1
INTRODUÇÃO
“Como alguém poderia manter-se encoberto face
ao que nunca se deita (declina)?” (Heráclito, frag. 16)1
Ser e Tempo é a obra fundamental de Martin Heidegger, filósofo alemão,
nascido em 1889 e falecido em 1976. Nessa obra, discute-se a essência do ser e lança-se
um caminho filosófico que se dirige para a busca dessa essência, do sentido do ser.
O tema da verdade não aparece como tema diretamente pensado em Ser e
Tempo, embora o sentido do ser possa ser entendido como a verdade do ser.
Após Ser e Tempo, no entanto, Heidegger trata diretamente do tema da
verdade, em certos momentos de sua trajetória como professor na Universidade de
Freiburg e após sua aposentadoria, em 1952.
Textos como Sobre a Essência da Verdade, de 1943, A Doutrina Platônica
da Verdade, de 1947, e Aletheia, texto de 1954, tratam da verdade como tema, trazendo
considerações que entendemos não terem sido ainda profundamente consideradas.
N’ A Doutrina Platônica da Verdade, Heidegger dá um interpretação sobre
uma passagem muito lida e discutida da obra A República, de Platão: A Alegoria da
Caverna.
A interpretação heideggeriana dessa passagem da obra platônica lança
uma nova visão sobre o pensamento do filósofo grego e sobre a filosofia pensada e
discutida a partir de Platão.
Em uma leitura preliminar da reinterpretação de Platão feita por Heidegger
no texto A Doutrina da Verdade de Platão, encontramos a verdade como pensada
tradicionalmente pela filosofia ocidental colocada em cheque. Não só isso: Heidegger
recoloca a verdade no campo do aberto para o pensamento do Dasein,e abre todo o
campo da reflexão humana para o pensamento novamente.
1
HEIDEGGER, Martin, Ensaios e Conferências, Coleção Pensamento Humano, Editora Vozes, 6ª ed.,
Petrópolis, 2010, pág. 229.
2
Se outra noção de verdade, mais originária, é possível de ser pensada,
então tudo aquilo que já se tinha dado como suficientemente pensado volta para o
campo do aberto do pensamento humano.
Pensar a essência da verdade a partir de e com Heidegger permite que o
Direito se abra como campo do pensamento humano, a fim de que suas questões mais
essenciais, como a justiça, possam ser novamente pensadas, seguindo outros caminhos
de reflexão que os até então tomados.
Esta é a importância do tema aqui abordado, e também a sua justificativa:
trazer o Direito para o campo do aberto do pensamento humano, para mais uma vez
pensá-lo, procurando buscar a verdade do Direito lá onde ela se encontra encoberta: no
fenômeno. E a verdade do Direito é a justiça, conforme foi elucidado pela Professora
Jeannette A. Maman em sua obra jusfilosófica.2
Des-encobrir a aletheia em Platão e trazê-la para o aberto é o sentido desta
pesquisa, que se valerá do caminho aberto por Heidegger para realizar seu intento.
Pretende-se descrever a noção de verdade como desencobrimento, trazida
por Heidegger em sua re-interpretação da Alegoria da Caverna de Platão, e, através
dessa noção de verdade e da crítica que Heidegger faz ao pensamento filosófico e
metafísico que se seguiu a Platão, encontrar uma possibilidade de refletir sobre a justiça
enquanto fenômeno jurídico e não mais como conceito/ideia/ideal. Trata-se, aqui, de
buscar uma nova interpretação sobre a verdade e a justiça, a partir do pensamento de
Platão e Heidegger.
Em nosso caminho filosófico, seguindo os passos de Martin Heidegger,
analisaremos o conceito corrente de verdade na metafísica tradicional e a crítica feita
por Heidegger a esse conceito, através da análise da re-interpretação da Alegoria da
Caverna de Platão feita pelo filósofo alemão.
Da análise do conceito corrente de verdade enquanto adequação e da
crítica heideggeriana a esse conceito, procuraremos indicar novas possibilidades para a
análise do conceito de justiça que foi elaborado pela metafísica tradicional e que ainda
hoje vige dentro do campo da filosofia jurídica. Procuraremos, a partir de Heidegger,
demonstrar o limite desse conceito metafísico de justiça e a impossibilidade do mesmo
2
Principalmente em Fenomenologia Existencial do Direito, Tese de Doutorado da Profª Drª Jeannette
Antonios Maman.
3
de atender às demandas dos indivíduos, seguindo a linha de pesquisa elaborada pela
Profª Drª Jeannette Antonios Maman – Fenomenologia Existencial do Direito.
Faremos nossa pesquisa tendo como horizonte a Linha de Pesquisa
inaugurada pela Profª Drª Jeannette Antonios Maman: Fenomenologia Existencial do
Direito.
Essa linha de pesquisa segue o caminho de investigação proposto pelo
filósofo alemão Martin Heidegger, a fenomenologia. Na obra Ser e Tempo, Heidegger
oferece uma noção de fenomenologia: “Fenomenologia, então, diz: apophainestai ta
phainomena – deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra
a partir de si mesmo” 3. Fenômeno é ”o que se revela, o que se mostra em si mesmo” 4.
O ente pode mostrar-se de várias formas, segundo a via de acesso a ele
que se adote. Pode ser um mostrar-se no modo do que se revela, que se mostra a si
mesmo. O ente também pode mostrar-se como aquilo que ele não é – aparência. O ente
pode mostrar-se também como manifestação, que nunca é um mostrar-se no sentido de
fenômeno5, mas um “anunciar-se de algo que não se mostra” 6.
Logos, a outra noção que Heidegger desenvolve no § 7º de Ser e Tempo, é
entendida por ele como um deixar e fazer ver7, daí provindo, juntamente com a noção
de fenômeno, a noção preliminar de fenomenologia que acima citamos.
Em nossa pesquisa, seguindo esse caminho de investigação proposto por
Heidegger, analisaremos o conceito de verdade como fenômeno, como aquilo que se
mostrou na Alegoria da Caverna de Platão e que se difundiu na metafísica tradicional
que se seguiu à filosofia platônica.
Os fenômenos nunca se mostram a si mesmos diretamente, cabendo ao
investigador encontrar uma via de acesso ao ente que permita descobrir-lhe a verdade
sob as camadas que a encobrem.
No fenômeno jurídico se passa o mesmo. Aquilo que se manifesta mais
encobre do que propriamente mostra a verdade do fenômeno. Como no caso da
metafísica, a noção corrente de justiça não mais responde aos questionamentos do
Dasein e às demandas de sua existência.
3
HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, 8ª Ed., Coleção “Pensamento Humano, Editora Vozes, Petrópolis,
1999, pág. 65.
4
Ibidem, pág. 58.
5
Ibidem, pág. 59.
6
Ibidem, pág. 59.
7
Ibidem, pág. 63.
4
Portanto, nos utilizaremos da fenomenologia como caminho de
investigação em nossa pesquisa, buscando desencobrir a noção de verdade, atulhada por
anos de metafísica.
Nessa busca, esperamos obter como resultado uma noção de verdade que
possa trazer a questão da justiça para a abertura do pensamento, a fim de que a justiça
volte a ser pensada a partir do solo da experiência humana vivida e não das luzes de um
positivismo jurídico que atende ao poder e não à vida.
*****
O pensamento que se volta para o obscuro – é o que
podemos dizer, inicialmente, sobre a obra de Martin Heidegger, filósofo alemão pouco
estudado pelos operadores do direito, que se voltam, usualmente, para o mais claro, o
mais imediato, o mais seguro, para o que está disponível, “de tal sorte que podemos
dispor sem pensar” 8
O que haveria no pensamento de Martin Heidegger que
pudesse interessar aos juristas? Heidegger, durante toda sua obra, questionou o ser,
investigando seu sentido, sua verdade. Mas não teria sido o ser o mais questionado,
investigado, pela filosofia ocidental e, desde há muito, relegado ao esquecimento, por
tratar-se de questão supérflua?9
A investigação sobre o sentido do ser está a cargo de uma
das “disciplinas” da filosofia – a metafísica. A metafísica permeará parte de nossa
pesquisa, que terá como tema principal a interpretação, feita por Heidegger, da Alegoria
da Caverna de Platão, através da qual procuraremos elucidar as noções de justiça e de
verdade segundo o pensamento heideggeriano. Na apresentação de nossa pesquisa
ficará clarificada a alusão geral à metafísica, embora dela não tratemos de maneira
direta como tema de pesquisa.
