escritoras do século XIX, novamente mulheres mato-grossenses. Yasmin
consegue com esse estudo trazer à luz novas escritoras, novas para o público-leitor
porque, na maioria, são possuidoras de uma vasta produção poética, que muito
enriquece as lacunas de um modo geral da literatura mato-grossense. As produções
poéticas perpassam o século XIX, indo até a segunda metade do século XX.
Nos estudos de Yasmim Jamil Nadaf aqui apresentados, encontramos uma
sustentação indispensável para nossos estudos, portanto, a partir deles, podemos
reafirmar a literatura feminina mato-grossense do séc XIX até a metade do séc XX.
Tivemos contato com nomes já reconhecidos como poetas, e outros ainda à espera
de sua legitimação, o que só ocorrerá com futuras pesquisas, para que, assim, cada
mulher seja colocada diante de um público-leitor, que muito admira a poética
feminina anseia por ela. As palavras da própria autora, antes de qualquer pesquisa,
demonstram a dimensão da importância da literatura feminina:
Ao deixarem de lado a inércia, o tédio e a solidão, adjetivos
comumente presentes no cotidiano das mulheres burguesas do
Brasil (período colonial até a primeira metade do século XX), e
derrubando as barreiras do isolamento geográfico regional, essas
mulheres foram úteis a si e à sociedade. Mulheres cujo nome
fizemos questão de frisar, mesmo correndo o risco de apresentarmos
uma escrita aparentemente reiterativa e monótona, para grava-las de
modo justo na história da mulher, e feita por ela. Integrando-se umas
às outras, cujo desempenho em grupo até então desconhecemos,
criaram, permutaram e praticaram ideologias diversas que
certamente abriram caminhos para uma melhor ou mais ampla
qualidade e possibilidade de vida pública `a mulher da atualidade
(NADAF, 2004 ,p.22).
65
Se pensarmos a partir dos estudos da autora, publicados em seu livro
Presença de Mulher, constataremos a significância da presença feminina no meio
poético mato-grossense, ressaltando, assim, a poeta Arlinda Morbeck:
Dentro do contexto literário de Mato Grosso desse período, há que
se ressaltar a presença de Arlinda Morbeck. A autora nos deixou
centenas de poemas e sonetos, alguns ainda inéditos e outros
publicados na imprensa mato-grossense e paulista. O tema
preferencial de sua poesia não fugiu à regra adotada pelas demais
autoras aqui citadas: apresentou um lirismo amoroso intenso ora
realizado e, portanto, feliz, ora angustiado pela ausência temporária
do amado ou pelo receio de seu abandono (NADAF, 2004, p.104).
Yasmim Nadaf nos oferece um excelente trabalho em seu livro. Em breves
considerações deixa registrado, junto a outros nomes, o de Arlinda Morbeck, e
ressalta suas produções e sua temática predominante, contribuindo para a nossa
pesquisa que necessita desse tipo de respaldo teórico. Yasmim com essa pesquisa,
registra a literatura feminina de Mato Grosso, deixando em suas entrelinhas
caminhos a serem percorridos por pesquisas futuras.
III.1 A VOZ DE ARLINDA MORBECK
A obra informa sobre a vida e a vida ilumina a obra.
Pareyson.
Pensar na poética da escritora Arlinda Morbeck é, antes de tudo,
reconstruir o campo de suas produções. As buscas pelos poemas, por caminhos
tortuosos, deixaram a certeza de que ainda existe muito para ser apresentado e
discutido. O que buscamos, após a apresentação do material aqui selecionado, é o
reconhecimento e a permanência de Arlinda dentro da literatura mato-grossense.
Numerosas são as autoras que, como Arlinda Morbeck, necessitam que suas
produções sejam reconhecidas na literatura, seja ela brasileira, ou regional. Quando
falamos na exclusão dessas poetas, o termo “cânone” traz em si essa política de
exclusão.
Cânone, do grego Kánon, tem como principal o significado de regra. Com o
passar do tempo, ganhou outros sentidos, como o de textos autorizados e exatos,
66
quase sempre escritos por autores, considerados e reconhecidos como tais. Se
buscarmos o significado de cânone, pela origem religiosa, entenderemos que são
textos de caráter espiritual e que são legitimados como imortais.
È importante que pensemos no cânone literário e, principalmente, no nosso
local, para não deixarmos relegadas as vozes que já foram legitimadas, pois, a partir
dessas vozes, outras podem deixar o silêncio e ser reconhecidas, por serem elas
mesmas as responsáveis pela sustentação na edificação do cânone.
Dentre essas vozes silenciadas estão as de mulheres marcadas por uma
negação no universo da escrita, ou seja, viveram e vivem o obscurecimento de suas
produções escritas. Nessa perspectiva, faz-se necessário o estudo de textos não
canônicos para a reconstrução das produções literárias dessas mulheres.
A obra Problemas da Estética, de Luigi Pareyson norteou e sustentou os
rumos da seleção do material poético de Arlinda Morbeck. O autor explora a questão
dos problemas ligados ao conteúdo artístico, e o divide, segundo a filosofia crociana,
em duas direções: “O problema do sentimento na arte e o problema das relações
entre biografia e poesia” (PAREYSON,1997, p. 83) e ainda acrescenta que:
[...] não se pode enfrentar o problema do sentimento na arte sem
distinguir, em primeiro lugar, várias espécies de sentimentos:
aqueles vividos pelo artista antes da obra, aqueles expressos na
obra, aqueles vividos pelo artista ao fazer a obra e aqueles
despertados pela obra no leitor: em suma, os sentimentos
precedentes, contidos, concomitantes e subseqüentes com relação à
obra de arte. (PAREYSON,1997, p.84).
Seguimos a discussão dos sentimentos na arte. Duas posições contraditórias
são colocadas em relevância; de um lado, a paixão como necessária à arte e, de
outro lado, a arte controlada e distante de qualquer sentimento. Croce faz uma
mediação entre as duas posições, reconhecendo que, para a construção da arte,
pode-se admitir “uma dúplice presença de sentimento na arte”, ou seja, sentimentos
contidos que não são vividos, mas são criados no devaneio poético, e, finalmente, o
concomitante que, a partir de sentimentos vividos, teremos a paixão pela arte, a
alegria no ato da criação.
Como mesmo adverte Pareyson:
É difícil não acolher uma doutrina tão precisa e equilibrada no que
respeita à presença do sentimento na arte. Que os sentimentos
presentes na arte possam ser contidos ou concumitantes, que é
67
necessário distinguir entre a efusão sentimental e a atividade
artística, isto é, entre os sentimentos reais e os cantados pelo artista,
que os sentimentos transfigurados da arte tenham um significado
universal: eis outros tantos princípios que podem ser considerados
definitivos. (PAREYSON,1997,p. 85)
Esses princípios da arte, defendidos por Croce, na obra de Pareyson, são
destinados somente ao lirismo, dando respaldo à nossa pesquisa em que
percebemos o sentimento vivido e contemplado por Arlinda Morbeck. Não
podemos deixar de enfatizar a questão do conteúdo, que está ligada à
“espiritualidade do autor”, e o mundo que está a sua volta, criando o que
chamamos de estilo.
Pareyson conclui que, para os crocianos, os diversos sentimentos podem
ser artísticos, como também “as idéias, as crenças e aspirações dos artistas”,
que podem dar às suas obras intensidades, sem a necessidade de serem
liricamente provenientes dos sentimentos.
Além dos sentimentos que penetram a realidade da arte, existem os
sentimentos
causados
por
obras
de
arte,
considerados
sentimentos
subsequentes, também divididos em duas posições; temos: a arte suscitando
sentimentos e, por outro lado, que esses mesmos sentimentos não têm nada a
ver com a arte.
Em “Biografia e Poesia”, subtítulo discutido por Pareyson, que completa o
nosso caminho para a apresentação da escrita de Arlinda Morbeck, o autor coloca
dois problemas encontrados: “pode o conhecimento da vida de uma artista aumentar
a compreensão da sua arte? Pode a obra de um artista contribuir para o
conhecimento de sua vida?” (PAREYSON, 1997, p. 90).
Para obter as respostas uma relação é estabelecida entre a arte e a vida e, a
fim de compreendermos determinadas obras, como a de nossa poeta, é necessário
reconhecer fatos de vida, o que contribui diretamente para o entendimento da arte.
As alusões a certos fatos, o uso e o significado de certas palavras, certas
reminiscências literárias, a afinidade com outros artistas, o significado de
certos símbolos e de certas convenções, eis tantos elementos que são
perspectivados no seu justo valor e no seu exato alcance quando se
conhece, averiguável e documentável também por outra via, a vida do
artista, isto é, a sua formação, a sua cultura, o seu tirocínio, os seus
contatos com os outros artistas, o ambiente cultural por ele freqüentado, e
assim por diante (PAREYSON,1997, p. 90).
68
A biografia é necessária para a compreensão da arte e, ao mesmo tempo,
as obras para a biografia. No entanto, Croce faz uma separação entre arte e vida;
para ele existe uma personalidade artística diferente da personalidade humana. E,
ainda, se a obra fica e a vida passa, o que deve ser contemplado é a obra de arte e
não a vida do artista.
Porém, é no tópico biografia e arte, que, ao contrário do que Croce afirmou
anteriormente sobre vida do artista, vem a biografia como um meio de compreensão
da poesia. A biografia de Arlinda Morbeck contribuiu para a avaliação de sua
poética, uma vez que o ambiente em que ela escreveu serviu a inspiração em sua
escrita, por isso “não se trata de afirmar que a biografia, de per si, está em
condições de fazer compreender a arte, mas de iluminar as obras através da
biografia, já que por sua vez iluminada pelas próprias obras.” (PAREYSON,
1997,p.96).
