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Anais do !
V Seminário Nacional Sociologia & Política !
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14, 15 e 16 de maio de 2014, Curitiba - PR!
ISSN: 2175-6880
A Marcha das Vadias em União da Vitória/PR e Porto União/SC: Enfrentamento ao
Machismo da Ironia das Falas e da Violência que Mata
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski1
RESUMO: As construções sociais de gênero que delimitam posturas consideradas adequadas para
homens e outras para mulheres, sendo para eles mais permissivas e para elas limitadoras geram a
desigualdade de gênero que tem ao longo do tempo inferiorizado as mulheres e as submetido a
julgamentos sociais quando, supostamente, desviam-se do comportamento considerado ideal. O
machismo está presente em nossa sociedade e se revela tanto nas falas das pessoas, que por vezes,
pretendem-se inocentes com caráter de piada, quanto em palavras e ações violentas que destroem a
autoestima e a vida de muitas mulheres. União da Vitória/PR foi apontada pelo mapa da violência
de 2012 como o 46º município em maior número de homicídios de mulheres no Brasil. Estes
números acabam com o estereótipo de cidade pequena, com costumes interioranos que se
pressupõem pacatos. A preocupação com a violência de gênero na cidade e região moveu a
formação do primeiro grupo feminista na cidade, ‘Mais que Amélias’, e também a organização da
primeira Marcha das Vadias de União da Vitória/PR e Porto União/SC, cidades vizinhas. Este
trabalho analisa esta manifestação e a repercussão que a mesma teve na comunidade local através
de comentários publicados na internet. A Marcha das Vadias nestas cidades pautou-se no combate à
violência física contra as mulheres e enfrentou o conservadorismo que perpetua o machismo
expresso em diferentes alusões à manifestação, desde comentários de repúdio a falas irônicas, nem
por isso menos agressivas.
Palavras-chave: Marcha das Vadias. Machismo. Violência de Gênero.
Introdução
A cidade de União da Vitória/PR comemorou seus 124 anos no mês de março de 2014. A
cidade surgiu com a passagem dos tropeiros pela região. Em 1942, Pedro Siqueira Cortes descobriu
o vau do Rio Iguaçu que se transformou numa passagem importante para encurtar a viagem das
tropas e logo surgiu o povoado que foi elevado à categoria de município em 1890. O conflito do
Contestado que envolveu os estados do Paraná e Santa Catarina fez a cidade perder parte de seu
território, surgindo em 1916 a cidade de Porto União em Santa Catarina. Duas cidades separadas
apenas por uma linha de trem com uma história conjunta, com tradições e costumes em comum. 2
Embora as cidades tenham passado por um período de desenvolvimento significativo,
principalmente na década de 1930 quando a estrada de ferro que corta as cidades fazia delas ponto
de parada importante nas viagens entre Rio de Janeiro, São Paulo e o Rio Grande do Sul e a
1
Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná, professora do curso de História da Universidade Estadual do
Paraná, campus de União da Vitória. Email: [email protected]
2
Sobre a história dos municípios ver: MARTINS, Ilton Cesar; GOHL, Jefferson William; GASPARI, Leni Trentin.
Fragmentos de memória, trechos do Iguaçu: olhares e perspectivas de história local. União da Vitória: FAFIUV,
2008.
exploração da madeira na região fazia as cidades crescerem economicamente, seguiu-se
posteriormente um período de estagnação. Hoje, União da Vitória, no Paraná, é um município com
uma população estimada em 55.467 habitantes e Porto União, em Santa Catarina, tem uma
população estimada em 34.551 segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Estas cidades interioranas são comumente apresentadas como tranquilas, como localidades
que preservam as tradições familiares, os costumes do interior pautados em valores morais. Mas até
que ponto tais costumes e tradições podem ser encarados como tranquilos e positivos para todos e
todas? O mapa da violência de 2012 revelou dados alarmantes sobre o índice de homicídios de
mulheres, colocando a cidade de União da Vitória em 46º lugar no ranking nacional. 3
Compreendendo que sendo os números de homicídios alarmantes, mais extremos são os números de
outras formas de violência contra as mulheres, violência verbal, moral, sexual, e outras formas de
violência física que não culminam em morte. Violências que não aparecem nas estatísticas por não
serem, em sua maioria, denunciadas. A pesquisa de Souza e Adesse (2005) revela que apenas uma
pequena parcela dos casos de violência contra as mulheres são denunciados e isso tem diferentes
motivações, desde o medo e vergonha das vítimas à falta de confiança na justiça que historicamente
não protege efetivamente as mulheres. Embora a Lei Maria da Penha tenha proporcionado a
ampliação do número de denúncias contra a violência doméstica, em cidades como União da
Vitória, por exemplo, que não possui uma Delegacia da Mulher é reconhecido que os números reais
da violência são bem maiores do que os que aparecem nas estatísticas. Tais dados conduzem a
reflexão sobre quais são as tradições que estão sendo preservadas e o que se percebe é a
continuidade de costumes e valores patriarcais que subjugam as mulheres e de práticas de violência
como formas de resolver questões do cotidiano.
