222 REFLETINDO SOBRE A ARTE ATRAVÉS DE MACHADO DE ASSIS Lidiana de Moraes1 1 A perspicácia de Machado de Assis Não há, na arte, nem passado nem futuro. A arte que não estiver no presente jamais será arte. Pablo Picasso Entre tantas concepções que são criadas para a arte, a do pintor espanhol Pablo Picasso é uma das que melhor define a importância de Machado de Assis como escritor, não apenas para a literatura brasileira, como para a mundial. Mesmo tendo sido publicada durante o século XIX, mais de 100 anos depois, a obra machadiana continua atual, fazendo parte do presente, adquirindo o status de arte. O principal atributo que fez com que Assis se tornasse parte do cânone literário é o olhar crítico utilizado por ele para construir um retrato fidedigno dos problemas socioculturais que o país enfrentava e que de inúmeras maneiras continuam a existir. O objeto principal de Machado de Assis é o comportamento humano. Esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras, pensamentos, obras, silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império. A referência local e histórica não é de somenos; e para a crítica sociológica é quase-tudo. De todo modo, pulsa neste quase uma força de universalização que faz Machado inteligível em línguas, culturas e tempos bem diversos do seu vernáculo luso-carioca e do seu repertório de pessoas e situações do nosso restrito oitocentos fluminense burguês. (BOSI, 2003, p. 11). Os escritos de Machado se diferenciaram pela capacidade extraordinária que ele desenvolveu de olhar de forma arguta para todas as ocasiões, inclusive e especialmente para as mais rotineiras. Tal visão singular acabava dando vida a uma atmosfera de constante análise que levariam a realização de descrições dotadas de uma parcela de ficção, mesmo assim com a maior parte sendo constituída por uma forte apreciação crítica, porém retratando veladamente da realidade: 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil. 223 O olho crítico do escritor penetra o seu objeto e o transcende. A configuração local – no caso, a estreita esfera de burguesia fluminense – não teria sido representada como foi, com os seus limites e mazelas, se o olhar que a intuiu não houvesse sido trabalhado por valores que diferiam, em mais de um aspecto, dos reinantes naquele pequeno mundo observado. O olho que só reflete é espelho, mas o olhar que sonda e perscruta é foco de luz. O olhar não decalca passivamente, mas escolhe, recorta e julga as figuras da cena social mediante critérios que são culturais e morais, saturados portanto de memória e pensamento. A diferença entre o olhar-espelho e o olhar-foco é vital na formação da perspectiva. No primeiro, teríamos a narrativa como reflexo de uma realidade já formada e exterior à consciência. No segundo, temos a narrativa como processo expressivo, forma viva de intuições e lembranças que apreendem estados da alma provocados no narrador pela experiência do real. (BOSI, 2003, p.48). A habilidade de enxergar com o olhar-foco transformou a temática dos contos de Machado de Assis em verdadeiros tratados sobre as condições da natureza humana que não eram abordados em uma sociedade habituada a viver de aparências e com os valores deturpados. Deste modo, o escritor tornou-se uma voz única na multidão, expondo tudo aquilo que os olhos da sociedade medíocre não conseguiram enxergar em suas histórias, porque os contos de Machado traduzem perspicazes compreensões da natureza humana, desde as mais sádicas às mais benévolas, porém nunca ingênuas. Aparecem motivadas por um interesse próprio, mais ou menos sórdido, mais ou menos culpável. Mas é sempre um comportamento duvidoso, que nunca é totalmente desvendado nos seus recônditos segredos e intenções... (GOTLIB, 2006, p. 77). Sendo assim, as histórias de Machado de Assis têm um segundo significado pendente e mais profundo que está reservado entre suas linhas e que só pode ser descoberto através da busca de “outra significação sugerida pela ironia fina e implacável” (GOTLIB, 2006, p. 78) usada pelo contista. Para ler um conto de Machado de Assis, o leitor deve estar atento além do que está grafado na superfície. É necessária uma busca implacável pelo detalhe que muda todo o contexto de uma frase. A virada que ocorre em seus textos faz com que o olhar do autor passe de “aparentemente conformista, ou convencional, a crítico” (BOSI, 2003, p. 54). Assim são abertas as portas para o mundo do não-dito, onde escondessem as maiores riquezas da literatura Machadiana. O modo pelo qual o contista Machado representa a realidade traz consigo a sutileza em relação ao não-dito, que abre para as ambigüidades, em que vários sentidos dialogam entre si. Portanto, nos seus contos, paralelamente ao que acontece, há sempre o que parece estar acontecendo. E disto nunca chegamos a ter certeza. (GOTLIB, 2006, p. 78). 