Tanto a biografia de Arlinda Morbeck ajuda a “iluminar” seus poemas,
quanto seus poemas contribuem para entendermos as lacunas existentes na história
de sua vida. A personalidade artística e a humana surgem com um novo conceito, o
da inseparabilidade:
Qualquer corte demasiado nítido entre personalidade artística e
personalidade humana dissolveria aquele nexo entre vida e arte,
pessoa e poesia, humanidade e estilo, que constitui o dinamismo
essencial da arte, a sua gênese interior, a sua natureza íntima. A
compreensão do significado humano do estilo, que é a coisa mais
difícil na leitura das obras de arte, fica singularmente aumentada
quando se consegue colher o estilo no seu estado germinal, isto é,
quando se consegue ver o conteúdo no ato de buscar a própria
forma, a personalidade do artista no ato de precisar a própria
vocação formal, a sua espiritualidade no ato de fazer-se energia
formante e gesto formativo: em suma, a humanidade no ato de fazer
estilo, a vida no ato de fazer-se arte, a pessoa no ato de fazer-se
obra. Ora, pôr a biografia sob o signo da arte e aplica-la, assim
fecunda, a explicar a poesia, significa, precisamente, olhar para
aquele ponto germinal da arte, em que a personalidade humana se
prolonga na personalidade artística e a vida transpassa a arte. Onde
este método genético for possível, isto não pode deixar de favorecer
o pleno êxito da interpretação e contribuir, egregiamente, para a
compreensão da arte. (PAREYSON,1997,p.97).
Selecionar a produção poética de Arlinda Morbeck é deparar-se com
surpresas. Em cada poesia, palavra, página encontramos um desafio. Ao primeiro
contato, pensamos estar diante de singelas temáticas, porém, a cada leitura uma
69
reconstrução é necessária para sua compreensão. Uma seleção já foi antes
realizada pela autora Hilda Magalhães, em sua obra História da Literatura de Mato
Grosso, em que ela afirma:
O que se sobressai na poética de Arlinda Morbeck é o caráter
confessional da sua obra, que, assumindo, em algumas vezes o
estatuto de memória e, em outras, o de diário, nos relata os dramas
de uma alma feminina ás voltas com problemas conjugais(…)
destilando um sumo amargo que nos possibilita caracterizar muitos
de seus poemas como existencialistas. (MAGALHAES, 2001, p.82).
Enfocaremos não só a temática abordada por Hilda Magalhães, como
apresentaremos
poemas
inéditos
que
trazem
outras
características
e,
principalmente, as de condições históricas e sociais que influenciaram, em grande
parte, a sua escrita. O contato com os originais contribui para a compreensão das
imagens construídas pela poeta.
O fato de ter vivido a maior parte de sua vida na região mato-grossense
não possibilitou a publicação de seus poemas, porém trouxe de importante o
registro do tempo, contribuindo com a nossa memória coletiva. Essa memória
coletiva e individual é perceptível na sua poesia confessional, por exemplo,
quando exprime o seu desejo de ver sua obra publicada, quando se sente
colocada na escória literária, ou quando ela fala de uma história viva (garimpo),
ou de seus sentimentos íntimos.
Arlinda fala por uma minoria, por uma classe que está excluída da vida social;
com sua poética e lirismo essas pessoas podem ter uma memória viva. Sua poética
consta de 19 cadernos, diários, cartas e jornais. A maior parte deles foi escrita no
Estado de Mato Grosso. A leitura desse material nos faz perceber o cuidado que a
poeta teve em produzi-los, isto é, escrevê-los como se tivesse a certeza da sua
publicação e, ao mesmo tempo, sua escrita é livre, não se preocupa com uma
temática especifica, ou mesmo, um distanciamento do seu eu poético; o diálogo de
suas lembranças também é livre, não há distanciamento físico ou temporal.
Em todos os seus cadernos, encontramos sempre uma ressalva em que
confidencia todas as dificuldades encontradas para a publicação e o pedido aos
filhos que o façam por ela, como se sua realização pessoal de vida dependesse de
sua escrita publicada e reconhecida. Apesar de ter dedicado sua vida como
professora e ter encontrado na profissão dificuldades, pois conviveu com uma
70
realidade difícil para uma mulher que viveu na alta sociedade baiana; a poeta não
deixou que essas dificuldades transparecessem em sua escrita, revelando com isso
o seu lado de mulher delicada, sábia e pura.
O tempo, em sua poética, não se prende, é livre; quando fazemos a
recuperação de suas memórias, não temos a sensação de valores irreais, sentimos
a leveza de toda sua sensibilidade feminina presente. Os problemas enfrentados por
ela são colocados em seu lirismo, de uma forma “generosa”de beleza, apesar da
verdade transmitida.
Encontramos, por vezes, em seus cadernos, mensagens, orações, recados,
lembranças, o que explica que sua escrita foi também única companhia nos sertões
mato-grossenses. É nessas pequenas narrativas, ou mesmo, em algumas de suas
prosas que, além de presenciar o ambiente em que viveu, percebemos o lado
submisso, feminino, vivido por ela, lado este de que ela tem total consciência e
encontra na escrita um meio de fuga e desabafo. A poeta não só descreve cenários
da região mato-grossense, como também de Valparaíso-SP. Sua poética perpassa
vários contextos sociais, políticos, e várias figuras humanas, homens, mulheres,
garimpeiros e famílias tradicionais. Por ter escrito para colunas de jornais, utilizava o
pseudônimo de “Tesourinha” e teve que seguir por outras temáticas, contrárias à de
sua escrita, antes, livre.
O pseudônimo, segundo Lejeune “ é um nome de autor. Não exatamente um
nome falso, senão um nome de escrita, um segundo nome (...) tão autêntico quanto
o primeiro, e indica somente este segundo nascimento constituído pelos escritos
publicados” (LEJEUNE, 1996, p.24). Para Arlinda Morbeck o pseudônimo era uma
forma de proteção diante da sociedade em que vivia, por muitas vezes escrever em
jornais sobre a sociedade e a política local.
III.2 RUMORES, ROMEIROS, SERTÕES
A poesia é a vibração de nossos sentimentos.
Arlinda Morbeck.
De acordo com os estudos até aqui discutidos, percebemos o silêncio, o vazio
e a ausência da mulher na vida cultural literária. Na história da literatura brasileira,
até o inicio do século XX, encontramos não só a ausência de escritoras, como
71
também de personagens femininas autênticas e fortes; as raras vezes em que
apareciam nos discursos masculinos eram reduzidas à condição de objeto de
desejo, reduzidas à ideologia romântica.
A imagem da mulher era de mãe – esposa - dona de casa, quando ao homem
cabia o espaço público, o poder e as grandes decisões. A mulher vivia restrita ao
domínio da casa e ao mundo privado doméstico, no entanto, encontraremos alguns
nomes femininos na história da literatura, porém poucas são aceitas no cânone
literário brasileiro. Essa escrita feminina era contida, para que as mulheres não
pudessem ter determinadas propriedades, conferidas somente à escrita masculina,
sendo que muitas das escritoras escondiam-se atrás de pseudônimos e de
produções em segredo. Muitas dessas vozes femininas permanecem excluídas ou
desconhecidas na história da literatura, com isso, muitos de seus textos perderamse no tempo, devido a esse descaso e por não terem tido nenhuma importância
como mulheres criadoras.
Arlinda Morbeck encontra-se entre esses nomes femininos que não tiveram a
oportunidade de publicação de sua escrita, não só pela época em que viveu, mas
pelos caminhos que teve que percorrer durante sua vida: a falta de acesso aos
grandes centros, a situação vivida pelo marido, e, por fim, os problemas de saúde.
Entretanto, boa parte de sua produção continua intacta pelo tempo, à espera de uma
apresentação que possa reconhecê-la como a poeta que, apesar de ter vivido nas
selvas mato-grossenses não deixou que sua inspiração poética se acabasse.
Diante do material poético de Arlinda Morbeck, que se encontra em poder dos
familiares, após várias leituras, ocorreu-nos a necessidade de, neste momento,
apresentá-los, a partir de suas temáticas, que estão, a todo o momento, interligadas
à vida da poeta. Apesar de a autora ter tido todo o cuidado nas suas produções,
escrevendo em cadernos, intitulados e prefaciados, teve o descuido em não datálos.
A escrita de Arlinda Morbeck tem predominância da estética romântica e
parnasiana, e, segundo Hilda Dutra Magalhães (1997), após a fase documental
caracterizada pelas crônicas e relatos geográficos, a literatura mato-grossense opta
pela poesia, poesia esta que se sobressai com a produção do soneto e de temáticas
voltadas para a terra, clima, vegetação, religiosidade.
Hilda Dutra Magalhães divide a literatura mato-grossense, em relação à
poesia, em três fases: a primeira apresenta-se com poemas de características
72
romântico-parnasianas que seguem uma poética comportada, predominando a
poesia laudatória; a segunda fase é marcada por uma poética rebelde que se utiliza
de uma inovação estrutural, atribuindo uma nova visão aos elementos regionais e,
por último, a terceira fase abre-se ao diálogo com pós-modernos, e, apesar de o
elemento regional se fazer presente, encontraremos a presença de um forte
misticismo. A autora abre a possibilidade de estruturação da poética matogrossense: homem/terra, homem/cultura e homem/homem.
A poesia de Arlinda Morbeck é repleta de um tom lírico sentimentalista que
transforma as descrições do meio natural (fauna e flora), as quais são marcantes
nas poesias mato-grossenses dos séculos XIX e XX.
Não encontraremos sua
linguagem marcada de neologismos, como os poemas de Marilza Ribeiro e Silva
Freire, porém sua escrita aproxima-se da linguagem utilizada por Dom Aquino que,
de forma contemplativa, exaltava as grandiosidades da natureza. Ainda que não
tenha escrito tantas poesias voltadas para o meio natural não podemos deixar
passar desapercebidos esse fatores, visto que o contato que a autora teve com Dom
Aquino fez com que suas leituras da produção poética dele a influenciassem, talvez
até sem intenção.
Os poetas, como Arlinda Morbeck, com suas produções e cujos temas são
voltados para a exaltação da natureza são relevantes para se pensar na formação
de identidade cultural do Estado de Mato Grosso. A produção contemporânea, tanto
de Arlinda Morbeck ,como a de Marilza Ribeiro e Silva Freire, entre outros, segue um
caminho percorrido por outros, cada um a seu modo, mas todos em defesa da
natureza e da região.
