Entrevista – Noemi Rodrigues (Associação dos Pescadores de Guaíba) e Mário Norberto, pescador. Por que de ter uma associação específica de pescadores? Noemi: É a velha história, uma andorinha não faz verão, ninguém tem força. E através de uma associação a nossa força é maior, em busca de recursos e várias coisas que pescadores necessitam. Nós mesmos, que pescamos e acampamos, enfrentamos muita poluição. Tem o rio Guaíba aqui pertinho, mas não há condições de comer o peixe. Então a gente viaja essa distância para pescar lá na lagoa. Uma coisa que se a gente fosse fazer de barco daria cinco horas de viagem. Então, como a gente tem uma associação, a gente tem um convênio com a CPMC, que ela me permite, já que é uma Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN), então ela nos permite que o acampamento fique na reserva. São 25 pescadores e cada um com um ajudante. E eu tenho esse convênio assinado em nome da Associação. Se não houvesse uma associação, se fosse individual e cada um por si, nós não teríamos esse convênio, que é renovado uma vez por ano, quando sai as autorizações e aí temos acesso por terra, porque há uma portaria com guardas e aí esse acesso por terra a gente faz em uma hora e meia, uma hora e quarenta minutos. Mário: E tem uma outra coisa, pela associação tu compra rede e outros materiais de pesca e apenas repassa para os demais pescadores. Noemi: É uma associação sem fins lucrativos, então eu pego os materiais a preço de custo e repasso aos pescadores pelo mesmo preço. Como vocês entrar nesse mundo da pesca? Noemi: A vida toda eu lidei com peixe. O meu pai se suicidou e eu tinha nove anos, sendo que eu tinha três irmãos abaixo de mim e sete acima, éramos dez. E a minha mãe não tinha condições de nos sustentar. E aí eu com 10 anos de idade fui trabalhar em uma fábrica de peixe lá em Rio Grande. Então nós éramos cinco irmãos trabalhando. Eram dois mais velhos que eu e dois abaixo de mim, então nós tínhamos o apelido de Irmãos Coragem, porque íamos os cinco sempre juntos trabalhar na fábrica. Limpava, selecionava... aí conforme a gente foi crescendo começamos a pescar também por lazer e, mais tarde, meu marido sempre gostou de pescar. Quando ele se aposentou eu disse pra ele: “vamos embora pescar!”, e aí viramos pescadores mesmo. Mário: Foi por intermédio do meu pai, que gostava muito de pescar e eu também gostava. E eu trabalhava em indústria. Aí me aposentei, tirei a carteira e fui pescando. Vocês se conheceram através da pesca? Noemi: Nós nos conhecemos aqui em Guaíba, na Praia da Alegria. Meu irmão era pescador e já o conhecia. O que dá mais prazer nessa área? Noemi: É sempre aquela esperança de que tu vai chegar na rede e vai estar cheia de peixe. Aí tu levanta cinco e meia ou seis horas da manhã, pega vento, balança o barco, viaja longe atrás do peixe... e tu chega lá com 600, 900m de rede e tu pega uma caixa de peixe, de 30, 40kg. Mas, claro, as vezes tu vai e pega 200, 300kg. A esperança do pescador é aquela: levantar e dizer assim: “hoje vai estar cheio de peixe!”. O grande prazer é pescar, é pescar muito peixe mesmo. É possível fazer uma comparação de como era a associação antes de receber o apoio do Governo do Estado? Noemi: Mudou muito. E agora já vai para doze anos desde a criação. Os primeiros dez anos era só a função de conseguir o material de pesca a preço de custo e a autorização para entrar e pescar, com o convênio da empresa. Em torno de dez anos ela nos ajudou com isso. Ano retrasado (2012) ganhei a eleição, e em outubro assumi a presidência. E disse para o pessoal: “eu não sou melhor do que ninguém, mas a associação não vai ficar somente nisso”. Eu garanti que iria em busca de ajuda para todos, e fui atrás. Comecei a participar do fórum da pesca, comecei a participar das reuniões da SDR, e a Cora, aqui da Emater/RS de Guaíba, foi muito importante nisso tudo. Surgia um fundo perdido, uma linha de crédito do Feaper, etc, ela me chamava e íamos atrás. E os meus pescadores precisam, porque a vida do pescador é muito difícil. As vezes em uma semana inteira tu consegue pegar 50kg de peixe. E tu tem despesas, tem o óleo do barco, tem o combustível para te levar até o acampamento, toda uma despesa. Ou seja, tem semanas que tu não tira nem para o sustento. Mas, claro, tem semanas que rende, que dá bastante. Só que quando rende é aquilo, tu tem que pagar as tuas contas. O que é, em números, uma semana “que rende”? Noemi: Uma baita semana foi uma que pegamos uns 400kg de tainha. (risos) Mário: Tudo depende da época. Agora (abril) o bagre não está aqui, mas em setembro ele volta. Aí até outubro é ótimo. Uma pesca ótima. Depois vem a piracema e, em fevereiro, abre de novo. A gente se rala mesmo, mas no fim das contas a gente concorda com quem diz que a vida de pescador é boa. Noemi: Esse ano foi muito rápido, sabe. Dia 15 de fevereiro não tinha mais. Mas, essa semana mesmo, não trouxemos 15kg de peixe. Quais