8
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, v. 100, São Paulo, jan/dez de 2005, pag. 335, traduzido por Jeannette
Antonios Maman.
9
“No solo da arrancada grega para interpretar o ser,formou-se um dogma que não apenas declara
supérflua a questão sobre o sentido do ser como lhe sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito
mais universal e o mais vazio”.HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, Editora Vozes, 8ª ed., Petrópolis,
1999, pág. 27.
5
Escolhemos tratar da verdade, no modo como ela é pensada por Heidegger
quando re-interpreta Platão, porque o caminho proposto pelo pensamento de Heidegger
pode ajudar a repensarmos a justiça, noção que está na essência do Direito. Heidegger
propõe pensar o que já foi pensado. Foi o que ele fez quando tratou da questão do ser,
da metafísica e da essência da verdade.
É o que pretendemos fazer trazendo a discussão sobre a verdade da forma
como pensada por Heidegger quando reinterpreta Platão: pensar o que já foi pensado,
trazendo a noção da verdade para o campo do aberto e, com isso, possibilitar que se repensa a noção de justiça como a verdade do direito, seguindo o pensamento
heideggeriano.
Desencobrir a essência da verdade para possibilitar o desencobrimento da
essência da justiça, verdade do Direito, deixando de lado os pressupostos do
pensamento jurídico tradicional, que foram fruto da reflexão elaborada pela metafísica
desde Platão – é nossa ambição e nosso horizonte de pesquisa.
O nosso ponto de partida não será Platão, mas a mudança na essência da
verdade contida na Alegoria da Caverna, segundo a interpretação feita por Martin
Heidegger.
Para contextualizarmos nossa pesquisa, deveremos abordar
inicialmente, de forma introdutória e resumida, o pensamento de Platão, procurando
localizá-lo no que concerne ao tema de nossa pesquisa – justiça e verdade.
*****
A obra filosófica de Platão é considerada idealista, uma
obra que privilegiaria as ideias em detrimento das coisas. O “mundo das ideias” é um
termo comum e bem conhecido dos estudantes de filosofia, tendo sido extraído da obra
filosófica de Platão e servindo para designar o local de onde proveria o verdadeiro
conhecimento das coisas. O “mundo das ideias também seria a condição para o
conhecimento das coisas. A verdade seria descoberta na adequação da ideia com a coisa
que se quer conhecer.
Só seria possível conhecer algo por já se ter a ideia desse
algo – isso seria a filosofia idealista de Platão, aceita e difundida pelos filósofos
ocidentais que lhe seguiram.
6
Porém, Heidegger, ao interpretar a Alegoria da Caverna,
contida no livro A República, de Platão, nos apresenta outro Platão: um filósofo grego
que pensa a partir da tradição dos primeiros pensadores gregos, para os quais a verdade,
e, portanto, o conhecimento, é encontrado a partir do ente que se quer conhecer, numa
abertura de modo apropriado para o encontro do sentido do ser de cada ente e dos entes
em geral.
O Platão que Heidegger nos apresenta, ao interpretar a
Alegoria da Caverna, não é um idealista, mas um filósofo que parte da noção de
verdade como desvelamento (aletheia), do mesmo modo que era entendida por
Heráclito, por exemplo. Platão não era desconhecedor da doutrina de Heráclito,
familiarizando-se com ela através do contato que teve com Crátilo, de quem foi
discípulo10.
Não iremos, porém, aprofundarmo-nos sobre toda a
filosofia platônica, pois o tema que interessa à presente pesquisa é a mudança no
conceito de verdade que foi elaborado pelo filósofo grego na Alegoria da Caverna,
segundo a interpretação que Heidegger deu a esta importante passagem da filosofia
ocidental.
Heidegger re-interpreta o pensamento de Platão contido na
Alegoria da Caverna, demonstrando que a essência da verdade como aletheia estava
presente no pensamento platônico, sendo esquecido pelos pensadores que se seguiram a
Platão.
*****
No campo da filosofia, a “disciplina” que estuda o ser é a
metafísica, tratada mais diretamente por Heidegger em duas obras – O que é Metafísica
e Introdução à Metafísica. No decorrer dessa pesquisa, utilizaremos, portanto, essas
duas obras de Heidegger dedicadas à metafísica.
A metafísica em Heidegger deixa de ser uma disciplina que
parte das ideias para encontrar o ser do ente. Heidegger rompe com a tradição filosófica
ocidental e vai buscar nos chamados filósofos pré-socráticos o caminho para construir
10
ABBAGNANO, Nicola, História da Filosofia, 3ª ed., vol. 1, Editorial Presença, Lisboa, 1982, pág.
147.
7
sua obra filosófica. Esse movimento se deve ao fato de Heidegger entender que a
filosofia ocidental distanciou-se do ser, perdendo-se no ente.
A filosofia vem, desde Platão, falando do ente como se
falasse do ser, quando na verdade esqueceu-se do ser. Heidegger recupera o pensar
originário dos primeiros pensadores gregos, que ele chama de pensadores e não de
filósofos, indicando que pensar surge antes da filosofia e que a filosofia é um “pensar
de um certo modo”, mas não único modo de pensar as questões que tradicionalmente
chamamos de filosóficas.
Esse pensar vai buscar a verdade do ser a partir do ser dos
entes considerados, nas suas várias manifestações. Essa busca se inicia com a abertura
para o ser do ente, para a verdade do ser. A abertura é uma disposição para o
questionar, que coloca o pensador em condições de questionar os entes em direção à
verdade do ser.
Para Heidegger, em todo questionar quem questiona
também está em jogo, indicando assim que não há um puro pensar do pensador sobre
uma questão, pois em todo pensar o pensador já está implicado, em situação existencial.
O próprio ser do pensador (Dasein) é questionado em todo questionamento. Também a
própria metafísica é questionada em todo questionar metafísico que se faz.
Ao interpretar a Alegoria da Caverna, de Platão, Heidegger
desvela o que restou implícito no pensamento deste filósofo grego: uma doutrina sobre
a verdade. E essa doutrina sobre a verdade provoca uma mudança no sentido da
verdade, que nos primeiros pensadores gregos tinha o caráter de desvelamento,
desencobrimento, aletheia. A partir de Platão, a verdade deixa de ser desencobrimento
e torna-se adequatio rei ad intellectus. Nessa interpretação, contida no texto A Doutrina
de Platão Sobre a Verdade, Heidegger aborda a mudança na essência da verdade, um
dos temas centrais da presente dissertação, e também trata da metafísica, indicando-lhe,
de certo modo, o que é a sua essência, já contida em seu sentido grego: para além da
phisis.
Que diferença resulta dessa mudança no caráter da
verdade? Que importância tem essa mudança para o Direito e para a Filosofia do
Direito? Enquanto des-encobrimento, a verdade é buscada a partir da coisa, dos entes,
em direção ao ser dos entes, numa abertura do Dasein em direção ao ser daquilo que é
8
pesquisado. A partir de Platão, a verdade deixa de estar na coisa, nos entes, e fixa sua
morada no intelecto do pesquisador, do filósofo – na ideia.
A verdade é a ideia pura, e o conhecimento só é possível
porque temos a ideia da coisa. A essência da coisa passa a ser a ideia: a pura ideia,
perfeita, cujos reflexos imperfeitos são as coisas com as quais convivemos no dia-a-dia.
Essa mudança possibilitou a criação de toda a teologia
cristã – o homem como reflexo do Divino e este mundo como reflexo imperfeito da
cidade celeste. Ocorre uma inversão no pensamento ocidental: é como se já
soubéssemos como as coisas devem ser. Basta, portanto, realizar esse saber no mundo
concreto.
O Direito é debitário dessa mudança na essência da
verdade. Ser e dever-ser são temas constantes das obras introdutórias sobre o Direito.
Dessa forma, podemos afirmar que o arcabouço teórico do Direito ocidental é o
platonismo, trabalhado posteriormente pelos filósofos cristãos medievais e pelos
filósofos modernos e contemporâneos.