Encontramos na obra de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso
Amoroso, que tem por finalidade dar sustentação a tal discurso, que é limitado e,
portanto, ignorado pelas linguagens existentes. Essa teoria é necessária para
analisarmos a escrita poética de Arlinda Morbeck, visto que Barthes devolve ao “eu”
do discurso a voz, voz esta que fala do ser amado (o outro). E assim define o autor:
Dis-cursus é, originalmente, ação de correr de cá para lá; são idas e
vindas, “caminhos”, “intrigas”. O amante não pára, com efeito, de
correr dentro da própria cabeça, de encetar novos caminhos e de
intrigar contra si mesmo. Seu discurso existe unicamente por ondas
de linguagem, que lhe vêm ao sabor de circunstâncias ínfimas,
aleatórias. (BARTHES, 2007,p.18).
E adiante ressalta que:
73
Pouco importa, no fundo, que a dispersão do texto seja rica ali e
pobre acolá; existem tempos mortos, muitas figuras tem fôlego curto;
algumas, sendo hipóstases de todo o discurso amoroso, têm a
raridade mesma a pobreza- das essências: que dizer do Langor, da
Imagem, da Carta de amor, pois que é todo o discurso amoroso
tecido de desejo, de imaginário e de declarações? Mas aquele que
sustenta esse Discurso e recorta-lhe os episódios não sabe que ele
será transformado em livro; ainda não sabe que, como um bom
sujeito cultural, não deve se repetir, nem se contradizer, nem tomar o
todo pela parte; sabe apenas que o que lhe passa pela cabeça em
dado momento é marcado, como os traços de um código
(antigamente, teria sido o código do amor cortês, ou o mapa de
Ternura). (BARTHES, 2007, p.19).
Alicerçados nessa teoria e outras que surgiram depois das releituras das
poesias, seguimos com a apresentação da Poética de Arlinda Morbeck. Estamos
cientes de que apenas uma parte de sua produção será apresentada nesse corpus,
pela dificuldade encontrada para o acesso ao material, no entanto, o que é
apresentado na pesquisa fundamenta o nosso objetivo de ver a escrita de Arlinda
Morbeck ganhando seu espaço nas linhas de pesquisa.
Diante da teoria autobiográfica, podemos estabelecer que a escrita de Arlinda
Morbeck está inserida na literatura confessional, por voltar ao passado,
simplesmente para trazer à vida suas memórias. Nas apresentações de suas
poesias que se seguem, a cada leitura, percebemos os fatos de sua vida: a primeira
poesia, os primeiros dias de professora, o primeiro encontro com seu marido, José
Morbeck, e, a partir desse momento, sua poesia ganha uma única temática, a do
amor e todos os sentimentos que provêm dele.
Arlinda vive uma época em que o papel da literatura começa a tomar forma,
os escritores começam a escrever sobre seus anseios, alguns preocupados em
externar suas emoções, não procurando agradar leitores. Esses escritores, como
ela, cantavam em verso e em prosa a vida da sociedade urbana, e neles
encontramos o contato com a natureza que surge como o espaço que abriga e
acolhe o sujeito que sofre, muitas vezes dando expressão concreta ao seu estado
de espírito.
Encontramos nas produções poéticas de Arlinda Morbeck, a primeira poesia
feita por ela, o que nos confirma que o seu contato com a poesia já existiu desde
muito jovem. Arlinda Morbeck alimentava o desejo, desde muito cedo, de ser poeta
e, acima de tudo, de ver sua escrita publicada.
74
1° poesia feita por mim, que recitei ao público, perante o Governadôr do
Estado, outras autoridades, o Diretor do Instituto Normal e Professores, em
Salvador, Capital do Estado da Bahia, na manifestação feita no dia do aniversário
natalício da Professora Dona Maria Luiza de Sousa Alves, talentosa Diretora da
Escola Complementar Feminina do Instituto Normal da Bahia e inspirada Poetisa.
Contava eu, apenas, 12 anos de idade, quando compus e recitei esta poesia,
sendo, entusiasticamente, aplaudida com o retumbar de demorada salva de
palmas!... (Arlinda Morbeck. s/d)2
Mestra Querida!
Venho louvar-vos!... Oh!... Mestra!
bem sabeis que nada sei
mas, contudo, hoje tentei
cheia de amor vos louvar
é fraca esta inspiração
mas, frases do coração
eu procurei arrancar
Sob a vossa inteligência,
aqui eu venho aprender
eu sei muito vos querer,
sei também, apreciar
vosso talento sem igual!
Oh!.. Minha Mestra querida!
protegei-me nesta vida
a Escola é meu fana!!
(Salvador-BA)
Encontramos em suas poesias a voz de um eu-lírico já marcado pelo novo
amor, pelo saudosismo que tem por sua terra natal, retratando as paisagens
naturais, fazendo brotar aos que leem imagens de sua terra. O amor é inerente ao
homem, é o que sempre inspira e instiga sua vida até a sua morte. Encontramos
muitos que viveram por amor e morreram por ele; essa combinação de amor e morte
inspira, há tempos, romances e poemas, principalmente no romantismo.
2
Escrita retirada de um dos cadernos de Arlinda Morbeck. A poeta intercalava em sua escrita
observações acerca de suas poesias.
75
Alfredo Bosi, em sua obra História Concisa da Literatura Brasileira, ressalta as
tematizações utilizadas pelos escritores românticos:
A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade,
decorativa. Ela significa e revela. […] O mundo natural encarna as
pressões anímicas. E na poesia ecoam tumulto do mar e a placidez
do lago, o fragor da tempestade e o silêncio do acaso, o ímpeto do
vento e a fixidez do céu, o terror do abismo e a serenidade do monte.
(BOSI, 2006, p.94).
Arlinda Morbeck, como o romântico, experimentou a confidência, por meio da
escrita, deixou que seus sentimentos ganhassem forma, a partir da imaginação rica
de sensações. A natureza passa a ser o confidente, por isso, encontramos os
elementos naturais sentimentalizados, de acordo com os da poeta. A natureza
acolhe, inspira, transformando e revelando mundos desconhecidos:
76
Lembrança do Passado!...
Límpida manhã, o mar era azulado
de velas cravejado!
o sol pálido surgia
na bruma do passado!
Sobre a praia formosa as ondas se
espalham
gaivotas revoavam,
redes de pescadores
na areia descansavam.
Cheguei à Escola, no salão arejado
sorriram-me as crianças
qual bando de esperanças
num céu límpido, estrelado!
Oh! Que dias felizes gosei naquele ninho
de amor e de carinho,
aspirando a fragrância
do perfume da infância
Como era ditosa, quando um pedir
vinha beijar minha a mão!
que momento feliz!
tinha o amor dentro do coração!
Um dia o Destino cruel roubou-me deste
ninho
enfeitado de arminho!
qual triste peregrina,
mostrou-me minha estrada,
longe da terra amada!
E eu parti!,,, Na curva do horizonte
vi meu ninho sumir-se
na bruma diluir-se,
da distância sem par!...
a tarde era tristonha,
era revolto o mar!
As ondas se encresparam, o mar ficou
bravio,
o vento zuniu frio,
as praias se enrugaram,
o sabiá trinou gemendo
sob a folhagem se escondendo
E nunca mais voltei!... A arvore
reflorada,
a verde sentinela,
de coma aveludada,
de resplandente umbela,
a porta da Escola enraizada
O verde tamarindeiro, florido à beiramar,
do sabiá o quente lar,
que muito conheci,
também chorou,
se desfolhou,
no dia em que parti!
(Salvador-BA, s/d).
O tom confessional é a primeira característica de sua poética; no título
“Lembranças do Passado”, Arlinda esboça um momento marcante de sua vida, sua
atuação como professora demonstra toda a sua alegria e entusiasmo ao seu redor a
natureza aparece favorável, conivente com sua felicidade, “o mar era azulado”,
“praia formosa”, “céu límpido, estrelado”; o “Destino cruel” a fez deixar sua terra e
uma tristeza toma conta do seu eu, deixa sua terra natal para um lugar longe, e a
77
natureza responde a todo seu clamor de dor “a tarde era tristonha”, “era revolto o
mar”, “As ondas se encresparam”, “o mar ficou bravio”, “o vento zuniu frio”, “as
praias se enrugaram”, “o sabiá trinou gemendo”, “sob a folhagem escondendo”, “O
verde tamarindeiro”, “florido à beira-mar”, “do sabiá o quente lar”, “que muito
conheci”, “também chorou”, “se desfolhou, no dia em que parti!”.
Vejamos outra de suas produções:
A Primeira Página
O mar é muito azul parece uma turquesa
De um manto real da cor do céu imenso,
Amanheceu, o Sol não está suspenso
Ainda se esconde no véu da Natureza!
Os leques da palmeira deliram com nobreza
Vendo o mar afastar o nevoeiro denso,
Que tenta cobrir das águas o panorama extenso
E ela delira e cresce, sobre as algas viceja!
A barca com as velas abertas
Passou, a noite ao relento nas regiões desertas
E vem para o porto se chegando!
E se escondendo debaixo das cobertas
O pescador sossegado faz as sestas,
No delírio da ambição, sorri, sonhando!...
(Salvador-BA)
A poesia e a natureza identificam-se. “A primeira página” abre um dos
cadernos da poeta. A natureza aqui, como sua escrita, está desabrochando: o
“Sol está suspenso”, “Ainda se esconde no véu da Natureza!”. Aos poucos, o dia
vai rompendo, o lugar é tranquilo, ganha cor e vida; por meio da natureza a poeta
revela uma sinceridade poética, a liberação de seu “eu”.
A poética autobiográfica nunca se amarra, por mais que busquemos uma
seleção da escrita de Arlinda Morbeck em que ela escreve os fatos transcorridos
durante sua vida, essa lógica não acontece nos Cadernos, nos quais temos
cortes bruscos dos fatos. Por não ter tido público, a escrita ficou sem uma
classificação de estilo, temos uma trilha particular; sem exigências de público ou
mercado.
A poeta mais revela de si e revela a sua poética confessional:
78
O Presente Precioso
Naquela tarde de abril,
me deleito a recordar
o céu era cor de anil
também de azul era o mar!
Que segredo traduzia,
naquela tarde de abril,
o mimo que eu recebia
dado por mão varonil?
Sobre as montanhas surgia
a luz do sol desmaiando,
deixando o findar do dia
na praia branca sonhando!
Rasguei o papel nervosa,
meu presente remirei
que relíquia preciosa
no seu recinto encontrei
As ondas claras contentes
corriam dentro do mar,
em arrepios frementes
sob a luz crepuscular!
Era a caixa envernizada
um tabernáculo de Fé
Edícula santificada,
do Santíssimo São José!