224 O poder da palavra escondida em uma história do escritor fluminense é tão impactante que leva a reviravoltas no entendimento do texto no momento em que são reveladas pelo leitor. No conto Um Homem Célebre, objeto de estudo neste artigo, a trama poderia ficar restrita a vida de um músico frustrado, contudo vai muito além. Sendo um verdadeiro artista da palavra, Machado de Assis ajudou a definir o que diferencia arte de artesanato através da crítica que fez à sociedade carioca, aficionada pela moda da época, sem dar o real valor para a alta cultura, através do dilema vivido pelo personagem Pestana, o músico mencionado anteriormente. Para entender melhor a relação ambígua entre alta e baixa cultura, o conto em questão será relacionado à teoria da literatura do crítico e historiador de Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, que em seu livro Reflexões sobre a arte, detalha os parâmetros que são usados na construção de uma obra de arte. 2 O enredo de Um Homem Célebre Um Homem Célebre foi publicado pela primeira vez no periódico A Estação, em 1883, depois seria relançado como parte do livro Várias Histórias, em 1896. O conto trata sobre a vida de um compositor de polcas, Pestana, que tem a sua música reconhecida popularmente, mas vive assombrado por sua incapacidade de atingir o sonho de compor uma música clássica, assim como Beethoven e Mozart. Em outras palavras, as composições de Pestana são transitórias, de acordo com o que está em voga no momento, tornando-o reconhecido perenemente e não para toda a eternidade, característica comum às obras de arte. Pestana ambiciona ser alçado ao título de imortal através da composição de uma sonata ou réquiem, porém a missão não se realiza, restando a pergunta feita pelo personagem a si mesmo ao longo do conto e também para aquele que lê: “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (ASSIS, 1986, p.499). Através da escolha de palavras e ironias que servem como amarração para a narrativa, Machado de Assis solta as dicas que levam o leitor a resolver tal mistério: Pestana não é um artista, e sim um mero produtor/reprodutor. Ele faz artesanato e não arte. Para chegar a tal conclusão, trechos essenciais de Um Homem Célebre serão analisados em sua estrutura semântica, lembrando que em uma obra Machadiana, nada é por acaso. 225 3 Reflexões sobre a arte e o artesanato Um Homem Célebre é um dos contos da segunda fase da literatura de Machado de Assis, cuja principal característica é o pessimismo usado para representar uma sociedade corrompida. Mantendo isso em mente, podemos partir da ideia de que o personagem principal, ao contrário dos grandes heróis literários, chegará a peripetéia e não sairá dela vitorioso, pois o momento da heureca (cf. Bosi, 1986, p.16) nunca é atingido. No princípio do conto, Pestana está na festa da viúva Camargo e demonstra o desconforto que sente quanto à admiração que as pessoas demonstram pelo famoso compositor de polcas. A posição de Pestana diante de sua posição social e como a forma como ele é visto pela sociedade ficam claros quando Machado de Assis descreve-o atendendo ao pedido para tocar seu último sucesso, Não Bula Comigo, Nhonhô: Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna. (ASSIS, 1986, p. 497). O músico está descontente, mas tenta disfarçar, usando uma máscara típica da sociedade tão criticada por Assis. Sua música alegra as pessoas, mas o efeito não transcende a euforia momentânea, uma vez que se trata da polca “da moda”. Inclusive, tal expressão é repetida seguidamente como se estivesse reforçando a importância pífia que a mesma tem para o mundo da arte. Pestana é daqueles que caem no gosto popular da noite para o dia, mas da mesma forma que a fama vem, ela acaba deixando de existir, ou seja, temos um músico cujas composições farão parte do passado, não resistirão ao presente. As polcas que agradam a sociedade fluminense não apresentam as características correspondentes ao que se entende de arte, de acordo com Alfredo Bosi. Para que elas pudessem receber tal titulação precisariam ser “objetos consagrados pelo tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários” (BOSI, 1986, p.7). O tipo musical em questão não tem um sentido inesgotável, por isso não pode ser considerado um bem simbólico como as obras de arte são, podendo ser categorizado apenas como um produto de representação comercial para o mercado popular, sem singularidade. 226 O próprio compositor das polcas reconhece que suas obras estão longe dos clássicos. Os retratos que ostenta em casa como objetos de adoração é a representação dos bens simbólicos que ele não consegue criar: Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. (ASSIS, 1986, p. 498). As representações sacras que Machado de Assis usa, como “santos de uma igreja”, “altar” e “o evangelho da noite”, servem para alçar nomes como Bach e Schumann para o posto de imortais da música. São eles que inspiram Pestana na jornada que ele tenta percorrer para atingir o objetivo de um dia ser tão importante artisticamente como cada um daqueles retratos presos a sua parede. Para tanto ele precisa alçar suas composições à categoria de objeto sagrado, distante da classe popular. Além de não conseguir atingir o estado de bem simbólico, o modo como Pestana compõe suas obras é distinto do que é feito na construção de um feito artístico. Quando o personagem tenta compor uma peça própria, com valores distintos daqueles