PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO “EDUCAÇÃO ESPECIAL FRENTE A INCLUSÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM ESTUDO DE CASO” TELMA CRISTINA FERNANDES CRESPO SÃO PAULO 2005 TELMA CRISTINA FERNANDES CRESPO “EDUCAÇÃO ESPECIAL FRENTE A INCLUSÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM ESTUDO DE CASO” Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Marli Eliza Dalmazo Afonso de André. SÃO PAULO MARÇO DE 2005 “EDUCAÇÃO ESPECIAL FRENTE À INCLUSÃO DE JOVENS E ADULTOS: UM ESTUDO DE CASO” TELMA CRISTINA FERNANDES CRESPO DISSERTAÇÃO APROVADA EM __/ __/ 2005. ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ Dedico esse trabalho àqueles que dedicam sua vida a incluir pessoas. Agradecimentos Agradeço a professora Dra. Marli Eliza Dalmazo Afonso de André, que me orientou com muita dedicação e cuidado. As professoras Maria Eloísa Famá D´Antino e Mitsuko Aparecida Makino Antunes pela inspiração e pelo acolhimento desse trabalho. As professoras Abigail Alvarenga Mahoney e Laurinda Ramalho de Almeida que me incentivaram a abraçar esse projeto com a “companhia” de Carl Rogers. Agradeço aos meus colegas de trabalho, especialmente Vera e Josiane e professora Graça Freire. Agradeço a professora Vilma Dardengo e José Bessa, pelo apoio e incentivo. Aos participantes da pesquisa, pelo acolhimento e pela oportunidade de aprendizado que me proporcionaram. Agradeço muito a todos os colegas da Aracê, que me apoiaram nas horas difíceis, nos momentos de crise... A minha família, meus pais Luiz e Luiza, minha irmã Tânia e Buguno, pela força e pelo apoio. E quero agradecer o incentivo diário, a companhia constante e o amor do Alexandre Balthazar. “Os fatos são sempre amigos.” Carl Ransom Rogers Resumo Esta dissertação apresenta um estudo de caso de uma escola de educação especial de jovens e adultos, com objetivo de identificar como se dão as relações interpessoais entre professores, alunos, equipe administrativa e equipe multidisciplinar no cotidiano da escola; detectar se existem e quais são os elementos facilitadores das inter-relações no processo de inclusão e ensino-aprendizagem de alunos jovens e adultos com deficiências e identificar quais são as concepções que a equipe docente e multidisciplinar possui sobre o aluno, sobre a deficiência e sobre o trabalho pedagógico nessa instituição. A hipótese é de que as relações interpessoais fazem parte do sustentáculo da superação das desigualdades de oportunidade no meio escolar que se pretende “inclusivo”, e que, especificamente na escola de educação especial, possamos encontrar pistas no cotidiano relacional entre seus participantes, buscando assim, uma contribuição às discussões sobre o processo de inclusão de pessoas com deficiência no sistema regular de ensino. Para isso foi realizada uma revisão bibliográfica sobre a problemática e sobre o histórico da deficiência, da educação especial e da inclusão de alunos com deficiência no sistema regular de ensino. Carl R. Rogers e a Abordagem Centrada na Pessoa contribuem para, por meio das condições facilitadoras das relações interpessoais, elencarmos algumas das categorias de análise da presente pesquisa: Autenticidade, Aceitação Positiva Incondicional e Compreensão Empática. Durante coleta de dados tornou-se relevante o suporte teórico sobre Clima Organizacional Escolar, de Luc Brunet, que complementa a visão das categorias anteriores, incluindo outros atributos organizacionais, como por exemplo, o papel da direção da escola na construção de um clima organizacional positivo ou negativo . A pesquisa foi realizada através de observações no ambiente escolar, entrevista com quatro professoras e com a diretora da escola. De acordo com os dados coletados, o clima organizacional escolar é fator importante na construção e implementação de novas propostas pedagógicas, e o papel da direção escolar configura-se como um facilitador das relações entre os atores educacionais. Pode-se concluir que, para que ocorra a inclusão de alunos com deficiência no sistema de ensino regular, esses fatores devem ser observados, além da formação em serviço do corpo docente e valorização da equipe escolar. Palavras-chave: educação especial, jovens e adultos, inclusão. Abstract This essay presents a case study from a special education school for young and elder, with the objective of identifying inter-personal relationship between teachers, students, administrative crew and a multidisciplinary team during school daily routine; detecting and pointing out, if there are, inter-relational leveraging elements in the inclusion process and teaching-learning process from young and elder students with handicap, and finally grasp the mind-frame the docent and multidisciplinary team have of the students and their handicaps as well as the pedagogical work in the institution. The hypothesis is that interpersonal relationship take significant part in helping overcome the differences of opportunity in the school environment that one intends to be “inclusive”, and that, specifically in the school of special education, we can find traces in the daily relations among its participants, so that, it could be a contribution to the discussions about the inclusion process of handicapped in the regular school system. A bibliographic review has been done on the presented problem, on handicap background, on special education as well as on the inclusion of handicapped students on the regular school system. Carl R. Rogers and the Person-Centered Approach has contributed by means of the facilitating conditions of the interpersonal relationships, to outline some of the categories of analysis of the current research: Authenticity, Positive Unconditional Acceptance and Empathic Comprehension. During data collection, it has become relevant the theoretical basis from the School Organizational Environment, from Luc Brunet, that complements the approach from the categories above, including other organizational attributes such as the role of the school principal in the development of a positive or negative organizational environment. The research has been conducted through observation of the school environment, interviews with four teachers and the school principal. According to the data collected, the school environment is an important factor in the development and implementation of new pedagogical approaches and the school principal role unfolds as the facilitator of the relationship between educational actors. It may be concluded that for the inclusion of handicapped students in the regular school system to actually happen those factors should be taken into account, as well as the technical background of the docent team and valuing the school team. Keywords: special education, young and elder, inclusion. SUMÁRIO Introdução ...................................................................................................................1 1. EDUCAÇÃO ESPECIAL E INCLUSÃO..............................................................15 1.1 Conceituações ............................................................................................15 1.2 Constituição Histórica .................................................................................18 1.3 Panorama Atual ..........................................................................................25 2. ESCOLA E DIFERENÇAS .................................................................................33 2.1 As Diferenças na Sala de Aula ...................................................................33 2.2 A Contribuição da Psicologia Humanista de Carl Rogers ...........................38 2.2.1 Autenticidade ou Congruência .............................................................40 2.2.2 Consideração Positiva Incondicional ...................................................42 2.2.3 Compreensão Empática ......................................................................43 3. METODOLOGIA ................................................................................................46 3.1 Estudo de Caso ..........................................................................................46 3.2 Caracterização da Escola ...........................................................................46 3.3 Sujeitos da Pesquisa...................................................................................50 3.4 Procedimentos de Coleta de Dados............................................................51 4. APRESENTAÇÃO DOS DADOS .......................................................................53 4.1 Relações Interpessoais...............................................................................53 4.1.1 Primeiras impressões ..........................................................................53 4.1.2 Uma nova direção................................................................................58 4.1.3 As relações interpessoais nas cenas do cotidiano...............................62 4.2 Elementos Facilitadores das Relações Interpessoais .................................64 4.2.1 O clima organizacional.........................................................................64 4.2.2 O papel da direção...............................................................................67 4.2.3 A construção de um novo projeto pedagógico .....................................70 4.2.4 A escola em crise.................................................................................72 4.3 Concepções das Educadoras sobre Alunos e Trabalho Pedagógico .........75 4.3.1 O aluno e a deficiência ........................................................................75 4.3.2 O trabalho pedagógico.........................................................................77 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................80 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................82 7. ANEXOS ............................................................................................................86 INTRODUÇÃO Ao revisitar o caminho percorrido, percebo-me investida desde sempre de expectativas, sonhos, tentativas de auto-superação, busca por respostas a tantas indagações. Nesse caminho, fui e sou aluna. E justamente numa sala de aula, com uma exposição realizada por uma professora, tomei a decisão de investigar o psiquismo humano. Durante a graduação em Psicologia, no último ano do curso, busquei o estágio optativo em Psicologia Social, que consistia no atendimento materno-infantil num posto de saúde da periferia de Santo André, em São Paulo. Essa experiência foi marcante e influenciou-me a entrar na educação, pois enfrentei situações de encontros e desencontros, do planejado ao imprevisto, nas palavras de Perrenoud, tive que, por muitas vezes “agir na urgência, decidir na incerteza”1 dentro do processo de grupo. O objetivo daquele trabalho era proporcionar o esclarecimento, a cooperação, a profilaxia. Eram formados grupos operativos com mães que vinham ao posto de saúde em busca de atendimento para si mesmas ou para seus filhos. Nesses grupos trabalhávamos temas de interesse dessas mães, proporcionando a troca de experiências e a reflexão sobre os valores subjacentes às ações cotidianas. Nesse estágio comecei a perceber que a questão da aprendizagem tem ligação direta com nossos afetos, com a autenticidade, com a compreensão empática, com a consideração positiva incondicional, condições expostas por Carl Rogers em sua teoria das inter-relações. Frente a isso, observei na prática que para 1 Perrenoud, P. Agir na urgência, decidir na incerteza. Porto Alegre: Artmed, 2001. 10 que fosse possível a construção de um processo de troca de experiências significativas, foi preciso a escuta atenta, o colocar-me na posição do outro, a minha própria autenticidade frente aos temas expostos e frente às situações inesperadas. Foi uma experiência muito significativa. Em 2001 iniciei o trabalho no ensino superior, com disciplinas ligadas à Psicologia, assumi a coordenação de um serviço de atendimento ao aluno e também atuei como psicóloga, da educação infantil ao ensino médio. Na escola encontrei expectativas que reforçam a “clinicalização” ou “psicologização” da educação, novamente a psicologia com efeito instrumentador técnico, “curador”, descolada da realidade social mais ampla. No decorrer desses quatro anos, a prática como psicóloga e a prática de ensino em sala de aula têm promovido um espaço de reflexão e questionamento sobre a contribuição da Psicologia para a Educação. Tem sido também um espaço gerador de dúvidas, de angústias, de busca de novas maneiras de olhar o fenômeno educacional mais amplo. Durante a atuação como psicóloga, entre tantas questões surgidas na equipe educacional, algumas questões começaram a “ganhar corpo”: “Como fazer a inclusão de jovens e adultos com deficiência na escola regular?”, “Onde buscar a formação dos professores?” No início da busca por respostas a essas indagações, procurei saber o percentual de pessoas com deficiências no Brasil. De acordo com dados do IBGE, em 2000 havia no Brasil cerca de 24,5 milhões de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência física, sensorial, múltipla ou mental, o que representa 14,5% da população. Desse percentual, 21,6% nunca foram à escola, e do total, 8,3% são portadores de deficiência mental. Porém, torna-se importante ressaltar que neste censo do IBGE, as perguntas para avaliação sobre os diversos tipos de deficiência apresentaram alternativas de respostas desde “nenhuma dificuldade”, “pouca dificuldade permanente”, “grande 11 dificuldade permanente” até “incapaz”, no que se refere a deficiências sensoriais e motoras. Quanto à deficiência mental, a pergunta apontava para um tipo de deficiência permanente limitante das atividades habituais, tendo como alternativas de resposta somente o sim e o não. Levando-se em conta os diversos tipos de deficiência, seus diversos graus e manifestações, pode-se questionar até que ponto os dados obtidos são fidedignos quanto a real situação da deficiência no Brasil. Por outro lado, se levarmos em consideração, de acordo com os mesmos dados que, 21,6% da população que apresenta algum tipo de deficiência nunca foi à escola, é relevante questionar: quais as dificuldades encontradas para viabilizar a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9.394/96), que defende que “o ensino seja ministrado a todas as crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais preferencialmente no sistema comum de educação”, especificamente para as pessoas com deficiência? Muito já foi discutido e já sabemos que não basta o aluno com deficiência apenas freqüentar uma escola do ensino regular, sem que a mesma passe por alguma transformação. “O ideal de ‘escola para todos’, acordado pelos Estados do mundo inteiro na Conferência de Jomtien (Tailândia, 1990), não pode ser entendido como redutor de ‘todos na escola’” (RODRIGUES in RIBEIRO & BAUMEL, 2003, p. 15). Segundo Rodrigues (idem, 2003, p. 15) “esse importante documento (...) deveria ser objeto de outra leitura (...) no sentido de que cada aluno encontre na escola os recursos necessários e adequados à satisfação de suas necessidades educativas.” A tendência da literatura sobre inclusão atualmente é propor uma revolução no ensino, buscando adaptá-lo às necessidades de todos os alunos, e não adaptar o aluno às necessidades da escola, como pensam alguns especialistas da educação. 12 Se a literatura é clara nas suas proposições, na prática há muitas dúvidas sobre o que fazer, tanto em relação à inclusão nas escolas regulares, quanto no contexto atual das escolas de educação especial. Por um lado, a escola regular aponta o despreparo para receber os alunos com deficiência, despreparo este que vai desde a formação dos profissionais (formação que não contemplou esse aspecto educacional) até a estrutura física que não permite a adequada acessibilidade para portadores de deficiência. Por outro lado, a escola de educação especial, com um modus operandi adquirido já há vários anos, sente-se ameaçada diante da possibilidade de tamanha mudança, temendo até o seu desaparecimento futuro, como se essa construção de conhecimento e de práticas de nada tivessem valido, pois é vista hoje, por muitos profissionais, como “politicamente incorreta”. Não cabe aqui entrarmos na discussão “escola regular x escola especial”, mas apontar para um horizonte de possibilidades: não podemos desperdiçar o conhecimento e a experiência de escolas que se constituíram, por muito tempo, como únicas alternativas de acesso à educação a uma parcela significativa de crianças, de jovens e de adultos. Critica-se muito a segregação subjacente a essas instituições, porém a experiência adquirida não teria a contribuir à discussão da inclusão? O que o professor da escola de educação especial tem a dizer ao professor da escola regular? E o que pode fazer para contribuir com essa realidade? Sabemos que o cotidiano escolar é muito rico em experiências e, por que não dizer, nos traz vislumbres de mudanças que virão. Portanto, cabe a questão: “Em que medida conhecer as práticas cotidianas de uma escola de educação especial pode contribuir para a discussão da inclusão em escolas de ensino regular?”. Penso que a prática da inclusão está intimamente ligada às relações humanas, e pergunto: quais seriam as condições facilitadoras dessas relações? Como se dão as interações dentro da escola de educação especial? 13 Levanto como hipótese que as relações interpessoais constituem um dos sustentáculos da superação do tratamento desigual no meio escolar que se pretende “inclusivo”, e que, especificamente na escola de educação especial, possamos encontrar pistas extraídas do contexto relacional que possam contribuir às discussões sobre o processo de inclusão de pessoas com deficiência no sistema regular de ensino. Frente a esse panorama, apresento os objetivos dessa pesquisa: a) Identificar como se dão as relações interpessoais entre professores, alunos, equipe administrativa e equipe multidisciplinar no cotidiano de uma escola de educação especial de jovens e adultos. b) Detectar se existem e quais são os elementos facilitadores das inter-relações no processo de inclusão e ensino-aprendizagem de alunos jovens e adultos com deficiências. c) Identificar quais são as concepções que a equipe docente e multidisciplinar possui sobre o aluno, sobre a deficiência e sobre o trabalho pedagógico nessa instituição. Com esses questionamentos agregados às leituras de diversas fontes, interessei-me pelo estudo do cotidiano de uma escola de educação especial de jovens e adultos. A escolha por educação especial de jovens e adultos veio da constatação dos poucos estudos na área, e da prioridade que é dada ao público infantil. 