O FENÔMENO DA ROMARIA DE JUAZEIRO DO NORTE: IMPLICAÇÕES SOCIAS E RELIGIOSAS ILMÁRIO DE SOUZA PINHEIRO Lins – SP 2009 2 O FENÔMENO DA ROMARIA DE JUAZEIRO DO NORTE: IMPLICAÇÕES SOCIAS E RELIGIOSAS RESUMO O presente texto pretende expor uma análise, apoiada em visões de alguns estudiosos, do fenômeno da romaria de Juazeiro do Norte, sobretudo em seus aspectos sociais e religiosos. Esta cidade, uma dos maiores pontos de turismo religioso do Brasil, recebe uma média de dois milhões de peregrinos por ano. Deste modo, este trabalho, para melhor comprender a origem e permanência das peregrinações, recorrerá ao contexto histórico-social-religioso em que nasceu a romaria de Juazeiro. Num primeiro momento enfatizaremos as razões principais que deram inicio as peregrinações, a ocorrência de um fato sobrenatural: “o milagre da hóstia”. Na segunda parte, discutiremos as motivações que levaram os romeiros a distinguir Juazeiro como um lugar sagrado. Quanto ao Pe. Cícero, analisaremos sua postura e influência nas romarias e no desenvolvimento da cidade . Por fim, apresentaremos o sentido presente neste evento, como memória do passado e autoafirmação do presente. Palavras-Chave: Romaria – Milagre – Pe. Cícero –Juazeiro 3 INTRODUÇÃO O estudo de fenômenos religiosos causa sempre impressão pela riqueza de elementos das mais diversas instâncias. Sem um olhar crítico e um estudo aprofundado, nunca nos daríamos conta da presença de fatores sociais, ideológicos, filosóficos, entre outros. Ao fazer o nosso estudo sobre o fenômeno da Romaria de Juazeiro, pudemos perceber quantas razões contribuíram e contribuem para a peregrinação dos romeiros. Juazeiro do Norte, cidade localizada no Ceará, considerado um dos maiores centros religiosos da América Latina, recebe, em média, dois milhões de romeiros todos os anos. Neste município muitos lugares e monumentos recordam a figura do Pe. Cícero. O fluxo para tal se dá, predominantemente, por pessoas de baixa renda. Estas são, na maioria, provindas da zona rural, cidades ou das periferias das capitais. O nosso trabalho está divido em três partes. Para a melhor compreensão fomos num primeiro momento às origens do fenômeno, enfocando a presença do Pe. Cícero no então vilarejo. Ao olharmos para a situação do lugar e o contexto histórico da época entendemos o trabalho pastoral desenvolvido pelo jovem sacerdote. O milagre será visto por mais de um olhar, buscaremos entender o significado da sua aceitação e o sentido que se deu, mediante o contexto vivido. Num segundo plano tentaremos entender o processo que transformou um simples lugarejo pobre, em um centro de expressão da fé, um espaço sagrado para os romeiros. Aí se verificará como qual a relação dos com o Pe. Cícero e o que isto representou para a cidade, da qual se tornou símbolo. Nem a sua morte conseguiu acabar com o ponto de convergência de muitos peregrinos do Nordeste. Na terceira parte apresentaremos alguns rituais presentes na romaria do Juazeiro. A viagem para esta cidade é permeada de diversas devoções, próprias do romeiro. Também aí pretendemos expor, em poucas linhas, os fatores motivacionais da romaria, nas suas origens e hoje. 1. ORIGENS DA ROMARIA 1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO 4 Nos anos de 1988 e 1989 o sertão Cearense vivia uma forte seca, só comparada a de 1977, causadora de muitas mortes. Diante de tal quadro era comum as pessoas recorrerem a religião como sinal de esperança para a reversão da situação. Os padres, por sua vez, faziam à pregação, própria do tempo, de conversão súbita, para se alcançar a misericórdia divina. O contexto histórico foi determinante para a crença no milagre. Mas o problema não estava somente relacionado as questões naturais., dois grandes acontecimentos provocaram a migração de pessoas. O sul estava ascendendo a produção cafeeira, enquanto, a partir de 1988, estavam sendo abertas florestas e seringais em pequenos povoados do Amazonas e do Pará. As duas regiões