presentes nas polcas, percebesse sua frustração, uma vez que seu lado mecânico salta aos olhos: Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café. (ASSIS, 1986, p. 498). Apesar de tocar de forma impecável, Pestana é apenas um reprodutor do conteúdo daqueles que contempla. Não consegue atingir as mesmas façanhas, ou seja, não passa de uma representação da máquina utilizada na confecção do artesanato. Ele executa a peça de Beethoven e passa para Mozart mecanicamente, sem grandes problemas porque tem a técnica desenvolvida, mas sua alma está alhures, ou seja, distante da música, em outro lugar porque ali ela não pertence. O que aproxima Pestana da arte é que tem conhecimento para fazer uso dos recursos instrumentais, que são comuns as artes liberales e as artes serviles. No entanto, o que faz falta é a forma significante que seria representada pelo estilo próprio e a virtude que estão presentes nos 227 artistas, levando-os a compor com acordes e ritmos próprios em razão do dom para a música. A técnica é necessária para a criação da arte, contudo, se ela existir isoladamente, sem estar associada a uma força inventiva, o bem simbólico não virá à luz (cf. BOSI, 1986, p.23), e com isso a obra final não resistirá ao teste do tempo. Tamanha é a obsessão do homem célebre pela música clássica que ela acaba se enquadrando em uma “corrente de repetidores” (BOSI, 1986, p.23): Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. (ASSIS, 1986, p. 499). Pestana conhece a estrutura da música clássica e por isso acredita que utilizando às fórmulas certas será possível compor uma obra consagrada eternamente. Tal pensamento o transforma em um epígono, alguém que utiliza de forma compulsiva técnicas criadas anteriormente e que foram reconhecidas por sua efetividade. Todavia, tal relação não leva a criação de uma obra de arte porque entre o original e a cópia “a variação é mínima e a constante é máxima” (BOSI, 1986, p.23). Apesar de todos os seus esforços, Pestana tem a ambição de ser respeitado como um compositor clássico, mas sua vocação, mesmo sendo musical, não consegue fazer com que ele rompa as barreiras entre arte e artesanato. Enquanto ele passa noites acordado – a espera da centelha de inspiração que acenderá a chama que falta para o surgimento de sua obra prima, mas que nunca chega – o processo de criação de canções populares ocorre naturalmente, sem grandes percalços: Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. 228 Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. (ASSIS, 1986, p. 499). Mesmo compondo uma produção genuína, o personagem não pode ser considerado um artista, e sim um artesão da música. A escolha de palavras de Machado de Assis para descrever a nova invenção acrescenta o sentido inferior que continua encarnado nas polcas de Pestana. Enquanto Beethoven escrevia papéis que se tornaram imortais, o que sai com naturalidade dos dedos do célebre músico brasileiro é uma “cousa”, apenas “uma polca buliçosa, como dizem os anúncios”, pronta para ser vendida como mercadoria, mas que nunca chegará a durar até o fim dos tempos. A relação de dependência que as composições de Pestana têm com o comércio não permite que ele seja o dono das próprias obras. Assim aparece no conto, a importante figura do editor, aquele que controla a produção de polcas, assim como um funcionário vigia a produtividade de uma fábrica: Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis darlhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa. (ASSIS, 1986, p. 499). A escolha de um título sem significado relacionado à música, como é proposto pelo editor, reforça a mediocridade presente nos produtos feitos para a consumação em massa. A princípio Pestana resiste, tenta não sucumbir perante a força das engrenagens da indústria da cultura popular, uma vez que sabe que, para ser o criador de uma obra de arte sagrada, será necessária a valorização da mesma para que ela transcenda para o escalão de um símbolo singular. Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante. (ASSIS, 1986, p. 500). No entanto, um atrativo do artesanato acaba falando mais forte do que as ambições de Pestana. Para o artesanato bem feito, a resposta do público é imediata, uma vez que a cultura popular é alimentada pela novidade. 229 Contudo, depois de inúmeras tentativas, o próprio passa a perceber que o desejo de ser um compositor clássico não é o bastante para realizá-lo. Primeiro, ele cogita que a falta de uma fonte de inspiração possa resolver a dificuldade de compor uma obra clássica. Para preencher essa lacuna, acaba se casando, com uma “boa cantora e tísica” (ASSIS, 1986, p. 501) comprovando sua porção paranóica, e decide escrever um noturno. Porém, o resultado final serve apenas para relembrar que o papel de Pestana perante a música clássica está restrito a de obcecado reprodutor: Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamarlhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; cousa difícil porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. — Acaba, disse Maria, não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Cristóvão. (ASSIS, 1986, p. 502). A decepção