Em sua importante obra ‘Homens livres na ordem escravocrata’, Franco (1997) aborda a
questão da violência no interior e discorre sobre o que ela chama de ‘código do sertão’ que ao
mesmo tempo fazia com que as pessoas de pequenas localidades interioranas do século XIX
experimentassem práticas de convivência pautadas na ajuda mútua, mas também tivessem a
violência legitimada como forma frequente para solução de conflitos. Assim as pessoas podiam
tanto cuidar umas das outras quanto agredir-se verbal e fisicamente quando se sentiam
desrespeitadas, tornando a violência ‘costumeira’, conceito também discutido por Monteiro (1974,
p. 37) que ao estudar o milenarismo na região do Contestado destaca que “o mundo do sertão do
Contestado é unanimemente descrito como um mundo de violência. Violência por questões de
honra, violência por questões políticas, violência por questões de terra”.
Tanto Monteiro (1974) quanto Franco (1997) remetem à questão da preservação da honra
masculina como um dos fatores que estimulavam a violência no interior. Embora a violência de
3
Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_mulheres.php. Acessado em 27 de março de 2014.
gênero não seja o assunto tratado por estas obras, essa mesma lógica de preservar determinados
valores morais, mesmo que para isso fossem entendidos como necessários os atos violentos, é
assumida ao longo do tempo por homens que ao se sentirem desrespeitados por mulheres em suas
supostas virtudes pessoais, as agridem. A mentalidade machista de uma sociedade moldada pelo
patriarcado que coloca os homens numa posição de centralidade e as mulheres em papeis submissos
cria estereótipos, modelos de virtude tanto para homens quanto para mulheres. Deles são exigidos
atos de coragem e de provimento financeiro da família bem como o cumprimento da palavra dada
para que sejam considerados homens honestos (MACHADO, 2001), já delas é exigido o
regramento de sua conduta sexual (CAUFIELD, 2000).
Para Benlloch (2005) tais estereótipos são construídos a partir dos mitos de masculinidade e
de feminilidade. Tais mitos que enfatizam o papel de esposa e mãe para as mulheres estimulando a
necessidade do amor romântico geram formas de dependência em relação aos homens. A
dependência emocional fazendo com que não percebam a possibilidade de realização pessoal fora
de um relacionamento amoroso e a dependência financeira quando tal relacionamento as impele a
abandonar projetos pessoais de vida e trabalho para cumprirem os papeis sociais a elas socialmente
destinados: cuidar da casa e dos filhos. Por outro lado, os mitos da masculinidade que exigem a
virilidade, coragem, restrições emocionais e exercício do poder geram a necessidade da vivência da
sexualidade como meio de comprovar a masculinidade e a violência surge como forma de exercer o
poder diante de conflitos.
Tal abordagem remete às construções sociais de gênero, tomando aqui como referência o
conceito de gênero apresentado por Joan Scott (1990) que o opõe ao determinismo biológico das
relações entre os sexos, dando a elas um caráter social que reflete as relações de poder. Opção que
não nega os argumentos de autoras como Donna Haraway e Judith Butler que visam ultrapassar as
fronteiras do gênero assinalando que tais distinções são complexas. Em ‘Manifesto ciborgue’
Haraway (2000) declara que no final do século XX éramos todos “quimeras”, “híbridos” fazendo
existir uma confusão de fronteiras e apresenta um anseio por um mundo sem gênero ou pós-gênero.
Para ela “as feministas-ciborgue têm que argumentar que ‘nós’ não queremos mais nenhuma matriz
identitária natural e que nenhuma construção é uma totalidade” (HARAWAY, 2000, p. 58). Já
Butler (2010, p. 25) argumenta que “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição
cultural de significado num sexo previamente dado [...] tem que significar também o aparato mesmo
de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. A perspectiva seria romper com
a matriz heterossexual das relações de gênero, caminho seguido também por Tânia Navarro Swain
(2009, p. 30) quando escreve ‘Heterogênero: ‘uma categoria útil de análise’’, uma categoria que
“desvela o binário naturalizado”. Para a reflexão aqui proposta, porém, se apresenta como adequado
o conceito de gênero como construção social destas relações entre os sexos, porque são justamente
elas que estimulam a submissão, por um lado e a violência, por outro. Compactua-se com o anseio
de um mundo mais igualitário que rompa com tantas barreiras e rotulações, mas aqui ainda é
percebida como necessária a reflexão sobre esta divisão binária dos lugares sociais nas reflexões
sobre violência contra as mulheres.
1 A Marcha das Vadias como enfrentamento a todas as formas de violência de gênero
Começando em Toronto no Canadá, a Marcha das Vadias percorre o mundo sendo
organizadas em diversas cidades, de capitais a interioranas, como uma manifestação popular que
pede o fim da violência contra as mulheres. Mesmo com o crescimento de tal ação ela ainda não é
compreendida por todas as pessoas e cabe sempre uma retomada de seu histórico inicial para
esclarecimentos necessários. Em 2011, em uma palestra em um campus universitário de Toronto,
Canadá, um policial advertia as mulheres a não “se vestirem como vadias”, pois esta seria a causa
da violência sexual. A culpa foi lançada sobre as vítimas ao invés de ser computada aos agressores.