Ser e dever-ser: o Direito trabalha com o dever-ser, numa
busca pelo que seria o justo ideal para a sociedade. Daí provém toda a dificuldade para
o Direito aceitar, por exemplo, as relações homossexuais e reconhecê-las como
legítimas, garantindo-lhes os mesmos direitos das relações heterossexuais. Ao definir o
que é um casamento (relação entre homem e mulher) a lei fez mais do que definir uma
questão jurídica – ela passou a definir a afetividade do Dasein. E essa definição
baseava-se no que seria a família ideal, independente do fato de que, histórica e
socialmente, outras famílias se formassem.
Começamos a responder, aqui, uma das indagações que
fizemos no início desta introdução: o que Heidegger teria a dizer para os operadores do
Direito? Heidegger rompe com uma tradição filosófica ocidental, tradição esta que foi a
base teórica do Direito ocidental. Nesse rompimento, Heidegger aponta para a
necessidade de voltarmos a pensar sobre o já pensado, uma vez que o já pensado talvez
não tenha sido pensado o suficiente e, ainda mais, pode nem ter sido pensado, no
sentido que para Heidegger tem o pensar - a verdade do ser.
Assim, toda a teoria jurídica encontra-se no aberto, para ser
pensada novamente. E é nessa nova tradição, heideggeriana, que inserimos nossa
9
pesquisa, na esteira da Fenomenologia Existencial do Direito, inaugurada pela Profª Drª
Jeannette Antonios Maman.
10
Capítulo I – A Alegoria da Caverna
11
A Alegoria da Caverna é apresentada no Livro VII da República, obra de
Platão que trata, dentre outros temas, da questão da verdade e da justiça.
Nesse capítulo, apresentaremos o texto da Alegoria. Não iremos aqui fazer
qualquer análise que leve em conta o lugar que a Alegoria da Caverna ocupa no todo da
obra platônica, uma vez que nosso objetivo é a análise do texto heideggeriano sobre a
Alegoria da Caverna e suas possíveis implicações para a filosofia do direito e não a
análise da obra platônica em si.
Nesse passo, apresentaremos a Alegoria da Caverna segundo duas
traduções, ambas vertidas direto do grego. Uma delas foi editada pela Editora Martins
Fontes, datada de 2006 e traduzida por Anna Lia Amaral de Almeida Prado. A outra foi
editada pela Editora Universitária da Universidade Federal do Pará, cuja terceira
edição, utilizada nesse trabalho, data de 2000, e cuja tradução foi levada a cabo por
Carlos Alberto Nunes.
As traduções não diferem muito entre si. Há algumas escolhas diferentes de
palavras11, mas que não interferem na compreensão do texto. Assim, para a presente
dissertação, e no que concerne à Alegoria da Caverna, podemos dizer que as duas
traduções se equivalem. Apenas por questão de organização, ao fazermos as citações
indicaremos nas notas a obra editada pela Editora Universitária da UFPA. No entanto,
utilizamos as duas versões para nossos estudos.
A Alegoria da Caverna se inicia no começo do Livro VII da República. É a
continuação de um diálogo de Sócrates com Glauco.
Sócrates pede a Glauco para imaginar homens morando em uma morada
subterrânea em forma de caverna, com uma abertura com vista para a luz em toda sua
largura12. Os habitantes da caverna estão lá acorrentados desde a infância, sempre
olhando para frente. Deduz-se que o local para onde olham seja o fundo da caverna,
pois a luz vem da entrada da mesma e brilha por trás deles13.
11
Por exemplo, no trecho no qual Sócrates indica desde quando os homens estão acorrentados na
caverna, Carlos Alberto Nunes traduz como “desde pequenos”, enquanto Anna Lia A. A. Prado traduz
como “desde a infância”. Verifica-se que os termos utilizados se equivalem, e a escolha por um termo ou
outro não prejudica o entendimento da alegoria.
12
PLATÃO, A República, tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora Universitária da UFPA, 3ª ed.,
Belém, 2000, pág. 319, 514 a, 5.
13
Ibidem, pág. 319 – 514 b, 3.
12
Esses prisioneiros da caverna estão de tal forma acorrentados que não
podem mover a cabeça. Desse modo, podem apenas ver as sombras deles mesmos e dos
vizinhos.
Fora da caverna há uma fogueira, que é o foco de luz que produz as sombras
dentro da caverna. Entre esse foco e a entrada da caverna há um muro, ao longo do qual
homens passam, carregando utensílios e também estátuas, figuras e diversos outros
objetos. Esses objetos têm sua sombra projetada dentro da caverna, de modo que os
prisioneiros possam vê-las.
Se esses homens acorrentados na caverna pudessem conversar, continua
Sócrates na alegoria, pensariam estar designando pelo nome correto tudo o que viam
refletido no fundo da caverna, sem saber que o que viam eram apenas as sombras dos
objetos.
Sócrates começa a relatar, então, o que aconteceria no caso de um daqueles
homens acorrentados na caverna ser libertado. Ao ser obrigado a virar-se para a luz,
essa lhe causaria dor nos olhos, como também o deslumbraria14 a ponto de não ver os
objetos cujas sombras enxergava na caverna.
O prisioneiro, agora já libertado da caverna e fora dela, ao ser questionado
sobre o nome dos objetos que agora desfilam à sua frente, ficaria atrapalhado, julgando
que eram mais verdadeiros os objetos que antes via dentro da caverna.
Ao ser obrigado a olhar diretamente a própria luz, os olhos do homem
libertado da caverna doeriam e, pergunta Sócrates, não tentaria ele fugir para “junto das
coisas que lhe era possível contemplar, certo de serem todas elas mais claras do que as
que lhe então apresentavam”?15
Arrastado contra sua vontade para fora da caverna e exposto á luz do sol, o
homem libertado da caverna se revoltaria e, novamente, ficaria ofuscado, sem poder
enxergar nada do que lhe fosse indicado como verdadeiro.
Esse homem liberto, e agora exposto à luz, precisaria primeiro habituar-se
para depois poder contemplar o mundo superior16. Acostumado com as sombras,
reflexos das coisas projetadas na parede da caverna, ele perceberia com mais facilidade
as sombras das coisas e os reflexos dos objetos na água, antes de poder perceber os
14
Ibidem, pág. 320 – 515 d, 1.
Ibidem, pág. 320, 515 e, 2 a 5.
16
Ibidem, pág. 321, 516 a, 7.
15
13
objetos e o que se encontra no céu e o próprio céu. Mesmo assim, veria melhor de noite
do que na luz do sol.
Passado esse período de adaptação, o homem agora pode ver mesmo o
próprio sol. Raciocinando, chegaria, continua Sócrates, à conclusão de que o sol é a
causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna, sendo o produtor das
estações e dirigente de tudo no espaço visível.
Tendo chegado ao conhecimento direto das coisas e mesmo da causa das
coisas (o sol), esse homem se felicitaria pela mudança ocorrida e lastimaria a sorte
daqueles que permaneceram acorrentados na caverna, sabedor que é agora que aqueles
veem apenas sombras das coisas, sem ter acesso às coisas em si, mas apenas aos
reflexos delas.
Lembrando da situação de seus antigos companheiros, os quais poderiam
receber distinções por verem melhor as sombras ou mesmo serem governantes, o
homem libertado não os invejaria, e escolheria sofrer o que quer que fosse a retornar
para a situação antiga.
Por fim, Sócrates relata o retorno desse homem à caverna, e sua
dificuldade em lidar novamente com as sombras da caverna, por não ter se habituado
novamente com o escuro, o que levaria os seus companheiros da caverna a entenderem
que a subida do homem para fora da caverna estragara-lhe os olhos. Finalmente, se este
homem tentasse libertar os seus companheiros correria aquele o risco de ser morto por
estes, caso pudessem usar as mãos e matá-los.
Termina nesse ponto a Alegoria da Caverna, pelo menos no que interessa
ao nosso trabalho, seguindo o trecho que foi interpretado por Heidegger n’ A Doutrina
de Platão sobre a Verdade.
A tradução da Alegoria da Caverna feita por Heidegger, no texto que serve
de base a esse trabalho, difere em parte da tradução utilizada no presente capítulo.
Heidegger estava familiarizado com a língua grega e com os pensadores gregos, tendo
realizado estudos e produzido obras com base em estudos de textos e fragmentos de
pensadores denominados pré-socráticos17, tais como Heráclito e Parmênides.