Nuvens rubras desiguais
vinham garbosas pintar,
as três janelas ovais
abertas de par em par!
Fitei a Imagem sorrindo,
seu casto olhar contemplando
e uma prece proferindo,
beijei seus pés soluçando!
Eis que recebo um presente
dentro de caixa formosa,
atado, cuidadosamente,
com um fita cor de rosa!
Depois, cheguei a janela
senti das flores o odor
te achei ainda mais bela
Cidade do Salvador!
Trêmula deixei a janela
por onde a lua já entrava,
argêntea, serena e bela,
que o verde mar contemplava!
O mar um hino entoava
na pujança da maré
a lua o mar prateava,
festejando São José!
Senti convulso meu ser
tentando a caixinha abrir,
meu coração a tremer
quis chorar e quis sorrir!
(Salvador-BA s/d)
Arlinda Morbeck era uma mulher muito religiosa e na sua escrita deixou
poesias e prosas em que relata sua fé; era católica e tinha devoção a Nossa
Senhora. Nessa poesia relata “o presente precioso”, enviado pelo noivo, José
79
Morbeck. Apaixonada, o mundo ao ser redor parece ser complacente, o final do dia
marcado pelas horas do crepúsculo “Sobre as montanhas surgia a luz do sol
desmaiando”, “deixando o findar do dia”, “na praia branca sonhando”, a tarde era de
abril e a lua foi testemunha e, quando o presente chega a suas mãos, é: ‘argêntea,
serena e bela”, “que o verde mar contemplava!”, O presente era uma imagem de
São José que trouxe à poeta um sentimento de satisfação, o amor já fazia parte do
seu ser e novamente a natureza responde: “senti das flores o odor”, “ O mar um hino
entoava”,“na pujança da maré”, “a lua o mar prateava”, “festejando São José!”.
Arlinda Morbeck em sua escrita fala muito do mar (azul, anil, azulado) uma
característica a que Barthes se refere como:
Encontro. A figura [mar, o azul] refere-se à época feliz imediatamente
subseqüente à primeira sedução, antes que surjam as dificuldades
da relação amorosa. A trajetória amorosa parece então seguir três
etapas (ou três atos): inicialmente, instantânea, a captura (sou
seduzido por uma imagem); seguem-se então uma série de contatos
(encontros, cartas, pequenas viagens), durante os quais “exploro”
com embriaguez a perfeição do ser amado, quer dizer, a adequação
inesperada de um objeto a meu desejo: é a doçura do começo,
tempo próprio do idílio.” (BARTHES, 2007, p. 136).
Percebemos que a sedução faz com que o ser amado descubra no outro o
seu próprio “eu”. Os encontros, ou até mesmo os presentes, vão completando o
quebra-cabeça do amor; as descobertas são progressivas, o ser que ama volta-se
inteiramente para o “outro” e pela escrita sacia o desejo de falar sobre o outro.
Também, de outras formas, Arlinda confessa o Amor:
80
A Cigana
Era a cigana mulher meiga e formosa
cabelos negros, olhar muito sereno,
eu contemplava sua tez mimosa
sublime adorno de um rosto moreno
Longe daqui nas selvas brasileiras,
verás a abelha fabricar o mel,
em grandes rios tu verás mil pedras
mais radiante do que teu anel!
Fitando-me comovida admirava
o meu lânguido olhar cheio de dor
e sorrindo, assim, pronunciava,
compadecida do meu grande Amor:
E eu olhava esta mulher formosa
linda cigana de corpo delgado!
que trazia minha mão dentro das suas
em um aconchego terno e delicado!
---- Terás amigos, eles serão tantos
qual as baninas que no prado crescem
qual as estrelas cheias de encantos
que no azul do firmamento resplendem!
---- Te aproximes de mim, escuta assim,
ele virá, ouviste?
Teu noivo amando chegará rosado!
Ele virá dizia-me, ele virá,
fitando-me com a ternura do sorriso,
porém, em tua casa encontrará
tristeza e lágrimas, eu te profetizo!
Receberás o premio aventurado
quando chegar o Anjo dos Amores
festejando o teu dia de noivado,
luzes… risos… flores!
O mar banhará com suas ondas
brancas qual uma noite de luar,
o costado imenso do Navio,
que para longe te há de levar!
E eu mirava aquele rosto angélico,
onde a tristeza pouco se demora!
lenço encarnado é emoldurando a fronte
muitas medalhas pela trança a fora.
Porém, cuidado com as visões
pomposas
pois, as baninas morrem no Verão
e as estrelas nas noites tenebrosas
não aparecerão!..
E saiu pela porta que se abria,
a Cigana formosa e apressada!
“Até logo”- me disse com alegria,
e seus passos rangeram pela escada!
Hoje recordo a curiosa história,
que da cigana ouvi com facearia
a Profetisa ganhou a vitória
pois, foi verdade o que a cigana disse!
Salvador-BA
--- Viajarás por azulados mares
os teus parentes ficarão chorando,
terás carícias e terás pezares
na solidão dos prados se enflorando!
“A Cigana” é uma das poesias mais intrigantes de Arlinda Morbeck; foi
publicada, tempos depois, no Jornal Valparaíso- SP. A poeta deixou escrita a
seguinte frase abaixo da poesia “Eu era muito jovem, quando a Cigana leu nas
81
linhas de minha mão, a sorte que Deus me deu!, Apesar da sua religiosidade ser
outra, reconhece que as palavras da cigana cumpriram-se. A ausência do noivo a
deixou por muitas vezes sem esperanças, o namoro foi somente por meio de
cartões-postais nos quais José Morbeck, como um homem apaixonado, também,
por vezes, arriscou-se em pequenos poemas, porém nunca relatava os sertões em
que vivia, o que fez com Arlinda não acreditasse com veemência nas palavras da
cigana. No entanto, foi exatamente assim a história de sua vida: deixou sua terra a
bordo de um navio, viveu na Capital do Mato Grosso, cercada de amigos, em
grandes festas, e, depois, foi obrigada a deixar a cidade, indo morar nos sertões
mato-grossenses, isolada da civilização, de sua família e, por muitas vezes, até
mesmo do próprio marido. Teve em sua vida: “mil pedras”, “luzes… risos… flores!”,
“amigos,”…
A trajetória de sua vida se expõe:
O Primeiro Encontro
Naquela noite fresca o baile era arrojado,
lindos vestidos róseos no salão deslizavam
os cavalheiros seus pares abraçavam,
o salão estava, fartamente, iluminado!
Festejava-se da Loura Normalista a vitória,
um prêmio sobre o busto se ostentava,
uma medalha de ouro que brilhava
qual um áureo troféu de lauréis e de glória!!
E, também, ali estava. Era ainda bem criança,
um moço veio pedir-me o obséquio de uma contra-dança,
a orquestra vibrava no salão esplendoroso!
Aceitei, tímida e desconfiada,
ele era moreno de olhos negros, tês aveludada,
oito anos depois, este jovem doutor era meu querido esposo!!
(Jornal Valparaíso S/d).
“O Primeiro Encontro”, uma poesia que já ganha forma, utilizando da estrutura
do soneto, característica da escrita romântica. O estatuto da memória sempre está
envolto em suas escritas; definimos nessa poesia o surgimento do amor na vida de
82
Arlinda Morbeck. No seu diário, a poeta relata, com detalhes, esse encontro, que,
mais tarde, ela resume em forma de poesia. Esta é uma das poesias que
comprovam que a poeta vivia envolta em uma vida da sociedade baiana e teve,
como primeiro amor, José Morbeck.
Tua Carta!
Devolvi tua carta, eu não acreditava
do segredo de tua confissão,
tua firmeza tu me confirmava
mas, a duvida supliciava-me o coração!
Dizes que te amava era bastante,
mas, não percebias minha revelação,
não tinhas pelo amor tanta ambição
e o meu pranto era martisante!...
Porém, tua insistência aprisionou
meu ideal e a Ventura me forçou
a querer-te e a amar-te com energia!
Aquela carta apaixonada me roubou
a calma que a Descrença me ofertou,
só pensava no teu nome noite e dia!...
(Salvador-BA s/d).
Arlinda Morbeck tinha o amor como o grande impulsionador de sua pena; ela
tinha necessidade de confissão e, com isso, não esconde os sentimentos que
brotam a cada poesia. Com sua alma aberta e o coração repleto da paixão dos
primeiros encantos do namoro, a poeta consegue prender a atenção dos que a
leem, fazendo com que pensemos numa segunda poesia, ou em outro momento de
sua história:
83
Meus Desejos! (respostas)
-A meu noivoAhí, por essas plagas sertanejas,
onde a planta selvagem se enfloresce,
quizéra ser o solo em tu pisas,
o arvoredo que a sombra te oferece,
o pássaro que escuta tua falas,
o sol, que te ilumina e que te aquece!
Quizéra acompanhar-te nos caminhos,
seguir-te a todo instante e a qualquer hora,
ouvirmos ao surgir a luz da aurora,
o melífluo trinar dos passarinhos,
vagarmos pela estrada da Ventura,
sem máguas, sem martírios, sem espinhos!
Quízera enxugar de tua fronte,
o suor do trabalho ao descampado,
e contigo lutar sempre ao teu lado,
até o sol sumir-se no horizonte,
e depois contemplarmos enlaçados,
o despontar da lua atraz do monte!
Quizéra sob o toldo improvisado,
da barraca que te servir de abrigo,
cuidar de tudo eu, sorrir contigo,
cercar-te de afeição e de cuidado,
ser o arrimo da Paz com o meu carinho,
festejar nosso amor abençoado!
Quizéra nas florestas seculares,
afrontar o gentio, astuto, esperto…
mostra-lhe a tua frente o peito aberto,
sacrificar a vida por teus males,
sorrir ante o furor de sua seta
animar-me ao clarão dos teus olhares!...
E, a noite, quando o céu fosse estrelado,
sentados ao ar livre conversarmos
e do berço distante nos lembrarmos
evocando as imagens do passado
e a brisa desferirmos brandamente,
um canto de saudade armonisado!
Mas, distante de ti sofro e padeço
o terrível suplício da saudade,
no sorriso eu oculto a crueldade
de um viver tão atrós que não mereço!
e dizem que não te amo!... Oh! Loucura
se em tudo eu te estou vendo e não te esqueço!