A revolta de pessoas próximas, amigas e familiares de vítimas de estupro fez com que se
organizassem para manifestarem seu repúdio a tal concepção. Escolheram ‘Marcha das Vadias’
como nome com o intuito de chocar a sociedade, como crítica ao erro de julgamento que culpa as
vítimas e tira o foco do problema da violência em si4.
O tema não é estranho para o Brasil que neste ano de 2014 apresentou uma pesquisa
revelando que grande parte da população brasileira entende que mulheres que se vestem com roupas
curtas ou com decotes merecem ser atacadas. 5 A primeira versão da pesquisa apresentada em março
de 2014 afirmou que 65% das pessoas entrevistadas responderam positivamente à questão:
“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. A repercussão disso
gerou uma intensa discussão em redes sociais com pessoas manifestando sua indignação por um
lado e com muitas outras se sentindo confortáveis em apresentar publicamente seu machismo,
talvez pela tranquilidade de se perceberem parte da maioria. Entende-se que tais pesquisas sempre
precisam de análises mais apuradas, no sentido de questionar que público respondeu as estas
questões, se o número de respostas obtidas é coerente para representar um pensamento comum à
maioria e se foram escolhidas nessa amostragem pessoas de diferentes grupos sociais. De qualquer
forma, a publicação de uma errata alguns dias depois de tanta polêmica apontou que não são 65%
4
Maiores informações sobre a marcha podem ser acessadas no site: http://www.feminismo.org.br/livre/
index.php?option=com_content&view=article&id=4689:marcha-das-vadias-chega-de-culpabilizacao-das-vitimas&cat
id=58:violencia&Itemid=574. Acessado em 06 de novembro de 2013.
5
Pesquisa ‘Tolerância social à violência contra as mulheres’ desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica
aplicada e divulgada em 27 de março de 2014. A errata da pesquisa e demais links relacionados a ela está disponível
em: http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21971&Itemid=9. Acessado em 14 de
abril de 2014.
da população e sim 26% que compactuam desta forma de pensar. Uma troca de gráficos teria sido o
erro. A errata manteve o resultado apresentado para outra questão que revela que 58,5% dos
entrevistados concordam que se as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos estupros.
O Instituto Maria da Penha lançou uma campanha na sequência desses acontecimentos
alertando para o fato de que independente da porcentagem é absurdo culpar a mulher vítima de
violência pelo erro do agressor. Foi criado um cartaz a ser espalhado em diversas lojas com os
seguintes dizeres: “O número mudou, mas ainda é absurdo. 26%. Não é desconto: É a quantidade de
gente que acha que o jeito da mulher se vestir justifica o estupro. Esta loja não apoia isso”. E a
hashtag #essamodatemqueacabar.
Figura 1: Campanha Instituto Maria da Penha
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,campanha-em-lojas-critica-violencia-contra-amulher,1151030,0.htm
Esta culpabilização das vítimas de violência sexual não é recente. É possível afirmar que
representa um problema estrutural de nossa sociedade. Ao analisar processos por crimes sexuais do
final do século XIX e início do século XX 6 é perceptível que uma condescendência com a violência
masculina divide espaço em nossa sociedade com a responsabilização das vítimas. Os crimes são
justificados pelas posturas das mulheres e não pela agressividade dos homens.
6
Ver: ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet. Os crimes sexuais em Castro/PR (1890-1920). Dissertação de
mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013.
Na perspectiva de combate à violência contra as mulheres, em especial a violência sexual, é
que a Marcha das Vadias vem ocorrendo em diversas cidades brasileiras. Como toda manifestação
social que acontece nas ruas das cidades sendo, portanto, aberta a todas as pessoas, ela não é isenta
de polêmicas, de ações que por vezes não são planejadas pelo grupo organizador, mas que por elas
precisam responder. Um dos fatos de grande repercussão ocorreu no Rio de Janeiro em 2013. A
Marcha, organizada anualmente coincidiu com a visita do Papa Francisco à cidade em um evento
que reuniu muitas pessoas, a Jornada Mundial da Juventude. Os dois eventos aconteceram em
Copacabana, a Marcha previamente agendada para o local e a Jornada transferida para lá devido a
problemas no local original, portanto sem o sentido primeiro de um enfrentamento dos dois eventos.
Um casal que participava da Marcha em dado momento, tirou as roupas e quebrou imagens
consideradas sagradas para os católicos. Em contrapartida, um participante da jornada cuspiu no
rosto de uma manifestante.7 Tal ato provocou uma série de críticas à Marcha e as organizadoras do
evento no Rio de Janeiro publicaram nota afirmando que a mesma é um ato pacífico e apartidário:
A polêmica performance com cruzes de madeira e estátuas de gesso, que vem sendo
debatida na mídia não foi construída pela MdV, que sequer sabia de sua realização e
conteúdo, bem como desconhece seus realizadores. A MdV apenas agiu para garantir a
segurança daquelas pessoas, o que foi igualmente feito para TODAS as performances
realizadas e para TODOS os presentes na Marcha. Esta performance durou apenas alguns
minutos e a Marcha prosseguiu por seis horas de muita música, pluralidade, alegria e
politização, tanto pelo direito das mulheres como pelo fim do racismo, homofobia e outras
violências institucionais.8
O nome da Marcha é chocante para a sociedade que entende o termo ‘vadias’ como bastante
pejorativo e com uma conotação sexual forte ao referir-se a mulheres. O termo ‘vadio’ alude a
homens que não trabalham, no feminino é direcionado à mulheres que não seguem os padrões
moralistas do comportamento sexual entendidos como adequados. Quando este termo se alia a
performances como esta que ocorreu no Rio de Janeiro em 2013, estimula uma série de críticas.