17
Emmanuel Carneiro Leão, na obra Os Pensadores Originários (Editora Universitária São Francisco,
Bragança Paulista, 2005), prefere o termo pensadores originários, indicando que o termo pré-socrático
indica uma decisão através da qual “Os problemas, as concepções e os conceitos de Sócrates, Platão e
Aristóteles, transformados pela ciência moderna, servem de parâmetro para se medir o nível filosófico de
todos os gregos de antes e depois da segunda metade do século V” (pág. 08). O “pré” de pré-socráticos
14
teria não um sentido cronológico, mas axiomático. Pelo caminho de pensamento seguido por Heidegger,
que foi buscar em pensadores como Heráclito e Parmênides algumas de suas noções, consideramos as
indicações de Emmanuel Carneiro Leão como plenamente válidas. Na presente pesquisa, no entanto,
continuaremos usando o termo pré-socrático apenas por ser termo já correntemente utilizado quando se
busca referir-se aos pensadores que vieram antes de Sócrates.
15
Capítulo II – As interpretações da Alegoria da Caverna
16
Para podermos iniciar a análise da interpretação de Heidegger sobre a
Alegoria da Caverna de Platão e demonstrar a originalidade dessa interpretação,
devemos apresentar outras leituras sobre esse trecho da obra platônica.
As interpretações que aqui apresentaremos não têm a pretensão de esgotar
o tema, mas apenas tem a função de nos dar um horizonte no qual possamos situar a
interpretação heideggeriana da Alegoria da Caverna de Platão.
Seção I
Interpretações correntes sobre a Alegoria da Caverna
Com o intuito de apresentar um horizonte no qual situaremos a
interpretação heideggeriana da Alegoria da Caverna, utilizaremos, primordialmente,
mas não apenas, do recurso da história da filosofia, seguindo, aqui, o caminho
heideggeriano de pensamento. A tradição filosófica que recebemos e que nos antecede
não se situa atrás de nós, mas é o nosso horizonte.
A lista dos autores pesquisados não é exaustiva, fugindo ao escopo do
presente trabalho apresentar um estudo completo das interpretações da obra de Platão.
Pretendemos apenas apresentar um panorama das interpretações correntes sobre o tema,
utilizando obras histórico-filosóficas clássicas e contemporâneas que abordam o tema
de nossa pesquisa.
Seção I.1 - O Movimento Dialético
Iniciaremos nossa análise das interpretações correntes da Alegoria da
Caverna com a obra Os Diálogos de Platão – Estrutura e Método Dialético, de autoria
de Victor Goldschmidt18. Nessa obra, Goldschmidt procura apreender a estrutura dos
diálogos de Platão.
O movimento dialético, presente nos diálogos platônicos pesquisados por
Goldschmidt, compõe-se de quatro etapas, nomeadas pelo autor na seguinte sequência:
imagem, definição, essência e ciência. Essas etapas acompanham, não na mesma
18
GOLDSCHMIDT, Victor, Os Diálogos de Platão – Estrutura e Método Dialético, Edições Loyola,
2002.
17
seqüência, os quatro modos de conhecimento19, expostos na introdução do livro que ora
analisamos e que foram extraídos da Carta VII, de Platão20: o primeiro é o nome, o
segundo é a definição, o terceiro a imagem e o quarto a ciência, ou inteligência. Esses
quatro modos de conhecer guardam um aspecto em comum: são todos exteriores ao
objeto o qual se quer conhecer. O objeto, por seu turno, é o quinto modo de se
conhecer. O objeto também é denominado essência por Victor Goldschmidt, a visão do
mais real, exposta na Alegoria da Caverna.
Os quatro modos de conhecer, no entanto, oferecem apenas reflexos mais
ou menos obscuros da essência, sendo que esta não pode ser exposta pelo discurso oral
ou escrito21. Para que ocorra o verdadeiro conhecimento é necessário que a alma seja
aparentada ao objeto, vindo a tornar-se um espelho, uma superfície que possa receber e
refletir a essência22. O conhecimento da essência se daria quando, no momento de
revelação, o pensamento discursivo se torna intuição.
Não termina aí, no entanto, o movimento da dialética. A investigação,
após chegar à essência, deve descer, a fim de chegar às últimas conclusões. Tal
movimento se assemelha à volta do prisioneiro à caverna, movimento que também será
descrito nas análises histórico-filosóficas mais abaixo.
No livro de Victor Goldschmidt não há uma análise da Alegoria da
Caverna como texto independente. O autor, na parte de sua obra que analisa o livro da
República, aborda temas que se aproximam da nossa pesquisa.
No entanto, na introdução da obra de Goldschmidt a análise feita do
método dialético guarda estreita conexão com a Alegoria da Caverna. Da leitura que
fizemos da obra de Goldschmidt tiramos a conclusão que a Alegoria da Caverna pode
sintetizar as etapas do movimento dialético na forma exposta pelo autor.
Encerrando a leitura do livro de Goldschmidt, acrescentaríamos que, para
o autor, a República de Platão tem somente um tema: a Justiça23. Tal posição é
acompanhada por Hans Kelsen, analisado mais à frente no presente capítulo.
Com relação ao Bem, tema central das interpretações correntes sobre a
Alegoria da Caverna, Goldschmidt nos diz que nesse ponto do texto platônico estamos
19
Ibidem, pág. 04.
Ibidem, pág. 04. Cf. nota de rodapé.
21
Ibidem, pág. 06.
22
Ibidem, pág. 08.
23
Ibidem, pág. 275.
20
18
“em plena revelação” 24. A revelação se dá em um movimento ascensional da dialética,
no momento em que se atinge o Bem/Sol. Guardemos a noção de revelação como
forma de conhecimento da verdade última, da essência, uma vez que devemos voltar a
ela mais tarde quando estivermos tratando do desvelamento, já na análise heideggeriana
do texto de Platão.
Seção I.2 - Platão na História da Filosofia
Nicola Abbagnano, em sua obra História da Filosofia25, afirma ser a
República a obra máxima de Platão, na qual estariam resumidos os temas e os
resultados dos diálogos platônicos que antecedem esta obra. Para Abbagnano, Platão
ordena seus diálogos e investigações em torno do tema da comunidade perfeita, que
deveria ser governada pelos filósofos. O fundamento de tal comunidade seria a justiça,
que garantiria a unidade e a força do Estado, bem como do indivíduo.
Abbagnano localiza a Alegoria26 da Caverna de Platão no tema
relacionado à educação do homem, que deve caminhar da opinião (doxa) até à ciência,
educando-se gradualmente. A caverna seria o mundo sensível, composto de sombras do
real. O escravo que se liberta, após habituar-se à luz de fora da caverna e à luz do Sol,
perceberá então que é o Sol que governa tudo o que existe e que do mesmo sol
dependem as coisas que o prisioneiro e seus companheiros viam na caverna.
Na leitura de Abbagnano, o escravo sabe que a verdadeira realidade está
fora da caverna. A verdadeira educação consiste em fazer o homem voltar-se para a
consideração do mundo do ser, conduzindo-o para o conhecimento do ponto mais alto
do ser, que é o bem.
Sendo o bem identificado com o Sol, que não apenas torna as coisas
visíveis mas, também, com sua luz, “as faz nascer, crescer e alimentar-se”, o bem não
só torna as coisas cognoscíveis como também lhes dá o ser de que são dotadas27. Sendo
bem superior a todas as coisas, não é apenas uma ideia entre as outras, mas a causa das
ideias.
24
Ibidem, pág. 276.
ABBAGNANO, Nicola, História da Filosofia, op. cit, pág. 151.
26
Abbagnano usa o termo mito, e não alegoria, como faz Heidegger e outros pensadores. Cf.
ABBAGNANO, Nicola, História da Filosofia, op. cit, pág. 155.
27
Ibidem, pág. 156.
25
19
Segundo Abbagnano, o texto da Alegoria da Caverna está na base de todas
as interpretações religiosas do platonismo, uma vez que as correntes neoplatônicas da
antiguidade, que fazem a interpretação religiosa de Platão, identificam o bem com
Deus. No entanto, Abbagnano afirma que essa interpretação não encontra justificação
nos textos platônicos. Platão defende a tese da identificação do poder causal com a
perfeição – “uma coisa possui tanto mais causalidade quanto mais perfeita é”28.