14 1. EDUCAÇÃO ESPECIAL E INCLUSÃO O objetivo desse capítulo é inserir o problema proposto na literatura acadêmica atual, através do processo histórico, expondo a visão de diversos autores acerca da educação especial e da inclusão. Inicialmente, cabe descrever alguns conceitos que nortearão este estudo. 1.1 Conceituações Educação Especial, segundo o Art. 3° da Resolução CNE/CEB no. 2, de 11 de setembro de 2001, é: (...) modalidade da educação escolar, entende-se um processo educacional definido por uma proposta pedagógica que assegure recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e modalidades da educação básica. (BRASIL, 2001, p. 06) Analisando o que esta lei propõe, a Educação Especial poderia desempenhar um papel ativo na concretização da inclusão no ensino regular. Um segundo conceito fundamental para a contextualização é o de deficiência, conceito este que através de sua própria evolução contribui para avaliarmos as dificuldades de entender as necessidades da pessoa com deficiência. O conceito de deficiência, segundo a Organização Mundial da Saúde: (...) diz respeito a uma anomalia da estrutura ou da aparência do corpo humano e do funcionamento de um órgão ou sistema, seja qual for a sua causa; em princípio, a deficiência constitui uma perturbação do tipo orgânico” (UNESCO, O Correio da Unesco apud MAZZOTTA, 2003, p. 14) Cabe ressaltar que as deficiências são categorizadas em: deficiência física, sensorial (auditiva, visual), mental e múltipla. Ainda encontramos a conceituação da “Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência”, ocorrida na Guatemala, em 1999: O termo ‘deficiência’ significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Há muitas divergências quanto ao uso de termos dentro das diversas fontes consultadas, de acordo com cada época e de acordo com a evolução das representações que se construíram (e se constroem) sobre a deficiência. Segundo Januzzi, “o estigma social que envolve os indivíduos diferentes impregnará as palavras que o designarem. Será vã a troca que se proceder nesse sentido, enquanto não houver transformações profundas na estrutura social.” (in FREITAS, 1997, p. 186) No contexto deste estudo, concordo com Lígia Assumpção Amaral que, em seu livro “Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules)”, apresenta algumas vantagens da escolha do termo “pessoas com deficiência”. Segundo ela: • • • • • a formal verbal acentua o aspecto dinâmico da situação; desloca o eixo de atributo do indivíduo para sua condição e, simultaneamente, recupera a pessoa como “sujeito da frase”; coloca a deficiência não como sinônimo da pessoa (como ocorre ao tornar substantivo aquilo que é qualificativo); em conseqüência, tem um caráter mais descritivo que valorativo; sublinha a unicidade do indivíduo... (1995, p. 61) Interessante pensarmos como esta autora redimensiona o conceito “deficiente” para “pessoa com deficiência”. Esta forma de concepção tem 16 ressonância com a essência da Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, uma vez que “pessoa” identifica o sujeito e “com deficiência” designa apenas o seu qualificativo. Como o objetivo dessa pesquisa está ligado a alunos com deficiência mental e múltipla, cabe analisarmos o conceito de deficiência mental. A American Association of Mental Retardation apresenta o conceito mais utilizado e aceito atualmente: Deficiência mental corresponde a um funcionamento intelectual significativamente abaixo da média, coexistindo com limitações relativas a duas ou mais das seguintes áreas de habilidade adaptativas: comunicação, autocuidado, habilidades sociais, participação familiar e comunitária, autonomia, saúde e segurança, funcionalidade acadêmica de lazer e de trabalho, manifestando-se antes dos dezoito anos de idade. (apud D´ANTINO in MANTOAN, 1997, p.100) E por último apresento o conceito de inclusão. Segundo Mantoan, a inclusão prevê a inserção escolar de forma radical, completa e sistemática. Todos os alunos, sem exceção, devem freqüentar as salas de aula do ensino regular. A meta é (...) não deixar ninguém de fora do sistema escolar, que terá de se adaptar às particularidades de todos os alunos (...) (idem, 1997, p. 08) Ferreira (2003, p. 128) também conceitua a inclusão como “modalidade de educação para todos e com um ensino especializado no aluno”. As questões que se articulam são: como alcançar essa “meta de não deixar ninguém de fora do sistema escolar”, sem exceção? Como viabilizar a inclusão? O acesso à educação é um direito adquirido, portanto, essa meta precisa ser atingida. Mas de que forma? Penso que na prática fica difícil fazermos afirmações do tipo “sem exceção”, pois cada aluno tem suas necessidades e existem deficiências que exigem um acompanhamento especializado, sim. Negar isso seria, no mínimo, negar as diferenças. Ao negar as diferenças, negamos as possibilidades de avanços educacionais, transformações nas estruturas escolares que permitam a inclusão de 17 maneira efetiva. Será que assim estaremos respeitando as necessidades de todo e qualquer aluno? O que vemos hoje são muitas escolas que ‘incluem’ o aluno dentro de seu espaço físico, sem lhe dar condições concretas de aprendizagem, de desenvolvimento e de relações afetivas positivas. A inclusão de fato só se torna possível quando ocorrem transformações na escola, desde a formação profissional, a estrutura física, a concepção da educação em si, que se torna mais abrangente envolvendo a formação da pessoa, e principalmente os aspectos da relação educador-educando. Nesse aspecto, a educação especial tem a contribuir não só com a sua experiência e formação técnica, mas também com seu cotidiano relacional. É no âmbito pessoal que as relações se estabelecem gerando um clima organizacional propício ou não para a inclusão. Portanto, vemos dois fatores importantes, que serão aprofundados nessa pesquisa: as relações interpessoais e o clima organizacional de uma escola de educação especial. A inclusão das pessoas com deficiência no ensino regular é um processo, um caminho, que exige muitas mudanças na educação. E como todo caminho só é possível de ser percorrido através do “passo-a-passo”, sugiro olharmos para passos que já aconteceram na nossa história para, quem sabe, vislumbrarmos os passos que virão. 1.2 Constituição Histórica Para a compreensão dos conceitos apresentados, faz-se necessário a visão de sua constituição histórica. Apesar desses temas emergirem recentemente na história, alguns fatos e algumas iniciativas nos remetem a alguns séculos atrás. Podemos dizer que até meados do século XVIII, a deficiência era vista pelas lentes do ocultismo, do temor e do misticismo. 18 Em sociedades como a espartana, as crianças nascidas com algum tipo de deficiência eram sacrificadas. Com os povos nômades não era diferente: as crianças eram abandonadas por não terem condições de acompanhar seu grupo. Naquele tempo as pessoas organizavam-se na estrutura social principalmente pela sua capacidade física na produção da sobrevivência grupal. Já na Idade Média, com a influência do catolicismo, a deficiência começou a ser vista de outro modo: O dilema caridade-castigo é estabelecido; as crianças com deficiência, como cristãos, possuem alma, portanto não podem ser sumariamente sacrificadas. Por outro lado, são passíveis de pecado e merecem castigo divino. Livram-se do abandono explícito e ganham cuidado em instituições. (MAGALHÃES, 2002, p. 30) Fica evidenciada a dicotomia bem-mal: ora a pessoa com deficiência era vista com piedade, pois possuidora de alma e, por conseguinte, “filha de Deus”, ora como possuída por demônios, pois “imperfeita” física ou mentalmente. Surgem dessa visão o caráter assistencialista e a institucionalização da deficiência. Amaral afirma que no século XVI Paracelso e Cardano, [...] são os primeiros a trazer a questão da deficiência para o âmbito da Ciência, mais especificamente da Medicina (pois eram médicos e alquimistas), demarcando uma fronteira entre a visão teológica ou moral e a científica. Esses estudiosos, embora mantivessem uma estreita ligação com as teorias que enfatizavam as forças cósmicas, afirmavam a legitimidade de tratamento para as pessoas com deficiência. (1995, p. 49) Em 1770, surge a primeira instituição para educação de “surdos-mudos”, fundada pelo abade Charles M. Eppée, em Paris. Ele inventou o método de sinais para a comunicação. Ainda no século XVIII houve a criação do Instituto Nacional dos Jovens Cegos em Paris, por Valentim Haüy, em 1784. 19 Em princípios do século XIX iniciou-se, na Europa, atendimento aos deficientes mentais. Dois nomes têm destaque nesses primeiros estudos: Jean Marc Itard (1744-1838) e Edward Seguin (1812-1880). Itard mostrou a possibilidade da educação de um menino encontrado na floresta de Aveyron: o “Selvagem de Aveyron”, como ficou conhecido. Itard obteve êxito no controle de suas ações e na leitura de algumas palavras, através do método de “repetir a experiência com sucesso”. Seguin prosseguiu os estudos criando o primeiro internato público da França para o atendimento a crianças deficientes mentais. Foi o primeiro a idealizar um currículo para elas. Ele desenvolveu materiais didáticos, e treinou professores para a reeducação neurofisiológica (motor e sensorial) das crianças. Em 1819, um oficial do exército francês, Charles Barbier, levou ao Instituto Nacional dos Jovens Cegos, em Paris, a sugestão de utilização de um processo de escrita que havia idealizado para a transmissão de mensagens no campo de batalha à noite. Esse código era expresso em seis pontos salientes que representavam trinta e seis sons básicos da língua francesa. Mas foi em 1829 que esse código foi adaptado para as necessidades dos cegos por Louis Braille (1809-1852), jovem estudante daquele Instituto. Até hoje é considerado o método mais eficiente de leitura para os deficientes visuais. Foi nesse Instituto que José Álvares de Azevedo estudou e, posteriormente inspirou a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos no Brasil (atual Instituto Benjamin Constant - IBC), fundado por D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Ao obter sucesso na educação de Adélia Sigaud, filha do Dr. José F. Xavier Sigaud, médico da família imperial, José Álvares de Azevedo despertou o interesse das autoridades da época, culminando na fundação do Instituto através do Decreto Imperial nº 1428, de 12 de setembro de 1854. Nos estudos sobre a deficiência mental, outro nome se destaca: Maria Montessori (1870-1956), médica italiana. Montessori aprimorou os métodos de Itard 20 e Seguin, desenvolvendo posteriormente, um programa de educação de crianças deficientes mentais em Roma. A ênfase do seu programa está na “auto-educação” pelo uso de materiais didáticos adequados às necessidades infantis. Montessori exerce grande influência na educação ainda hoje em diversos países, inclusive no Brasil. Em 1837 foi fundada a primeira escola para cegos, subsidiada pelo Estado norte-americano, a Ohio School for Blind. Esse fato torna-se relevante na medida em que despertou a sociedade para a obrigação do Estado para com os portadores de deficiência. No período de 1817 a 1850, várias instituições foram criadas para o atendimento de deficientes auditivos, visuais e mentais; posteriormente surgiram as dedicadas aos deficientes físicos. No Brasil, o início da institucionalização de pessoas deficientes foi marcado pela fundação do Instituto Nacional para Cegos, por D. Pedro II, como já foi exposto. Em 1857, D. Pedro II fundou o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), também no Rio de Janeiro. Em 1872, para uma população de 15.848 cegos e 11.595 surdos, havia atendimento para 35 cegos e 17 surdos nesses Institutos. Apesar disso, abriu-se a possibilidade de discussão da educação para os portadores de deficiência através do 1o. Congresso de Instrução Pública, em 1883, cujos temas giraram em torno da formação de professores e sugestão de currículo para cegos e surdos. Cabe aqui citar alguns trabalhos científicos e técnicos realizados no início do século XX: “Da educação e tratamento médico-pedagógico dos idiotas”, do médico Dr. Carlos Eiras, publicado em 1900, e “A educação da infância anormal da inteligência no Brasil”, do prof. Clementino Quaglio, de São Paulo, “Tratamento e educação de crianças anormais da inteligência” e “A educação da infância anormal e das crianças mentalmente atrasadas na América Latina”, de Basílio Magalhães, do Rio de Janeiro, publicados por volta de 1915. 21 No início do século XX, a perspectiva clínico-médica começava a superar concepções místicas acerca da deficiência, porém todo o atendimento era realizado fora das escolas regulares. Importante salientar que, mesmo com o acesso às instituições de educação especial, a pessoa com deficiência nem sempre teve garantido o acesso à educação e profissionalização, pois mesmo dentro dessas instituições construiu-se a visão pura e simplesmente assistencialista, sem o devido valor à profissionalização do corpo de funcionários, com ênfase no voluntariado leigo. De 1850 a 1920 surgiram nos Estados Unidos, várias escolas residenciais, ou internatos, seguindo o modelo europeu. Na última década do século XIX, entretanto, as escolas residenciais não eram mais consideradas instituições apropriadas para a educação do deficiente mental. Passaram a ser vistas como instituições de tutela de crianças e adultos sem esperança de vida independente e, portanto, sem possibilidade de educação. (MAZZOTTA, 2002, p. 24) Em razão dessa constatação, programas de externato começaram a ser criados, proporcionando o surgimento das classes especiais diárias nos Estados Unidos, por volta de 1900. Nessa mesma época também surgiam estudos psicológicos, como o de Binet, no estudo psicométrico da inteligência, que contribuiu para os estudos posteriores em Educação Especial. A institucionalização das pessoas com deficiência foi predominante na primeira metade do século XX. Neste mesmo período começaram a avançar as críticas da psicologia e da educação quanto ao tipo de atendimento oferecido às pessoas com deficiência. No Brasil, dois pesquisadores tiveram destaque pelas suas contribuições à Educação Especial a partir da década de 1920: Ulisses Pernambucano e Helena Antipoff. Ulisses Pernambucano (1892-1943) defendeu a primeira tese no campo da 22 deficiência mental, no Brasil: “Classificação das crianças anormais: a parada do desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia mental”. Criou o Instituto de Psicologia de Pernambuco em 1925 e foi pioneiro ao criar a “Escola para Anormais”, anexa ao curso de Aplicação da Escola Normal de Pernambuco, onde desenvolveu as primeiras pesquisas com testes de aptidão, pedagógicos e mentais. Promoveu também a criação de outras instituições e a formação de pessoal especializado para atuar em instituições de ensino a crianças com deficiência mental. Seus trabalhos no campo de produção e adaptação de testes psicológicos e pedagógicos contribuíram para a disseminação da pesquisa em Psicologia e Educação no Brasil. Helena Antipoff (1872-1974), nasceu na Rússia, estagiou no Laboratório Binet-Simon entre 1910 e 1911 e formou-se em Psicologia em 1916. Trabalhou como assistente de Édouard Claparède, no Laboratório de Psicologia de Genebra. Em 1926, veio ao Brasil a convite do estado de Minas Gerais para lecionar na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, onde fundou posteriormente o Laboratório de Psicologia, centro gerador de pesquisas em diversas áreas da psicologia e da educação. Suas pesquisas de campo eram contextualizadas com a realidade social das crianças observadas em sala de aula. Criou uma classe especial2 para crianças com deficiência mental anexa à Escola de Aperfeiçoamento, considerada germe de várias instituições que ajudou a fundar posteriormente, como a Sociedade Pestallozzi de Belo Horizonte, criada em 1932 e a Escola da Fazenda do Rosário, em Ibirité, Minas Gerais, com a finalidade de educar crianças abandonadas ou excepcionais. Aliás, o termo “indivíduo excepcional” foi cunhado por Helena Antipoff, por considerá-lo mais adequado do que “deficiente mental”. 2 Classe Especial, segundo a Resolução SE no. 247 de 30/09/86 “(...) são classes com objetivo de atendimento educacional especializado para portadores de deficiência auditiva, física, visual, mental (grau leve) e superdotados(...)” (apud MACHADO, 1994, p.12). 23 Sua extensa obra abarca as áreas da educação especial, educação rural, educação para a criatividade e de bem dotados, concluindo em diversas pesquisas que a inteligência é multideterminada, inclusive pelas condições sócio-econômicoculturais do indivíduo. Assim como Ulisses Pernambucano, Helena Antipoff lutava por melhores condições de assistência às pessoas com deficiência mental. Segundo Antunes (2003, p. 75), “é possível até dizer que Antipoff avançou a partir do ponto em que Pernambucano parou, dando continuidade a suas preocupações”. Nessa mesma época, a partir da década de 1940, os pais de crianças com deficiências iniciaram um movimento de criação de associações para investimento em tratamentos e pesquisa, nos Estados Unidos da América. Esse movimento culminou com a criação da NARC – National Association for Retarded Children, associação que inspirou posteriormente a criação da Associação de Pais e Amigos do Excepcional – a APAE brasileira. Até 1950 havia cinqüenta e quatro estabelecimentos de ensino e onze instituições especializadas no atendimento às pessoas com deficiência no Brasil, a maior parte em funcionamento até hoje, como a Sociedade Pestalozzi do Brasil (também fundada por Helena Antipoff) e da APAE, para o atendimento da deficiência mental. Já em 1948 foi estabelecida a Declaração dos Direitos Humanos que, pela primeira vez na história, estabelecia premissas visando os direitos universais de todas as pessoas, independente da nacionalidade, sexo, crenças etc. A partir de então, várias “minorias” tiveram vez e voz na participação pela garantia de seus direitos. Monteiro (2003) salienta a importância desse documento, afirmando que “educação e direito à educação não são a mesma coisa” (...) Educação houve sempre, direito à educação, como direito universal do ser humano, só há depois da Declaração universal dos direitos do homem. A educação tradicional é um "direito de educação", isto é, um direito do homem sobre o homem. O "direito à educação" é 24 um direito do homem, isto é, tem uma significação ética. A ética do direito à educação é uma ética do interesse superior do educando, que não pode ser tratado e instrumentalizado como "objecto" de educação, mas deve ser considerado e respeitado sempre como "sujeito" do seu direito à educação. A partir de 1957, o governo federal brasileiro assume o atendimento educacional aos excepcionais. Em 1959, surgem na Dinamarca estudos que propõem os fundamentos da Normalização, que estabelecem como objetivo da Educação Especial “a criação de condições de vida para a pessoa retardada mental semelhantes, tanto quanto possível, às condições normais da sociedade em que vive”. (MIKKELSEN apud RIBEIRO, 2003, p. 43) Em 1975, a ONU elaborou a Declaração do Direito das Pessoas Deficientes, aprovada por sua Assembléia Geral. No final dessa década, na Europa, em continuidade aos estudos da Normalização, surge o movimento da chamada Filosofia da Integração em Educação Especial, que postula a inserção do portador de deficiência no ensino regular, enfatizando o direito de todas as pessoas à participação nas atividades sociais, recreativas e educacionais oferecidas aos grupos da mesma idade. 