(Salvador-BA sd).
84
Arlinda Morbeck responde à carta de seu noivo, José Morbeck, e consegue
colocar em sua poesia as características de uma terra que ela ainda não conhecia;
apenas pelos relatos do noivo a poeta imagina e escreve o desejo que sentia de
estar lado a lado “nas plagas sertanejas” e “nas florestas seculares afrontar o
gentio”.
Apresenta um eu lírico romântico que observa o mundo por uma lente
transformadora, que sofre de angústia e de medo “ distante de ti sofro e padeço” , “o
terrível suplício da saudade” ; o amor ainda não realizado faz com a poeta viva num
mundo de ilusão e perfeição, utilizando-se da natureza, símbolo do romantismo.
A poesia torna-se o espaço do desabafo sentimental:
Meu Amor!
Deixei minha terra soluçando,
parti chorando do meu lar materno
para bem longe de tu ias levando
meu jovem coração pulsando terno
Atravessei os mares contemplando
as ondas que brincavam sobre a praia
e a saudade me martirizando
mostrava-me a tarde que desmaia!
O Amor, o antigo traiçoeiro,
me levava nas asas da Esperança,
audacioso, tirano, lisonjeiro!
Entreguei-me ao seu capricho brejeiro,
que zombava do ardor de minha crença
no amor maternal - único verdadeiro.
(Salvador-BA sd).
85
O Canto da Noiva!
Horas serenas desta quadra bela,
brisas da tarde que passais ouvi,
cerca-me a fronte a virginal capela
o véu de noiva o branco véu cingi!
Não mais os sonhos virginais de outrora
não mais, as crenças que o Ideal criou
mas, véras laços vão prender-me agora
santos deveres a cumprir eu vou!
Sou Noiva!.. O pranto que me invade os cio
não é causado pela Dor Oh!... Não!
do noivo ao lado se feliz me creio,
que mágoa é esta que me ateia, então?
Sofro saudades deste Lar querido,
onde tranqüila me senti viver,
choro esta quadra de sonhar florido
não mais minha alma a poderá rever!
Mãe!.. Que da vida o desvelado manto,
dos teus carinhos desdobrastes em mim,
da filha aceita agradecido canto
sou de outro agora, Deus o quer assim!
Pai extremoso!.. O teu dever sagrado
junto da filha soubeste cumprir,
aceita o beijo filial, amado,
abençoai-me, pois, eu vou partir!
Adeus!.. Amigas que gosais ainda
desta existência folgazã, feliz!...
adeus! Desta alma a confidencia e finda
outros cuidados dar-me a sorte quis!
Hora serena desta quadra bela,
brisas da tarde que passais! Adeus
cinge-me a fronte a virginal capela
o véu de noiva confiou-me Deus!
(Salvador-BA)
86
Sulcando o Atlântico
Naquela noite, a terceira de repouso,
eu sentia-me feliz junto de ti,
e o calor do teu corpo era cheiroso
e dentro de teus braços adormeci!
O atlântico cantava mavioso
um hino que nas vagas percebi,
chegavas para mim mais carinhoso
e sonhando nos teus braços adormeci!
Já a aurora irradiava-se no Oriente
e as estrelas se apagavam, lentamente,
deixando no infinito leves traços…!
Despertei, fitei teu olhar atraente,
e o amor me dominava veemente
e, outra vez, adormeci entre teus braços!
(Viajando de Salvador ao Rio de Janeiro).
Arlinda ao falar de si mesma, dos acontecimentos, ao longo de sua vida nos
deixa claro que não se trata de fatos acidentais,mas existe um trabalho da memória
em que se busca uma determinada versão a respeito da própria vida, percebemos
que ela vive o momento e, depois, o rememora para imprimi-lo na versão da
construção de si mesma. Ela busca uma trajetória linear, etapas da vida com
começo, meio e fim. Essa ilusão biográfica é defendida por Bourdieu (1996) em sua
obra A ilusão biográfica como “ de que a vida constitui um todo, um conjunto
coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de
uma “intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto” (p.184).
Os poemas de Arlinda combinam, em linguagem romântica, os fatos da sua
vida bem como o amadurecimento dos sentimentos:
87
Saudosa Canção!
O comandante cantava mavioso,
lá na proa uma saudosa canção
e o Vapor se extremia orgulhoso
ancorado no Porto de Assunção!
A lua cheia clareava as águas frias,
do Paraguay que corria magestoso,
estavam enroladas as vigias,
silêncio era ordernado, imperioso!
A canção do intrépido Comandante
era inspirada em um bandolim vibrante,
que geme e délira ao clarão do luar!
Na cabina sonhando, neste instante,
sobre um leito macio há um idílio palpitante,
e o jovem Comandante continuava a cantar!
(Assunção- Paraguay)
Recordação
Quantas vezes ficamos olhando o leme
sulcando a face do travesso do mar!...
o piloto audaz segue e não teme
a grande roda que ele faz girar!
Nas mãos calosas o aparelho freme,
como é intrépido seu sereno olhar,
o Timanciro altivo ante o furor não treme
do violento tufão que as nuvens vem rasgando
Como eu admirava!... O gorro sobre a testa
na bravura do perigo, a frada era modesta
grosseira, de um trançado muito antigo!
O “Mercídes” sua ufania manifesta,
e o piloto o perigo não protesta,
agarra-se com o leme seu predileto amigo.
(Nas águas de “Lá Plata”).
88
Lua de Mel...
O barulho das ancoras nos desperta,
sentimos a sensação da despedida
de “La Plata” sentiremos a partida
o intrépido marujo já esta alerta!
Um apito estrondoso fere os ares!
a bandeira da proa esta erguida,
o gigante do mar avisa a despedida
as ondas se erguem para os mares!
Olhamos o Levante pelas nuvens da iradas
o Piloto vai no mar a onda abrindo
e nos traz uma lembrança dolente!
Contemplamos o sol que vem surgindo
somente nossos beijos nos consolam,
nos unimos em um abraço longo, ardente!
(La Plata-Uruguay)
Arlinda Morbeck casa-se com José Morbeck: “Horas serenas desta quadra
bela”,“brisas da tarde que passais ouvi”, “cerca-me a fronte a virginal capela” “ o véu
de noiva o branco véu cingi”, tem de seguir sua nova vida, está feliz por se casar,
mas triste por ter de deixar para trás a família e os amigos. Parte de navio e, em sua
viagem para outras terras, ela vai descrevendo e tendo como companhia não só o
marido, como a natureza que a cercava. Conforme os dias passavam, a poeta
mostra uma confiança maior na vida, está feliz e sente no ser amado o consolo
necessário: “Naquela noite, a terceira de repouso”, “eu sentia-me feliz junto de ti”, “e
o calor do teu corpo era cheiroso”, “e dentro de teus braços adormeci!”
89
Gosto de ti!!!
Gosto de ti risonho e prazenteiro,
com os reflexos de teu sonho no olhar,
qual rouxinol trinando alvissareiro
quando a aurora começa a despertar!
Gosto de ouvir tua voz harmoniosa,
que ordena um sentimento de afeição,
que traduz a verdade caprichosa,
que vive no castelo da ilusão!
Pronuncio o teu nome esperançosa
do teu desprezo sinto-me orgulhosa
o teu silêncio ainda não reclamo
Sei que gostas de mim e sinto-me venturosa
e embora eu tenha a vida desditosa,
gosto de ti porque crês que eu te amo!
(Cuiabá-MT sd)
A poeta chega à cidade de Cuiabá, onde fixa residência e onde uma nova
fase inicia-se em sua vida; terá de viver tão longe da família, porém não é disso que
reclama e, sim, da ausência do marido que, por seu cargo junto ao governo, não
poderá estar presente diariamente em sua vida. O amor fala mais alto, ele está
longe, mas as alegrias dos primeiros dias não permitem que sua esperança se
acabe. O ser amado é personificado: “Gosto de ouvir tua voz harmoniosa”, “que
ordena um sentimento de afeição” , “que traduz a verdade caprichosa”, “que vive no
castelo da ilusão!”
Aos poucos, a temática se volta para a natureza circunstancial da nova fase
de sua vida:
90
A Procura das Minas de Araés!...
(ao me esposo Engº José Morbeck)
Quando voltares, traze-me uma lembrança
na palma verde de minha Esperança,
que contigo se vai nas asas da Bonança
aljófrada das lagrimas que verti
ao separar-me de ti!...
Não ínvia plaga esmeraldina, imensa,
onde a planície deve ser extensa
e o solo aurífero de camada densa,
faiscando ao fulgor da luz solar,
será, também, brilhante o teu olhar!!
Sinto tanta saudade que desmaio!
traze-me do sol que te aquecer um raio
de ouro prismático em alvorecer de Maio,
traze-me o odor das selvas matizadas
de agrestes ramos e flores delicadas!...
(Mato-Grosso s/d).
A flora e a fauna são elementos presentes na temática de Arlinda Morbeck. A
natureza é exaltada como algo intocável, cúmplice de seus sentimentos. Afrânio
Coutinho, em sua obra, Introdução da Literatura no Brasil, apontou as seguintes
qualidades que caracterizam o espírito romântico:
Individualismo e subjetivismo. A atitude romântica é pessoal e íntima.
È o mundo visto através da personalidade do artista. O que revela é
a atitude pessoal, o mundo interior, o estado de alma provocado pela
realidade exterior. Romantismo é subjetivismo, é a libertação do
mundo interior, do inconsciente; é o primado exuberante da emoção,
imaginação, paixão, intuição, liberdade pessoal e interior.
Romantismo é liberdade do individuo.
Culto à natureza. Supervalorizada pelo Romantismo, a Natureza era
um lugar de refugio, puro, não contaminado pela sociedade, lugar de
cura física e espiritual. A natureza era a fonte de inspiração, guia,
proteção amiga. [...]
Sonho. Também é responsável o desejo de um mundo novo pelo
aspecto sonhador do temperamento romântico. Em lugar do mundo
conhecido, a terra incógnita do sonho, muitas vezes representada em
símbolos e mitos.