Uma vez que a inspiração fundamental do pensamento platônico é a
finalidade política da filosofia, o ponto alto esta não poderia ser a contemplação do bem
como causa suprema, mas
“a utilização de todos os conhecimentos que o filósofo pôde
adquirir para a fundação da uma comunidade justa e feliz”29.
Assim, o regresso do escravo liberto à caverna faz parte da educação, para
que o mesmo reconsidere e reavalie o mundo à luz do que viu fora da caverna. Para
Abbagnano, apenas com o regresso do escravo liberto à caverna este terá completado
sua educação e será verdadeiramente filósofo30.
Para François Châtelet31, a Alegoria32 da Caverna tem a função
pedagógica de fazer-nos compreender o que são as Ideias33 e o que é seu princípio.
Entre as coisas, como se dá dentro da caverna, as relações são obscuras e incertas. As
Ideias, por seu turno,
“formam um sistema que a dialética descobre e que o saber
filosófico reflete”34.
A ideia do Bem (sic) é o princípio desse sistema, assegurando a unidade
da diversidade. Para Châtelet, o Bem, que organiza e faz conhecer as Ideias, é o
princípio de verdade e unidade. O autor afirma, ainda, na mesma direção de
28
Ibidem, pág. 156.
Ibidem, pág. 156.
30
Idem, pág. 157.
31
CHÂTELET, François, BERNHARDT, Jean, AUBENQUE, Pierre, História da Filosofia – Ideias,
Doutrinas, dirigida por François Châtelet, vol. 1, A Filosofia Pagã, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1973.
32
Châtelet também usa o termo mito ao invés de alegoria.
33
Ibidem, pág. 99 (grafado assim no original).
34
Ibidem, pág. 100.
29
20
Abbagnano, e indo mais além, que a “Ideia das Ideias” (o Bem) foi substituída, pelos
intérpretes do platonismo, pela ideia
“que convinha à sua doutrina: Deus ou o imperativo
categórico, segundo os momentos ideológicos”35.
Châtelet se aproxima também da exposição de Abbagnano ao afirmar que
a solução do problema da conduta humana a do problema do saber estão ligadas:
“saber não é somente conhecer o que é, é apreender o que
vale, já é agir conforme a ordem que convém ao mesmo tempo
ao homem e ao cosmos”36 (ênfase no original).
Émile Brehier, em sua História da Filosofia37, não faz uma análise da
Alegoria da Caverna, como fizeram Abbagnano e Châtelet, mas compara a saída do
escravo da caverna ao movimento da dialética, um caminho das sombras para a luz.
Roberto Vasconcelos Novaes, em sua obra O Filósofo e o Tirano38, nos
diz que a Alegoria da Caverna narra o processo de obtenção do conhecimento do ser.
Após descrever cada modalidade de conhecimento39, o autor narra o processo de
obtenção de cada uma dessas modalidades.
O primeiro estágio do conhecimento é a visão das imagens projetadas na
parede da caverna pela luz da fogueira. O segundo estágio do conhecimento acontece
quando o prisioneiro da caverna olha para os objetos e descobre que aquilo que
anteriormente via não era a realidade. Descobre, assim, que as impressões que obtinha
advinham dos objetos.
35
Ibidem, pág. 100.
Ibidem, pág. 100.
37
BREHIER, Émile, História da Filosofia – Tomo Primeiro – A Antiguidade e a Idade Média – I:
Introdução – Período Helênico, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1977.
38
NOVAES, Roberto Vasconcelos, O Filósofo e o Tirano – por uma teoria da Justiça em Platão,
Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2005.
39
Eikasia (conhecimento das imagens), pistis (unificação das diversas impressões sensíveis), dianoia
(conhecimento por hipóteses) e noesis (conhecimento ideal puro). Cf. NOVAES, Roberto Vasconcelos,
op. cit., pág. 248 a 250.
36
21
O terceiro estágio ocorre quando o prisioneiro sai da caverna e descobre
que as impressões que tinha na caverna e os objetos das quais elas provinham só são
possíveis em razão da inteligência:
“as coisas sensíveis moram fora do homem, mas são causadas
pela realidade inteligível”40
Nesse estágio, o homem percebe a relação dos objetos sensíveis com a
realidade inteligível, sem que, no entanto, saiba que esta realidade inteligível é a mais
verdadeira, conhecimento que só será atingido no quarto estágio.
Nesse último estágio, o prisioneiro (que já saiu da caverna) vê que os
objetos inteligíveis são a causa dos objetos sensíveis e que a externalidade dos sentidos
somente existe como ideia ou forma. Nesse momento, segundo o autor, o homem
descobre que a dimensão do real é puramente inteligível.
Para relacionar a ideia como determinação e a ideia como verdadeiro
objeto, Platão se utiliza da imagem do Sol. Roberto Vasconcelos Novaes afirma, então,
que o Sol, na Alegoria da Caverna, é a razão universalmente considerada, que
possibilita a unificação do sensível e do inteligível. A razão é que traz unidade à
experiência do prisioneiro:
Agora, a cisão entre o sensível e o inteligível mostra-se como
aparente, já que cada ente é enquanto ente ideal, ou seja, o
ente é o que é pensado, e o real, o pensável
41
Para o autor, o processo narrado na Alegoria da Caverna é o caminho do
homem em busca da sua racionalidade, mas o sentido dessa busca só é descoberto se
lhe permitir projetar seus destinos e seu futuro numa nova sociedade. É esse o sentido
dado pelo autor ao processo de retorno do homem à caverna onde era prisioneiro e à
tentativa deste em tentar libertar seus companheiros.
Das leituras apresentadas acima, proveniente de autores de diferentes
períodos e escolas de pensamento, podemos afirmar que as interpretações da Alegoria
40
41
Ibidem, pág. 256.
Ibidem, pág. 259.
22
da Caverna apresentam essa passagem do pensamento platônico como um caminho
para a descoberta da realidade do ser, mas um caminho que parte da “irrealidade
sensível” da caverna para a realidade inteligível do Bem/Sol/Razão, indicando que a
verdade está no final desse caminho.
O retorno do prisioneiro à caverna não é um caminho de volta à
experiência da caverna, mas o retorno de alguém que trará a Luz da razão (ou do Bem)
àqueles que ainda estão entre as sombras da caverna.
Châtelet aponta a apropriação do pensamento platônico, mormente a
Alegoria da Caverna, por outros pensadores, que se utilizam da obra de Platão para
fundamentar suas próprias filosofias. No entanto, Châtelet não apresenta outra
interpretação de Platão que não a de um caminho para o conhecimento do Bem, que
unificaria a diversidade das percepções sensíveis.
O retorno do prisioneiro à caverna é apresentado como o ato de um
missionário42, que retorna para junto dos seus companheiros para iluminar-lhes o
entendimento. Das leituras apresentadas, apenas Abbagnano interpreta o retorno à
caverna como uma etapa final da educação do prisioneiro, que deverá reavaliar as
coisas sob a nova luz do conhecimento que agora adquiriu. No entanto, permanece a
noção de que o conhecimento e a possibilidade de conhecimento são externos à
caverna.
Seção II
Hans Kelsen e a interpretação normativa da Alegoria da Caverna de Platão
A leitura de uma parte dos juristas modernos sobre a obra de Platão,
principalmente da República, apresentam Platão como uma espécie de precursor do
positivismo jurídico, no sentido da busca de um pressuposto de validade absoluto para
o direito.
Em nossa concepção, a principal figura que representa essa corrente de
pensamento é o jurista austríaco Hans Kelsen. Assim, traremos, aqui, a leitura que Hans
Kelsen faz da Alegoria República de Platão. Hans Kelsen, sejamos ou não adeptos da
sua corrente de pensamento jurídico, pode ser considerado como o paradigma do
42
NOVAES, Roberto Vasconcelos, .op. cit., pág. 261.
23
positivismo jurídico43. Sua obra Teoria Pura do Direito44 e sua teoria da norma
fundamental, mesmo não sendo seguidas por todos os pensadores do Direito,
constituem um dos marcos sobre os quais se baliza a discussão sobre o direito que se
realiza desde meados do século XX.