1.3 Panorama Atual A Constituição Federal Brasileira, de 1988, no seu artigo 206 “afirma igualdade de condições de acesso e permanência na escola”; e no artigo 208 ressalta o dever do Estado com a educação, efetivado perante a garantia de: ensino fundamental obrigatório e gratuito para todos, inclusive aos que a ele não tiveram acesso na idade própria, e, ainda, atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. 25 Em 1990, durante a Conferência Mundial da Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, firmou-se a Declaração Mundial de Educação para Todos, destacando as necessidades básicas de aprendizagem das pessoas portadoras de deficiência, e que, para atendê-las, medidas precisariam ser tomadas para a garantia de acesso ao sistema educativo. Em 14 de dezembro de 1990, através da Resolução 45/91, a Organização das Nações Unidades (ONU) propõe na Assembléia Geral das Nações Unidas, o conceito de Sociedade Inclusiva. Segundo Werneck (1999, p. 188) implementá-la significa exercitar os princípios descritos nas Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência, um documento adotado pelas Nações Unidas em 20 de dezembro de 1993, através da Resolução 48/96. O conteúdo da norma transcende à proposta de equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência. É uma contribuição essencial para o movimento mundial de mobilização diversificada de recursos humanos. Werneck complementa que “a Sociedade Inclusiva baseia-se em um princípio elementar: Todas as pessoas têm o mesmo valor.” A Declaração de Salamanca (1994) enfatiza a inclusão de pessoas com deficiência, tendo como princípio de sua linha de ação o acolhimento de todas as crianças pela escola, (...) independente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas e outras (...) As escolas têm que encontrar a maneira de educar com êxito todas as crianças, inclusive as com deficiências graves. O desafio que enfrentam as escolas integradoras é o de desenvolver uma pedagogia centrada na criança, capaz de educar com sucesso todos os meninos e meninas, inclusive os que sofrem de deficiências graves (...) (apud RIBEIRO & BAUMEL, 2003, p. 46) Essa Declaração surgiu simultaneamente às discussões brasileiras sobre as leis educacionais, quando era preparada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – a Lei 9.394, promulgada em 1996, na qual há a defesa da educação para 26 todos, adotando o princípio da Inclusão. Esse princípio, como já citado no início do trabalho, defende que “o ensino seja ministrado a todas as crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais preferencialmente no sistema comum de educação.” (grifo meu) Note-se que a palavra “preferencialmente” possibilita interpretação dúbia. Por isso, até hoje, há discussões acerca da possibilidade da concretização da Inclusão, e inúmeras interpretações da lei, que geram diferentes atitudes frente a ela. Além disso, como afirma Ribeiro (2003, p. 47): (...) por outro lado, os sistemas de ensino, não estando preparados para acolher todos, acabam realmente excluindo os casos que, por sua complexidade, não têm no momento condições de atender, eximindo-se, a escola e os professores, do trabalho de pesquisa e de soluções mais apropriadas. Para incluir uma pessoa com deficiência, a escola precisa rever suas posturas – seu pensar, agir e sentir, seu projeto político-pedagógico, sua estrutura física de acessibilidade, seu currículo. E no meio disso tudo está o professor... suas angústias, dúvidas, receios... desejos e vontades. Surgem vários estudos sobre a representação dos educadores sobre a inclusão escolar. Nos resultados de sua pesquisa sobre a visão de professores (do ensino fundamental e da educação especial da Rede Estadual de Ensino de São Paulo) e de psicólogos sobre a educação especial, Damião (2000) conclui que esta é vista como educação que ocorre em espaços segregados, tendo a maioria dos profissionais, dificuldade em compreender o conceito de inclusão. Os educadores que foram alvo dessa pesquisa apontam para diversos fatores complicadores do exercício de sua função: a necessidade de ter o apoio familiar e técnico e a falta de capacitação profissional e de envolvimento nas decisões governamentais. 27 Nos resultados de sua pesquisa da representação de professores e técnicos de educação3 sobre a inclusão de crianças e jovens com necessidades especiais em classes comuns, Carmo Neto (2000) mostra que há “(...) dificuldade na construção de novas representações quanto às possibilidades dos alunos com necessidades especiais, mas levanta percepções que sinalizam aberturas e receptividade para a questão.” Complementa que: (...) os sentimentos que se evidenciam, trazem ambigüidades, medos, receios, alicerçando-se em imagens já bem constituídas quanto ao portador de necessidades especiais e quanto a sua educação. (...) O pessoal administrativo ainda coloca o problema em termos burocráticos e poucas iniciativas tomaram. (p. 83) Notamos que, juntamente com a dificuldade, há também a abertura a novas possibilidades, mais como vontade do que como alternativas concretas. Menezes (2003) também chama a atenção para os problemas envolvidos na falta de preparo das escolas e dos professores para lidar com a inclusão: (...) é importante lembrar que o discurso da inclusão educacional chegou aos educadores sem nenhum preparo profissional. E como os alunos já chegaram às escolas, os educadores têm de buscar formação, mudança de atitude, exigindo aceitação e aprimoramento de como fazer. No entanto, sabe-se da escassez de oportunidades para trabalhar seus próprios receios, medos, ansiedades e habilidades. (p.163). No seu trabalho “A inclusão do professor na educação inclusiva”, Fontana (2001) mostra suas dificuldades ao se deparar com uma aluna adulta, com deficiência visual: (...) nessas condições, o medo nos impulsiona, como trabalhadores, a reorganizar o encaminhamento do trabalho numa direção que nos pareça mais controlável ou de menor exposição, fazendo-nos, por vezes, voltar a práticas e modos de fazer supostamente já superados, mas também supostamente melhor conhecidos nos riscos que comportam. 3 Aqui vistos como diretores, coordenadores pedagógicos, dirigentes regionais e assistentes técnicopedagógicos. 28 Parece ser um consenso entre os autores que abordam esse tema, a necessidade de investimento na formação do professor do ensino regular, como prérequisito para enfrentar essa nova realidade no cotidiano de sua sala de aula. Com relação aos professores especializados, Carmo Neto (2000) ainda afirma que “mostraram menos flexibilidade na interpretação da questão do que os professores de classes comuns”. A que se deve essa resistência? Segundo Ribeiro (in RIBEIRO & BAUMEL, 2003, p. 48), dentro dos serviços de Educação Especial “(...) com uma tradição já consolidada, também há um acometimento pela insegurança de que tudo que já foi edificado se transforme em inutilidade, como num passe de mágica.” Para Mantoan (2003), o movimento da inclusão não pode ser ignorado, nem tampouco paralisado pelo medo do encontro com o novo. É um sinal de crise de paradigmas que a educação encontra hoje. Segundo ela, “as escolas inclusivas propõem um modo de organização do sistema educacional que considera as necessidades de todos os alunos e que é estruturado em função dessas necessidades.” (p. 24). Outros autores, como Rosana Glat, observam o discurso dominante na Educação Especial sobre inclusão com ressalvas, alegando que muito do que se diz, teoricamente, não passa de uma abstração, ou utopia. Glat vai mais além e adverte que não bastam as políticas públicas e novos projetos pedagógicos e curriculares. Destaca o fator humano, as inter-relações, como determinante fundamental na prática inclusiva, afirmando que a integração “é um processo subjetivo, interrelacional (...) não se pode fazer uma lei obrigando que as pessoas aceitem e sejam amigas dos deficientes”.(in MANTOAN e col., 1997, p. 199) Essa discussão nos remete a diversas esferas da Inclusão: • A esfera política (desde a internacional, federal, estadual, municipal até o projeto político pedagógico da escola) • A esfera social (comunidade, empresas, família etc ) 29 • A esfera educacional (formação dos educadores, currículo etc) • A esfera das inter-relações (indivíduo-indivíduo) E essa última esfera é ressaltada por Glat, quando afirma que “a educação especial que podemos oferecer a essa clientela é a conscientização de sua condição psicossocial e a instrumentalização para lutar por condições de vida as mais amplas possíveis.” (idem, p. 200). Afirma ainda que, (...) fica cada vez mais claro que a problemática da integraçãosegregação dos deficientes só pode ser compreendida e “atacada” a partir do estudo das dinâmicas das relações sociais entre esses indivíduos e as outras pessoas ditas “normais”, relações essas que vêm sendo estabelecidas e sedimentadas por toda a historia da humanidade. (p. 199) A inclusão requer uma mudança subjetiva, não só educacional, mas também social, cultural. Exige mudança de mentalidade, de valores e crenças de todas as pessoas envolvidas. E isso demanda tempo. Uma ressalva quanto à prática da integração/inclusão feita por Salomão Schwartzman (in MANTOAN e col., 1997, p. 62) quando afirma que, “quando o grupo a ser pretensamente integrado é aquele em que os prejuízos (intelectuais, motores, sensoriais etc) são mais severos, nos parece que a idéia de integrá-los passa a ser discutível.” Ressalta ainda que “colocar em uma mesma classe do ensino regular crianças com diferenças muito acentuadas quanto às possibilidades de aprendizado pode colocar em risco o aprendizado de todos.” E finaliza seu argumento com a seguinte questão: “Você é a favor da integração? Não é SIM nem NÃO, mas DEPENDE.” (idem, 1997) Observamos assim, que, como toda mudança, há movimentos de avanço em direção ao novo, há movimentos de resistência para a manutenção do conhecido... há o incômodo. E a escola é palco dessas contradições no seu cotidiano. Magalhães (2003) aponta a Inclusão como uma possibilidade 30 (...) de autoconhecimento e descoberta de novas formas de organizar a vida social e o processo de ensino-aprendizagem desenvolvido nas escolas. Assim, é fundamental não somente saber como as pessoas com deficiência se comportam e quais os rótulos utilizados para designá-las, mas refletir sobre nossas concepções, crenças, ações, ou seja, pensar sobre as formas através das quais traduzimos a “diferença” no cotidiano. Encontrar a tradução (ou traduções?) para a “diferença”, parte constitutiva da vida social, pode ser, também, uma forma de, como diria Ferreira Gullar, TRADUZIR-SE neste encontro com o outro. (p. 32-33) Em pesquisa realizada com crianças de primeira série do Ensino Fundamental da rede regular sobre a interação com companheiros de sala de aula com deficiência mental, Batista (2001) afirma que nos resultados obtidos, esses alunos são aceitos com menos freqüência e são mais rejeitados do que seus companheiros “normais”. Ressalta como necessidade de superação dessa situação, a efetiva participação dos pais no processo de inclusão, instrumentalização das escolas e capacitação e apoio aos profissionais, principalmente professores. A reação dessas crianças é apenas um dos sintomas da discriminaçãopreconceito-estereótipo às diferenças que permeia nosso cotidiano dentro e fora da escola. Esses dados nos remetem ao que afirma Amaral (2002): as barreiras atitudinais às diferenças/deficiências são concretizadas em ações discriminatórias e estigmatizantes. De acordo com Santos “é preciso, também, não jogar fora o conhecimento que a educação especial vem acumulando ao longo de sua história, dos acertos e erros cometidos.” Prossegue afirmando que “há uma tendência, me parece, tanto dos educadores como dos teóricos da educação especial, em lançar olhares somente às falhas, ao que faltou, ao que não deu certo, generalizando estas conclusões” (2002, p. 104) No resultado de sua pesquisa sobre a trajetória escolar de alunos com deficiência mental atendidos em classes especiais da rede pública estadual paulista, Santos conclui que: 31 no meio de tantos alunos que fracassam, ao passarem pelas classes especiais, existem aqueles que apresentaram trajetória de sucesso, atingindo níveis de ensino que nem mesmo os alunos não deficientes conseguem alcançar (...) o que, muitas vezes, pode passar desapercebido, dependendo do olhar do pesquisador. (idem, p. 104) Quais seriam então, as iniciativas, os projetos que, dentro da educação especial já teriam alcançado um resultado positivo e possível de apresentar-se como base para a inclusão de alunos com deficiência no ensino regular? Em estudo sobre a inclusão de jovens com deficiência no ensino regular, Cacalano (2003) enfatiza a necessidade de mudar as relações que se estabelecem na escola: É preciso que se tome consciência da importância de operar mudanças nas relações sociais da escola, se realmente se desejar obter sucesso no processo de inclusão. Pode-se dizer que não há um livro de regras com informações prontas sobre as atitudes a serem tomadas. Estas precisam ser construídas pelo grupo responsável pelas ações escolares (...) Novas concepções requerem que a comunicação se estabeleça de forma diferenciada: contempla tanto atitudes quanto sentimentos. Enfim, as relações seriam tão valorizadas quanto as possibilidades em trabalhar com os conceitos científicos, no processo de aprendizagem. Nelas, as pessoas se enobreceriam pelo respeito pessoal, pela cooperação e parcerias (...) (p.125) É nessa esfera das relações que pretendemos aprofundar a discussão, por meio do estudo de caso. Ao trazer esse tema, entrando em contato com a literatura existente, ficam evidentes posturas e opiniões contraditórias, divergentes. Ou seja, é um tema que traz consigo ainda muito mais dúvidas do que certezas. 32 2. ESCOLA E DIFERENÇAS Nesse capítulo será abordada a questão das diferenças em sala de aula e alguns pressupostos da Psicologia Humanista de Carl Rogers. 2.1 As Diferenças na Sala de Aula A sala de aula é um espaço de encontro entre pessoas com um objetivo comum: o aprendizado. Por muito tempo esse espaço presenciou encontros que não proporcionaram o alcance desse objetivo, pois as diferenças individuais não foram consideradas no momento do ato pedagógico. Quantas vezes ouvimos dos professores as comparações entre “os mais atrasados” e os “mais adiantados”. Quantas vezes, nós mesmos enquanto alunos, nos classificamos perante o desempenho geral da sala. E o quanto carregamos conosco as marcas da discriminação ao nosso próprio desempenho... A sala considerada “homogênea” costuma ser a mais cobiçada pelos professores, pois têm a ilusão de que os alunos aprendem da mesma maneira, ao mesmo tempo, facilitando assim o uso de uma metodologia única para todos. No caso de fracasso, a responsabilidade é transferida para o aluno, seu contexto familiar, seu patrimônio genético. Com a discussão sobre diversidade, sobre as desigualdades sociais que se transformam em desigualdades escolares, surgem alguns estudos nas áreas de currículo e formação de professores e aquela visão tende a mudar. Um dos autores que ajuda a entender as diferenças na sala de aula é Philippe Perrenoud, sociólogo suíço. Em seu livro Pedagogia diferenciada: das intenções à ação, Perrenoud explica que as pedagogias diferenciadas: (...) não voltam as costas para o objetivo primordial da escola que é o de tentar garantir que todos os alunos tenham acesso a uma cultura de base comum. Ao contrário, diz ele, considerar as diferenças é encontrar situações de aprendizagem ótimas para cada aluno (...) (apud ANDRÉ, 2002, p.12) Sendo assim, ao considerar as diferenças na sala de aula, o professor transforma-se em orientador desses alunos que são o verdadeiro centro do processo educativo. Perrenoud afirma que diferenciar o ensino não significa individualizar o ensino, o que acontece é que o “acompanhamento e os percursos são individualizados”. (idem, p. 20) Numa situação de ensino em que são usadas avaliações classificatórias, em que o erro é considerado única e exclusivamente algo que deve ser evitado, a idéia de pedagogia diferenciada vem para “desconstruir” essa pedagogia vigente. O erro passa a ser encarado como parte do processo de aprendizagem, e a avaliação passa a ser utilizada como instrumento formativo da aprendizagem do aluno. Aprender a ver o erro como normal, aprender a interpretá-lo, libertando-o de todo caráter negativo e punitivo, passando a utilizá-lo de forma mais construtiva e produtiva, como um indicador privilegiado para dar uma ajuda personalizada ao percurso escolar do aluno, seria uma via real para o tratamento das diferenças existentes no grupoclasse. (PINTO In ANDRÉ, 2002, p. 48) Quando ampliamos as diferenças visíveis entre os alunos ou quando são diferenças significativas, no dizer de Amaral (2002), como no caso dos alunos com deficiências na rede regular de ensino, ampliamos também os desafios na educação como um todo. Porém, como afirma Rodrigues, (...) a diversidade e a heterogeneidade da escola não advêm de se estar implementando a escolarização de crianças e jovens com necessidades educativas especiais em classes regulares, mas simplesmente do facto de que a própria sociedade é heterogênea e multifacetada. Os alunos ditos com necessidades educativas especiais 34 são apenas um caso no seio da diversidade da população escolar, embora sejam aqueles que carecem de maior atenção e acompanhamento. (apud RIBEIRO & BAUMEL, 2003 p. 15) No cotidiano da sala de aula essas diferenças podem servir como ponto de partida para o professor criar situações que atendam as necessidades de cada um, mas podem também ativar no professor as defesas, como por exemplo, a negação das diferenças e, nesse caso, das deficiências. Segundo Amaral (1995, p. 116), a negação pode se concretizar de três modos: o A atenuação – que se expressa por comportamentos específicos ou falas do tipo “Não é tão grave assim...” o A compensação – na qual “mas” é a palavra essencial, por exemplo: “Deficiente, mas tão inteligente”. o A simulação – na qual o “como