precisavam de mão-de-obra barata. O sul supriu as suas necessidades com os imigrantes europeus. Os nordestinos, por estarem mais próximos, eram recrutados para a Região Amazônica. Havia incentivos políticos para tal êxodo. O governo do Ceará receberia imposto “por cabeça”, o que correspondia uma quantia por cada cearense saudável que embarcasse. Essa escassez de mão-de-obra fez com que a economia do Nordeste, predominantemente algodão e gado, definhasse, não conseguindo resistir aos anos sem “seca”. Tardiamente o governo se deu conta do retrocesso para tentar conter a emigração dos cearenses. (CAVVA, 1985, p. 143-146) 1.2 PE. CÍCERO NOS PRIMÓRDIOS DE JUAZEIRO Pe. Cícero, nascido em 24 de março de 1844, foi ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1870. Os seus primeiros dezesseis meses de sacerdócio foram vividos na cidade do Crato. Certa vez, em 24 de dezembro de 1871, noite de natal, a convite do professor Semeão Côrrea, foi celebrar a missa do galo no povoado de Juazeiro, então distrito do Crato. Após outros contatos, em 11 de abril de 1972, fixou morada em Juazeiro. O jovem sacerdote conquistou a atenção e apreço do povo, a partir da sua vida simples e de oração. Como homem religioso do seu tempo, Pe. Cícero pedia o arrependimento dos pecados do povo. Visitava os doentes, que se multiplicavam, em conseqüência da seca, ministrando-lhes o sacramento da unção dos enfermos. Era procurado, inclusive por outros sacerdotes, como conselheiro espiritual e confessor. 5 Percorria sem descanso todos os arredores de Juazeiro do Norte para pregar a devoção ao rosário da Virgem Maria, a caridade, e para exercer, a pedido, a função de juiz nas discórdias. Gostava de ficar entre os caboclos em longas conversas, durante as quais falava da Santa escritura e da vida dos santos de sua devoção, cujo principal era São Francisco de Assis. Com este trabalho missionário paciente e constante, lançou as raízes de sua aceitação total e incondicional. (OLIVEIRA, 1985, P. 96) De maneira que se encontrava em Juazeiro um padre rico de virtudes, mas nem de longe se pensava em uma repercussão maior causada pela sua figura. Manteve-se 17 anos em Juazeiro neste “anonimato”, até o acontecimento do milagre. Esta postura assumida pelo Pe. Cícero será fundamental na aceitação do milagre, bem como no mito que se tornará para o povo do Nordeste. 1.3 O MILAGRE DA HÓSTIA Em uma manhã de sexta-feira, 1 de março de 1889, após uma vigília de oração, Pe. Cícero decide distribuir a comunhão para as beatas(uma sociedade de piedosas mulheres, fundada pelo Pe. Ibiapina, que se dispuseram a praticar conselhos evángélicos de castidade, pobreza e obediência. As “Beatas” do Pe. Cícero continuavam a tradição de Ibiapina), a fim de despedi-las em seguida. No entanto, o jovem sacerdote foi surpreendido pela Beata Maria de Araújo, que apresentava sangramento na boca, segundo ela, no qual havia se convertido à hóstia consagrada. Ela teve cuidado de preservar o sangue, enxugando-o com uma toalha. Logo após os cuidados primeiros, Pe. Cícero, por precaução, decidiu manter silêncio em relação ao caso. Imaginemos a recepção do povo do lugarejo e das diferentes localidades do Nordeste, recebendo a noticia do milagre. O fato, que por si só já se apresentava sobrenatural, foi ganhando acréscimos na medida em que foi sendo narrado. Para ilustrar transcreveremos a versão do milagre narrada pelo Pe. Cícero, e uma outra narrada por uma devota, que não esteve presente no momento. Comecemos pela narração do sacerdote. Quando dei a Beata Maria de Araújo a sagrada forma, logo que a depositei na boca, imediatamente transformou-se em sangue, que uma parte engoliu, servindo-lhe de comunhão, outra correu pela toalha, caindo no chão; eu não esperava e, vexado para continuar com as confissões interrompidas, que eram ainda muitas, não prestei atenção e por isso não apreendi o fato na ocasião em que se deu; porém depois que depositei a âmbula no sacrário, e vou descendo, ela vem entender-se comigo, cheia de aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada, para que não 6 vissem e levantava a mão esquerda, aonde nas costas havia caído um pouco e corria um fio pelo braço, e ela com temor de tocar com a outra mão naquele sangue, como certa que era a mesma hóstia, conservava um certo equilíbrio para não gotejar sangue no chão.