Pitoresco. Não somente a remotição no tempo, mas também no
espço atraía o romântico. É o gosto das florestas, das longes terras,
selvagens, orientais, ricas de pitoresco, ou simplesmente de
diferentes fisionomias e costumes. È a melancolia comunicada pelos
91
lugares estranhos, gerada da saudade da dor de ausência, tão
características do Romantismo. O pitoresco e a cor local tornaram-se
um meio de expressão lírica e sentimental, e, por fim, de excitação
de sensações. (COUTINHO,146-147).
À medida que o tempo transcorre, o relato poético confessional é intercalado
com os elementos da natureza regional. Esse processo deixa transparecer como
Arlinda incorpora a nova realidade, em sua trajetória sustentada pelo sentimento do
amor.
O Diamante!
O Diamante é o Fantasma da ambição
no pélago profundo
dos cristalinos rios
seduz a multidão!
Enquanto o bruto diamante dorme
sobre os leitos macios,
sob a música divina
dos cristalinos rios!
E o garimpeiro lépido e audaz,
guiado pela luz de uma esperança
trazendo as ilusões da mocidade,
caminha, não descansa!
Depois de muitos anos
tendo na face o estigma da agonia,
vendo a Garça ruflar as brancas asas,
ele “bamburra” um dia!
No dorso das serras peregrina
na aridez dos ínvios caminhos,
exposto ao Sol, ao furor da ventania
aos arranhões dos espinhos!
E o fantasma austero lhe aparece
brilhando qual o Sol,
qual o orvalho de linda madrugada
no findar de uma noite enluarada!
Dentro da choca rústica e humilde
passa as noites sonhando sobre a areia,
è luz a lua fulgorosa,
è seu travesseiro as bordas da “Bateia”!
Passa o dia pensativo escutando
a musica da torrente do ribeiro
e o parlar do verde papagaio
seu fiel e gaiato companheiro!
Já escravo da fome e do tormento,
vendo o tesouro sobre a mão crispada,
o Garimpeiro morre enlanguescido,
amortalhado nas cores da Alvorada!
(Currutela da Atoladeira- MT)
As memórias de Arlinda Morbeck têm uma importância muito grande para o
cenário da historiografia mato-grossense; ela viveu uma época muito importante da
região, que foi a da descoberta das minas de Araés, em que seu marido esteve
92
presente e ela teve que acompanhá-lo, a cada nova mudança que ocorria resultado
de toda uma luta por intrépidos garimpeiros. Garimpeiros sofridos, que tiveram na
poesia de Arlinda Morbeck o nome exaltado como “Heróis das Selvas”, pela
coragem que tinham, apesar de todo o sofrimento em que viviam pela busca do
diamante. Diamante este que ela denomina como “E o fantasma austero”, que, por
ser objeto de uma busca tão dolorosa, somente alguns chegavam a vê-lo; outros
apenas sabiam que existe, mas se torna com o tempo um fantasma: os que veem
não resistem pelos anos de sofrimento a sua espera:
O Garimpeiro
Na solidão claustral da serrania
vagueia o intrépido Garimpeiro
e procura as águas do ribeiro
onde irá trabalhar naquele dia.
Não teme da árida estrada os espinhos
carrega ambos as vasilhas da cozinha
e sobre as costas a “Bateia” enroladinha
cheio de coragem, esperança e energia.
Sua roupa esta suja e remendada,
tem os cabelos negros sobre a fronte descora
mas, não desanima, não baqueia!
Contempla a planície as verdes relvas
é o audaz e destemido Herói das Selvas
vendo reluzir o diamante no fundo da “Bateia.
(Mato Grosso S/d).
93
A Estrada
Passam cantando sob a ponte tosca
do ribeirão as águas marmurantes
as marmeleiras bambas pelo orvalho
sobre as margens se curvam tiritantes
Os passarinhos gritam nas ramagens
a velha gameleira enverdeida,
erguem o vôo e fogem para os prados,
a procura da vida.
A estrada sinuosa é muito branca
qual as asas da Garça pelo ar,
qual lençol estendido sobre a grama
em noites de luar!
Meu cavalo, também, é muito branco
qual a estrada deserta, acidentada
vem revolvendo a areia arrefecida,
sua marcha afamada!
Ao longe sobre o auteiro esverdinhado
que domina a planície de esmeralda
semi-oculta nos ramos do arvoredo
esta a casa isolada!
Uma saudade imensa me flagela,
percorro meu olhar sobre a colina,
o Sol tem revérberos multicores
a magua me domina!
E distante, serena se retrata
no lindo outeiro a casa esbranquiçada
eu sinto minhas lágrimas, lentamente
caírem pela estrada
Meu cavalo formoso se entristece,
sacode a crina e deixa de marchar,
vê na estrada o reflexo do meu pranto
começa a relinchar!
Suas grandes narinas se dilatam
baixa a cabeça e fica a refugar,
sacode a crina farta e muito branca
continua a marchar!
A estrada esta deserta, avermelhada,
esta úmida das gotas do relento,
e a cozinha se esconde no pomar
ao perpassar do vento!
E os passarinhos gritam nas ramagens
da velha gameleira reflorida,
erguem o vôo e fogem para os campos,
A procura da vida!...
(Alto Araguaia-MT).
94
O garimpo é o meio de sobrevivência de milhares de homens. A busca pela
riqueza leva os agrupamentos de pessoas em torno de uma jazida. A natureza está
intocada, intacta, o que causa aos homens um sentimento ainda maior de
esperança. Homens estes como os que a poeta cita, debilitados, cansados,
castigados pelo tempo, mas sempre cheios de coragem para desbravar as planícies
e ver aflorar o diamante. Dom Aquino também, em seus poemas, tem suas
temáticas sustentadas por características românticas, “um comprimento com a Pátria
e com a terra mato-grossense” (MAGALHÃES,2001,p.41). Descreve em seus
poemas não só as riquezas minerais, as águas, as terras férteis, os campos a serem
explorados pela pecuária e pela agricultura, também fala do garimpo, quando relata
as conquistas do território pelos bandeirantes atraídos pelos garimpos.
Reportamo-nos à escrita aquineana pelo fato de relatar as abundâncias
existentes nos vários garimpos, e, como Arlinda Morbeck não faz nenhuma denúncia
da degradação sofrida pelo meio ambiente ou denúncia social, o que demonstra a
posição vivida por eles: Dom Aquino, governador do Estado e Arlinda, esposa de um
diretor da mineração.
Arlinda Morbeck da voz a história da região mato-grossense, através de suas
poesias podemos construir um passado marcado pela busca incessante do
diamante, de novas terras. A escrita de Arlinda traz aos que lêem a construção de
imagens vividas por ela nos sertões, sendo este o maior papel desempenhado pelo
escritor, fazer com que seus leitores diante de suas produções recriem e revivam
experiências do real.
No conjunto de suas poesias, porém, a poeta não perde o foco do seu Eu
sentimental:
O Trinado do Sabiá
Escutávamos o cantar melodioso
Do louro sabiá no arvoredo,
Do rumor do ribeiro vaporoso
O sabiá não demonstrava medo!
O sabiá trinava e repetia
Sua amena canção muito saudosa,
Depois, para o palmeiral fugia
Olhando o brilhar da luz esplendorosa!
Sentados no banquinho de madeira
Debaixo do jambeiro, entrelaçados
95
Contemplávamos a planície tão fagueira
Nos beijávamos, brandamente, apaixonados!
A música dos nossos beijos escutava
O sabiá parando de cantar,
Nós esquecíamos de cantar,
Nós esquecíamos que o sabiá ali estava
Escutando nós dois a nos beijar!
Arlinda Morbeck percorre um novo caminho, deixa a cidade de Cuiabá para
morar nos sertões mato-grossenses; entre eles, na Fazenda Patagônia, vive uma
situação bem diferente da que vimos anteriormente, não é mais um navio e tão
pouco tem o azul do mar, com gaivotas para contemplar. A natureza aqui sofre junto
com ela, sente sua própria dor, não quer habitar o novo lugar em que a escritora terá
de viver. A poesia “A Estrada” relata sua dor, montada em seu cavalo, chora e vê a
sua volta uma estrada: “esta deserta, avermelhada”, “esta úmida das gotas do
relento; o seu cavalo sente suas lágrimas e se entristece, os passarinhos gritam e
seguem para outros caminhos, mais ao longe “serena” está sua casa
“esbranquiçada”.
O amor novamente cura as dores da poeta, já em sua nova residência, ao
lado de seu marido; o sabiá vem e lhe faz companhia “O sabiá trinava e repetia” “
Sua amena canção muito saudosa” e para de cantar para ouvir o som dos beijos
apaixonados; havia luz, ou seja, a vida ressurgia e mais uma vez sua alma feminina
guarda a dor da despedida dos amigos que ficaram, e com sua submissão e sua
pena segue com a nova vida.
Da perspectiva da voz feminina, o amor sobrepõe-se a todas as dificuldades e
sustenta a mulher na função que lhe é reservada:
Arlinda!...
Ele me chamava com carinho, com afeto,
sua voz era maviosa, cheia de alegria!...
Nas frondes da mangueira o cantar da cotovia
repercutia-se no outeiro deserto1
Pegando minhas mão me sentava sobre as areias do terreiro
que desenhavam a sombra do rústico casarão
ao meu lado sentia pular seu coração
e me remirava com um olhar feiticeiro!
Multicores borboletas beijavam as flores do prado,
o pardal melodioso nas ramagens cantava,
96
ele invejoso as débeis borboletas contemplava
e vinha arfante e temeroso sentar-se ao meu lado1
Arlinda, minha Arlinda, ansioso me chamava
és minha vida, és minha alegria, és meu amor!
Junto a ti, fogem a mágoa, o dissabor
e nos meus lábios vermelhos com efusão um beijo depositava!
(S/d)
Despedida
Naquela tarde fria de novembro
Tu me apertaste ao teu coração,
Eu soluçava em extrema comoção
Não choravas também, eu bem lembro!
Caí nos teus braços soluçando,
Era imensa tua lívida emoção,
Afagavas meus cabelos e me dizias: Não
Chore mais, vou e voltarei te amando
Beijei tua mão que estava quente,
Beijei teus lábios com o coração fremente
Minhas lágrimas me traíram, enfim!
-Oh!... Dizias, não te entregas ao teu pranto,
Não crês como eu te adoro e amo tanto?
-Sim, vai, mas não te esqueças de mim!?
(s/d).