se” é utilizado para instrumentalizar a negação, sendo ilustrada por falas como: “É cega, mas é como se não fosse”. Voltando a Perrenoud, ele procura mostrar que “em vez de uma ‘indiferença às diferenças’, deve-se falar em diferenciação intencional e diferenciação involuntária.” (apud ANDRÉ, 2002, p. 17). Segue explicando que a diferenciação intencional é aquela dirigida às potencialidades do aluno, seja qual for sua condição de aprendizagem. É voltada para beneficiar os alunos por meio de discriminações positivas, principalmente àqueles que se encontram em algum tipo de desvantagem quanto à aprendizagem. Quanto à diferenciação involuntária, apontada por Perrenoud, configura-se como uma diferenciação selvagem, em que pouco, ou quase nada se faz pelo benefício do aluno, pois se trata de um processo com efeitos bastante negativos, no qual só há o reforço das desigualdades, produzindo o fracasso escolar. André (2002, p. 17) explica esse tipo de diferenciação na sala de aula: às vezes movido pelas contingências da situação, pela urgência em resolver um problema ou mesmo por questões de insegurança ou de afirmação pessoal, o professor pode vir a tratar diferentemente seus alunos: dando mais ou menos atenção a alguns do que a outros, sendo mais paciente ou mais agressivo com alguns do que com 35 outros, respondendo com maior interesse e dedicação às perguntas de alguns do que às de outros. Os efeitos dessa forma de tratamento atingem a relação professor-aluno e conseqüentemente a qualidade de ensino e de aprendizagem. Lígia Amaral (1995) afirma que a deficiência “jamais passa em brancas nuvens”. Por mais que haja a intenção da inclusão de todos na escola, independente do tipo ou grau de deficiência, ela mesma “ameaça, desorganiza, mobiliza”. E na escola de educação especial não é diferente. Cada um que chega com suas necessidades gera reações das mais diversas no grupo: professores, alunos e funcionários. O que Amaral argumenta é que nesses momentos ocorre a “hegemonia do emocional”, pois o diferente “foge ao esperado, ao belo, ao eficiente, ao perfeito.” Esta autora faz uma ressalva quanto a sua própria experiência de vida, relatos e observações: “essa hegemonia desorganizadora do emocional (...) cede o passo a uma convivência não atípica (...) depois de superadas as fases iniciais de impacto e descompensação psíquica.” (p. 112) Sempre que nos sentimos, de algum modo ameaçados por algo – ou pela perda de algo, segundo a Psicanálise, ativamos nossos mecanismos de defesa do ego e, um desses mecanismos bastante utilizado quando se trata de deficiências é o da negação. Como trabalhar no contexto escolar com essas inter-relações, buscando o que Amaral chamou de uma “convivência não atípica”, ou seja, com um nível relativo de abertura ao novo, de “aceitação ativa” (outro termo que usa em seus estudos), sem contudo negar a realidade? Como superar as “fases iniciais de impacto e descompensação psíquica” frente a diferença/deficiência? Pesquisas apontam para a questão da resistência por parte de professores e o medo frente às situações de inclusão de alunos com deficiência na escola. O novo traz a ansiedade, que por sua vez, traz duas possibilidades: a de enfrentamento da 36 realidade tal qual ela é; ou o acionamento dos mecanismos de defesa, que de certa forma perpetuam a situação existente, colocando-a com uma “roupagem” nova. Parece óbvio que esse mecanismo perpetue o preconceito, os estereótipos, a exclusão. O fato é que indissociáveis, ambos – mecanismos psicológicos de defesa e ideologias defensivas – podem, e muitas vezes precisam, ser entendidos como reações a situações de ameaça e perigo inerentes, simbolicamente, à presença do desconhecido, do estranho, do novo, do diferente, do deficiente (AMARAL, 1995, p. 149) Que caminho trilhar, então, para buscarmos esse enfrentamento da realidade tal qual se apresenta, que não seja por meio do ataque ou da fuga (como os inúmeros exemplos da História da Humanidade)? Amaral aponta um caminho: re-significar a diferença/deficiência constitui-se, em realidade, num incomensurável desafio. Representa um movimento no sentido de desadjetivar (“des” como prefixo que indica ação contrária) o substantivo diferença, que tem sido profundamente impregnado de conotações pejorativas quando aliado à questão da deficiência. (...) Insisto: desadjetivar a deficiência é um caminho (...) ser diferente não é ser melhor ou pior; a diferença não é boa ou ruim, maléfica ou benéfica (...) simplesmente é. (idem, p. 148) Outro ponto importante a ser enfocado é a construção social da diferença/deficiência, que se dá por meio da perpetuação de preconceitos, estereótipos e estigmas. Os produtos culturais veiculados pelos meios de comunicação de massa são fortes divulgadores dessas “imagens” preconceituosas, a própria ciência, os profissionais, enfim, sem uma consciência crítica da situação recorreremos ao moto contínuo da exclusão. O âmbito relacional da diferença/deficiência é apontado como o início de um processo maior, social. (...) relações limpas não caminham para patologias relacionais crônicas, não são falsificadas e portanto não são, em si, geradoras de sofrimento (...) A ausência intrínseca de adjetivação valorativa da diferença pode levar, em conseqüência, a relações despidas de 37 hierarquia entre aqueles que são diferentes/deficientes e os que não são (...) (idem ibidem, p. 150) Retornando à pedagogia das diferenças, vale ressaltarmos seus princípios norteadores (idéias mestras da escola nova): • O aluno deve ser o centro do processo educativo e o professor seu orientador (fonte de recursos e apoio). • A aprendizagem ocorre através de processo ativo de envolvimento do aprendiz na construção do conhecimento, interagindo com o meio e com o outro. • Ensino voltado para as competências e trabalho com projetos, pesquisas e situações-problema. Vale ressaltar que, mesmo com essas condições, não haverá garantias de sucesso no alcance dos objetivos de ensino com todos os alunos. Daí a importância da diferenciação do ensino, que significa “organizar as interações e atividades de modo que cada aluno se defronte constantemente com situações didáticas que lhe sejam as mais fecundas” (apud ANDRÉ, 2002, p. 19) Quando falamos das diferenças em sala de aula, abordamos várias dimensões. Aqui pretendo enfatizar a dimensão relacional, a das relações interpessoais. Para uma aproximação a essa dimensão, busco a teoria de Carl Rogers. 2.2 A Contribuição da Psicologia Humanista de Carl Rogers Carl Ransom Rogers (1902-1987) propositor da Abordagem Centrada na Pessoa, é considerado um dos psicólogos expoentes da chamada Terceira Força em Psicologia: a Psicologia Humanista. De sua prática clínica nasceram os primeiros construtos do que viria a ser sua teoria. Teoria essa dinâmica, que sofreu inúmeras releituras pelo próprio Rogers, 38 que desencorajava a formação de uma ‘escola de pensamento’ que se inspirasse em suas conclusões, estimulando as pessoas a testarem suas afirmações. (FADMINAN & FRAGER, 1986) Não é objetivo desse trabalho esmiuçar os diversos aspectos de sua teoria, mas o enfoque será dado sobre alguns pressupostos da teoria das relações interpessoais. Para isso, recorro à hipótese principal da Abordagem Centrada na Pessoa, que postula o seguinte: os indivíduos possuem dentro de si vastos recursos para a autocompreensão e para modificação de seus autoconceitos, de suas atitudes e de seu comportamento autônomo. Esses recursos podem ser ativados se houver um clima, passível de definição, de atitudes psicológicas facilitadoras (ROGERS, 1983, p. 38) Frente a essa hipótese, Rogers apresenta três condições que devem estar presentes para um clima facilitador de crescimento e de aprendizagem: Autenticidade ou Congruência, Consideração Positiva Incondicional e Compreensão Empática. Rogers deixa claro que “essas condições se aplicam indiferentemente à relação terapeuta-paciente, pais-filhos, líder e grupo, administrador e equipe (...) se aplicam (...) a qualquer situação na qual o objetivo seja o desenvolvimento da pessoa.” (idem). Diversos estudos apontam a importância dessas atitudes no contexto do ensino e da aprendizagem, principalmente na relação entre educadoreducando. Essa relação, se bem sucedida, pode levar à aprendizagem significativa, que no referencial de Rogers é “aquela que é mais do que acumulação de fatos. É a aprendizagem que faz a diferença no comportamento do indivíduo, no curso de ação de suas escolhas futuras, nas suas atitudes e na sua personalidade.” (ROGERS apud CARVALHO, p. 02) Apresento as três condições como contribuição da teoria das relações interpessoais para o processo de ensino-aprendizagem e como criação de um clima facilitador de crescimento e interação no ambiente escolar. 39 2.2.1 Autenticidade ou Congruência A condição da autenticidade ou congruência é apontada por Rogers como elemento fundamental na construção da relação: Descobri que quanto mais conseguir ser genuíno na relação, mais útil ela será. Isso significa que devo estar consciente de meus próprios sentimentos, o mais que puder, ao invés de apresentar uma fachada externa de uma atitude, ao mesmo tempo em que mantenho uma outra atitude em um nível mais profundo ou inconsciente. Ser genuíno também envolve a disposição para ser e expressar, em minhas palavras e em meu comportamento, os vários sentimentos e atitudes que existem em mim. [...] Descobri que isto é verdade mesmo quando as atitudes que sinto não são atitudes com as quais estou satisfeito, ou atitudes que parecem conducentes a uma boa relação. (ROGERS, 1997, p. 37) Rogers afirma ainda que: Congruência foi o termo a que recorremos para indicar uma correspondência mais adequada entre a experiência e a consciência. Pode ainda ser ampliado de modo a abranger a adequação entre a experiência, a consciência e a comunicação (...) (idem, p. 392) Em outras palavras, podemos dizer que congruência ou autenticidade tem correlação com a coerência entre o que sentimos, pensamos e comunicamos por meio das palavras e da expressão corporal. Um alto grau de autenticidade pressupõe um baixo grau de defesa psíquica frente aos fatos e às situações. Em seu “Estudo Teórico sobre o Conceito de Congruência em Carl R. Rogers”, Vera Placco explica que: Se houver congruência apenas entre experiência e consciência , mas não entre estas e comunicação, caracteriza-se uma situação de falsidade ou engano, do ponto de vista social. Se houver discrepância entre experiência e consciência, a comunicação também será discrepante e caracteriza uma situação defensiva ou de negação à consciência – portanto um problema de ordem pessoal. Nos dois casos – situação defensiva ou de negação à consciência e situação 40 de falsidade ou engano – a relação que se estabelece não caracteriza uma verdadeira relação de ajuda (1978, p. 44) Para esclarecer a forma como essa atitude se manifesta, Rogers apresenta um exemplo: (...) Com alguns indivíduos, compreendemos que, na maior parte da sua atividade, não apenas traduzem conscientemente o seu pensamento, como também exprimem seus sentimentos mais profundos, quer que se trate de reações de cólera ou de rivalidade, de afeto ou de colaboração. Sentimos então que “sabemos exatamente onde essa pessoa está”. Com outro indivíduo, reconhecemos que o que ele está dizendo é quase que com certeza uma fachada, uma máscara. Interrogamo-nos sobre o que ele realmente sente. Perguntamos a nós mesmos se ele próprio sabe o que está sentindo. Tendemos a desconfiar e ser cautelosos com um indivíduo desse gênero. (1997, p. 395-396) Segundo Rogers, a congruência, como as outras atitudes facilitadoras de um clima de crescimento, tem grau variável na mesma pessoa, dependendo do momento e do grau de aceitação daquilo que a pessoa está experenciando. Rogers formula a hipótese de que, quanto maior o grau de congruência numa relação, mais a relação implicará numa: (...) tendência para uma comunicação recíproca caracterizada por uma crescente congruência; uma tendência para uma compreensão mútua mais adequada da comunicação; uma melhoria da adaptação psicológica e do funcionamento de ambas as partes; satisfação recíproca na relação. (idem, p. 399) Inversamente, quanto maior o grau de incongruência, cada vez mais a relação terá as comunicações incongruentes, com desintegração da compreensão, funcionamento e adaptação psicológica menos adaptados em ambas as partes e a conseqüente insatisfação recíproca na relação. Se pensarmos na questão da diferença/deficiência e na constituição de defesas, como afirmou Amaral (1995), como a negação da diferença, por exemplo, torna-se difícil afirmarmos que na relação entre a pessoa sem deficiência e a pessoa com deficiência, exista um elevado grau de congruência na comunicação. Esse pode ser considerado um dos agentes de sustentação das barreiras atitudinais nas 41 relações interpessoais, pois dificilmente há a comunicação consciente de sentimentos ou percepções tais quais elas são, devido a atitudes de preconceitos. 2.2.2 Consideração Positiva Incondicional A consideração positiva incondicional é apontada por Rogers: (...) como uma segunda condição, acho que quanto mais aceitação e apreço sinto com relação a esse indivíduo, mais estarei criando uma relação que ele poderá utilizar. Por aceitação, quero dizer uma consideração afetuosa por ele enquanto uma pessoa de autovalia incondicional – de valor, independente de sua condição, de seu comportamento ou de seus sentimentos. (...) significa uma aceitação de suas atitudes no momento ou consideração pelas mesmas, independente de quão negativas ou positivas elas sejam, ou de quanto elas possam contradizer outras atitudes que ele sustinha no passado. Essa aceitação de cada aspecto flutuante desta outra pessoa constitui para ela uma relação de afeição e segurança, e a segurança de ser querido e prezado como uma pessoa parece ser um elemento sumamente importante em uma relação de ajuda. (ROGERS, 1997, p.38) Após análise de várias formas assumidas por este construto na obra de Rogers, Almeida (1980) propôs uma síntese do mesmo, com o objetivo de facilitar a sua compreensão: Consideração positiva incondicional é a atitude calorosa de aceitar o outro, como ele é, no momento, permitindo-lhe a expressão de qualquer sentimento, apreciando-o, em sua totalidade, sem estabelecer comparações e estimando-o, em sua forma não possessiva. É o resultado da confiança no organismo humano e, para que seja eficaz, na relação de ajuda, é necessário que seja percebida pelo outro a comunicação dessa atitude. (p. 102) Novamente, Rogers aponta a importância da comunicação para a efetiva manifestação dessa condição, assim como na autenticidade. Torna-se relevante destacar que: Consideração não é proteção ou comiseração ou mesmo consentimento fácil. O terapeuta [ou professor] não é paternalista,nem sentimental, nem superficialmente social e agradável. A consideração se estabelece, segundo um movimento de igualdade, sem pretender o poder sobre o outro, nem sua possessão, sem introduzir qualquer 42 desnível entre a importância do outro e a própria importância, sem estabelecer preferência entre o intelectual e o afetivo, nele ou no outro, entre as expressões ou tendências positivas ou negativas. (ALMEIDA, 1980, p. 15) No âmbito educacional, se o professor aceitar o aluno tal como ele é e se for capaz de compreender os sentimentos que o aluno manifesta, tornará possível a concretização de uma aprendizagem significativa e uma evidente melhora na construção da relação com seus alunos. No caso da diferença/deficiência, a consideração positiva incondicional traz consigo a valorização da pessoa tal qual ela se apresenta, com suas potencialidades e limitações que lhe são peculiares. Aceitar o outro permite ao outro aceitar a si mesmo, é uma relação dialética. E, para que a aceitação seja possível, a que se ter a compreensão do seu mundo interior, por meio da condição de empatia. 2.2.3 Compreensão Empática Em seu “Estudo Teórico do Conceito Compreensão Empática nas Obras de Carl Rogers”, Carvalho (1979) afirma que a compreensão empática é conseqüência da autenticidade: quanto mais a pessoa estiver aberta à sua própria experiência e menos defensiva, estará mais predisposta a demonstrar compreensão empática em seus relacionamentos. Segundo o próprio Rogers, ... a relação é significativa na medida em que sinto um desejo contínuo de compreender – uma empatia sensível com cada um dos sentimentos e comunicações do cliente como estes lhe parecem no momento. Aceitação não significa muito até que esta envolva a compreensão. (1997, p. 38) Paradoxalmente, só consigo compreender o outro se eu tiver um relativo afastamento da minha própria realidade. Como posso compreender o diferente? Essa atitude em colocar-se no lugar do outro para observar o mundo do jeito mais 43 próximo possível de como ele o observa, é o que faz da compreensão empática uma atitude fundamental no processo de uma relação de ajuda, seja ela terapêutica ou educacional. Todas as três atitudes psicológicas facilitadoras apresentadas até o momento: autenticidade, consideração positiva incondicional e compreensão empática, são intimamente ligadas e necessárias a uma relação útil, de acordo com Rogers: Dessa forma, a relação que considerei útil é caracterizada por um tipo de transparência de minha parte, onde meus sentimentos reais se mostram evidentes; por uma aceitação desta outra pessoa como uma pessoa separada com valor por seu próprio mérito; e por uma compreensão empática profunda que me possibilita ver seu mundo particular através de seus olhos. (1997, p. 39) É importante ressaltar que, dependendo do tipo de relação interpessoal, Rogers ainda admite a existência de distinções quanto a relevância dessas atitudes: o o o Nas relações cotidianas: vida familiar, relações sexuais, relação professor-aluno, empregador-empregado, amigos – provavelmente a congruência seria o fator prioritário, básico para essa vida em comum, garantindo o clima de veracidade; Nos relacionamentos não-verbais, onde se tem como objetivo criatividade e outros processos produtivos, é essencial que se demonstre cuidado e apreço, sendo aí prioritária a consideração positiva incondicional; Nos relacionamentos terapêuticos, em que o cliente se encontra confuso, ansioso ou amedrontado, é prioritária a empatia. (PLACCO, 1978, p. 46) Na esfera da educação formal, Rogers afirma que a aprendizagem pode ser facilitada e tornar-se significativa se o professor for uma pessoa congruente, e isso implica que ele tenha consciência plena das atitudes que assume. Segundo Rogers (1973, p. 106), o professor “é, assim, para seus alunos, uma pessoa, não a corporificação, sem feições reconhecíveis, de uma exigência curricular ou o canal estéril através do qual o conhecimento passa de uma geração à outra”. O enfoque é no ensino centralizado nas atitudes, no ensino fundamentado nas relações entre pessoas em desenvolvimento. 