Porém, quando o título foi escolhido seu intuito era mesmo chocar para atrair a atenção para as
reivindicações legítimas do movimento. Da mesma forma, o evento do Rio de Janeiro, embora não
entendido como positivo nem mesmo por todas as organizadoras das marchas em diferentes
cidades, acabou por promover a reflexão, por atrair olhares. Infelizmente, muitas pessoas se fecham
às questões centrais por se sentirem ofendidas em suas crenças quando algo assim acontece, mas
por outro lado, cria-se a oportunidade de respostas, de explicações, de posicionamento. Em uma
sociedade tão desigual o incoerente precisa se tornar instrumento do despertar da consciência, seja
este incoerente o uso do termo vadia e o desvirtuamento do problema central da violência em uma
7
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/12/10/mp-rj-denuncia-casal-por-ato-obceno-na-marcha-dasvadias-durante-a-visita-do-papa.htm.
8
http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/.
palestra de um policial no Canadá, seja uma errata sobre os dados divulgados de uma pesquisa no
Brasil ou uma performance não planejada pelas responsáveis pela marcha das vadias no Rio de
Janeiro.
O tema central das marchas, nas diferentes cidades em que ocorrem é o combate à violência
contra as mulheres, mas com o crescimento do movimento estas manifestações passaram a receber
o apoio de outros grupos e em contrapartida começaram a abraçar também suas causas, como o
combate à homofobia e ao racismo, por exemplo. O enfrentamento à violência sexual e à
culpabilização das vítimas foi o motivo inicial da manifestação, mas na atualidade, todas as formas
de violência são foco de reflexão de tais grupos: a violência moral, psicológica, física e a busca pela
igualdade de gênero, pela igualdade de direitos em todos os âmbitos sociais.
2 A Marcha das Vadias em União da Vitória/PR e Porto União/SC
No primeiro semestre de 2013, mais precisamente em maio, começou a tomar forma um
grupo feminista nas cidades de União da Vitória e Porto União. O grupo Mais que Amélias surgiu
da preocupação de diferentes mulheres, estudantes universitárias e pesquisadoras dos estudos de
gênero, com os dados da violência nas cidades, com o já mencionado 46º lugar no ranking nacional
de municípios com maior índice de homicídios de mulheres e com uma média de três casos de
violência doméstica por semana sendo noticiados na mídia local. Tendo consciência de que o
número de casos que vem a público é sempre reduzido, tal preocupação não era fortuita. Para além
de debates em torno da temática o grupo instituiu como sua primeira ação efetiva a organização da
marcha nestas cidades.
É evidente que a Marcha não é uma ação que pode acontecer de forma isolada, sem ações
que a antecedam para que a mesma faça sentido para a comunidade que a recebe e dela participará.
Palestras foram realizadas em escolas como nos colégios Túlio de França e Neuza Domit em União
da Vitória e no Colégio Cid Gonzaga em Porto União. No ano de 2012 havia sido realizado o I
Seminário Regional de Combate à Violência contra as Mulheres organizado pelo Coletivo
Feminista e Anti homofobia da APP Sindicato de União da Vitória e Campus de União da Vitória
da Universidade Estadual do Paraná. Em 2013 o grupo Mais que Amélias tomou parte na
organização do segundo seminário auxiliando estas instituições que em contrapartida envolveram-se
na organização da Marcha que ocorreu em 19 de outubro de 2013. A marcha acabou acontecendo
como uma espécie de continuidade do Seminário no dia seguinte ao mesmo.
A primeira edição da Marcha das Vadias teve seu local de concentração na praça central da
cidade de União da Vitória, percorreu a principal avenida, rumo a cidade vizinha, Porto União e
retornou para a praça. Na manhã que a antecedeu foram distribuídos panfletos explicativos para a
população da cidade, pois as atividades que envolvem a marcha objetivam esclarecer, tirar as
dúvidas e conscientizar as pessoas sobre a necessidade do combate à violência. Sabe-se que ao
mesmo tempo em que o nome da Marcha tem o intuito de chocar para atrair a atenção para o
problema, por outro lado ele causa desconforto em pessoas que por desconhecer acreditam que a
manifestação não passa de uma ação exibicionista de mulheres que desejam mostrar o corpo nas
ruas. Por isso todas estas ações anteriores à saída para as ruas foram entendidas como relevantes.