que vem junto à verdade faz com que o personagem se resigne na situação de artesão da música popular. E a conclusão a qual Pestana chega é a prova de que ele falha no teste pelo qual vinha passando em busca da verificação de que poderia ser um artista grandioso como aqueles que estão emoldurados nos quadros que ornamentam as paredes da casa: “ – Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!” (ASSIS, 1986, p. 502). Como musa, a mulher do compositor estava muito aquém do que se espera do ser que ele queria encontrar nela: uma aura etérea capaz de trazer inspiração para o artista. A esperança ressurge para o compositor com a morte de sua esposa que, aliada com o sofrimento que acompanha a cessação da vida, poderia ser colocada agora em um pedestal inatingível. A perda da pessoa amada era tudo o que Pestana poderia querer para ativar sua vocação para música clássica. E para provar tamanha aptidão resolve escrever um réquiem: Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta. não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou de esforços, esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí- 230 la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando. (ASSIS, 1986, p. 503). Mesmo tentando corresponder as expectativas que pairam na composição feita em homenagem à morta que repousa; Pestana não deixa de lado as técnicas vulgares de reprodução, usadas desde o princípio de sua tentativa artística. Em vez de o Réquiem ser inspirado pela alma, imitar Mozart é a saída mais cabível para alguém destinado a passar a vida fazendo músicas caricatas.. Derrotado pela segunda vez, Pestana perde a motivação e em pouco tempo, ele é quem vai ficando mais próximo da morte, tanto artística quanto física, mesmo sem ter escrito seu sonhado Réquiem. A visita de seu editor mostra que o dom para compor canções populares continuará a perseguí-lo: – Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião. (ASSIS, 1986, p. 503). Por mais que não fosse um bom momento para Pestana que segue continuamente no caminho da decadência como ser humano bem sucedido, as demandas do mercado popular exigiam que ele estivesse preparado para atender o gosto do público de acordo com a ocasião, palavra usada por Machado de Assis para representar a perenidade de significado nas canções popularescas. Conformado com a posição artesanal de suas composições, ele se entrega de uma vez por todas ao rótulo de famoso criador de polcas da moda: Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois. (ASSIS, 1986, p. 503). Em pouco tempo, debilitado pelo próprio fracasso e por uma febre repentina, o homem célebre encontrará o fim com o qual não sonhava. Morrerá sem ter dado vida ao bem simbólico que o tornaria eterno. O homem morre para ir ao esquecimento e cada vez mais o final que se 231 espera de um conto pessimista de Machado de Assis se aproxima, chegando ao ápice com o discurso final de Pestana: – Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. (ASSIS, 1986, p. 504). Com tais palavras acompanhamos a morte do artista que um dia pode ter habitado dentro de Pestana. Também presenciamos a entrega de um homem que tinha valores culturais superiores, mas que acaba sendo dominado pelos apelos da sociedade mascarada que Machado de Assis abominava. 3 Conclusão Através do conto Um homem célebre é possível captar a distinção entre a arte, cada vez mais rara, e o artesanato, produto que gera lucro e divertimento passageiro para uma população sem grandes valores estéticos estabelecidos. No princípio do conto, Pestana tinha condições de vir a tornar-se o herói que protege a alta cultura, afinal ele aspirava à obra completa (cf. Souza, 1977, p.27). Mas assim como os homens comuns na sociedade descrita por Machado de Assis, ele se entrega aos prazeres terrestres, deixando de lado o bem sagrado, tornando-se apenas mais um nome em meio a tantos. Chegando mais perto dos textos vê-se que a vida em sociedade, segunda natureza do corpo, na medida em que exige máscaras, vira também irreversivelmente máscara universal. A sua lei, não podendo ser a da verdade subjetiva recalcada, será a da máscara comum exposta e generalizada. O triunfo do signo público. Dá-se a coroa à forma convencionada, cobrem-se de louros as cabeças bem penteadas pela moda. Todas as vibrações interiores calam-se, degradam-se à veleidade ou rearmonizam-se para entrar em acorde com a convenção soberana. (BOSI, 2003, p.86). Mais uma vez voltasse ao conceito de que para o bom artesão o reconhecimento é instantâneo, mas passageiro, enquanto para o artista é demorado, porém eterno. Para ser um artista, não um artesão, faltou que Pestana deixasse de ser medíocre para agir como um asceta, vivendo em nome da arte, o bem que resiste ao tempo, fazendo parte eternamente do presente. 232 Referências ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. 2 v. BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003. ____________. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1986. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006. SOUZA, Antonio Candido de Mello e. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.