as principais dificuldades da pesca artesanal? Noemi: Para nós da lagoa a dificuldade é manutenção de barco, porque sempre tem que fazer, tudo que fica na água estraga, e meu barco é de ferro, chapa de aço, e todo ano eu tenho que lixar e pintar, caso contrário não tenho mais barco. Tem a questão do motor, a revisão... agora mesmo já quebramos várias vezes esse ano, questão da caixa, do arranque, semana passada quebrou um cano. Enfim, tudo é despesa, e o peixe não compensa. Mas tem época que compensa também. A dificuldade maior é a manutenção. A história é aquela: na época de vacas gordas guardar para ter na hora das magras. Há como fazer uma análise do crescimento ou redução do pescado nos últimos anos? Noemi: Tudo é relacionado com a natureza. Eu digo: cuida da natureza porque a natureza se defende. Esse ano está ruim, o bagre foi pouco, a tainha não entrou ainda. Ano passado, nessa época, eu estava com os freezers cheios para a semana santa. Esse ano estão vazio. A água da lagoa precisa baixar para a água do mar entrar e salgar a lagoa. Com essa mistura, o peixe vem. Esse ano não baixou e a água não salgou, e o peixe não vem. Portanto tudo é a natureza. Mas, realmente, cada ano o peixe diminui um pouco. É muita poluição e muita pesca predatória. Há duas semanas em torno do nosso acampamento onde pescamos havia 15 barcos de Tapes e São Lourenço praticando pesca predatória. A falta de fiscalização é terrível. A gente tem tudo, carteira para dirigir barco, carteira de pescador, o brasão que delimita a área de pesca, mas não tem fiscalização. Nós estamos dentro da lei, mas nós que nos ferramos. É a velha história, o artesanal sempre é prejudicado, porque esses barcos que vêm enfrentam vento, onda, qualquer coisa. Os nossos não. E nós trabalhamos com dois ou três pescadores no barco, já eles com uns oito, dez pessoas. Isso dificulta muito. Nesta linha, não dá para afirmar “estamos pescando mais agora”, nem “estamos pescando menos”? Noemi: Não. O ano retrasado até abril deu muito peixe. O ano passado até junho foi muito também, bagre, tainha. Tu ia à rede e sempre tinha peixe. Já esse ano, de 15 de fevereiro para cá, é quase nada. Tu fica ali apenas mariscando, pegando o nativo. Quais as atribuições que formam um pescador artesanal? Noemi: Primeira coisa: ele precisa saber pescar. Não adianta chegar na lagoa e achar que sabe. Para ser pescador tem que conhecer o tempo. Tem que olhar para o céu e dizer: “hoje eu não vou porque daqui a meia hora vai estourar a chuva”. Tu tem que conhecer os locais aonde tu pesca. Não é pegar um barco e sair jogando a rede em qualquer lugar. Tem que saber o ponto onde tem o peixe, onde tem pedra para não danificar o barco, tudo isso. E tem que gostar muito de pescar. Porque, se não gostar, na primeira dolorosa tu desiste. Há quanto tempo vocês estão gostando de pescar? Noemi: Uns 15 anos que não saímos da lagoa. (risos) E ainda dá para aprender alguma coisa? Noemi: Muito. Todo final de tarde nos sentamos na frente da praia, tomamos um chimarrão e vamos conversando sobre a pescaria do dia. Mário: Todo dia se aprende alguma coisa. Sempre tem alguém mais velho que tu, mais experiente, para te alertar, para dizer que tu está colocando a rede errado. Há um crescimento do sexo feminino na área da pesca? Noemi: Tem. Eu tenho na associação 30% de mulheres. Só que dessas 30% vai para a água uns 2%. Elas ficam no acampamento, fazem a comida, ajudando a limpar e gelar o peixe, mas, ir para a água são poucas. Como se dá a relação entre a presidente e os demais associados? Noemi: Na real, praticamente a hierarquia só existe quando eu tenho que assinar algum documento, assinar algum convênio, reuniões na Emater/RS, algo que envolva a presidente. Pois no acampamento, no convívio, eu sou mais uma pescadora. E, inclusive, todos se tratam igual. Até brincam comigo, me apelidaram de Dilma. Com todos eles eu sou apenas mais uma pescadora. Como tu gostaria de ver a associação daqui para frente? Noemi: O maior sonho que eu tenho, e se eu me reeleger em outubro vou lutar para alcançar nos próximos dois anos, é conseguir a nossa sede. Estamos com 12 anos agora e não temos a nossa sede. O meu sonho é conseguir essa sede, para nos reunirmos, fazermos um peixe assado, uma festa, que a gente ainda não tem. Quando eu preciso, uso a casa da minha filha. Tem uma área de lazer grande. Reuniões são todas ali. Ou eu alugo o Guaibinha (clube no centro da cidade) e faço lá. E gostaria de ver o netinho Lucas um grande pescador? Noemi: Se ele gostar que nem a gente gosta, eu até gostaria. Mas eu digo para eles sempre: o futuro de vocês é estudar. Tenho meus dois filhos bem empregados, mas sempre falo para nunca abandonarem a pesca. Depois que se aposentarem, vamos embora pescar! O trabalho é estressante, principalmente o urbano. E a pesca, apesar dos pesares, não tem preço. Viver à beira da água, no silêncio, na calmaria, não tem preço.