Diferentes grupos, não apenas o Mais que Amélias, mas também o Coletivo Feminista e
Anti homofobia da APP Sindicado de União da Vitória e a Secretaria de Gênero Relações ÉtnicoRaciais e Direitos LGBT do Paraná participaram. Professores e professoras, estudantes, pais, mães,
trabalhadores e trabalhadoras de diferentes áreas caminharam pelas ruas das cidades, pessoas
motivadas pelo objetivo central da Marcha apresentado por uma das integrantes do grupo Mais que
Amélias, Carolina de Lima Adam: “A Marcha das Vadias tem sempre um foco. O nosso, aqui na
cidade, é marchar contra a violência”9. A participação efetiva de homens apoiando a causa,
marchando ao lado das mulheres, carregando cartazes ou frases em seus corpos, foi bastante
positiva para despertar em todas as pessoas a necessidade de uma mudança, afirmando de tal forma
que esta não é uma questão que atinge apenas as vítimas de violência, toda a sociedade sofre com
tal situação.
Figura 2: Manifestantes na concentração anterior à marcha na Praça Coronel Amazonas em União da Vitória
Fonte: https://www.facebook.com/events/347418902070079/?fref=ts
9
Disponível em: http://www.vvale.com.br/geral/mulheres-marcham-violencia-cidades-irmas/. Acessado em 07 de
novembro de 2013.
Embora o número de participantes não tenha sido tão expressivo em comparação com outras
edições que acontecem em outras cidades, a marcha foi bastante significativa para a região e
repercutiu em jornais e rádios locais que buscaram não apenas noticiar o evento, mas publicar
matérias e promover entrevistas com pessoas responsáveis pelo mesmo. Isso possibilitou que mais
espaços e não apenas a academia discutisse a questão. Tal repercussão gerou, por outro lado, uma
série de comentários nas redes sociais que expressaram desprezo ou repúdio pela ação, entendendo
que a mesma não era compatível com a aparente e ilusória percepção de cidades pacatas que
preservam os valores tradicionais da família e da moral. Infelizmente nem todas as pessoas
percebem que tais tradições são permissivas com situações de violência e opressivas para as
mulheres. Estes comentários também revelaram o uso do subterfúgio do humor para mascarar o
machismo existente.
Após a leitura da notícia publicada sobre a marcha, alguém que se autodenomina ‘Patriota’
comentou: “Enquanto isso na pia!”10, em uma alusão ao suposto lugar das mulheres que seria na
cozinha ocupada com os afazeres domésticos e não nas ruas em manifestações sociais. Esse
pensamento remete a posturas historicamente delimitadas que entendiam que aos homens cabia o
sustento e proteção da família, enquanto às mulheres restava o cuidado da casa, marido e família.
Miguel e Rial (2012, p. 150) destacam que “Especialmente até meados dos anos 1960, verificamos
a ênfase no discurso de que o melhor lazer para as mulheres casadas seria estar no lar com os filhos
e maridos, distraindo-se, por exemplo, na cozinha ao fazer pratos mais elaborados, bolos e quitutes
para o fim de semana”. As autoras afirmam que para as jovens eram permitidos passeios com
amigas e idas ao cinema, porém das esposas se esperava que “abrissem mão de tais passatempos,
pois tinham ‘mais o que fazer’ e não deviam ‘bater perna’ pela rua com a mesma frequência do
tempo de mocinha” (MIGUEL; RIAL, 2012, p. 151). O comentário de ‘Patriota’ demonstra que tal
concepção retrógrada ainda persiste em pleno século XXI.
Outro comentário que segue essa mesma perspectiva foi do sujeito autodenominado ‘Silvio
Santos’ que escreveu: “Para de marchar e volta a vender os produtos Jequiti, os perfumes das
estrelas!”11. Aqui há uma referência à possibilidade das mulheres trabalharem, porém, a ironia do
enunciado apresenta um aspecto de futilidade em relação às ações femininas. O autor tanto critica a
ação política das mulheres que saem às ruas para reivindicar menos violência e mais igualdade,
quanto procura menosprezar suas ações destacando que deveriam ocupar-se apenas com a beleza,
com a vaidade. O debate público não seria adequado a elas. Prado e Franco (2012) destacam,
porém, que desde o século XIX a participação das mulheres nos debates públicos foi intensa. As
autoras apresentam diferentes mulheres que atuaram efetivamente na história política do Brasil,
10
Disponível em: http://www.vvale.com.br/utilidade-publica/1a-marcha-vadias-cidades-irmas-desperta-olharescuriosos/. Acessado em 07 de novembro de 2013.
11
Idem.
como Maria Quitéria que se travestiu de soldado para lutar pela independência do Brasil, Jovita
Feitosa que se apresentou como ‘voluntário da pátria’ para lutar na Guerra do Paraguai, embora não
aceita, tornou-se símbolo de sentimento patriótico e ainda Nísia Floresta, considerada uma das
primeiras feministas do Brasil que em seus escritos demonstrou envolvimento com diferentes temas
políticos desde a abolição da escravidão no Brasil como a Unificação da Itália.
‘Patriota’ e ‘Silvio Santos’ com seus comentários representam a continuidade do machismo
há tanto tempo combatido em nossa sociedade. Em sua obra ‘O machismo invisível’, Marina
Castañeda (2006, p. 15) afirma que “aqueles que provocam todos esses comentários não entendem
qual é o problema. Acreditam estar sempre certos e perguntam-se por que as mulheres não veem as
coisas como eles”. Por maior que seja o esforço, é difícil colocar-se no lugar da outra pessoa para
compreender o que fato a mesma sente. Somente uma vítima de racismo pode compreender a
própria dor assim como apenas as vítimas do machismo, da violência sabem o sofrimento que isso
lhes causa. O que podemos é ser solidários e infelizmente nem todos o são. Afirmar a não
necessidade de uma manifestação pública pelo combate à violência contra as mulheres demonstra o
descaso com a situação de muitas mulheres que sofrem em nossas cidades. O desconhecimento dos
números da violência anteriormente citados é um dos fatores desse descaso e isso sustenta uma falsa
impressão de que estas cidades interioranas são tranquilas e isentas de tais problemas.