(PERINI, 2007, p. 15) Passemos ao relato da devota do Pe. Cícero A Santa Beata Maria de Araújo se santificou nas mãos de meu padrinho Cícero. Todos os dias a Beata Maria de Araújo comungava com meu Padrinho Cícero. Certo dia ela aproximou-se da mesa da comunhão, e ao comungar a hóstia tornou-se sangue em sua boca. Quando meu Padrinho Cícero viu o sangue ficou agoniado, e todos os presentes ficaram admirados. Ele pegou as toalhas e com elas ia enxugando o sangue. Dizem que aquele sangue cheirava a Jasmim. (DIAS, DVD) Percebemos a distância objetiva dos relatos, embora tratem do mesmo evento. O relato do padre Cícero é bastante preciso, rico de detalhes. No entanto ele decidiu manter-se em silêncio. O que nos faz pensar que o milagre espalhou-se com muitos aumentos. Os acréscimos sofridos na segunda descrição certamente foram fundamentais para a estupefação das pessoas. As condições sociais em que se encontrava a região fizeram interpretar o milagre como resposta de Deus as constantes súplicas de misericórdia que lhes eram feitas. Com a ocorrência do milagre renascia em muitos a esperança de que Deus mandara um sinal de sua glória em meio a um sofrimento “interminável”, causado pela seca. 1.4 REPERCUSSÃO DO MILAGRE No dia 7 de Julho de 1989, festa de Corpus Christi, Monsenhor Monteiro, reitor do seminário do Crato, faz a primeira romaria a Juazeiro, com cerca de 3 mil pessoas. Na sua homilia enfatizou a veracidade do milagre, ou seja, para ele o sangue presente naquele pano era realmente o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta foi a primeira, de tantas romarias, que ainda hoje se dirigem aquela cidade. Como dissemos Pe. Cícero não comunicou a Dom Joaquim, então bispo de Fortaleza, qualquer ocorrência de milagre em sua capela. O mesmo teve conhecimento através da repercussão, para ser mais preciso, em matéria publicada no Jornal da Capital. O bispo pediu explicações do Pe. Cícero, o qual afirmou crer no milagre, baseado também em visões, nas quais o Cristo lhe explicava o milagre e a sua intenção: dar uma nova chance para a remissão dos pecados. 7 Para a averiguação foi instaurada uma comissão, composta por dois padres de distinta reputação intelectual e moral, Pe. Antero e Pe. Clycério. Ambos ratificaram, em relatório feito, o milagre, na medida em que não apresentavam explicações naturais para o ocorrido. Tal constatação frustrou as expectativas de Dom Joaquim, pois este temia a idéia “contra doutrinária” de uma “segunda redenção”, do sangue novamente derramado pela remissão dos pecados. Segundo Della Cava(1985), algumas leituras podiam ser feitas sobre a recepção do milagre a partir do contexto histórico-filosófico, por parte da primeira comissão de investigação. A primeira referia-se a instauração da República, que tomou para si assuntos até então específicos ao âmbito eclesial, como o matrimônio. Unia-se a isto a falência do Partido Católico, que tentou reunir os fiéis numa força política capaz de defender os desejos da Igreja. Neste caso, para a comissão de inquérito, Deus estaria reagindo e respondendo a estes tempos conturbados, no qual a sua Igreja perdia espaço. O segundo é o florescimento das doutrinas: o positivismo e o materialismo. Com o positivismo exaltava-se o conhecimento comprovado a partir da experiência, em detrimento de especulações metafísicas ou teológicas. O materialismo identifica na matéria, a realidade primordial do mundo, em detrimento da dimensão espiritual. Ambas as correntes representavam uma ameaça para Igreja. O milagre seria, neste caso, uma resposta de Deus contrária a