Barthes, a respeito da ausência, adverte que quaisquer que forem as causas
e duração, elas tendem a transformar a “ausência em provação de abandono”. A
ausência faz com que o sujeito e o outro não possam permutar, ou seja, o sujeito se
sente menos amado do que ama: “Historicamente, o discurso da ausência é
sustentado pela Mulher: a Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante, a
Mulher é fiel (ela espera), o homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabosde-saia).” (BARTHES, 2007, p.36). O momento da despedida traz a ausência,
Arlinda Morbeck cai nos braços de seu amado; esse gesto realiza nesse momento o
sonho dos que amam, a união total com o ser amado. E é na fala de Arlinda e José
Morbeck-“Oh!... Dizias, não te entregas ao teu pranto, Não crês como eu te adoro e
amo tanto?-Sim, vai, mas não te esqueças de mim!?/ Arlinda, minha Arlinda, ansioso
me chamava és minha vida, és minha alegria, és meu amor!” que o autor intitula
97
como A Conversa- Declaração, o sujeito amoroso com sua emoção contida faz sua
confissão ao ser amado:
A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro.
Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta
de minhas palavras. Minha linguagem treme de desejo. A comoção
vem de duplo contato: de um lado, toda uma atividade de discurso
vem realçar discretamente, indiretamente, um significado único, que
é “eu te desejo”, e libera-o, alimenta-o, ramifica-o, fá-lo explodir (a
linguagem goza ao tocar a si mesma); de outro lado, envolvo o outro
em minhas palavras, acaricio-o, roço-o, cultivo este roçar, nada
pouco para fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.
(BARTHES,2007,99)
A linguagem contida na poesia é uma forma de transcender os limites da
própria linguagem, a transcendência de ir além, abrir horizontes simbólicos, ampliar
as possibilidades de comunicação, criando imagens poéticas. O poder que a palavra
exerce no mundo romântico das produções poéticas de Arlinda Morbeck é este, ela
ultrapassa o limite de sua linguagem e pereniza seus sentimentos.
Uma nova fase inicia-se na vida da poeta, a dúvida e o desalento tomam
lugar em sua vida. A espera do marido já traz a ela muitas interrogações, o amor é
colocado à prova dentro de si mesma. E o sentimento que a dúvida traz consigo, de
ausência e de dor, impede que a poeta escreva qualquer outra coisa que não sejam
os múltiplos sentimentos decorrentes da solidão:
Dúvida
Tens saudades de mim quando te
ausentas
Para distante ou qualquer lugar?
Não acreditas que fico a suspirar
Nestas angústias que me definham
lentas?
A dúvida me acompanha o pensamento,
Que foge de mim e vai te procurar
Na incerteza de contigo se encontrar
Porque deves estar feliz nesse
momento!
A alguém que me contempla com
desdém,
Sinto meu infeliz coração padecer no
pranto
Da desventura de um amor que torturame minha alma vem!
Perdoai este meu grande pecado,
Que suplicia minh’alma amargurada!
Perdoai!... Eu vos peço contrita,
ajoelhada,
Deixai-me cumprir os rigores do meu
Fado!
Tens saudade
lamento
Um sigilo me atordoa o pensamento,
Na sensação do meu padecimento,
de
mim
que,
aqui,
98
Tua ausência que me tortura o coração
Escondido no meu castelo de Ilusão?
A vida é uma quimera, os dias passam,
O coração que ama geme aflito!...
Tens saudades de mim?... Não acredito!
Desalento
No delírio de minha comoção!...
Perdoai, meu Deus!... Se amo tanto!...
E não posso conter o martírio de meu
pranto
Que traz a Dúvida no meu isolado
coração!!
Se é pecado, meu Deus, eu amar tanto
Não Sei!
Não sei quando chegares quer dizer-te,
Fitando teu misterioso olhar!
Não sei se digo que não sei mais querer-te
Não sei se devo o Passado recordar!
O silêncio será meu conselheiro,
Meu coração pulsará com languidez
Pois meu triste e pobre companheiro
Vive comigo a soluçar. Não crês?
Vem! Estou ansiosa te esperando,
Não sei dizer-te o que estou pensando
A Ingratidão roubou minha alegria!
Não sei dizer-te o que estou passando
Não te direi se ainda estou te amando,
Levaste o meu amor naquele dia!!...
Uma nova fase é relatada por Arlinda Morbeck, (Despedida, Desalento,
Duvida e Não sei), marca a dor que a despedida lhe traz, é deixada em uma tarde
fria de novembro; o sofrimento aqui evidenciado é marcante por, nesse momento, a
poeta já ser mãe e ter e ficar longe do marido, na solidão, com seus filhos, o que a
deixava ainda mais insegura. O amor dá lugar à dúvida, ela interroga a si mesma
sobre o sentimento de seu amado, e passa a não mais acreditar que realmente o
marido sinta sua falta. A vida amorosa se torna um desalento; a poeta implora por
Deus, sente-se rejeitada, com pecados por amar tanto e, finalmente, na poesia “Não
Sei”, a solidão e toda a angústia de sua alma não permitem que encontremos as
imagens criadas por sua pena; relatos que contagiavam os olhos, agora são
somente dor, e nem mesmo a poeta consegue definir o que sente, não sabe o que
vai dizer.
99
Não Me Amas!...
Não queres me amar, não te obrigo
O amor é espontâneo, nasce no coração
Floresce no jardim de uma ilusão
Onde o Zéfiro é seu sincero amigo!
Não quero que sejas meu inimigo
Porque te amo e sofro com emoção
Sentindo do teu olhar a recordação
Pois teu vulto atraente está sempre comigo!
O meu Segredo a ninguém eu digo
Por minha senda escabrosa eu prossigo
Ele é meu vigoroso companheiro
Ele me traz a doce Ilusão de viver contigo
Embora não me queira, não te obrigo
O Amor que nasce no coração é o único verdadeiro.
Tudo Passa
Quando fico muito tempo a meditar
Nos momentos felizes que gozei
Quando teus olhares contemplei
Sentindo meu coração a palpitar!
Quero esquecer-te, não quero recordar,
Essas horas agradáveis que passei
Das quais jamais me esquecerei,
E esta lembrança vem me atormentar!
Se fui feliz eu não posso acreditar
Os meus ideais vieram me acordar
No reagir de minhas comoções!
Minha Musa quis meu sonho acalentar
No meu sonho procurou me afirmar
Que tudo passa- a vida é uma ilusão!!...
Barthes, a partir de duas interrogações: “Como acaba um amor? Como, então
ele acaba?” ressalta esse sentimento vivido pelos que amam. Denomina o fim de um
amor uma espécie de inocência que, por vezes, mascara o fim de uma união vivida.
O amor que acaba retira-se “para outro mundo”; é algo repentino e nunca esperado
por quem ama. Esse “eu” nunca pode construir sua história final; ele apenas a inicia,
100
como identificamos na escrita de Arlinda Morbeck, que viveu todos os dias de muito
amor e toda sublimação que dele brotam e, ao final, não sabemos se realmente
esse amor acabou: “o fim da história, assim como minha própria morte, pertence aos
outros; a eles cabe escrever esse romance, narrativa exterior, mítica”. (BARTHES,
2007,144).
Sem nome
Nunca pensei que no mundo,
Pudesse amar outra vez,
Pois meu coração está coberto
Com o manto da viuvez,
Mas um dia, escutei palmas,
Bateram no meu portão
Fui receber quem chegava
Era o amor e a Ilusão!
-Porque vieste aqui,
Eu nunca te convidei?
Disse zangada e aflita
És ousado, eu bem sei!
-Venho rasgar este manto
Que cobre o teu coração
Pois sei que estás ocultando
Um amor, uma Afeição!...
Arlinda Morbeck, já em plena consciência do amor de sua relação, já não era
mais correspondida; viveu a indiferença de seu amado, que, nos momentos de
ausência teve um outro amor, e, mesmo sabendo, ela foi capaz de esperar e de
suplicar. Guarda com ela o olhar do amado e o perdoa. Um novo olhar a faz
perceber, trazendo para a escrita uma temática existencialista do século XX, que
como no poema “Tudo Passa”, já não sofre e também com um tom pessimista não
acredita que foi feliz. Apesar de todo sofrimento, Arlinda mostra que o amor é capaz
de renascer, para isso, não precisa de idade, e, na poesia “Sem nome”, fala sobre
um coração que, apesar da viuvez que carregava, ocultava um novo Amor.
Percebemos o fechamento do relato lírico que a poeta deixa fluir em sua
escrita, termina uma fase de sua vida confessada sob a ótica do amor. Porém, um
suposto novo amor surge e novamente a poeta tenta relutar: “Porque vieste aqui, Eu
101
nunca te convidei? A poeta já conhecia o homem ao seu portão , no entanto, uma
nova possibilidade de amar a deixa aflita. Não encontramos em sua escrita outros
poemas que deêm continuidade a essa nova fase de sua vida, esse mistério parece
necessário para nós que diante dos olhos acompanhamos uma alma feminina que
ama e luta diante dos problemas de sua vida amorosa.
As composições poéticas de Arlinda Morbeck entretecem, num mesmo
movimento, autobiografia e memória, configurando enredos, cenários, histórias
todos ligados em sua trajetória de vida. Percebemos em seu material poético um
trabalho artesanal de quem escreve e reescreve, à procura de uma expressão que
se revele pelas rasuras e correções, em determinados momentos cuidadosamente
copiadas e corrigidas, numa caligrafia firme e, em outras, com as mãos trêmulas e
insistentes.
O seu retorno para a cidade de Valparaíso-SP faz com que o retorno de uma
memória ressurja ainda mais forte, com sua publicação em jornais; separada do
marido, longe dos filhos, uma liberdade surge em sua vida e ela a imprime no papel,
reconstruindo novamente suas memórias já marcadas por outros sentimentos, já
não a dor de um dia anterior pela viagem do marido, nem por um filho que reclama a
ausência do pai, agora é uma mulher que revive esse mesmo passado, porém, ele
recorta outros caminhos do coração. O casamento, a maternidade mostram uma
mulher cheia de limitações, a velhice traz a paz, a tranquilidade,a alegria e a
coragem no entanto, ainda encontramos um passado não resolvido, ele pertence
àqueles dias que, como vimos, foram de abandono, não houve respostas, a
separação forçada acontece e Arlinda Morbeck, viúva, não sabe se o coração deve
ou não seguir um novo amor.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse término da dissertação, não sendo o da pesquisa, pois os estudos aqui
realizados nos mostram outros caminhos para serem percorridos,buscamos nessas
considerações uma reflexão sobre o trajeto dessa pesquisa, as dificuldades
encontradas, vencidas e os resultados a que chegamos.