Castañeda (2006, p. 115) lembra que o machismo “não significa necessariamente que o
homem bate na mulher, nem que a prende em casa”, mas ele, por se caracterizar por pensamentos e
atitudes de superioridade em relação às mulheres pode partir de ideias e expressões pretensamente
inofensivas para ofensas e ações violentas visando garantir sua suposta soberania.
Ao abordar as construções psicossociais dos modelos de gênero, Benlocch (2005) afirma
que os mitos da feminilidade, como a fé no poder do amor romântico, a ênfase no papel de esposa e
mãe e a aceitação das posições de poder historicamente delimitadas causam a dependência (afetiva
ou financeira), a desvalorização pessoal e a falta de projetos pessoais que acabam por internalizar o
sexismo. Por outro lado, os mitos da masculinidade, como a virilidade, coragem, poder estrutural
(político, social, econômico e familiar), a restrição emocional e a sexualidade como ação
comprobatória da masculinidade podem gerar a violência como resolução dos conflitos quando tais
questões de virilidade já internalizadas pelos homens são colocadas à prova.
Embora os comentários machistas sejam feitos, por vezes, em tons de brincadeira, eles
expressam pensamentos de inferirorização das mulheres que perduram. A preocupação está no fato
de que as ações violentas, como agressões físicas, geralmente não surgem repentinamente, elas se
desenvolvem partindo de comentários de menosprezo, humilhações, o que chamamos de violência
verbal e psicológica, para então, resultar na violência física. E é justamente por isso que o
machismo, que não é fomentado apenas por homens, mas também por mulheres, como bem lembra
Castañeda (2006) precisa ser combatido.
Em outro comentário em relação à Marcha das Vadias uma pessoa se autodenominou
‘Homem das cavernas’, possivelmente no intuito de retomar antigos valores, ignorando talvez que
apenas com a passagem de coletores/caçadores para sociedades organizadas com o surgimento da
agricultura é que se desenvolveram as formas de desigualdade de gênero (STEARNS, 2010) já que
O escasso desenvolvimento técnico e o instrumental rudimentar disponível para sua defesa,
determinaram que as pequenas comunidades humanas tivessem que ter um grau de coesão e
solidariedade essencial para a sua sobrevivência. Cada um com suas especificidades e
capacidades era apto para desempenhar uma função específica para que o grupo pudesse
atuar como um só indivíduo. Quanto maior era a partilha que se fazia da informação para a
defesa, maiores eram as possibilidades de sobrevivência da comunidade. Estas necessidades
grupais transcendiam às diferenças de gênero. (PESSIS; MARTÍN, 2005, p. 20)
O ‘Homem das Cavernas’ escreveu que as mulheres
Teriam muito mais meu respeito se estivessem trabalhando, ou mesmo, fazendo uma
marcha sem pinturas com palavras pejorativas ou frases como “Nem Deus nem pátria” no
corpo e com um nome digno de respeito. Esse é o protesto mais idiota dos últimos tempos,
sem dúvida, e o pior, com crianças no meio… Vergonhoso.12
O desconhecimento não gerou apenas a escolha da própria denominação, caso a intenção do
nome fosse a de demarcar a necessidade da retomada de antigas concepções que delimitavam as
ações possíveis para homens e mulheres, gerou também um comentário extremamente equivocado
em relação à manifestação. O autor ignorou o fato da maioria das mulheres e dos homens que
participaram da marcha serem trabalhadores e, portanto dignos do seu respeito, já que o mesmo
aponta o trabalho como critério para respeitar o próximo. As pessoas que integraram a marcha e não
estão inseridas no mercado formal de trabalho eram ‘donas de casa’, portanto, trabalhadoras
também e estudantes, trabalhadores se entendemos que o estudo não pode ser entendido como
brincadeira e que estudantes devem empenhar-se, trabalharem para sua própria formação.
O autor ainda argumenta que a manifestação seria respeitada por ele se as pessoas não
tivessem pinturas no corpo com frases das quais ele discorda, manifestando assim que apenas a sua
forma de pensar pode ser considerada correta e critica o nome do evento afirmando que o mesmo
não é digno de respeito, sugerindo assim um desconhecimento em relação à origem do mesmo.
Cabe ressaltar que o nome da marcha não é unanimidade entre as diversas manifestações feministas
e recebeu críticas inclusive de mulheres que foram vítimas de violência sexual. A designação de
‘vadias’ é entendida por algumas mulheres como mais uma agressão justamente porque não é ainda
12
Disponível em: http://www.vvale.com.br/utilidade-publica/1a-marcha-vadias-cidades-irmas-desperta-olharescuriosos/. Acessado em 07 de novembro de 2013.
entendida pela sociedade em geral como um alerta sobre os rótulos que são comumente colocados
nas pessoas. Para algumas pessoas um nome diferente seria capaz de reunir um número maior de
mulheres, pois as mesmas não se sentiriam constrangidas por tal denominação. As organizadoras da
marcha em diferentes cidades, porém, justificam a permanência do nome justamente por sua
capacidade de chocar e chamar a atenção da comunidade para as questões que são levantadas na
manifestação.