44 Aprofundando essa visão, uma hipótese a ser considerada é a qualidade da relação interpessoal entre todos os atores educacionais, como elemento essencial no favorecimento da aprendizagem significativa. Segundo Placco: Só quando existe uma real comunicação e integração entre os atores do processo educativo há possibilidade e emergência de uma nova prática docente, na qual movimentos de consciência e compromisso se instalam e se ampliam, ao lado de uma nova forma de gestão e uma nova prática docente. (2003, p. 52) Se pensarmos a questão da inclusão escolar, torna-se relevante o estudo de como essas relações acontecem e como a comunicação entre as pessoas envolvidas influencia na criação de um clima propício à mudança dentro do contexto escolar. 45 3. METODOLOGIA 3.1 Estudo de Caso A abordagem utilizada nessa pesquisa é o estudo de caso do tipo etnográfico, que de acordo com André (1995) é indicado: (1) quando se está interessado numa instância em particular, isto é, numa determinada instituição, numa pessoa ou num específico programa ou currículo; (2) quando se deseja compreender profundamente essa instância em particular em sua complexidade e em sua totalidade; (3) quando se estiver mais interessado naquilo que está ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus resultados; (4) quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas relações, novos conceitos sobre um determinado fenômeno; e (5) quando se quer retratar o dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu acontecer natural. (p. 51-52) A escolha dessa abordagem deu-se pela aproximação às características apontadas por André, ou seja: o estudo de uma escola de educação especial, procurando compreender as ações e relações que se desenrolam no seu dia-a-dia. É um estudo que busca compreender o processo no qual ocorrem essas relações e o conseqüente dinamismo das situações observadas. 3.2 Caracterização da Escola A escola de educação especial pesquisada foi fundada em 1976, num município do estado de São Paulo. É uma instituição confessional, beneficente, sem fins lucrativos, mantida por instituição religiosa, na forma de uma Associação. O surgimento dessa escola se deu pela necessidade de uma mãe participante da instituição religiosa. Primeiramente ela procurava atendimento odontológico para seus dois filhos com deficiência mental. No final da década de 70 não havia atendimento odontológico especializado, ou seja, quando uma pessoa com deficiência precisasse desse atendimento, ele teria que ser feito numa unidade hospitalar, com equipe formada por dentista, enfermeira instrumentadora e anestesista, que aplicava anestesia geral. Era um tratamento caro e poucos profissionais estavam preparados para realizá-lo. Com a situação posta, a Associação sensibilizou-se com a condição dessa família e passou a canalizar os recursos obtidos nas igrejas para o tratamento de pessoas com deficiência mental: primeiro foi o tratamento odontológico e, posteriormente, a criação da própria escola. O terreno onde se localiza a escola hoje está em regime de comodato com a Prefeitura municipal por período de vinte anos, já renovado. O atendimento odontológico, por sua vez, foi realizado em parceria com uma Universidade que manteve três consultórios no prédio da escola para atendimento aos alunos e comunidade, até dezembro de 2002. A partir daí, o atendimento passou a ser realizado nas dependências da Universidade, mantendo-se o convênio com a escola. Hoje a escola atende alunos com deficiência mental, de ambos os sexos, a partir dos 15 anos, sem limite superior de idade. São sessenta e sete alunos matriculados no início do ano de 2004. Devido a grande demanda, a escola foi diversificando o seu campo de atendimento, incluindo jovens e adultos com deficiência mental associada à deficiência visual, auditiva, física (deficiência múltipla) e, em 2002, iniciou o atendimento a portadores de autismo4. Número de alunos por faixa etária 15 – 20 anos 21 – 30 anos 31 – 40 anos 41 – 50 anos 51 – 60 anos Total 08 22 18 15 04 67 4 Autismo: transtorno neuropsiquiátrico que afeta o indivíduo em três áreas: interação social, comunicação e imaginação. Fonte disponível em: http://www.autismo.com.br/site.htm 47 Dos 67 alunos matriculados no primeiro semestre de 2004, 39 (58%) são do sexo masculino e 28 (42%) do sexo feminino. A faixa de idade com maior índice de alunos matriculados é a que abrange 21 a 40 anos (60%). Atualmente, os alunos matriculados são provenientes de cinco municípios distintos. A escola tem período integral de funcionamento, das 8h às 17h, em dois turnos: matutino (das 8h às 12h) e vespertino (das 13h às 17h). O horário de almoço ocorre das 12h às 13h, sendo oferecido também o café da manhã, às 8h e o lanche da tarde, às 15h. Oferece o Ensino Fundamental de 1a. a 4a. série, na modalidade Educação Especial, dividida em Ciclo I (1ª. e 2ª. Séries com alfabetização) e Ciclo II (3ª. e 4ª. séries), Educação para o Trabalho e Programa de Atendimento a Jovens Portadores de Autismo. A escola trabalha com as seguintes disciplinas: Base Comum: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Educação Artística, Educação Física. Parte diversificada: Oficinas Pedagógicas e Educação Ambiental, Atividades de Vida Diária e Prática, Prestação de Serviços para Empresas, Ensino Religioso. A escola é formada por equipe multidisciplinar: diretora, assistente social, psicóloga, coordenadora pedagógica, fisioterapeuta e neurologista; equipe docente com doze professores; e equipe administrativa: recepcionista, secretária, inspetora de alunos, pessoal da cozinha e limpeza, vigia, totalizando 25 funcionários no início de 2004. Destes, 21 são mantidos pela própria Associação, através de convênios com: - Ministério da Educação (oferece verbas para material pedagógico, pequenas reformas, cursos de formação continuada para professores e equipe multidisciplinar); 48 - Secretaria Estadual de Educação (oferece verba para custear sete professores); - Prefeitura municipal (oferece bolsa de estudo para munícipes e mantêm três professoras e uma merendeira); - Prefeitura municipal vizinha (repassa verbas para pais de alunos matriculados residentes na divisa de município); - Comunidade internacional da instituição religiosa mantenedora (solicitam projetos e orçamentos para aprovação e posterior envio de verbas, provenientes principalmente da Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra – com isso a escola construiu sala de fisioterapia, oficina de reciclagem de papel e realizou a reforma da cozinha). Alemanha e Estados Unidos também são consumidores de materiais produzidos artesanalmente, como: cartões de Natal, blocos de anotações, marcadores de livros etc. - Empresa de médio porte que fornece matéria-prima para ser embalada dentro da escola (mantas para exaustores). A empresa paga um valor mensal à escola, que divide igualmente entre todos os alunos, diferenciando apenas os alunos que estudam no período integral e os que estudam meio período. Convênio firmado em 1998. Dos doze professores contratados, três são municipais e nove são mantidos pela associação com seus convênios, dentro do regime da CLT. Uma professora contratada pela instituição tem regime integral de trabalho (40h/semanais) e duas têm 30h. semanais. Duas professoras têm regime integral, pela prefeitura municipal. Quatro professores têm regime parcial de trabalho. Todos os professores fizeram ou estão fazendo curso de capacitação da APAE, com carga horária de 180 horas. A escola possui duas entradas: uma para a recepção, no piso superior e outra para o estacionamento, no piso inferior, onde se encontra o pátio e por onde os 49 alunos entram normalmente. Os dois pavimentos são interligados por escada e rampa. O espaço físico é adaptado às necessidades de acessibilidade dos alunos da escola e é composto por: recepção, salas da: diretoria, assistente social, psicóloga, secretaria, salas de atendimento psicológico, sala de fisioterapia, auditório, sala de vídeo, sala dos professores, copa, sala da coordenação pedagógica, cozinha, refeitório, 08 salas de aula (sendo 02 salas de educação artística), 02 salas de oficina de educação para o trabalho, sala de expressão corporal e psicomotricidade, biblioteca, sala de repouso, enfermaria e farmácia, banheiros para alunos, banheiros para funcionários e visitantes, pátio, quadra poliesportiva, oficina de reciclagem de papel, depósitos de materiais, almoxarifados, estacionamento, totalizando 1.332m² de área construída. 3.3 Sujeitos da Pesquisa Os sujeitos dessa pesquisa são professoras e a diretora da escola. Foram entrevistadas quatro professoras, de acordo com o tempo de trabalho na escola pesquisada, o tempo de experiência na Educação Especial e tipo de vínculo com a instituição: Profa. Maria Clara5, tem 40 anos, é pedagoga, fez magistério. Está há um ano na escola e há 14 anos na Educação Especial. Trabalhou no ensino regular em escola particular com classes especiais, sempre com crianças. É professora municipal e ministra as disciplinas de Matemática (escolaridade) e educação para o trabalho. Profa. Edinéia, tem 57 anos, é pedagoga, fez magistério. Está há seis anos na escola e “desde solteira” na Educação Especial, em escolas de educação especial. Foi contratada pela instituição, convidada pela atual diretora. Ministra a disciplina de Matemática (escolaridade), e trabalha com alunos com autismo. 5 Os nomes apresentados são fictícios. 50 Profa. Lúcia, tem 36 anos, é pedagoga, fez magistério e está há 11 anos na escola e na Educação Especial. Sua formação acadêmica é posterior à sua entrada na escola, pois foi contratada inicialmente como instrutora de oficina abrigada. Ministra disciplinas de Língua Portuguesa (escolaridade) e educação para o trabalho. Profa. Sofia, tem 53 anos, é pedagoga, e está há 27 anos na escola e na Educação Especial. Fez Pedagogia entre 1994 e 1997. É professora municipal e trabalha com escolaridade e com alunos com autismo. Após as entrevistas com as professoras, optamos também por entrevistar a diretora da escola que foi apontada pelas professoras como uma peça-chave no processo de mudança e na implantação de novas atividades pedagógicas, além de ser considerada um membro catalisador do próprio desenvolvimento profissional da equipe escolar. A diretora Celina tem 55 anos, é pedagoga com habilitação em deficiência mental e visual, socióloga, mestranda em educação. Trabalha há 38 anos com Educação Especial e está há 6 anos nessa escola. Foi contratada pela mantenedora da instituição. 3.4 Procedimentos de Coleta de Dados Após efetuar a revisão bibliográfica, procurei entrar em contato com a diretora da escola pesquisada para negociarmos as visitas futuras. Nesse primeiro momento, a diretora fez uma única ressalva, manifestando a preferência por entrevistas gravadas com as professoras, para a otimização do tempo. A diretora mostrou-me as dependências da escola, apresentando-me a todos os alunos e funcionários, explicando que eu iria conhecer a escola e que faria algumas visitas semanais. Posteriormente, no intervalo das aulas, expliquei às professoras o objetivo do trabalho, sanando algumas dúvidas e esclarecendo que nessa relação as especialistas eram elas, que eu estaria ali para aprender com o cotidiano de todos na escola. 51 Vale ressaltar que houve um fator catalisador desse primeiro contato com alunos e funcionários da escola: meu grau de parentesco com uma pessoa que já havia feito um trabalho acadêmico com eles. Isso facilitou o início da pesquisa, pois, principalmente os alunos já apresentavam uma aceitação da minha presença, em qualquer ambiente da escola. Na fase exploratória da pesquisa fiz incursões a diversos ambientes: salas de aula, quadra poliesportiva, oficina de educação para o trabalho, salas de educação artística. Durante os intervalos, estive com as professoras e equipe na sala dos professores, compartilhando das conversas informais e dos cafés. Alguns intervalos também foram utilizados para a observação da interação entre os alunos e entre equipe multidisciplinar. Durante essa fase, pudemos começar a delinear a metodologia e roteiros de observação e entrevistas. No total foram realizadas quatorze observações e cinco entrevistas, totalizando 41 (quarenta e uma) horas de coleta de dados, entre os meses de abril a dezembro de 2004. Na primeira fase da pesquisa, as observações ocorreram em ambiente de sala de aula, com uma turma de alunos e uma professora de escolaridade e, posteriormente, na segunda fase, decidimos aprofundar o trabalho ampliando as opções de observação (reunião de professores, intervalo, outros alunos e outras professoras etc), incluindo também as entrevistas de professoras e da diretora para verificarmos, principalmente, as concepções que possuíam sobre os alunos, sobre o trabalho pedagógico e sobre a escola. Além disso, pude fotografar as dependências da escola, ter acesso à planta do edifício e também ao Projeto Político Pedagógico para o ano de 2004. A planta da escola e as fotos dos seus ambientes estão em anexo. 52 4. APRESENTAÇÃO DOS DADOS De acordo com os objetivos dessa pesquisa, de identificar como se dão as relações interpessoais entre professores, alunos, equipe administrativa e equipe multidisciplinar no cotidiano da escola; detectar se existem e quais são os elementos facilitadores das inter-relações no processo de inclusão e ensino-aprendizagem de alunos jovens e adultos com deficiência, e identificar quais são as concepções que a equipe docente e multidisciplinar possui sobre o aluno, sobre a deficiência e sobre o trabalho pedagógico nessa instituição, apresentaremos os dados das observações e das entrevistas com professoras e diretora, divididos em três grandes grupos, a saber: Relações Interpessoais. Elementos Facilitadores das Relações Interpessoais. Concepção das Educadoras sobre Alunos, sobre Deficiência e sobre Trabalho Pedagógico. A análise proposta tem como referenciais teóricos o aporte de Carl Rogers nos aspectos das Relações Interpessoais e de Luc Brunet, professor pesquisador em Ciências da Educação da Universidade de Montreal, no Canadá, nos aspectos referentes ao clima organizacional escolar. 4.1 Relações Interpessoais 4.1.1 Primeiras impressões Durante a primeira visita feita à escola, a recepção por parte dos alunos foi afetuosa, com abraços, apertos de mãos, beijos, e com perguntas sobre a minha procedência. No final das visitas, muitas vezes perguntavam se eu voltaria para vêlos, e os abraços se repetiam. Essa receptividade aponta um dos fatores visivelmente incentivados pelos educadores dessa escola: a valorização do contato com o outro, o acolhimento às pessoas que ali chegam. Essa facilitação da aproximação foi fundamental para a concretização desse trabalho e o conhecimento do funcionamento da escola como um todo. Houve também boa receptividade por parte dos funcionários e professores. Esse clima amistoso me chamou a atenção e, com o passar do tempo da pesquisa, pude observar que ele se mantinha, ou seja, ficou evidente a existência de um clima institucional acolhedor, que pareceu ser um elemento facilitador do trabalho pedagógico da escola. Partindo dessas observações, tornou-se necessário recorrer a estudos sobre o clima organizacional escolar, e foi em Luc Brunet (1992) que encontrei algumas conexões com o eixo inicial do trabalho: as relações interpessoais. A primeira atividade do dia na escola começa logo após o café da manhã, servido aos alunos às 8h, no refeitório. É ali que é realizada a primeira reunião de “Atividades da Vida Prática” com alunos, professores, diretora, coordenadora pedagógica e inspetora para discutir assuntos de interesse dos alunos, como as últimas notícias do Brasil e do mundo, informações sobre atividades que tenham feito em casa, comemorações de aniversários de alunos e de funcionários, explicação de datas comemorativas, informações sobre atividades que serão realizadas na escola, projetos a serem desenvolvidos etc. Foi num momento como esse que fui apresentada aos alunos e aos professores. Como é uma escola mantida por instituição religiosa, também são feitas orações nesse momento. Quem coordena essa reunião, com duração aproximada de trinta minutos é a diretora da escola, incentivando a participação de todos por meio de perguntas sobre o tema do dia. É um momento bem dinâmico no qual os alunos aparentam ter bastante interesse, pois respondem as perguntas, pedem a vez para falar, trazem novos assuntos. E como existem alunos que estudam somente no período vespertino, essa atividade acontece também logo após o almoço, às 13h. É uma atividade rotineira na escola, que foi relatada pela professora Maria Clara, da seguinte forma: 54 (...) nas Atividades da Vida Prática, a gente trabalha no grupo, no refeitório, todos os professores juntos, né, porque serve para todos, a parte de higiene, às vezes algum tema atual, trabalhamos as Olimpíadas... Nesse momento, a diretora e as professoras presentes buscam valorizar a participação de todos, apresentando atitudes que indicam uma consideração positiva pelos alunos: o que o outro fala é importante e há o respeito ao outro por meio de uma escuta atenta. Rogers fala do papel do facilitador da aprendizagem, que, nesse caso, podem ser todas as pessoas envolvidas nessa atividade. E a característica fundamental é: “um apreço ao aprendiz, a seus sentimentos, suas opiniões, sua pessoa. (...) uma confiança básica – a convicção de que essa outra pessoa é fundamentalmente merecedora de crédito (...)” (1973, p. 109) Logo se percebe que muitos alunos têm necessidade de contato físico com a equipe da escola, que retribui a atenção em gestos e falas. Da mesma maneira com a qual fui recebida, a equipe também atua constantemente com o toque, o abraço, o sorriso. Segundo Rogers, as atitudes facilitadoras podem ser manifestadas de maneira verbal ou não-verbal. Pude observar algumas características marcantes de atitudes não-verbais dos professores e dos funcionários na relação com os alunos nos diversos ambientes da escola: observei que, durante uma interação há o olhar atento em direção ao olhar do outro, um dos sinais de uma escuta ativa. Isso demonstra que há a busca de uma comunicação efetiva por meio da aceitação positiva e da empatia, embora exista a dificuldade de comunicação com alguns alunos, como afirma a professora Lúcia: às vezes eu tenho medo de não entender o que o aluno tá falando, de não compreender o que ele tá falando, então, eu me preocupo um pouco. Eu acho... pra mim é uma dificuldade, às vezes de não compreender o que o aluno está querendo dizer no momento. 