pensamentos modernos e anti-clericais. Eis um trecho da carta que Pe. Clycerio enviou a Roma, defendendo a veracidade do milagre. Ah! Se V. Excia. Tivesse conhecimento do estado de nosso infeliz Brasil em quanto a religião; como trabalham os sequazes de Satanás para arrancar dos corações daquele abandonado povo toda idéia de religião; como fazem progresso agora o positivismo e o materialismo procurando destruir os dogmas, mistérios e tudo o que há de mais santo em nossa religião, exclamaria como eu e muitos outros maravilhados pelas vitórias que vai tendo nossa religião nesses lugares sobre inimigos tão perigosos quanto audases, originadas por este milagre da transformação das hóstias consagradas em carne e sangue no povoado de Joaseiro: Ó providência admirável do nosso bom Deus... para nos salvar em tempos tão calamitosos. (CAVVA, 1985, p. 68) Um outro problema estava na relação entre o clero brasileiro e os missionários europeus, que podemos chamar de dificuldade de inculturação. Para os padres brasileiros, a não aceitação do milagre era fruto da injúria dos padres 8 lazaristas. Segundo Pe. Chevallier, por não admitirem a possibilidade de um milagre no Brasil similar aos já acontecidos na Europa. 2. JUAZEIRO: "LUGAR SANTO" O Juazeiro é tido por muitos como a “Nova Jerusalém”. Esta cidade além de um espaço físico assume um “estado de espírito” aos que crêem na sua sacralidade. Para os romeiros Juazeiro é o “centro” do mundo, para onde convergem as demais localidades. O “centro” contém valores e uma presença transcendental.. O acontecimento de um milagre, que se cria verossímel, distinguia aquele lugar, até então “esquecido” e dava-lhe novo significado. Importa também ressaltar que, quando um espaço é tido como sagrado, via de regra, constitui ponto de convergência e manifestação de forças sobrenaturais que repercutem na vida dos seres humanos, na vida na natureza, das relações que entre eles se estabelecem. [...] Os espaços sagrados são pontos de referências capazes de transfigurar o que antes era indeterminado, amorfo, caótico em um cosmo ordenado e significativo. (VILHENA, 2005, p. 79-80) Ir a este lugar convergente é sair de si, do próprio espaço, em busca de algo mais, a fim de encontrar a si mesmo. O lugar da memória expressa uma condição comum, aponta a um pertencimento coletivo, a uma identidade: o apadrinhamento do Pe. Cícero. Neste espaço cada um podia transcender a própria individualidade, para assumir a condição de pertencimento de um grupo. 2.1 Juazeiro e o Milagre A aceitação do milagre em Juazeiro foi o passo fundamental para eleger este lugar como sagrado. Embora futuramente fosse assumida principalmente pelas classes mais pobres, no principio havia um consenso em relação ao dado sobrenatural do fato ocorrido. Como nos atesta Della Cava. Ninguém em Joaseiro duvidava da ocorrência de um milagre, cuja finalidade tinha sido, pretensamente, revelada a Maria de Araújo, em agosto de 1889: Deus escolhera Joaseiro para ser o centro de onde se converteria os pecadores e se salvaria a humanidade. A prova da missão divina do arraial estava nas levas infindáveis de romeiros que chegavam a Joaseiro. (CAVVA, 1985, p. 58) 9 A primeira intenção das romarias era a visitação da “urna sagrada”, portadora dos panos manchados de sangue. Daí provinha as duas classes sociais: a elitizada e a popular. Acontece que Dom Joaquim, em 1894, proíbe a veneração da urna, ordenando ao Pe. Cícero a entrega ao Mons. Alexandre, no Crato. O grupo social mais elevado restringia a devoção aos panos manchados de sangue, enquanto os mais pobres iam além, já acreditavam ser Juazeiro um lugar santo. Portanto, enquanto a romaria findou para as os membros mais elitizados, os pobres continuavam suas peregrinações ao Juazeiro Santo. Neste momento a ausência dos panos contribui para um atenção maior a pessoa do Padre Cícero. 