Para o ‘Homem das Cavernas’ o protesto é “idiota” e não deveria ter a participação das
crianças. Ele demonstra uma preocupação em relação à exposição delas a tal manifestação que para
ele é “vergonhosa”. Ressaltamos que na Marcha das Vadias realizada nas cidades de União da
Vitória e Porto União as manifestantes não estavam desnudas como ocorre em outras
manifestações. Algumas utilizaram roupas mais curtas com pernas e barrigas à mostra onde
escreveram diferentes frases. Mas apenas os homens marcharam sem camisas, o que é considerado
natural pela nossa sociedade. Mais vergonhoso do que roupas curtas e corpos pintados deveriam ser
considerados os dados da violência contra as mulheres nas cidades. Uma das manifestantes fez
questão de carregar um cartaz durante a marcha que destaca a necessidade de uma educação das
crianças que estimule a igualdade de gênero, como vemos na imagem a seguir:
Figura 3: Manifestante na concentração anterior à marcha na Praça Coronel Amazonas em União da Vitória
Fonte: https://www.facebook.com/pages/Mais-que-Am%C3%A9lias/699810936701633
Junqueira (2008) reconhece que nos últimos tempos as discussões em relação a questões de
gênero e diversidade sexual cresceram de maneira significativa. Porém, ainda são frequentes as
violações dos direitos humanos de mulheres, homossexuais, bissexuais e transgêneros e por isso a
problematização e o enfrentamento do sexismo, da homofia e de seus efeitos é tão necessário. Para
ele “isso só será alcançado se nos dedicarmos a superar nossas limitações, questionar radicalmente
nossos preconceitos e promover mudanças significativas na organização da vida social e nas nossas
atitudes” (JUNQUEIRA, 2008, p. 8). A educação escolar é apontada pelo autor como espaço
privilegiado nesse processo e diversos são os projetos existentes nesse sentido em várias escolas
espalhadas pelo país. Tal tarefa não pode ser relegada apenas à escola, pois o processo de mudança
social é dificultado quando existem conflitos entre o que a escola diz e o que a família vivencia em
relação a diferentes preconceitos. São importantes as ações escolares junto ao corpo discente, mas
elas devem ser estendidas também às famílias e nesse sentido toda ação séria que busque refletir e
combater a violência (verbal, psicológica ou física) é bem vinda.
Arendt (1997, p. 43) destaca que
Face aos jovens, os educadores fazem sempre figura de representantes de um mundo do
qual, embora não tenha sido construído por eles, devem assumir a responsabilidade, mesmo
quando, secreta ou abertamente, o desejam diferente do que é. Esta responsabilidade não é
arbitrariamente imposta aos educadores. Está implícita no fato de os jovens serem
introduzidos pelos adultos num mundo em perpétua mudança. Quem se recusa a assumir a
responsabilidade do mundo não deveria ter filhos nem lhe deveria ser permitido participar
de sua educação.
Somos responsáveis pelo mundo. Ao mesmo tempo em que somos produtos culturais e
concepções a respeito das relações de gênero nos foram ensinadas e por nós internalizadas, somos
também produtores culturais, podemos agir nesse mundo em constante mudança. Seria
irresponsabilidade não cuidar para que as crianças sejam educadas para a igualdade justificando a
continuidade do sexismo pela educação que recebemos. Podemos ser condicionados pelas
construções sociais de gênero, mas não por elas delimitados. O cartaz da imagem anterior revela um
anseio e uma disposição à mudança. Somos representantes deste mundo, desigual e violento para
muitos e muitas como salienta Arendt (1997) e para as crianças devemos mostrar que as mudanças
são possíveis.
“O machismo está tão profundamente arraigado nos costumes e no discurso que se tornou
quase invisível quando não exerce suas formas mais flagrantes, como a violência física ou o abuso
verbal” (CASTAÑEDA, 2006, p. 16-17). Reflexo disso é a publicação anônima:
Eu defendo os direitos das mulheres e apoio que devemos lutar… mas da forma que estas
mulheres conduziram a causa no meu ponto de vista da pra ser considerado vergonhoso e
totalmente vulgar… mulheres que são mulheres não se consideram vadias e sim dama com
delicadeza batalhadoras mulheres de fibra que trabalham dia a dia pra conquistar seu espaço
lutam por direitos, mas com classe não como uma qualquer puta de esquina.13
13
http://www.vvale.com.br/utilidade-publica/1a-marcha-vadias-cidades-irmas-desperta-olhares-curiosos/
A pessoa buscou ressaltar que defende os direitos das mulheres e apoia a luta pelo combate à
violência e, em seu direito, discorda da forma que a Marcha das Vadias busca combater a violência.