Nossas dificuldades estiveram voltadas nesse percurso da pesquisa pelo
acesso ao material da poeta Arlinda Morbeck, por eles estarem em detenção dos
familiares, e por se tratar de um primeiro estudo sobre a autora e suas produções,
nos deparamos com barreiras impostas dentro dos estudos literários, que, por vezes
privilegiam somente autores que tiveram e tem público.
Apesar das dificuldades a necessidade de apresentar esse material poético,
sempre falou mais alto, por entendermos que a literatura sempre esta em
construção, e por ser a realização da escrita, dos desejos, dos sonhos sejam eles de
homens ou mulheres, acreditamos em nosso projeto inicial e embasados
teoricamente apresentamos Arlinda Morbeck e suas poesias.
O presente trabalho esta dividido em três capítulos, sendo o primeiro uma
apresentação da vida da poeta pelo fato de não termos outros estudos que tenham a
apresentado, buscamos também uma reflexão do regionalismo para que
pudéssemos localizar o estudo de Arlinda Morbeck, por sua escrita ter sido realizada
nos sertões mato-grossenses, e diante de acontecimentos históricos vividos por ela
e seu marido, por este possuir um cargo na política da época.
No segundo capítulo discorremos sobre a poesia como um tipo de escrita, a
escrita feminina no século XX e a autobiografia. A escrita feminina em sua maioria
sempre para o tom confessional, buscando sempre na memória os fatos das vidas
de suas autoras, muitas vezes aqueles que ficaram sem solução, sem respostas,
escondidos, sendo, pois, é na escrita que a revelação é realizada, é lida por aqueles
que as encontram, muitas vezes, esquecidas, por serem tidas como uma escrita
apenas de cunho intimista.
Durante a elaboração no terceiro capitulo em que fizemos a seleção das
poesias e as leituras necessárias para que as teorias apresentadas se
entrelaçassem com a voz de Arlinda Morbeck, percebemos o quanto esses estudos
103
autobiográficos são discutidos pela crítica atual, por se tratar de uma leitura hoje
muito procurada pelo público, muitas vezes, pela identificação que sentem diante
das obras lidas.
Na leitura das poesias de Arlinda Morbeck, mergulhamos em seu passado e,
a cada linha lida, um fio de sua vida foi revelado e, por ser tratar de uma escrita
memorialística questões, como: quem nos fala, como e o que nos fala, ficam
evidentes e se tornam aos olhos dos que leem o desejo de leitura e, por que não, de
pesquisa.
Sem dúvida, a literatura feminina já criou seu próprio espaço dentro do
universo da literatura mundial. A mulher do final do século XIX e, principalmente, do
século XX, conquista seu espaço, sua liberdade; muda-se, então, a posição de
feminina para feminista. O não reconhecimento da escrita feminina trouxe grandes
perdas para os estudos das várias autoras; na historiografia literária, encontramos a
repetição dos estudos realizados no século XIX por teóricos do século XX. Esse
quadro tem tentado ser revertido por novos estudos do século XXI, como os de
Constância Lima Duarte (1997) que, no texto O cânone literário e a autoria feminina,
ressalta:
Por tudo isso, compreende-se por que raramente encontramos um
nome feminino antes dos anos 40, quando examinamos manuais de
Literatura e antologias mais conhecidas. E é precisamente porque
temos consciência de tal situação e pretendemos rever a
participação da mulher nas letras nacionais, que realizamos todo
esse trabalho de recuperação de autoras, reexaminando seus textos
e questionando o cânone literário nacional (DUARTE, 1997, p. 93).
A crítica Elódia Xavier (1991) apontará para uma questão latente dentro dos
estudos de autoria feminina, afirmando que essa não aceitação esta ligada a certa
apropriação de operadores necessários para a leitura de textos femininos.
Operadores esses que são ferramentas necessárias para a compreensão dos textos
e que ajudam na identificação da linguagem, da sociedade, da época, do tema. Essa
não observação fez com que muitos críticos desqualificassem a escrita feminina,
sendo considerada sem valor estético.
Quando pensamos na literatura feminina que ainda se encontra em
construção, torna-se necessário ressaltarmos a nossa literatura feminina matogrossense que, apesar de ter nomes reconhecidos e estudos realizados, necessita
de novas pesquisas para realizar também um trabalho de recuperação de escritoras
104
que, como Arlinda, estão relegadas ao silêncio. Trazer novos nomes, ou enriquecer
os já existentes são de grande importância para a literatura regional, que todos os
dias precisa ser construída e sustentada por novas pesquisas e, por que não, novos
nomes.
A análise da escrita de Arlinda Morbeck teve como apoio teórico os estudos
de Leujeune que considera autobiográfica a restrospectiva que o narrador faz de
partes marcantes de sua vida, por isso, o narrador precisa ser uma pessoa normal
porque o leitor busca uma verdade que seja pertinente:
É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os
problemas da autobiografia. (...) É nesse nome que se resume toda a
existência do que chamamos de autor: única marca no texto de uma
realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que
solicita, dessa forma, que lhe seja em última instância, atribuída a
responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. (LEJEUNE,
2008, p. 23).
Ainda os estudos de Lejeune mencionam que o escritor autobiográfico
encontra nesse tipo de escrita o seu meio de sobrevivência, desabafo,
autoconhecimento, resistência aos problemas da vida, ou mesmo, a situação-limite.
Arlinda não só se enquadra nessas considerações como também demonstra o
simples prazer de escrever.n
Esperamos que esse estudo possa abrir novos caminhos para futuras
pesquisas não só de Arlinda Morbeck, assim como de outras vozes femininas que
não tiveram sua escrita publicada ou reconhecida, e que essas vozes possam ser
mato-grossenses, para que, dessa forma, nossa literatura de Mato Grosso ganhe
mais força e reconhecimento.
Acreditamos que o material poético de Arlinda Morbeck deva ser publicado
para que assim ela possa ser reconhecida dentro do cenário literário e cultural matogrossense, o que fortalecerá novos estudos acerca de sua escrita. De tudo isso, o
importante é que o lirismo como arte, possa ser sempre o ponto de partida para
novas pesquisas e atinja o leitor, emocionando-o e levando-o a novos caminhos.
105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Nelly Alves de. Estudos sobre quatro regionalistas. 2. ed. Goiânia:
UFG, 1985.
ARISTÓTELES. Poética. Introdução Eudoro de Souza. Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1992.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BERGEZ, Daniel. et al. Métodos Críticos para a análise literária. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.
___________. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BOURDIE. Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad.
Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1971.
________________. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 8.
ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1985.
________________. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1985.
________________. Recortes. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
CARVALHO, Carlos Gomes de. A poesia em Mato Grosso. Cuiabá:
Verdepantanal, 2003.
________________. Panorama da Literatura e da Cultura em Mato Grosso.
Cuiabá: Verdepantanal, 2004.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Siciliano, 1993.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: UFMG, 1999.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 12. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1986.
D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental. São Paulo. Ática, 1990.
________________. Teoria do Texto. São Paulo: Ática, 1995.
106
DUARTE, Constância Lima. Estudos de mulher e literatura: história e cânone
literário. In:
SEMINÁRIO NACIONAL MULHER E LITERATURA, 6., 1995, Niterói, Anais ...
(Cópiadigitada).
______. O cânone literário e a autoria feminina. In: AGUIAR, Neuma (Org.) Gêneros
Ciências Humanas – desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de
Janeiro:Rosa dos Tempos, 1997.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise Curioni. São Paulo:
Duas Cidades, 1991.
LEITE, Ligia C. Moraes. Regionalismo e Modernismo. São Paulo: Ática, 1978.
LEITE, Mário Cezar Silva.(Org.) Mapas da Mina: Estudos de Literatura em Mato
Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris:Seuil, 1975.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:
UFMG, 2008.
LIMA, Luis Costa. Teoria da Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1983.
LUIGI, Pareyson. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes,1997.
MACIEL, Sheila Dias. A literatura e os Gêneros Confessionais. In: BELON, Antonio
Rodrigues; MACIEL, Sheila Dias (Orgs.). Em diálogo. Estudos Literários e
Lingüísticos.Campo Grande: Ed. UFMS, 2004. p. 75-91
MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. História da literatura de Mato Grosso: século XX.
Cuiabá: Unicen Publicações, 2001.
MASSAUD, Moisés. Dicionário de Termos Literários.. 2ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
MENDONÇA, Rubens. História da literatura mato-grossense. 2. ed. Cáceres:
Unemat, 2005.
MESQUITA, José de. O sentido da literatura Mato-grossense. Revista de Cultura.
Rio de Janeiro, v.XX, p. 64-70, jul./dez. 1936.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção: de 1870 a 1920. 3. ed. Rio de Janeiro: J.
Olympio; Brasília: INL, 1973.
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
107
NADAF, Yasmim Jamil. Sob o signo de uma flor: estudo da revista A Violeta,
publicação do Grêmio Literário “Júlia Lopes” – 1916-1950. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1993. Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Ola Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
__________ Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
_____________ A outra voz. São Paulo. Siciliano, 1993.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História de literatura brasileira: prosa de ficção: de 1870 a
1920. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1988.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1990.
POVOAS, Lenine. História da Cultura Mato-grossense, 1982.
PRIORE, Del Mary .Histórias das Mulheres no Brasil, São Paulo: Contexto, 2004
SILVA, Victor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina,
1993.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1985.
STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica Literária no século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1992.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
VARJÃO, Valdon.(Org.) Poesias. s. ed, Barra do Garças-MT: s.d.
VIANA, Maria José Mota. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte:
UFMG, 1995.
VICENTINI, Albertina. O regionalismo de Hugo de Carvalho Ramos. Goiânia: UFG,
1997.
XAVIER, Elódia. Reflexões sobre a narrativa de autoria feminina. In: XAVIER, Elódia
(Org.) Tudo no feminino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Círculo do livro: 1996.
Download

Victor Hugo, escritor e poeta francês, que teve a merecida