55 Como estratégia de superação dessa e de outras dificuldades, as professoras apontam o papel do grupo (equipe docente e multidisciplinar, coordenadora e diretora) como suporte de trocas de experiências e de sentimentos gerados pelos desafios envolvidos nessas relações. Este fato pode ser claramente observado no relato de uma das professoras: (...) e até os colegas, porque a gente trabalhando em equipe, eu acho assim que é muito legal para que um ajude o outro, sabe, um tem alguma dificuldade, questiona para o outro, pergunta. (Professora Maria Clara) Durante os intervalos entre as aulas, em encontros formais e informais, ficou claro o interesse dos professores em trocar experiências e sanar dúvidas a respeito de alguns alunos, transcendendo a prática convencional do trabalho apenas no horário de aula. A professora Edinéia ilustra esse fato no seu relato: Eu sempre pedi ajuda, o que eu preciso... ó, tem gente que acha que tem tudo. Não!!! A gente sempre precisa de todo mundo! (Professora Edinéia) Em diversos momentos, presenciei conversas entre as professoras na sala dos professores, nos corredores e mesmo dentro de sala de aula, trocando informações, idéias de atividades, materiais pedagógicos confeccionados por elas mesmas. Tudo indica que há um bom nível de relacionamento entre professoras, o que influencia na manutenção do clima institucional acolhedor, já explicitado. A fala da professora Sofia ilustra ainda mais essa constatação: Quando a gente tem alguma dificuldade, você já coloca para a equipe, para os amigos, então a dificuldade é logo superada. Essas atitudes demonstram um bom nível de confiança na equipe educacional. Se considerarmos que o espaço escolar é também um espaço privilegiado para o aprendizado do professor na sua formação continuada, há nesse caso, a abertura para que se admita o “não-saber”, necessário à busca pelo conhecimento e troca efetiva com o outro. A equipe torna-se um apoio, um suporte na formação do professor, incluindo aí, sua “formação emocional”, proporcionando 56 as superações de desafios cotidianos. Significativa é a inclusão da palavra “amigos” na frase da professora Sofia. Retornando para as atividades diárias da escola, após a Atividade da Vida Prática, os alunos dirigem-se às salas de aula, oficinas, quadra esportiva, enfim, para os locais onde serão realizadas as aulas do dia, o para os atendimentos psicológico e fisioterápico. As turmas são pequenas, com média de 10 alunos por sala, com exceção das salas freqüentadas por alunos portadores de autismo, que têm um número menor, uma média de cinco alunos. Durante essas atividades percebo que existe uma certa flexibilidade frente à participação dos alunos, embora haja o encorajamento para que todos participem e atenção às resistências apresentadas, exigindo um certo grau de empatia, por parte dos educadores. Um exemplo do que Rogers apresenta como compreensão empática é explicitado nas falas de duas professoras: Você tem que ter, acima de tudo o interesse e ver as necessidades, do que o aluno precisa, você entendeu? (Professora Edinéia) Por exemplo, em outras escolas, aí o aluno entra, tem toda uma estrutura mecanizada, né, para ele cumprir, uma etapa mecanizada. E aqui não, eles têm as atividades, têm as tarefas, mas no momento que a gente vê que precisam descansar, que eles precisam ser ouvidos, a gente dá essa abertura. (Professora Lúcia) Quanto aos funcionários, como a equipe de cozinha, limpeza e inspetoras, percebe-se sua participação na manutenção de um clima escolar acolhedor. Isso não significa que não haja problemas nessa escola, mas que, de alguma forma, há a abertura para superações de dificuldades e conflitos, através do diálogo apontado como um diferencial dessa escola, pela professora Maria Clara: A cada dia de sentar na sala do professor, tomar um cafezinho junto e, nesse cafezinho a gente estar refletindo, conversando sobre os alunos, né, conversando até mesmo um probleminha particular que às vezes... pode até te afetar dentro de sala de aula. Mas no momento que você chega na escola, você já põe aquilo para fora, fica ali na sala dos professores e a gente já vai bem para a sala de aula, porque a gente tem a compreensão desde a coordenadora, da diretora, né, das colegas, então, o que não tá bem a gente deixa lá pra cima ou deixa em casa, né, então eu acho que é isso que diferencia de outras 57 escolas assim, o grupo unido, coisas que, em outras escolas, mesmo da prefeitura, era muita gente, então a gente não tem um contato assim, que a gente tem... (Professora Maria Clara) Um fator que chamou a atenção também, foi a presença constante da diretora e da coordenadora pedagógica nos intervalos com os professores e mesmo dentro de sala de aula. Por diversas vezes pude observar a interação delas com a equipe docente, o que me levou a investigar o histórico da gestão escolar, que apresento em seguida. 4.1.2 Uma nova direção Um aspecto importante na análise desse caso, foi a forma como ocorreu a chegada da diretora nessa escola: durante entrevista, a diretora informou que o convite para trabalhar ocorreu num momento crítico na sua vida pessoal, pois acabara de perder o único filho num acidente. A maneira que, do seu ponto-de-vista, encontraria forças para enfrentar a situação seria continuar trabalhando na sua área, abandonando a idéia de iniciar o mestrado que antes planejara. Comenta que em 1998, ano de sua chegada na escola, teve uma provocação do bispo [da instituição religiosa mantenedora]: resgatar a cidadania. A imagem da escola estava depreciada entre pais, comunidade. Eram tratados como crianças. Escola com azulejo caindo... eu disse para o bispo: ‘Sozinha não conseguirei, mas com uma turminha, sim!’ (Diretora Celina) A escola, por sua vez, também passava por um momento de dificuldades: problemas administrativos, didáticos, financeiros, portanto a mantenedora da instituição escolar já cogitava a hipótese de transferir os alunos para outras escolas e fechar essa. Esse foi um fato marcante, relatado também pelas professoras entrevistadas. Segundo a professora Lúcia, que iniciou seu trabalho na escola em 1993: (...) a escola estava passando por dificuldades financeiras, tanto que até umas pessoas, quando eu fui contratada, me criticaram: ‘Ah, você está entrando num barco furado, porque tem sérios problemas de 58 salário!’. Eu falei: ‘Ah, já estou parada há algum tempo, então eu vou tentar, né’, e valeu a pena, deu tudo certo. A estrutura da escola também... tava muitas coisas por fazer, porque a escola foi construída mas faltou verba mesmo. Então a parte externa não tinha sido terminada, a parte superior, era tudo aberto, sem rebocar, então estava com sérios problemas de infiltração, mas a gente foi levando, até que foram vindo as verbas, né, daí foram conseguindo mudar, a direção foi se empenhando mais, foi mudando. Em 1998 a nova diretora foi contratada, apresentando um novo projeto pedagógico. Na entrevista ela relata como foi esse momento de transição, afirmando que “até que metodologicamente, didaticamente, a instituição estava caminhando, mas eles [alunos] eram tratados como crianças, e agiam como tal, e as famílias também.” Ela dá um exemplo a respeito: os alunos chegavam na escola com uma espécie de lancheira de tecido, que penduravam em ganchos, no refeitório, em locais demarcados com os nomes de cada aluno. Para sua concepção de trabalho educacional com jovens e adultos, essa atitude era incompatível com a realidade dessa faixa etária. (...) eu sentia aqui era assim (...) como uma instituição não escolar, sabe, uma instituição assistencial? É, era assim os sentimentos que eu tive quando eu vim fazer uma aproximação da realidade aqui da escola, né... então uma visão, ao meu ver, bastante infantilizada. E tudo, tudo era mesmo assistencial, a gente não via aqui como uma escola, uma instituição de ensino, sabe? Então tudo isso a gente foi modificando, de estar deixando isso aqui com jeito de escola, né. (Diretora Celina) Aqui podemos observar o velho paradigma assistencialista encontrado na realidade das relações e concepções sobre a pessoa com deficiência: o “incapaz”, tratado como “criança”, reforçando condições de heteronomia em detrimento da autonomia. Um ciclo reforçado por escola e família, na dimensão social da deficiência. Para entrar em contato com a realidade da escola, a atual diretora ficou um período observando o contexto e elaborando novas formas de atuação. Apresentou o projeto para funcionários, professores, afirmando que sua base consistia em “modificar a própria identidade” [da escola], tratando os alunos de maneira coerente com a faixa etária e com suas necessidades. Relata de maneira saudosa as 59 primeiras reações de sua proposta para a mantenedora da escola: “(...) eu fui sabatinada a respeito daquele projeto, que na época eles acharam que era uma loucura...(risos) o que eu estava propondo.” Era uma proposta de firmar a escolaridade (de 1a. a 4a. série), constituir equipe multidisciplinar, renovar maneiras de atuação com a educação para o trabalho, investir na formação dos professores (a maioria não tinha formação na área), mas, acima de tudo, trabalhar com as crenças constituídas de pais, professores e dirigentes sobre as potencialidades e as limitações dos alunos. E foi com as famílias que a diretora encontrou as primeiras barreiras atitudinais, conforme relato: (...) chegar para um pai, para um pai não, para muitos pais, tinha alunos com quarenta anos, trinta anos, e dizer: “Olha, o seu filho não é a criança que você pensa que ele é”, é um pouco complicado (...) pela formação que eles tiveram, pela informação que eles tiveram quando o nascimento desses filhos (...) Dos “nãos” que receberam, não é... “Ele não vai andar, ele não vai falar, ele não vai escrever, ele não, ele não, ele não...” E aí eu venho com a proposta do “sim”, do sim, do sim, do sim, do sim... Então vem o médico, né, aquela coisa: “O que que o professor... aonde está a cabeça de uma professora que está dizendo sim aonde o médico diz não?!”, “Com que autoridade uma criatura fala isso pra mim?”. Mas eu dizia: “Tenta isso, vamos tentar, dá certo, dá resultado, experimenta, confia que vai dar certo!” Eu acho que essa questão, de trocar o “não” pelo “sim” foi uma dificuldade grande, né, mas também não foi assim uma pedra tão dura de quebrar, não, os pais acabaram se envolvendo, como estão envolvidos até hoje, né, e percebendo que iria melhorar a qualidade de vida, inclusive deles, né. Não era a qualidade de vida dos próprios filhos, mas da família como um todo, era essa, era esse o objetivo, de estar vendo o ser humano. (Diretora Celina) Essa visão da família é constantemente perpassada por opiniões e diagnósticos dos profissionais que iniciam os atendimentos à pessoa com deficiência: médicos, psiquiatras, psicólogos e outros. Enfim, a visão positivista constituída historicamente acerca da deficiência tem uma séria contribuição por parte desses profissionais que, em nome do tecnicismo, abandonam o lado humano sem sequer levar em consideração a situação familiar, econômica e cultural da criança, ou “o que vai ser daqui pra frente?”. Em muitos casos, o diagnóstico tornase a verdade absoluta da existência da pessoa com deficiência. 60 A escola, em contrapartida, pode e deve posicionar-se com horizontes mais abrangentes: a conscientização, a formação e a informação familiar tornam-se um dos pilares de apoio à pessoa com deficiência, por exemplo. Durante as observações feitas na escola, muitas vezes as professoras ou a diretora apontavam alguns casos de jovens que, se tivessem tido acesso à escola regular desde pequenos, não precisariam freqüentar a escola de educação especial atualmente. Mas as portas estavam fechadas para esse aluno e para essa família, que logo começou a acreditar no “não” e nas portas trancadas da sociedade. Retornamos aqui às barreiras atitudinais apontadas por Amaral (2002) como ações e comportamentos discriminatórios dirigidos a um alvo específico por meio de inter-relações mediadas por estereótipos, que a autora compara a “biombos entre os atores da situação”. A partir de mensagens advindas de experiências anteriores ou dos meios de comunicação, predefinimos como o outro se manifesta (“ele não vai falar”, “ele não consegue aprender”), evitando qualquer tipo de mudança nessa relação, ou na visão que se tem do outro. Segundo Amaral, os estereótipos são concretizações de nossos conceitos e preconceitos, “estes últimos entendidos como configurações psíquicas consteladas de forma independente de experiências diretas” (2002, p. 237-238). Mas, de onde vêm o preconceito e o estereótipo? O que leva uma família ou uma escola a acreditar no “não”, na impossibilidade de desenvolvimento da pessoa com deficiência? Amaral pontua dois fatores que, imbricados, configurarão nossas atitudes: fatores individuais (como o medo, por exemplo) e fatores sociais. Essas atitudes, portanto, são entendidas como: predisposições psíquicas diante de dada pessoa, grupo ou fenômeno(...) são sempre favoráveis ou desfavoráveis e não devem ser confundidas com opiniões e comportamentos, pois podem, ou não, estar em coerência com eles, dependendo das inúmeras contingências. (idem, p. 238) 61 Para um pai ou uma mãe fica a mensagem: “seu filho não pode...” Frente a esse rótulo/estigma que recai sobre a família como um todo, há, na maioria das vezes a proteção àquele que nasceu “imperfeito”. Essa proteção pode se traduzir em restrição dos contatos sociais da pessoa com deficiência, e/ou assegurar-lhe ambiente “acolhedor às diferenças”, como a escola de educação especial, por exemplo. Foi nesse momento, logo no início da implantação da nova proposta que, segundo a diretora, a equipe de professores se dividiu muito, parte por pressão dos pais, parte por não acreditar nessa nova abordagem educacional. Alguns professores e funcionários se desligaram da escola, outros foram contratados. As atitudes demonstradas pela diretora, ao tentar esclarecer pais e funcionários sobre as reais potencialidades dos alunos e a possível mudança de identidade da escola, nos remete ao que Rogers descreve como a base da Abordagem Centrada na Pessoa: a crença na possibilidade de crescimento de si mesmo e do outro, na prática de atitudes que favoreçam esse crescimento. 4.1.3 As relações interpessoais nas cenas do cotidiano No processo de observação do cotidiano da escola, presenciei algumas cenas significativas quanto ao processo das relações interpessoais e quanto as atitudes postuladas por Rogers. Cena 1: Lidando com Estereótipos e Preconceitos Durante aula de educação artística, A. M., termina a bandeira nacional, feita de mosaico de E.V.A. Cola a última peça e, emocionado, diz com dificuldade: “-Consegui!” Essa atividade seria corriqueira se A. M. não tivesse diagnóstico de atetose6 uma doença degenerativa que, aos 52 anos, rouba-lhe cada vez mais os 6 Atetose: distonia, alteração do tônus muscular. 62 movimentos, além da deficiência auditiva (usa aparelho auditivo) e da deficiência mental. A professora comemora, dizendo: “- Você tem determinação!” Ao que ele responde: “- Eu tenho cabeça!” A professora se aproxima, e, num abraço, afirma: “- Você tem cabeça e tem coração!” Ao presenciar essa cena, pude perceber a forma como a professora lidou com uma resposta típica de um aluno acostumado a estereótipos, rótulos e preconceitos, ao afirmar para si e para os colegas que “tinha cabeça”, reforçando simbolicamente o seu desempenho cognitivo. O olhar afetuoso da professora para com o aluno, indicando atitudes de consideração positiva e empatia, salienta que o mesmo “tem coração”, mostrando que o aluno é valorizado, além da sua capacidade cognitiva, e subliminarmente mostra que o mesmo é aceito de forma integral, inclusive com ênfase na atitude de determinação. Cena 2: Lidando com as perdas Ao perder num jogo de dados proposto pela professora, Z., 51 anos, com síndrome de Down, debruça-se na carteira e reclama, chateado: “Não gosto de perder...” A professora aproxima-se e, agachada, com as mãos sobre seus braços, diz: “Z., tem dias que a gente ganha, outros dias a gente perde. O importante é não perder o carinho”. Olhando nos seus olhos, continua: “Seu colega ganhou hoje, mas pode perder amanhã, mas o carinho da professora, você perdeu? O que é melhor: perder no jogo ou perder o carinho, o amor da professora”? Z. responde: “No jogo” “Meu time perdeu...”, conclui a professora. Z. ri e comemora, pois ele não gosta do time para o qual a professora torce. Podemos afirmar que, nessa situação, foi necessária para a professora a atitude de compreensão empática em relação ao aluno. Rogers diz que: quando o professor tem a habilidade de compreender as reações íntimas do aluno, quando tem a percepção sensível do modo como o 63 aluno vê o processo de educação e de aprendizagem, então, cresce a probabilidade de aprendizagem significativa. (1973, p. 111) Essa compreensão exige um certo distanciamento do eu para que possa haver uma real compreensão da necessidade do outro. A professora demonstrou, até mesmo em sua postura física, uma real vontade de compreender o que se passava com o aluno. 