2.2 O Horto Sagrado O Horto consiste em uma colina nas imediações de Juazeiro, originalmente chamada “Serra do Catolé”, a qual foi adquirida por Padre Cícero. Podemos lembrar a importância bíblica do monte. Encontramos diversas vezes nas Sagradas Escrituras a montanha, como um lugar especial de manifestação da glória de Deus ao seu povo. Neste espaço acontecem grandes etapas da história do Povo de Deus, como o encontro com Deus na montanha do Sinai (Ex 19,3). Como meio de por fim a seca castigante de 1988/1989, Pe. Cícero reúne-se com mais dois Padres e fazem uma promessa ao Sagrado Coração de Jesus, implorando chuvas. Em agradecimento, seria construída uma Igreja sobre o Horto. As chuvas vieram e a Igreja começou a ser construída. No entanto foi embargada por Dom Joaquim, e nunca concluída. Para Della Cava, o Horto contribui significativamente na denominação de Juazeiro como cidade Santa. Durante a construção da “catedral”, o povo transformou Joaseiro em Terra Santa. A serra do Catolé foi rebatizada como Serra do Horto e era identificada com o Jardim das Oliveiras onde Cícero, assim como tinha sido com Cristo, suportava o seu martírio. Paralelamente o caminho íngrene talhado de pedra, ligando a aldeia ao Horto, tornou-se conhecido como caminho do Calvário, ao longo do qual capelas em miniaturas sob a supervisão de Elias Gilli, um evadido italiano que virou beato, abrigavam as estações da Via Crucis.(CAVVA, 1985, p. 138) Sobre o Horto Pe. Cícero construiu uma casa que era usada para o seu descanso. Ai também os romeiros iam ao seu encontro. O fato é que se criou uma relação entre o Horto e a “Terra Santa”, para ser mais preciso, o Horto passava a “ser” a Terra Santa do romeiro. Para Antonio Braga, aquele monte permite o romeiro fazer a memória bíblica para sentir-se inserido nela. 10 É um lugar de memória sagrada, de um lado, que remete às suas próprias origens, à sua própria história e aquilo que o constitui enquanto grupo religioso. [...] De outro lado, é um lugar de experiência sagrada que ultrapassa as especificidades do grupo e o insere na grande na grande tradição a que está vinculado: a tradição religiosa cristã, de modo mais específico, a tradição católica. (BRAGA, 2008, p. 299) O que podemos perceber de interessante é que neste espaço estão relacionados os momentos mais sofridos da vida de Jesus: “via crucis”, “jardim das oliveiras”, “santo sepulcro”. Tal leitura torna-se compreensível ao lembrar-mos as condições sociais deveras precárias em que se encontravam os que acorriam ao Horto. A leitura destes fatos aproximava a própria vida sofrida dos peregrinos a história bíblica. 2.3 Juazeiro: "refúgio dos náufragos da vida" A atração de Juazeiro não se limitava à questão religiosa, mas ia além. Diante de tantos problemas sociais que circundavam a região, aquela terra seria a única esperança, e nisto o Pe. Cícero teve um papel impar. Enquanto em outras cidades estas pessoas pobres encontravam desprezo, no Juazeiro sentiam-se acolhidas pelo Pe. Cícero, que aos pouco foi sendo reconhecido como “padrinho”, ou, “meu padim”. A peregrinação ao Juazeiro além de motivações espirituais, tinha, sem sombra de dúvida, interesses econômicos. Para muitos romeiros, enquanto terra santa, o Juazeiro traria também as soluções dos problemas financeiros. Esta idéia era principalmente motivada pelo próprio Padre Cícero, como nos lembra a antropóloga Ir. Annetti. Os romeiros nos lembram frequentemente as palavras atribuídas ao sacerdote: “Vocês podem percorrer o mundo inteiro, como uma mãe de família com o seu filho, sem encontrar uma colher de farinha para alimentalo: venham ao Juazeiro e aqui encontrarão. Vocês podem percorrer o mundo inteiro, as águas do mundo tendo secado, procurando e não encontrando um copo de água para beber: venham ao Juazeiro e aqui encontrarão.”(DUMOULLIN, 1990, p. 46) Estas palavras que nos podem soar como “mensagem hiperbólica”, apresentam a cidade como a “esperança que não decepciona”. Isto é fundamental para se conceber a cidade como refúgio. Além de, por si só, serem esperança para os que não encontram mais meios de sobrevivência, nos “secos” povoados nordestinos, estas palavras são atribuídas ao herói do povo; para os “náufragos”, indubitavelmente, dignas de confiança. 