Não trataremos, aqui, da teoria da norma fundamental nem dos conceitos
expostos por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, mas, apenas, da leitura que Kelsen
faz da alegoria da caverna, tema da presente dissertação.
Kelsen dá sua interpretação da alegoria da caverna, de Platão, na obra
intitulada A ilusão da Justiça45. Nessa obra, Kelsen dá um sentido normativo à teoria
das ideias de Platão. Segundo Kelsen, na República,
“a ideia funciona essencialmente como “modelo divino” do
verdadeiro Estado e de sua correta Constituição”46.
O mundo das ideias platônico tratar-se-ia, assim,
“de um sistema de valores concebido visivelmente como uma
ordem jurídica, como a ordem da justiça absoluta”47
Kelsen apresenta o mundo das ideias, termo também utilizado por outros
pensadores e leitores de Platão48, não como a reunião de modelos primordiais das
coisas49. Pela afirmação acima transcrita, a ideia, segundo o conceito que Kelsen extrai
da República de Platão, possui um sentido normativo, fornecendo um modelo para o
agir com justiça50.
43
“A teoria da norma fundamental como pressuposto jurídico leva ao positivismo jurídico, que não é
senão o represamento da decisão”, in MAMAN, Jeannette Antonios, Fenomenologia Existencial do
Direito – Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro, Edipro, São Paulo, 2000, pág. 45.
44
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 6ª ed., Martins Fontes, São Paulo, 1998.
45
KELSEN, Hans, A Ilusão da Justiça, Martins Fontes, 3ª ed., São Paulo, 2000.
46
Ibidem., pág. 422.
47
Ibidem, pág. 422
48
ALVES, Alaôr Caffé, Lógica – Pensamento Formal e Argumentação, 3ª ed., Quartier Latin, São
Paulo, 2003, pág. 55.
49
Como se a ideia fosse a essência atemporal e perfeita do que existe.
50
KELSEN, Hans, A Ilusão da Justiça, op. cit., pág. 423.
24
Para quem estudou a Teoria Pura do Direito e está familiarizado com o
conceito de norma fundamental51, percebe aqui o mesmo movimento de pensamento
realizado naquela obra. Kelsen, ao dar um sentido normativo à alegoria da caverna em
sua interpretação, transforma a obra platônica na norma fundamental de sua teoria
jurídica.
É esse modo de pensar que orienta a interpretação que Kelsen dá à
alegoria da caverna de Platão.
Para Kelsen, os prisioneiros da caverna platônica são comparados a
homens de dependem da percepção das coisas terrenas pelos sentidos. Aquele que
conseguir libertar-se e virar a cabeça poderá ver as coisas reais e não somente as
sombras. Esse virar da cabeça do prisioneiro da caverna em direção às coisas reais
representa a ascensão da percepção sensível ao pensamento puro. No pensamento puro
é que está a possibilidade de se conhecer a ideia do Bem.
Segundo a interpretação de Kelsen, o que importa para Platão é a justiça, e
não a verdade. Quando o prisioneiro volta da caverna, é com as questões dos tribunais
que ele vai lidar, segundo Kelsen, com a justiça. A doutrina das ideias seria, assim,
relacionada à questão da justiça, e não da verdade. O que importaria ao Platão
kelseniano seria a justiça, e não a verdade:
“O lugar da doutrina das ideias é no diálogo sobre a justiça,
que é o verdadeiro sentido, o conteúdo essencial da ideia, o
que unicamente, de fato, importa a Platão. Justiça, e não
verdade”52
Ele explica sua afirmação citando o trecho da alegoria da caverna, na qual
o prisioneiro da caverna retorna à caverna e aos outros prisioneiros
51
“Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face
desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal
como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar
numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser
pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa
norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o
fundamento de sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais
elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)”(itálicos no original). KELSEN,
Hans, Teoria Pura do Direito, op. cit, pág. 217.
52
KELSEN, Hans, A Ilusão da Justiça,op. cit., pág. 424.
25
“E então? Achas estranho, continuei, que pareça desajeitado
e ridículo quem passa da contemplação divina para as
misérias humanas, enquanto está coma vista turva e não se
habituou com a escuridão e se vê na contingência de discutir
nos tribunais ou alhures a respeito das sombras da justiça ou
das imagens dessas mesmas sombras, no empenho de refutar a
opinião dos que nunca viram a justiça em si mesma?” 53
Para Kelsen, a ideia, segundo a filosofia platônica expressada na
Republica, refere-se apenas à ideia de coisas não perceptíveis pelos sentidos. A ideia,
mais do que apenas um conceito, só pode ser apreendida pela razão pura. Para Kelsen,
não há qualquer relação entre a ideia do Bem e a ideia de um cavalo ou de uma mesa.
Platão trataria, apenas, do que Kelsen denomina de ideias éticas, tais como o Bem, a
Justiça, a Beleza.
Interessou-nos trazer para o plano da presente dissertação a interpretação
kelseniana da alegoria da caverna devido ao fato de apresentar o pensamento de um
jurista sobre o trecho da obra platônica que ora serve de tema para nossa pesquisa.
Encontramos, no trecho da obra kelseniana que acabamos de apresentar, um jurista que
funda seu pensamento em Platão. Embora o tema necessite de mais aprofundamento
para podermos tirar conclusões mais consistentes, podemos preliminarmente afirmar
que o conceito de norma fundamental encontra uma de suas fundamentações na
Alegoria da Caverna de Platão e que Kelsen busca fundamentar sua teoria na filosofia
platônica, não nela toda, que tal afirmação demandaria pesquisa mais extensa, mas pelo
menos no trecho da República que ora estamos analisando.
53
PLATÃO, A República (ou: sobre a Justiça. Gênero Político), op. cit., pág. 323.
26
Capítulo III – A Metafísica em Heidegger
27
Seção I – O que é Metafísica
Por que há simplesmente o ente e não antes o nada?54
Por que existe afinal ente e não antes Nada?55
Embora essa pesquisa não questione diretamente a metafísica, está é tratada
em certas partes do pensamento heideggeriano. Assim, nos propomos a apresentar um
pensamento de Heidegger sobre o tema, de forma a contextualizar o que se falará nessa
pesquisa sobre a metafísica.
A obra de Heidegger rompe com a metafísica tradicional, rompimento este
que se inicia já nos primórdios da investigação heideggeriana. Heidegger pensa a
metafísica na abertura do ser, abertura que só se torna possível através do
questionamento sobre o nada.
Para Heidegger, toda questão metafísica problematiza e questiona aquele
que interroga. Mais ainda, toda questão metafísica abarca toda a metafísica. Isso já
indica o início do rompimento de Heidegger com a metafísica tradicional e,
consequentemente, com toda a filosofia ocidental, que teve seu relacionamento com a
verdade modificada quando da modificação da essência da verdade elaborada no seio
da filosofia platônica. O questionamento sobre a metafísica deve pensar
metafisicamente e, ao mesmo tempo, além da metafísica, uma vez que este interrogar
questiona os próprios fundamentos da metafísica.
Quando Platão, em sua Alegoria da Caverna, transporta a essência da
verdade para a ideia e, por corolário, para o intelecto, essa transformação termina por
criar um abismo entre aquele que questiona e aquilo que é questionado, pois retira a
verdade de sua morada, que é o ser do ente, e a instala no intelecto de um ente entre
outros entes, o homem, que como ente entre outros entes não guardava, até então,
nenhum privilégio sobre os outros entes. A separação entre o ente e a ideia que se tem
dele, dando-se proeminência desta sobre aquele, termina por separar o pensador e o
pensado, como se cada um existisse numa separação absoluta.
54
Heidegger, Martin, Introdução à Metafísica, 2ª ed., Biblioteca Tempo Universitário, Edições Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, pág. 33.
55
Heidegger, Martin, O que é metafísica?, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1969, pág. 44.
28
Mais ainda, a verdade, vindo de fora do ente, o precede, pois deve ser
conhecida antes do questionamento sobre o ente. Se a ideia já tem que estar no intelecto
para que se possa apreciar a adequação do ente à ideia, a ideia, e, portanto, a essência
da verdade do ente, já estão pressupostos, precedendo o ente. A verdade, portanto, não
só está fora do ente como o precede.