4.2 Elementos Facilitadores das Relações Interpessoais 4.2.1 O clima organizacional Para complementar a análise de dados para além da dimensão pessoal, surgiu a necessidade de abordar o contexto dessa escola, no tocante ao clima organizacional, por ser este um diferencial, apontado como um facilitador das relações interpessoais. Segundo Brunet (1992), o clima organizacional pode ser definido, com base na medida perceptiva dos atributos organizacionais, que se reportam essencialmente ao conceito de satisfação das necessidades dos indivíduos que compõem a instituição escolar. Debruçam-se sobre as micro-percepções dos trabalhadores sobre o ambiente de trabalho. Podemos afirmar que o clima de uma organização tem características relativamente permanentes, que: a) Diferenciam uma dada organização, podendo considerar-se que cada escola é susceptível de possuir uma personalidade própria, um clima específico; b) Resultam dos comportamentos e das políticas dos membros da organização, especialmente da direcção, uma vez que o clima é causado pelas variáveis físicas (estrutura) e humanas (processo); c) São percepcionadas pelos membros da organização; d) Servem de referência para interpretar uma situação, pois os indivíduos respondem às solicitações do meio ambiente de acordo com a sua percepção do clima; e) Funcionam como um campo de força destinado a dirigir as actividades, na medida em que o clima determina os comportamentos organizacionais. (p. 126) 64 Ainda segundo Brunet, quando se tenta determinar as causas do comportamento de um indivíduo em situação de trabalho, depressa se constata que a análise baseada exclusivamente em aspectos pessoais se torna caduca e incompleta, sendo necessário alargar a pesquisa ao ambiente de trabalho. São os actores no interior de um sistema que fazem da organização aquilo que ela é. Por isso, é importante compreender a percepção que estes têm da sua atmosfera de trabalho, a fim de se conhecerem os aspectos que influenciam o seu rendimento. (BRUNET In NÓVOA, 1992, p. 125) Reforçando os aspectos citados por Brunet, algumas professoras, quando questionadas sobre o que as levou a trabalhar e a permanecer nessa escola, relatam suas percepções que indicam aspectos do clima organizacional: (...) a gente vê que aqui é um ambiente onde todo mundo se respeita. Então a gente aqui, a gente vê que, a gente respeita muito, desde a merendeira, da... tia do portão, sabe, a gente chama... como educadoras, porque elas tão em contato com todos os alunos. (Professora Maria Clara) Aqui é assim, desde bolo a curso, tudo se passa. E as alegrias também são divididas e as tristezas também, a gente é bem unido, é uma família, porque são quase trinta funcionários, é assistente social, coordenadora, direção, fisio, é... a equipe inteira, toda trabalha junto e o resultado é esse, positivo. (Professora Edinéia) Quando a professora Edinéia afirma que “de bolo a curso, tudo se passa”, podemos perceber que no clima organizacional da escola em questão predomina a cooperação entre seus membros, em contraposição à competição, caracterizando um clima organizacional do tipo aberto, descrito como “um meio de trabalho participativo, no qual o indivíduo tem um reconhecimento próprio, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento do seu potencial.” (p. 130) Outro aspecto relevante quanto à colaboração do pessoal administrativo, é apontado no relato da diretora: Desde o guarda da noite, que apesar de, que eu não vejo, só converso com ele por telefone, mas ele vale ouro, ele é precioso aqui dentro porque qualquer emergência, ele pinta a escola inteira, ele é guarda, mas ele pinta, ele não pára, ele pinta a escola, a torneira que 65 tá pingando ele troca, à noite ele faz, ele tem um amor tão grande pelo que ele faz, que... ele cuida, ele ama isso aqui, sabe? Brunet afirma que quando se quer identificar o clima de uma escola há que considerar um conjunto de características: a) Os atributos de uma organização constituem as unidades de análise; os actos e os comportamentos da direcção são as determinantes principais do clima de uma organização. b) As percepções têm conseqüências importantes sobre o comportamento dos empregados c) O clima é um conceito polivalente e sintético, que não é possível diagnosticar com base numa única dimensão, sendo necessário recorrer ao conjunto das suas componentes. d) Podem existir movimentos no interior de uma organização, produzindo a coexistência de diferentes climas; no entanto, verifica-se geralmente uma certa partilha das percepções do clima organizacional entre o conjunto de seus membros e) O clima é o elemento estável no tempo e evolui muito lentamente, baseando-se em variáveis relativamente permanentes; para o modificar tem de se proceder a alterações importantes nos próprios alicerces da instituição. (1992, p. 129-130) Aqui surgem dois aspectos importantes da análise: o papel da diretora e a alteração importante ocorrida com a sua chegada, modificando assim, o clima organizacional escolar. O conhecimento do clima permite identificar as dimensões que desempenham um papel fundamental na percepção do ambiente de trabalho e, deste modo, facilita a planificação dos projectos de intervenção e de inovação. Finalmente, é importante sublinhar que a eficácia da escola e o sucesso dos alunos são afectados pelo clima organizacional. (BRUNET In NÓVOA, 1992, p. 138) Esse clima influencia também a percepção do aluno sobre a escola, que passa a ser um referencial positivo no seu cotidiano, ao contrário do que estamos acostumados a ouvir dos alunos de escolas regulares, como ilustra o exemplo a seguir: E o valor é de ver a alegria deles, né, assim, de estarem numa escola, de eles acharem ruim com um feriado... risos... que eles não querem, não gostam de feriado, eles querem vir para a escola... nossa, férias... eles já começam a... alguns ficam até mal, começa a dar dor de cabeça, a baixar a pressão, porque eles não gostam. Até um hoje 66 falou assim: “Se eu fosse presidente da República, eu tirava todos esses feriados!”... (risos)... (Professora Maria Clara) Portanto, sob este ponto-de-vista, na implantação da inclusão em escolas regulares, um diagnóstico do clima organizacional escolar pode ser um instrumento de facilitação para a adoção das ações que visem a eficácia do processo de mudança. 4.2.2 O papel da direção A atual diretora encontrou a escola em condições desfavoráveis de funcionamento e buscou implantar uma série de mudanças a partir de sua vontade íntima e desencadeadora. Seu papel na transformação da escola como incentivadora de mudanças foi um item recorrente, que vem ao encontro do que Brunet afirma sobre o clima organizacional escolar: “a resposta dos responsáveis face a uma determinada situação tem efeitos no clima.” (idem, p. 128). Podemos afirmar que a chegada da diretora foi um marco de mudança nas características do clima organizacional e nas concepções da equipe educacional sobre as próprias potencialidades, reformulando a própria identidade institucional. Nota-se aqui que o momento de troca de direção da escola proporcionou essa ruptura, alterando significativamente o clima organizacional escolar. Esse novo ambiente é percebido pelas professoras, como no relato da professora Maria Clara: Acho que o apoio maior, como essa é uma escola, é da parte da direção, né, e a diretora... ela é ótima, ela te compreende, ela tem assim, o dom da palavra com os funcionários, com os alunos, que eu admiro muito, sabe esse... o jeito de falar com as pessoas? Não precisa ser autoritária para você querer as coisas. Então, ela, com jeitinho, ela consegue muita coisa da gente, né. (...) Acho que tanto a diretora que é acima de nós, eu acho que a gente toma isso como exemplo. Então a gente passa isso também para os alunos, né, que nós somos unidos, que... e ela também transmite muito isso pra gente, essa alegria, essa espiritualidade, esse carinho, né, que ela tem. (...) Porque eu acho que... sem uma pessoa assim... que eu já trabalhei em outras escolas e por mais que o grupo tentasse se unir, e tudo, a pessoa que seria a parte administrativa, né, que seria uma direção, coordenação, desmanchava aquele grupo. (...) Então assim, é um respeito mútuo, eu dou bastante valor para isso. (Profa. Maria Clara) 67 Aqui vale ressaltar mais uma característica que pontua a favor de uma postura corajosa frente às ameaças. Aprender com os próprios erros e de sua equipe, se preciso for, voltar a estudar para melhor enfrentar os desafios: Nós estamos juntos, se a gente errar, nós vamos errar junto, mas errar por uma boa intenção. A nossa intenção é acertar, sempre, e a gente vai procurar respaldo, nós não estamos fazendo por ouvir dizer. Nós vamos primeiro pesquisar, nós vamos estudar, nós vamos voltar pra Universidade, vamos fazer as coisas com paixão. (Diretora Celina) Neste sentido a diretora da escola tem um papel importante na implantação de uma dinâmica de constante aprendizagem, adaptando-se às variáveis do cotidiano sempre buscando inovar, criando a cada dia uma “nova instituição”. Como diz Morin: “(...) para se reformar a instituição, temos de reformar as mentes, mas não se pode reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições.” (apud MANTOAN, 2003, p. 20) Esta realidade do papel da diretora constatada na entrevista e nas observações, pôde também ser comprovada nas entrevistas com as professoras: A diretora falou: Edinéia, nós vamos fazer até acertar. Resolvemos o problema... Agora, nós pedimos o tanque de areia, fizemos uma piscina de tanque de areia, ela tá fazendo o tanque de areia lá embaixo, já tá sendo construído. Então é uma pessoa que ela também acredita no nosso trabalho. E ela dá essa liberdade. Você fala: “Hoje eu vou fazer isso”... mas você não faça sem falar. Tudo é comunicado, e tudo pode se fazer. Claro que ela avisa, o sucesso não se ganha sozinha, é tudo coletivo. Às vezes eu não tenho uma visão, mas a outra tem. Então, o trabalho é de grupo, sempre nós trabalhamos em equipe, uma ajuda à outra, uma colabora com a outra... (Professora Edinéia) Há aqui o apoio por meio de recursos materiais e também o apoio pedagógico, no sentido da confiança no trabalho das professoras, que percebem isso na troca de informações e na valorização da coesão da equipe docente por parte da direção da escola. E esse relato reforça novamente a contribuição do papel da direção na constituição do clima organizacional escolar, como expôs Brunet (1992). 68 No contato com experiências bem sucedidas de integração/inclusão de alunos com deficiência na escola regular, Amaral (2002) aponta para um fator imprescindível: a “flexibilização da hierarquia rígida de saberes e fazeres”: (...) hierarquia essa, muitas vezes, apoiada em “especialidades” que se opõem a diferentes formas de conhecimento da realidade ou, em outras, em degraus institucionais de caráter funcional – ambos apoios impedindo a livre circulação de aspetos comuns. (...) desejo apenas enfatizar que ela pode invadir espaços em que não seria necessária sua cristalização e, sim, seria imprescindível sua flexibilização. Quantas vezes a observação de uma merendeira, por exemplo, pode ser preciosa contribuição para a ação pedagógica e vice-versa! (p. 246) Um exemplo da ocorrência dessa flexibilização é apontado pela própria diretora: Todos nós temos alguma coisa para contribuir, isso eu valorizo muito e tenho conversado muito com a equipe, faço reuniões com a equipe de apoio, inspetores de alunos, pessoal de limpeza, merenda... de valorizá-los, de dizer: “Olha, aqui não existe ninguém mais do que o outro, né, nós somos seres imprescindíveis nesse trabalho”. Tudo que nós falamos em termos pedagógicos e técnicos, a gente fala com eles: como tratamos os autistas, porque tratamos, porque às vezes temos que contê-los, tudo, tudo, a gente fala, na medida do possível, tem coisas que são sigilosas, mas tudo o que é pra que as vidas aqui dentro sejam valorizadas, nós tratamos. Porque senão fica uma coisa de hierarquia e parece que a coisa não flui, porque aquilo “não é a minha obrigação, é obrigação do outro, então eu não vou, o meu limite é aqui, mas o do outro começa ali...” Então eu costumo falar pra elas, eu uso a metáfora da corrente, então eu digo: “nós somos elos de uma só corrente, quando um elo se quebra, pra que serve a corrente?”, né. Então toda pessoa que se propõe a trabalhar numa unidade escolar, é um educador (...) Com carinho, com respeito, mas deve ser, né. Então eu gosto disso e os funcionários também, eles contribuem muito à essa valorização, não é, que eu sei que aqui nós temos, que precisa de uma... não é perfeita, não, precisa ser aprimorada, mas valorizar a vida de todos os envolvidos, é pra mim isso é o mais importante. (Diretora Celina) A inexistência de barreiras entre os colegas da escola, e o sentimento de valorização advindo do resultado do trabalho, parecem ser uma extensão da personalidade da diretora. Às vezes a gente vai, nós vamos, uma só da equipe; que vai e busca informação e vem como reprodutor, né, como um semeador do que aprendeu, na medida que isso for possível... é... acabou... até 69 trocando, porque a medida que a gente passa o que recebeu, também tem essa troca, né. Finalmente, de acordo com as observações e as entrevistas entre as professoras, podemos enumerar algumas características designadas à diretora, tais como: 1. O “dom de lidar com as pessoas” 2. Flexibilização da hierarquia 3. Dedicação ao trabalho 4. Expressão de sentimentos incentivadores (alegria, espiritualidade, carinho) 5. Incentivo à troca de aprendizados e colaboração entre a equipe 6. Valorização da equipe escolar 7. Facilitação da coesão na equipe 8. Incentivo ao aprendizado com os erros 9. Incentivo à formação em serviço 10. Gestão participativa 11. Respeito mútuo 12. Criação e aplicação de novas metodologias. 4.2.3 A construção de um novo projeto pedagógico Evidentemente que a situação inicial encontrada pela diretora, ou seja, uma situação precária da escola, aliada a sua vontade de implantar um novo fazer, levou a reflexões acerca de um novo projeto pedagógico. Ao se deparar com uma oficina abrigada em funcionamento na escola, a diretora fez uma das primeiras propostas que causou impacto entre pais e professores. Segundo seu relato: Havia uma oficina de vassouras que tinham serras perigosíssimas, serras elétricas... instrumentos todos ligados na eletricidade, que poderiam amputar o dedo de um aluno, e alunos convulsivos trabalhando ali, sem proteção alguma. Então a primeira coisa que eu disse: ”Eu só entro aqui se essa oficina se fechar. Eu não creio que 70 fabricar vassouras seja o ideal para esse alunado”. (...) Lógico que chocou porque o profissional que trabalhava ali ele não me favorecia mais, como instrutor de oficina. (Diretora Celina) A professora Lúcia foi uma das instrutoras de oficina que buscou, posteriormente, a formação e especialização, incentivada pela própria escola. Eu fui contratada como monitora de oficina (...) E aí, depois que a gente estava aqui há um ano, mais ou menos, aí eu vi que era a área mesmo que eu gostaria de seguir, daí que eu fui fazer o magistério (...) logo em seguida eu já fui contratada como professora, então meu cargo mudou, né, para professora, e aí também fiz o curso da APAE como uma maior especialização e fiz Pedagogia, agora terminei Pedagogia. Então o magistério veio para a minha vida através deles (...) foi através da escola que eu escolhi o magistério.” (Professora Lúcia) Foi proporcionado com que eles fossem procurar instituição para estar bancando isso, né, para que eles fossem procurar uma especialização, uma reciclagem, incentivá-los para que fizessem Pedagogia ou qualquer outra disciplina, faculdade afim, não é, para que eles enriquecessem aqui. Tudo isso a gente foi investindo aos poucos (...) eu queria pedagogos, meu projeto envolvia pessoas especializadas e eu só trabalharia se fosse nessas condições. De ter uma equipe formada, equipe com fono, ainda não consegui montar a equipe toda como você percebeu, né mas uma equipe que desse suporte porque sozinha a gente não consegue, né, aqui é uma orquestra que precisa desses instrumentos.(Diretora Celina) Na tentativa de mudança de identidade da instituição (como pontua a diretora), aspectos relacionados ao clima organizacional começam a despontar como indicadores de superação. Vejamos: ao mesmo tempo em que uma atividade já consolidada na escola é eliminada do dia-a-dia, há a possibilidade de formação desses instrutores para novas atividades, ou novos desafios no trabalho com a pessoa com deficiência. O momento de crise pode significar um risco, mas também se apresenta como uma oportunidade de mudança e de superação de uma situação estabelecida. Segundo Brunet, o clima organizacional desempenha um papel fundamental: (...) no êxito das acções de aperfeiçoamento ou de formação (reciclagem) do pessoal da escola. O aperfeiçoamento ou a formação só se tornam eficazes se o participante tiver a noção de que vai poder 71 utilizar os novos conhecimentos e de que o clima lhe proporcionará os complementos e os apoios necessários. Um clima de tipo participativo e aberto às mudanças estimula o empenhamento em programas de formação e de aperfeiçoamento. (2002, p. 132) A diretora afirmou que, no seu ponto de vista, há muito que melhorar no projeto pedagógico e na didática e que o foco principal da escola é o resgate da cidadania. A construção e reconstrução do projeto pedagógico é relatada da seguinte forma: E a gente começou esse projeto e ele é sempre inacabado, né... risos... é um produto inacabado, como a gente também é... gente tá modificando, estudando, como a gente ainda estuda o próprio projeto político pedagógico, que a gente sempre tem trabalhado nele, ele tem muitas falhas ainda e alguns profissionais ainda não se encontram nele, ainda não se sentem parte dele, apesar de eu estar sempre estimulando (...) mas elas tão caminhando pra isso, tão caminhando. Eu sei que tem pontos que a gente precisa ainda retomar, mas parece-me que nós temos agora a nossa cara, que ela ainda precisa de alguns retoques, de alguma maquiagem, mas já temos a nossa identidade, né, embora ainda um pouco fragmentada, mas a gente tem uma identidade que não é aquela de 98. (Diretora Celina) Um projeto pedagógico acabado, pronto, é o ideal frente a uma realidade de constantes mudanças e desafios? Então, nossa, eu sempre lembro, até no projeto pedagógico tem, né: “Somos elos de uma só corrente”. (Diretora Celina) Eu falo que a nossa pedagogia é relacional, né, eu invento esse termo, é a pedagogia do relacionamento, da confiança mútua, de um se importar com o outro... (Diretora Celina) Aqui percebemos a nítida influência de uma filosofia existencial, humanista, permeando o projeto pedagógico da escola, uma abordagem muito próxima da de Carl Rogers. 4.2.4 A escola em crise Um dos objetivos iniciais deste trabalho, de oferecer subsídios para o estudo da inclusão, é atendido quando analisamos a crise gerada na escola com a chegada de uma aluna com autismo, que não encontrou capacitação docente para lidar com 72 suas necessidades. Não seria esta a situação habitual na tentativa de inclusão nas escolas regulares? A aluna Mariana, de 16 anos, gerou esta crise e, contrariando a tendência habitual de exclusão, provocou uma reação no sentido de buscar aprimoramento para superar esta “deficiência” da escola. Num primeiro momento, o sentimento de exclusão foi substituído por um pedido de perdão à família desta aluna, no ano de 2001: Eu trabalho tanto com educação especial, sei tanta teoria e quando eu pego um autista, eu não sei o que faço com ele... Então eu falei: “Não”... Nós devolvemos a Mariana para a família e pedimos perdão. Eu pedi perdão, pedi: “Perdão, mãe, não sei trabalhar com ela, as professoras estão se frustrando, ela se... ela se bate muito!” Ela já tinha perdido uma visão, já tava com um problema, com uma lesão no seio, então a gente... “Não, nós não... o que que nós vamos fazer com essa criança aqui? Nós não sabemos... Ela tá jovem, ela tava com dezesseis anos. “E olha, nós podemos, se a família der uma chance, nós vamos estudar, nós vamos voltar para a Universidade, depois a gente retoma. Mas enquanto isso, olha, pode colocar nessa instituição, nessa, nessa instituição”. Dei outras alternativas para a família pra ela ter... Ficamos preocupadas, né, porque é como assinar um atestado de incompetência... (Diretora Celina) Houve, portanto, por parte da direção, a constatação da exclusão de uma aluna do sistema de ensino especial, o que a levou a tomar a decisão de formar os professores para, a médio prazo, poderem atender essa demanda. Eu não fui competente para trabalhar com esse aluno, né, eu não sou. Mas aí a gente voltou para a Universidade, a equipe toda, fomos visitar instituições, fazer estágio, começar do zero mesmo, né, e a gente viu que a gente era capaz, sim. Aí ligamos para a família da Mariana, chamamos a família toda aqui e eu disse: “Agora estamos com essa bagagem, isso não quer dizer que nós vamos acertar, mas a gente tem mais chance de acertar”. Porque só boa vontade a gente viu que não vale a pena, e a gente tava imbuído da maior boa vontade, né, mas precisa de competência, é preciso do saber fazer, né, não só do querer fazer... risos... então retomamos... (Diretora Celina) Apesar da busca por formação na especialidade do autismo, a equipe não abandonou a filosofia do projeto pedagógico, fazendo algumas adaptações de técnicas que viessem ao encontro dos objetivos do projeto. Tudo isso feito com discussões entre direção e corpo docente. 