11 Quanto as razões pelas quais os romeiros se dirigiam a Joaseiro, entre 1894 e 1934, nada mais simplista do que procurar exclusivamente na dimensão motivação religiosa. Muitos dos romeiros chamados pelas elites de fanáticos eram analfabetos, pobres e politicamente inertes. Sob a capa do impulso religioso, não ortodoxo ou heterodoxo, escondia-se, muitas vezes, o desejo infrutífero de controlar o meio adverso e sobrepujar as injustiças sociais que faziam de suas vidas uma desgraça. (CAVVA, 1985, p. 139) Desde já vemos a condição específica dos romeiros. Em um tempo onde a escassez de recursos naturais era constante, para o povo pobre, a oferta de uma oportunidade de não padecer, era quase irrecusável. O desejo de fazer submergir a própria condição fazia unir a devoção popular à solução de seus problemas sociais. 2.4 Pe. Cícero e os Romeiros A relação do Padre Cícero com os romeiros era de bastante proximidade, uma destas expressões está nas cartas que ele trocava com tais destinatários. Elas sempre diziam respeito a conselhos ou ajudas materiais. O mais interessante é que a forma de tratamento era sempre a de “padrinho”, e não entrava no assunto sem antes pedir uma benção. Ele é tido não apenas como referência religiosa, mas como conselheiro capaz de orientar negócios e devolver a saúde. Como segue no trecho de uma das cartas destinadas ao sacerdote. Meu Padrinho Cícero adeus, Primeiro de tudo rogo-lhe que lance sobre mim a sua benção. Primeiro que tudo eu estimarei que estas mal redigidas linhas tenham a felicidade de o encontrá-lo. Desfrutando de uma perfeita saúde. Meu Padrinho venho por meio deste pedir-lhe que por todos os merecimentos que vós tendes para Deus, mande-me, por amor do mesmo, um remédio para mim para me curar de um terrível mal que a dois anos e oito meses sofro dele na cabeça e só vós abaixo dos poderes de deus podem dar-me um jeito. (BRAGA, 2008, p. 211) Nota-se que a figura de Pe. Cícero é emblemática para os seus romeiros. Este rito comum de pedir a “benção” ao “Padim Ciço”, pode simbolizar a mediação que, para os romeiros, ele fazia com Deus. Os conselhos pedidos extrapolam os assuntos espirituais. As recomendações feitas pelo Pe. Cícero eram de remédios caseiros e modos básicos de higiene. Quando as orações ofereciam resultados, o fato era comemorado como milagre. Isto contribuiu para reforçar ainda mais a fama do sacerdote. 12 A chegada de novas pessoas, atraídas pela figura de Pe. Cícero, trouxe também vantagens econômicas para a cidade. A região do Cariri possuía terreno fértil e fontes perenes. Com a chegada de mão-de-obra, que era escassa, por motivos já apresentados, o sacerdote pode orientar os trabalhos de plantio, transformando o município no “celeiro do Ceará”. Para os demais foram desenvolvidas indústrias artesanais dentro da cidade. A figura do Pe. Cícero sempre presente em Juazeiro foi de fundamental importância para a continuação das romarias. O sacerdote e a cidade se confundem; visitar o Juazeiro é visitar o Pe. Cícero. Com isso os romeiros mantêm a tradição herdada pelos antepassados, que iam ao Juazeiro encontrar o Pe. Cícero. 3. Sentido da Romaria O fenômeno das peregrinações é presente já entre os nômades. A Igreja católica tem diversos locais que atraem peregrinações. A romaria marca para o romeiro o “divisor de águas no seu ano”. Para ela ele prepara-se, poupando recursos. A romaria é um momento educativo, onde os mais veteranos transmitem aos novatos, a partir da vivência dos rituais, o sentido a ser dado aos diferentes espaços. ... a ação ritual implica corpos em movimento, corpos que ocupam lugar e movem-se em espaços definidos. Para a compreensão dos rituais, mesmo daqueles nos quais, como nas práticas contemplativas e meditativas, o movimento é