Porém ao afirmar que “mulheres que são mulheres” não podem considerar-se vadias, demonstra
confusão no entendimento da denominação da marcha que é justamente uma crítica ao rótulo de
vadias imposto pela sociedade. E ao destacar que as mulheres tem que ser “dama com delicadeza”
reforça estereótipos e os mitos da feminilidade antes destacados. O machismo, o preconceito, é
evidenciado na parte final do discurso que afirma que as mulheres devem lutar por seus direitos,
mas “com classe não como uma qualquer puta de esquina”.
Historicamente as mulheres são rotuladas, discriminadas socialmente, devido à sua conduta
sexual. No século XIX e início do XX eram consideradas honestas se preservavam sua virgindade
antes do casamento, se adequavam suas posturas às normas sociais quando casadas, sendo fiéis aos
maridos e não expressando seus desejos sexuais e se permanecessem castas após tornarem-se viúvas
(CAUFIELD, 2000). As prostitutas eram consideradas mulheres ‘sem honra’ e até mesmo a justiça
brasileira, com um suposto anseio de tratar as pessoas com igualdade as discriminava. No código
penal de 1890 havia diferença das punições para crimes sexuais em que as vítimas eram “mulheres
honestas” ou prostitutas, para os agressores destas últimas as penas eram menores. O termo
“mulheres honestas” que se referia justamente à conduta sexual das mulheres só foi retirado da
legislação brasileira em 2003, nas comemorações do Dia Internacional da Não Violência contra as
Mulheres (ESTACHESKI, 2013).
Ao se referir ao termo “qualquer puta de esquina” a pessoa anônima reforça um preconceito
em relação às prostitutas que manifesta uma incoerência social de longa data. Em uma lei de 1915 14,
o artigo 278 refere-se a quem “Manter ou explorar casas de tolerância”. Se o prostíbulo é conhecido
como “casa de tolerância” significa que a sociedade da época tolerava a prostituição feminina para
satisfação dos desejos dos homens. Há uma contradição nisso, tolera-se a busca de satisfação sexual
dos homens, mas discriminam-se as prostitutas.
Raul Souza em seu comentário chamou o manifesto de hipócrita porque a organização do
evento não foi até as casas de prostituição das cidades para convidar as prostitutas para participarem
da marcha: “Escrevem no próprio corpo que mulher não é mercadoria, mas ir ver a situação das
meretrizes da cidade ou ver convidá-las pra esse manifesto hipócrita não vão né…”15. Seu
comentário refere-se à imagem abaixo:
14
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher.
15
http://www.vvale.com.br/utilidade-publica/1a-marcha-vadias-cidades-irmas-desperta-olhares-curiosos/
Figura 4: Manifestante na concentração anterior à marcha na Praça Coronel Amazonas em União da Vitória
Fonte: http://www.vvale.com.br/utilidade-publica/1a-marcha-vadias-cidades-irmas-desperta-olhares-curiosos/
O convite para a marcha foi realizado nas ruas da cidade, como já exposto, através da
panfletagem e ninguém foi excluído e muito menos proibido de participar. Hipocrisia seria o ato de
fingir defender determinada causa, o que não se aplica à Marcha das Vadias em União da Vitória e
Porto União, que desde o início manteve seu foco no combate à violência contra as mulheres
estimulada principalmente pelos altos índices de violência doméstica na região. O trabalho com as
prostitutas da região para verificar sua situação seria outro importante trabalho a ser realizado, não
necessariamente vinculado à marcha. Vemos que de uma forma ou de outra, a marcha alcança seus
objetivos quando faz as pessoas refletirem sobre diferentes situações que expõem as mulheres à
inferiorização ou violência, o que é um primeiro passo para a construção de uma sociedade mais
justa.
O comentário irônico de José: “Essa MANIFESTAÇÃO mudou minha vida… opa, só que
não.”16, infelizmente demonstra que o trabalho não é fácil, porque esbarra no preconceito e no
machismo tão profundamente arraigado em nossa sociedade. Castañeda (2006, p. 298) ao tentar
vislumbrar um mundo no qual o machismo seja ultrapassado argumenta que “a equidade não é
apenas uma questão de justiça elementar; dela depende a solução dos problemas que assolam a
humanidade desde tempos imemoriais. A longo prazo, não se trata apenas de mudar a relação entre
homens e mulheres, mas de ampliar o alcance da condição humana”.
A Marcha das Vadias não é, felizmente, a única ação possível e existente de luta para a
mudança social que visa combater a violência contra as mulheres e nem mesmo a mais eficiente
para conscientizar a sociedade da necessidade de mudança, mas é uma ação efetiva que procura
trazer o tema para o discurso. Pode parecer pouco, porém aquilo que não está no discurso, não
existe para a maioria das pessoas. A organização da marcha trouxe à tona a existência de inúmeras
16
Idem.
mulheres que sofrem com a violência nas cidades de União da Vitória e Porto União e mostrou para
as autoridades locais que a comunidade está ciente disso e exige ações dos órgãos competentes.
Infelizmente as manifestações sociais não mudam a vida de algumas pessoas como José afirmou.
Compreende-se que para alguns homens é difícil colocar-se no lugar das mulheres que sofrem. Para
elas, porém, a mudança social é urgente.
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a marcha das vadias em união da vitória/pr e porto união/sc