73 O que a gente via (...) era uma contenção física e a nossa filosofia não... Como é que eu vou segurar o braço de uma jovem e não deixar com que ela tenha as respostas, movimentos livres, né, então a gente começou a mesclar, a pegar uma coisa dali, uma coisa de lá, e um pouco do método TEACCH7, um pouco do que a gente achava que dava certo, dava resultado, e no fim acho que a gente achou um equilíbrio, que ainda está sendo lapidado, mas a gente tem visto resultados positivos, tem sido gratificante. O primeiro curso de autista, que foi uma semana... a gente selecionou, assistiu tudo e mesclou, e a gente selecionou o que, deu uma mescla do que era bom e do que a gente não gostava para a nossa realidade, e deu muito certo. (Professora Edinéia) Após um ano de capacitação, a diretora chamou novamente a aluna, e a família aceitou sua inscrição na escola. Hoje o relato da diretora sobre a aluna Mariana é o seguinte: A evolução é maravilhosa, né, é uma menina que hoje participa, ela tem ainda algumas coisas, claro, ela é uma pessoa que tem autismo, mas é uma aluna que tá bem integrada... pra gente é muito gratificante, muito gratificante. (Diretora Celina) Para as professoras envolvidas diretamente com essa aluna, diversos desafios surgiram, como mostra a professora Sofia: A Mariana se agride muito, se auto-agride, então para mim foi muito forte isso. Conversando com a equipe, me explicaram para ter mais tranqüilidade, que o comportamento dela era esse mesmo, que iria diminuir com o tempo, e com isso eles transferiram ela para outra professora (...) existe todo um cuidado também com o profissional e com o aluno... (Professora Sofia) Esse cuidado com o professor, nas suas dúvidas, angústias, medos frente ao desconhecido são apontados como uma das marcas de situações escolares bem sucedidas no que tange à inclusão, como afirma Amaral (2002): 7 Método TEACCH: Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children (Tratamento Educacional para Crianças Autistas e com Dificuldade de Comunicação). 74 Para “representar” o lado subjetivo da questão, podemos lembrar a importância de socialização de medos e angústias, de problematização conjunta de mitos e tabus, de criação coletiva de formas de enfrentamento de resistência de cada um dos agentes envolvidos em processos de inclusão. (p. 246) Nesse sentido, as atitudes que Rogers postula podem ser facilitadoras nesse processo de escuta da direção e coordenação pedagógica frente às novas vivências da equipe docente. Na medida que há esse espaço dentro da escola, cada vez mais as situações podem ser trabalhadas de maneira mais eficaz, amenizando as barreiras atitudinais entre todos os atores educacionais envolvidos. 4.3 Concepções das Educadoras sobre Alunos e Trabalho Pedagógico 4.3.1 O aluno e a deficiência Nos relatos das professoras e da diretora, durante entrevistas, pudemos observar suas concepções sobre os alunos e a deficiência. Por diversas vezes pude observar que as professoras utilizavam o termo “filhos” para se referir aos seus alunos: Então a gente tem que, realmente, se unir, né, essa família, e como se eles fossem nossos filhos e abraçá-los mesmo e se dedicar pra eles, né, assim, fazer o melhor possível para que eles se sintam mesmo pessoas, cidadãos, é... que são respeitados, que têm tudo para aprender alguma coisa, né, de acordo com o limite deles, mas eles têm as aptidões, as potencialidades, eles vão aprender a adquirir (...) (Professora Maria Clara) Eles são como filhos dentro de casa. Você pode ter dez, nós somos dez irmãos, cada um tem uma necessidade, cada um tem um dom. Sabe? Então você tem que ver o interesse, a necessidade, a atenção, você vê que a nossa situação é pequena. Eles são diferentes, para melhor. São especiais para melhor. (Professora Edinéia) Ao analisar a forma como as professoras se referem aos alunos, podemos interpretá-las de duas maneiras distintas: como uma postura paternalista, assistencialista de atenção à pessoa com deficiência, ou de outra forma, como sinal de consideração positiva, proximidade do aluno, numa alusão à intimidade, 75 incorporando-o à própria família. Na afirmação da professora Lúcia, podemos observar a situação familiar de alguns alunos: ...pela faixa etária, já não têm pai, mãe, moram com outros parentes e, às vezes a gente percebe que em casa ele vai no final de semana, ele vai ter o banho, a alimentação, mas o diálogo, alguém que o ouça, a gente percebe que não tem essa troca... às vezes a família cuida em casa e não leva para passear, não leva para ter contato com outras pessoas... (Professora Lúcia) Nesse sentido, a diretora aponta a escola como espaço privilegiado de atenção à pessoa com deficiência, em detrimento de muitas situações familiares impeditivas de ações mais concretas por parte do aluno: Mas a gente sente, por exemplo, que a gente poderia... os alunos poderiam estar tendo um aproveitamento maior se estivessem mais tempo conosco, porque a família não tem condição de dar aquilo que a gente dá aqui, né. (Diretora Celina) Podemos retomar aqui o que Amaral aponta como barreiras atitudinais frente a condição de diferença/deficiência: o ciclo estereótipos/preconceito/atitudes e estigma. E como existe esse movimento de contradição também nas relações escolares, há a contradição em relação às concepções sobre seu público-alvo, como explicita a professora Maria Clara: Agora eles já são adultos, né, apesar de eles serem uma “eterna criança” assim, né, mas a gente tem que tratar eles como adultos mesmo, porque eles nem gostam de ser tratados como uma criancinha, né, ser muito bajuladinho assim, nhenhenhen, né. (...) Lá é adultos... o novo sempre assusta um pouco, né, aí eu fiquei meia que assustada, assim: “Ai, mas é adulto, eu nunca trabalhei com adulto...” mas assim, mas eu gostei muito, me identifico muito... (Professora Maria Clara) Segundo Amaral, essas concepções surgem de uma construção histórica, e para sua superação devemos recorrer aos: (...) fóruns coletivos [para que possamos] dar sustentação e amparo a dificuldades individuais, oriundas não de incompetências ou insensibilidades, mas de uma longa história de discriminação e segregação que impediu quase todos nós de estarmos frente a frente, em pé de igualdade”, com o significativamente diferente e, portanto, 76 alimentando o mal-estar e o estranhamento que essa não-conversa suscita. (AMARAL, 2002, p. 246) 4.3.2 O trabalho pedagógico No que tange às concepções sobre o trabalho pedagógico na escola pesquisada, pudemos enumerar algumas questões: as dificuldades/desafios presentes, os movimentos de superação dessas dificuldades e os diferenciais dessa escola na visão de suas educadoras. No primeiro item, alguns relatos apontam para as dificuldades/desafios encontrados no cotidiano da escola. Segundo as educadoras: (...) Eu acho que esse lado da alfabetização, do aprendizado, com criança é muito mais fácil do que com o adulto, né, então assim, a dificuldade que eu tô tendo às vezes é de como lidar com esse lado mesmo do aprendizado, da alfabetização, né, não com todos, mas aqueles que já estão na idade adulta assim, chegando ao envelhecimento (...) vai acabando aquela, aquele entusiasmo, então às vezes, por mais que você dá de si, por mais que você traga informação, que você trabalhe com eles... às vezes, assim, é difícil deles captarem... (Professora Maria Clara) Profa. diz que “hoje eles entendem, mas na próxima semana tem que explicar tudo de novo... são 20 anos assim! Porque quando a gente tá perto, sai, quando a gente sai, não vai...” (Professora Edinéia) Esse aspecto apontado pelas professoras nos remete a um dos desafios da educação da pessoa com deficiência mental: lidar com as limitações cognitivas, quando há uma supervalorização do ensino regular justamente nesse aspecto. Provavelmente a formação escolar que as próprias professoras tiveram lhes mostrou isso, formando-se então um referencial do que seja “ensinar” e do que seja aprender. Romper com essa estrutura de saber estereotipada não é das tarefas mais fáceis. Segundo Amaral, “não há lugar para surpresas num mundo pleno de estereotipia e, portanto, não há lugar para desafios” (2002, p. 237) 77 Questões de ordem administrativa e de recursos materiais aparecem na escola de cunho filantrópico, como dificuldades para a concretização do projeto pedagógico em sua completude. O que falta é o horário de estudo, mas a gente procura fazer em casa. (Professora Edinéia) Outro ponto que a gente bate muito aqui é por falta de verba, por questão financeira mesmo, né. Às vezes a gente quer fazer um curso, e quer... mas não... aqui é uma instituição filantrópica, nós não temos fins lucrativos, então nós dependemos de verbas públicas... de doações das igrejas... (...) porque senão a rotatividade da equipe compromete o trabalho, qualidade do trabalho... Então essa questão de estarmos nos formando, nos reciclando, também eu vejo como um impedimento, porque nem sempre nós podemos estar fazendo isso. (Diretora Celina) Encontramos aqui o movimento da dificuldade e, em contraposição, o movimento de resistência dos atores educacionais frente a essas dificuldades, buscando alternativas de atuação e de superação, como mostrado em alguns relatos: Eu preciso me segurar... a menina falou que eu sou a rainha da sucata... A maioria dos nossos materiais que são pedagógicos, eu posso dizer, funciona ok, (...) fizemos com E.V.A., tudo ganho, eu não jogo nada... olha, isso pode ser isso... até o meu marido traz, ele diz: Olha, dá pra aproveitar isso lá na sua escola? Leva pra escola... e a gente vai fazendo... (Professora Edinéia) Mas elas vão discutir, tudo é discutido, tudo é estudado, é importantíssimo... (Professora Edinéia) Novamente podemos observar a importância do fórum coletivo na escola para a resolução de problemas, de enfrentamento de desafios, de incentivo à formação docente em serviço, do apoio à equipe educacional. Segundo Amaral (2002), a inclusão como: a proposta de participação ativa das pessoas significativamente diferentes na vida social – e, obviamente, aí se insere o contexto educacional -, iniciada há décadas, deve ancorar-se, cada vez mais, em processos coletivos de construção. (p. 247) 78 Na escola de educação especial pesquisada, encontramos alguns diferenciais que, no parecer de seus componentes, fazem dessa escola um organismo único, com sua personalidade própria, remetendo-nos a Brunet. A diretora afirma: Eu penso... aliás, não, eu tenho certeza que o que me encanta mais aqui é a delicadeza das relações entre as pessoas, entre alunos e professores, acho que isso me encanta muito porque coincide muito com a maneira como eu entendo a educação... (Diretora Celina) Todos nós temos capacidades, independentemente das limitações... para mim foi ensinamento também: de olhar as pessoas, a parte boa. Para mim é uma lição de vida (...) a humanidade, a questão do cuidado com o ser humano aluno, o cuidado com o profissional, faz a gente conviver... gostar de vir para a escola. (Professora Sofia) É a dignidade, o respeito. Isso é um pelo outro, é pelos professores e principalmente, pelos alunos. E é o que falta [em outros locais]. O respeito, a dignidade, aqui eles têm. Tudo isso. (Professora Edinéia) Fica evidente a valorização do aspecto humanista na esfera das concepções das educadoras sobre o trabalho pedagógico nessa escola. A “pedagogia relacional” apontada pela diretora como essência do projeto pedagógico implantado a partir de 1998 parece estar construindo também um clima organizacional facilitador das atitudes apresentadas por todos os atores educacionais. 79 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao revisitar o caminho percorrido... revendo a trajetória dessa pesquisa, percebo a necessidade de apontar algumas marcas que a escola apresentada nos mostrou como caminhos possíveis para o processo de inclusão de alunos com deficiência em escolas regulares. Obviamente que, cada escola possui suas características que lhes são peculiares, mas alguns aspectos estudados parecem fornecer pistas de atitudes que possam facilitar a inclusão nos seus aspectos relacionais e, num âmbito maior, na sua interface com o clima organizacional escolar. De acordo com os relatos recorrentes dos sujeitos entrevistados, a proposta pedagógica da direção atual da escola ocasionou uma ruptura com um estilo de gestão e, mais ainda, com concepções de pais, professores, equipe e alunos sobre as possibilidades de mudança e superação de uma situação na qual a escola se encontrava há algum tempo. O papel da direção da escola evidenciou-se como fundamental na construção do clima organizacional atual da escola. O aspecto da mudança gera rupturas, assim, quando falamos de inclusão de alunos com deficiência no sistema regular de ensino, nos deparamos com o desafio de olhar para as concepções estabelecidas culturalmente do que vem a ser a diferença/deficiência, como nos relacionarmos com o diferente. Saber lidar com o “não saber” também foi uma marca evidenciada na situação que a escola vivenciou ao lidar com uma aluna diferente do público atendido na ocasião. Situação muito próxima do que a escola regular possa estar passando. A formação em serviço entra aqui como fio condutor das mudanças que se seguiram, além do apoio ao professor, na socialização de seus medos, dúvidas e angústias. Atitudes de partilha de sentimentos entre equipe docente, direção e coordenação foram apontadas como suporte para a inovação do trabalho pedagógico. As concepções que os sujeitos da pesquisa apresentam sobre o trabalho nessa escola, apontam para um local de trocas significativas, facilitador de crescimento pessoal e profissional e de aprendizado. Ampliando os horizontes para outros possíveis locais de inclusão, podemos observar que o clima organizacional criado pode ser um elemento facilitador ou não do processo de implantação de novas propostas, como a da inclusão. Portanto, relevante se torna o estudo de outra esfera: a das relações interpessoais entre os atores educacionais, e não só com o aluno com deficiência. Se a escola se apresenta como um local que fornecerá o apoio necessário ao professor e à equipe nesse processo de mudança, as pessoas envolvidas sentirão o acolhimento necessário para arriscar-se na inovação que a inclusão exige. É no fórum coletivo de construção que as possibilidades se apresentam como possíveis de serem concretizadas. Assim, cada membro da equipe de atores educacionais tem a possibilidade de conscientizar-se de que, “somos elos de uma só corrente”8. 8 Frase pronunciada pela diretora da escola durante entrevista. 81 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, L. R. Contribuições da psicologia de Rogers para a educação: uma abordagem histórica. In: PLACCO, V. M. N.S. (org.) Psicologia & Educação: revendo contribuições. São Paulo: Educ, 2002 (p.63-93). ______. Um estudo do constructo consideração positiva incondicional em Carl. R. Rogers. 1980.116 p. Dissertação. (Mestrado em Educação: Psicologia da Educação). Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. AMARAL, L. A. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São Paulo: Robe Editorial, 1995. ______. Diferenças, estigma e preconceito: o desafio da inclusão. In: SOUZA, D. T.; OLIVEIRA, M. K. & REGO, T. C. (orgs.) 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Por que continua? 3. Quais as maiores dificuldades que você tem encontrado no seu trabalho? 4. O que você acha que esta escola tem que a diferencia de outras escolas? 5. Você tem oportunidade de ter novas aprendizagens nesta escola? (formação) 6. Do que você sente falta nesta escola? 7. O que você mais valoriza nesta escola? Roteiro de Observação 1. Interação verbal 2. Elementos não-verbais (movimentos, gestos, expressões faciais); 3. Atividades (natureza das tarefas, comportamento do professor); 4. Gerenciamento (como o professor controla o comportamento dos alunos, uso de recursos, organização de grupos, trabalho individual); 5. Habilidades profissionais (questionamentos, explicações, despertar interesse e curiosidade); 6. Auxílios ao ensino (uso de recursos audiovisuais – televisão, slides, tapes e outros materiais e equipamentos, como o computador); 7. Características afetivas (sentimentos e emoções do professor e dos alunos, relações interpessoais); 8. Traços sociológicos (papéis que as pessoas desempenham, normas, códigos, efeitos do background social, status) LOCAIS/ AMBIENTES: SALA DE AULA – ESCOLARIZAÇÃO: observar relação professor-aluno (interação verbal e não verbal, características afetivas), gerenciamento da sala de aula pelo professor, habilidades profissionais, recursos utilizados, atividades propostas. REFEITÓRIO: observar interação entre alunos e corpo docente/administrativo; traços sociológicos. SALA DE ARTES: observar relação professor-aluno (interação verbal e não verbal, características afetivas), gerenciamento da sala de aula pelo professor, habilidades profissionais, recursos utilizados, atividades propostas. SALA DE EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO: observar relação professor-aluno (interação verbal e não verbal, características afetivas), gerenciamento da sala de aula pelo professor, habilidades profissionais, recursos utilizados, atividades propostas. SALA DOS PROFESSORES: observar inter-relações entre professores e entre equipe multidisciplinar durante intervalo, planejamento e outras situações, seus traços sociológicos, o assunto tratado, as decisões e resoluções tomadas. MATERIAIS: recursos disponíveis e recursos utilizados pelos alunos e pelos profissionais. ESPAÇOS: utilização dos espaços físicos da escola. Atividade realizada nos mesmos, situações em que são utilizados. 88 Vista Externa da Escola Pátio Interno Oficina Recepção da Escola Oficina de Reciclagem Produtos da Reciclagem Refeitório Sala de Artes Sala de Aula Sala de Fisioterapia Sala dos Professores Salão de Eventos