quase imperceptível, é imprescindível considerar que acontecem pela ação de corpos e mentes em uma espacialidade dada, circunscrita, articulada e ordenada. O espaço é a condição de possibilidade para se realizar o rito. (VILHENA, 2005, p. 77-78) Há diversos ritos que envolvem a romaria, para nós importa percebe-los dentro do espaço sagrado: Juazeiro do Norte. Nesta perspectiva compreendemos a importância de se eleger um espaço, para a ocorrência do rito. 3.1 Ritualidade própria do romeiro No principio das romarias em Juazeiro do Norte eram, na maior parte, organizadas padres que depositavam fé no milagre. Também outros padres dirigiamse a Juazeiro, a fim de atender a demanda de peregrinos. Em 1894, com a proibição de D. Joaquim de culto aos panos e de que qualquer padre realizasse algum sacramento em Juazeiro, a não ser nas casas, mas nunca na Igreja, a configuração 13 da romaria mudou. Os rituais próprios já existiam, mas ganharam mais força depois deste “afastamento” dos padres e da suspensão de ordem do Pe. Cícero. Entraram em cena os beatos e beatas como mediadores espirituais do povo Sem o auxílio dos sacramentos, os romeiros buscavam novos rituais, que substituíssem as práticas de fé anteriores. Um exemplo destes é a confissão. O Juazeiro era visto com a terra da redenção, onde se deixavam os pecados para receber a graça. Na impossibilidade de receber a absolvição, o peregrino fazia penitências físicas, para purificar-se dos seus pecados. Com a Igreja Matriz fechada, também por ordem do bispo, a rua do Pe. Cícero passa ser o “templo”. Ali os romeiros aglomeram-se a sua espera. No principio ele os atendia, um a um, ao passo do aumento das romarias, este contato particular ficou impossibilitado. O ritual comum era a récita do rosário, um sermão do Padre, a sua benção, algumas oferendas lhes eram feitas e, por fim, distribuía alguns conselhos particulares. 3.4 Sobre a romaria de Juazeiro Existem posições variadas que podem nos ajudar a entender o fenômeno de Juazeiro. Segundo Pe. Hemrique Groenen, as principais motivações que levam os devotos ao Juazeiro são duas: gratidão e necessidade. O agradecimento é geralmente por uma situação de alivio, após algum sufoco, não precisa ser necessariamente por uma graça sobrenatural. (GROENEN, 1984). Assim como no passado, o Juazeiro continua sendo lugar de esperança, onde as preces podem ser ouvidas mais facilmente. Isto vem transmitido desde o inicio, quando os “náufragos da vida” iam esperançosos, em busca de melhoras para vida. Apoiados no pensamento de Hermínio, apontamos cinco motivos para romaria: uma renovação espiritual, deixar os pecados para abraçar a graça; o sentido da vida através da relação com o sobrenatural; uma ocasião de festa, voltar ao Juazeiro e reencontrar tantos romeiros; manter a tradição dos antepassados, que desde o inicio dos séculos iam a Juazeiro; uma ocasião de troca de favores materiais e espirituais. (OLIVEIRA, 1985) Quanto a figura de Pe. Cícero, que ao longo dos tempos foi sendo idealizada, e causa atração, mesmo após a sua morte. Podemos afirmar que é comum em 14 grupos sociais tem o poder de distinguir um homem como ser sagrado, de mediação com o divino. De resto, tanto no presente como na história, vemos a sociedade incessantemente criar de todas as maneiras coisas sagradas. Se ela vier a se apaixonar por um homem, se acreditara descobrir nele as principais aspirações que a agitam, assim como os meios de satisfazê-las, esse homem será posto numa categoria a parte e como que divinizado. (DURKHEIM, p. 218) Convém-nos fazer um olhar a partir do modelo de análise de Tuner em relação a peregrinação. Não porque o mesmo esgote o assunto, mas pela relevância. O deslocamento estaria ligado ao abandono das estruturas social vivida pelo romeiro, para encontrar um igualitarismo. Ao deixar a estrutura corrente, o indivíduo abraça o essencial, o que o mesmo pensador chama de “comunitas”. (STEIL, 2000, p. 75) Os ritos que exigem o toque, a passagem, por entre objetos materiais, expressam a sacralidade depositada nestes. Ao visitar o túmulo do pe. Cícero, a cama onde morreu o Horto onde viveu parte da vida, ele faz memória de tradições míticas e históricas, que são para eles atualizadas na execução dos rituais que lhes são próximos. Mesmo cientes da ausência do Pe. Cícero, os romeiros ofertam-lhe bens, que são depositados junto a estes espaços. 