Essa separação opera também para o Dasein. Sendo a ideia a essência da
verdade, a proeminência é dada a ela e, por conseguinte, àquele que a pensa. Isso
transformaria em realidade a tese de Platão: dado que a ideia e o pensamento são o mais
importante (o pensamento aqui figurando por ser o intelecto a morada da ideia), fica
estabelecida também a importância dos filósofos e o direito dos mesmos de governar a
sociedade. Há os que pensam – filósofos – e que devem governar, e há os governados,
para quem o pensar não está na categoria de uma philia.
Podemos apreciar o fato de que o governo e a política tenham sido
preocupação constante em Platão. Todavia, a operação feita na modificação da essência
da verdade colocou a filosofia ocidental em um caminho que se distanciou do ser do
ente e propiciou um certo tipo de instrução, idealista. A história ocidental não viu
governos de filósofos, mas viu o homem ocupar o centro da totalidade dos entes e o
intelecto humano tornar-se a medida da verdade.
No entanto, na elaboração platônica da Alegoria da Caverna a verdade como
desocultação estava lá presente. Cada passagem de plano dentro da Alegoria da
Caverna evidenciava a verdade como desocultação, aletheia. A aletheia estava presente
até na saída da caverna para o sol. Cabe dizer aqui que ocultos estavam tanto o Dasein
quanto os demais entes dentro e fora da caverna. Por isso Heidegger pode falar que
todo questionamento metafísico questiona o questionado e quem questiona, pois a
desocultação opera para ambos. E isso já está em Platão.
Interpretar Platão a partir de sua obra permitiu a Heidegger evidenciar que o
distanciamento do ser apenas se deu a partir de Platão porque a filosofia que foi
elaborada a partir de sua obra não levou em conta a modificação na essência da verdade
que foi ali operada, tanto quanto não pôde perceber que a verdade como desocultação
também estava presente na obra platônica.
Heidegger re-unifica ser e pensar em sua investigação sobre o ser. Ser e
pensar são o mesmo, e a situação existencial daquele que interroga é que orienta o
desenvolvimento da interrogação metafísica. Ao re-unificar ser e pensar, Heidegger
29
supera a metafísica tradicional, que a partir de Platão operou sistematicamente a
separação entre ser e pensar, dentro de uma doutrina idealista que privilegiou o homem
como o ente mais importante e o intelecto humano como a morada da verdade.
Seção II - A questão do Nada
Em O que é metafísica Heidegger questiona o nada. Mas porque o nada
deve ser questionado? E qual a importância desse questionamento para a elaboração de
uma crítica à filosofia e, mais propriamente, à metafísica ocidental tradicional?
A ciência é um fazer humano, comportamento humano livremente escolhido
e que se refere sempre ao mundo. A ciência permitiria ao ente manifestar-se a partir de
si próprio, dando ao ente a última palavra56. A ciência quer saber apenas do ente, e mais
nada.
A ciência faz referência ao ente, abandonando o questionamento sobre este
nada, rejeitando-o. Heidegger, porém, questiona o nada como essencial na pesquisa
sobre a verdade do ser. O nada é o que permite uma abertura originária para o
pensamento que pensa o ser junto ao ente, e não fora, alem do ente.
A ciência, embora rejeitando o nada, dele se serve para expressar sua
essência. O pensamento, que sempre é pensamento de alguma coisa, quando pensa o
nada agiria contra sua própria essência. A ciência trata dos entes, daquilo que é, e o
nada não é... nada. No entanto, interroga-se o que é o nada, respondendo-se,
comumente, que o nada não é nada. Mas, no entanto, o questionar sobre o nada já supõe
o nada como algo – como um ente.
Para Heidegger, a negação, que seria a essência do nada, não é o mais
originário, tendo o nada essa posição originária. Se o nada deve ser questionado, e
depois de questionado definido por uma negação, o nada deverá estar primeiramente
dado. Não há um buscar sem uma antecipação do que se busca. Assim, a negação é que
provém do nada. Sem o nada não haveria negação. A negação não pode produzir por si
mesma o não, pois ela só pode negar o que lhe foi dado previamente para ser negado57.
O não da negação tem origem no nadificar do nada, o que fundamenta a originariedade
do nada com relação à negação. O nada, no entanto, é, no mais das vezes, dissimulado
56
57
Heidegger, Martin, O que é metafísica, op. cit., pág. 23.
Ibidem, pág. 37.
30
pelo fato de nos perdermos absolutamente junto ao ente em nossas ocupações
cotidianas.
Questionando o nada, Heidegger questiona a própria metafísica e a tradição
filosófica. Tratar o nada como questão, sem rejeitá-lo, questiona a lógica em seus
fundamentos, eis que, pelo princípio da não-contradição, o pensamento é sempre o
pensamento de alguma coisa, e o pensamento sobre o nada agiria contra sua própria
essência, devorando-se a si mesmo.
Fosse a lógica a última instância do pensamento, transformar o nada em
objeto já encerraria por si a questão que assim se colocasse. A lógica, porém, não é a
última instância do pensamento, e a suspeita contra ela provém de seu caráter de
exatidão, como se a exatidão fosse mesmo o rigor. Para Heidegger, o rigor, ao contrário
de toda tradição filosófica ocidental, não provém da exatidão. Esta se prende,
unicamente, ao cálculo do ente, que reduz tudo a uma enumeração e ao enumerável.58 O
cálculo seria a destruição do ente, pois o consumiria para a enumeração. Em sua
característica de calculador, o pensamento, embora apresente uma aparência de
produtividade, faz com que todo ente valha apenas na forma do que pode ser produzido
e consumido.
O interrogar sobre o nada, assim como a investigação de Heidegger sobre a
metafísica, ao longo de sua obra, destrona a lógica como essência e lugar do
pensamento, trazendo o questionamento metafísico para junto do ser.
O nada não é ente, nem objeto. O nada pode revelar-se na angústia:
angustiamo-nos frente a uma indeterminação impossível de ser determinada. Na
angústia, depara-se com o nada juntamente com o ente em sua totalidade. O nada e a
totalidade do ente se dão em conjunto, e tal deparar-se do Dasein com o nada e com o
ente em sua totalidade é sinalizado pela angústia.
Embora não possamos compreender o ente em sua totalidade, encontramonos postados em meio ao ente desvelado em sua totalidade, que se dá juntamente com o
nada. O nada é o que torna possível o surgimento de uma abertura originária do ente
enquanto tal. O nada conduz o Dasein diante do ente enquanto tal.
Com essa elaboração do pensamento heideggeriano, começamos a
compreender a interrogação pelo nada e o papel dessa interrogação na superação da
metafísica tradicional por Heidegger. O nada possibilita a abertura originária pra o
58
Ibidem, pág. 53.
31
pensar junto ao ser do ente em sua totalidade. O nada possibilita a liberdade do ser-aí,
do Dasein, a liberdade de ser-si-mesmo. O nada é essencial no questionar metafísico,
no questionar da própria metafísica, possibilitando a revelação do ser enquanto tal para
o Dasein.
A interrogação de Heidegger sobre o nada teve por meta apresentar a
metafísica. Heidegger, em O que é metafísica, apresenta uma noção de metafísica:
“Metafísica é o perguntar além do ente para recuperá-lo, enquanto tal e em sua
totalidade, para a compreensão” 59.
Isso quer dizer: a metafísica vai além do ente, suspenso no nada, para
encontrar o ser do ente enquanto tal e em sua totalidade para a compreensão.
Na metafísica antiga, o nada era o não-ente, da matéria sem forma. Na
dogmática cristã, o nada é significado como a absoluta ausência do ente fora de Deus.
Porém, tanto quanto a discussão sobre o ser, a discussão sobre o nada não é feita
propriamente. Apenas figura-se o nada como negação do ente. Porém, o nada
permaneceu como questão, tanto quanto o ser.
Ser e nada co-pertencem por que “o ser mesmo é finito em sua manifestação
no ente (Wesen), e somente se manifesta na transcendência do ser-aí suspenso dentro
do nada”. A manifestação do ser do ente é possibilitada apenas pela abertura originária
propiciada pela suspensão do ser-aí no nada.
Do mesmo modo que a questão do ser envolve toda a metafísica, o
questionar sobre o nada também é uma questão que envolve a totalidade da metafísica.