4. CONCLUSÃO O nosso trabalho pretendeu mostrar que a romaria é, entre outros, fruto de complexos espirituais, sociais, econômicos. Além das questões religiosas, as condições históricas do povo nordestino foram fundamentais para a aceitação do milagre. O fato de reunir-se com outras pessoas, numa assembléia, faz o homem emergir forças de si, que sozinho jamais conseguiria. Na questão do juízo de Juazeiro como espaço sagrado, podemos entender que é fruto de uma relação entre sujeito e objeto. É o sujeito que classifica o espaço. Portanto, é a experiência subjetiva que dá sentido aos espaços em Juazeiro. Tal município continua ser lugar atrativo por atualizar a memória dos que já se foram, bem como por representar para os devotos um lugar mais próximo do “céu”. Estar em romaria é suspender o cotidiano para entrar em outra dimensão, neste caso transcendental. 15 A esperança é para o ser humano uma experiência fundamental para a continuação da vida. Quando se perdem os “horizontes”, perdem-se também as razões fundamentais de viver. Para o romeiro Juazeiro do Norte é o lugar da esperança, lá é possível transformar as tristezas em alegrias. Por isso, o romeiro interrompe os seus “afazeres” para reabastecer-se das graças contidas ali. Os ritos criados pelos romeiros manifestam a liberdade de se manter relação com o sagrado. O respeito aos ritos representam o poder de mediação com o divino que estes possuem, bem como o respeito pelas pessoas queridas que os transmitiram. A figura do Pe. Cícero atravessou as gerações do seu tempo através do significado social e religioso adquirido no imaginário popular, passada para gerações sucessivas. O nosso olhar externo não consegue captar com profundidade o que de fato a experiência ritual causa no romeiro. Não há explicação que esgote o sentido da romaria, pois nela é forte a dimensão subjetiva. Podemos afirmar, num olhar objetivo, que este sair da própria terra para ir a Juazeiro serve para reforçar a identidade da pessoa como pertencente a um grupo, fazendo sentirem-se verdadeiros devotos e afilhados do Pe. Cicero. 16 THE PHENOMENON OF PILGRIMAGE OF NORTH JUAZEIRO: IMPLICATIONS OF SOCIAL AND RELIGIOUS ABSTRACT The article presents an analysis, based on views of some studious, the phenomenon of pilgrimage of Juazeiro do Norte, particularly in its social and religious. This city, one of the biggest points of religious tourism in Brazil, receives an average of two million pilgrims a year. Thus, this work, to better understand the origin and permanence of the pilgrimage, will resort the historical and social-religious pilgrimage that was born in Juazeiro. At first we will emphasize the main reasons which began the pilgrimages, the occurrence of a supernatural phenomenon, "the miracle of the host”. In the second part will discuss the motivations that led the pilgrims to distinguish Juazeiro as a sacred place. The Father Cicero, review his position and influence in the processions and the development of the city. Finally, we present the sense that it gives this event, as memory of the past and self-affirmation of this. Key-words: Pilgrimage - Miracle - Father Cicero-Juazeiro 17 REFERÊNCIAS BRAGA, Antonio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um padre, antropologia de um santo. Bauru: Edusc, 2008. CAVVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. Trad. De Maria Yeda Linhares. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. DUMOULLIN, Annette. A Romaria em Juazeiro do Norte. 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