A metafísica, assim tratada pelo caminho de investigação proposto por
Heidegger, não é apresentada como uma “disciplina” da filosofia, mas como um
acontecimento essencial no âmbito do Dasein. E isso porque a questão do nada, tanto
quanto a questão do ser, coloca em questão aquele mesmo que questiona.
59
Ibidem, pág. 39.
32
Capítulo IV – A Doutrina de Platão sobre a Verdade
33
Seção I – Introdução
Apresentamos, até o presente momento, o texto que serve de base à nossa
pesquisa – a Alegoria da Caverna, de Platão, e alguns apontamentos do pensamento de
Heidegger sobre a metafísica.
Fizemos a resenha do texto, segundo traduções vertidas diretamente do
grego. Depois, apresentamos as interpretações de alguns estudiosos do filósofo grego
que se debruçaram sobre a sua obra.
Dentre os mesmos, incluímos a interpretação de Hans Kelsen, primeiro por
tratar-se de um jurista paradigmático dentro da teoria jurídica e, ainda, por
encontrarmos em sua teoria da norma fundamental traços evidentes do pensamento
elaborado por Platão na Alegoria da Caverna.
Passaremos agora a analisar a interpretação que Martin Heidegger faz do
texto platônico em análise.
No texto “A doutrina de Platão sobre a verdade” Heidegger interpreta a
Alegoria da Caverna para desvelar o que ficou implícito no pensamento de Platão. Por
implícito Heidegger quer dizer aquilo do qual não podemos dispor sem pensar, a
contrario senso do que é afirmado pelo pensador alemão sobre o que está “exposto” no
que concerne à doutrina de um pensador60.
Heidegger indica que, a fim de se conhecer o que está implícito na doutrina
de um pensador é “ necessário examinar todos os ‘diálogos’ de Platão na sua relação
mútua”. Afirmando ser impossível tal intento, Heidegger propõe um caminho diferente
para que possamos nos guiar para o que permanece implícito no pensamento de Platão.
Esse caminho consiste na interpretação da Alegoria da Caverna, apresentada
no Livro VII da obra A República, de Platão, através da qual Heidegger pretende
esclarecer o que ficou implícito no pensamento de Platão: uma mudança da
determinação da verdade.
Antes de apresentarmos o texto heideggeriano sobre a Alegoria,
retomaremos, preliminarmente, algumas noções que Heidegger apresenta em Ser e
60
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, vol. 100, São Paulo, 2005, p. 335-359, traduzido pela Profª Drª Jeannette
Antonios Maman, pág. 335.
34
Tempo61, a fim de podermos situar a presente análise da Alegoria da Caverna no seio
do pensamento heideggeriano.
Depois, apresentaremos o texto de Heidegger sobre a Alegoria em duas
partes. Uma tratará de apresentar a Alegoria da Caverna segundo a tradução de
Heidegger. A outra se ocupará da interpretação heideggeriana dessa Alegoria.
Seção II – Fenômeno e encobrimento
No § 7 de Ser e Tempo Heidegger apresenta a noção de método
fenomenológico de investigação. Interessa-nos, aqui, o que Heidegger pensa sobre o
conceito de fenômeno. Buscando as raízes gregas do que pretende apresentar,
Heidegger indica que fenômeno (phainomenon) “diz o que se mostra, o que se
revela”62.
Na palavra phainomenon encontram-se outras raízes gregas, que trazem
mais significados para serem acrescentados ao termo que Heidegger analisa: “a luz, a
claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a se revelar e a se
tornar visível em si mesma”63. Como significado de fenômeno, devemos manter, então,
o que se revela, o que se mostra a si mesmo. Segundo os gregos, os fenômenos
constituem, então, a totalidade do que está à luz do dia, a totalidade de tudo o que é, dos
entes (ta onta).
Os entes, explica-nos Heidegger, podem se mostrar de várias maneiras,
segundo o modo de acesso aos mesmos. O ente pode até mesmo mostrar-se como
aquilo que ele não é, fazendo-se “ver assim como...”. A esse modo de mostrar-se
Heidegger denomina aparecer, parecer e aparência.
Para que possamos propriamente ter a compreensão de fenômeno
precisamos ter uma visão de como os significados de fenômeno (fenômeno como o que
se mostra e fenômeno como aparecer, parecer e aparência) se inter-relacionam.
O aparecer, parecer e aparência, embora distintos do significado originário
de fenômeno, não se confunde com a manifestação. A manifestação, embora seja um
61
HEIDEGGER, Martin, Ser e Tempo, Parte I, 8ª ed., Editora Vozes, Petrópolis, 1999.
Idem, pág. 58.
63
Ibidem, pág. 58.
62
35
anunciar-se, é um anunciar-se de algo que não se mostra, “Manifestar-se é um não
mostrar-se”64
A relação entre fenômeno e manifestação é indicada por Heidegger da
seguinte maneira: “Desse modo, fenômenos nunca são manifestações, toda
manifestação é que depende de um fenômeno”65
A digressão feita por Heidegger com relação ao conceito não originário de
fenômeno (aparecer, parecer e aparência) e a relação do fenômeno com a manifestação
serve para indicar que há certa confusão na conceituação do fenômeno e que essa
confusão só irá deixar de nos confundir quando tivermos compreendido o conceito de
fenômeno: o que se mostra em si mesmo.
Até aqui, apresentamos o conceito formal de fenômeno, conforme
Heidegger o expõe em Ser e Tempo. No entanto, o conceito forma de fenômeno não é
suficiente para que se compreenda o pensamento e a obra heideggerianos.
Heidegger continua, assim, seu pensamento e nos apresenta, na letra C do §
7 de Ser e Tempo66, o conceito fenomenológico de fenômeno, aquilo que se deve
chamar fenômeno em um sentido privilegiado.
O fenômeno que a fenomenologia deve deixar e fazer ver é o ser dos
entes, e não qualquer ente. Assim, “O conceito fenomenológico de fenômeno propõe,
como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificações e derivados”67.
Segundo Heidegger, a fenomenologia é necessária porque os fenômenos, na
maioria das vezes, não se dão, podendo velar-se. Para a presente pesquisa, que trabalha
a análise da interpretação da Alegoria da Caverna empreendida por Heidegger, importa
substancialmente lembrar que, para o filósofo alemão, “O conceito oposto de
“fenômeno” é o conceito de encobrimento”68.
A noção de encobrimento está presente no texto que nos dispusemos a
analisar, bem como a noção de des-encobrimento ou, mais precisamente, de
desvelamento. O encobrimento pode dar-se de vários modos. Segundo Heidegger,
“Um fenômeno pode-se manter encoberto por nunca ter sido descoberto.
Dele, pois não há nem conhecimento nem desconhecimento. Um fenômeno
64
Ibidem, pág. 59.
Ibidem, pág. 59.
66
Ibidem, pág. 65.
67
Ibidem, pág. 66.
68
Ibidem, pág. 66, no final do último parágrafo.
65
36
pode estar entulhado. Isto significa: antes tinha sido descoberto mas, depois,
voltou a encobrir-se. Esse encobrimento pode ser total, ou como geralmente
acontece, o que antes se encobriu ainda se mantém visível, embora como
aparência”69
Para Heidegger, o encobrimento não-total de um fenômeno guarda mais
perigo que as outras formas de encobrimento,
“pois as possibilidades de engano e desorientação são particularmente
severas e persistentes. As estruturas do ser e seus respectivos conceitos
disponíveis, embora entranhados em sua consistência, reivindicam seus
direitos talvez dentro de um “sistema”. Mas, em razão do encadeamento
construtivo num sistema, eles se apresentam como algo que é ‘claro’ e não
carecem de justificações ulteriores, podendo, por isso, servir de ponto de
partida para uma dedução contínua”70.
A digressão que fizemos acerca da noção de fenômeno guarda relação
próxima com o presente trabalho, que não trata diretamente dessas noções, mas é
realizado na esteira do pensamento heideggeriano, devendo guardar proximidade
radical com o pensamento do filósofo alemão.
Seção III - A tradução heideggeriana da Alegoria da Caverna
Heidegger apresenta a sua tradução da Alegoria da Caverna introduzindo
algumas passagens explicativas que não constam do original71.
Heidegger apresenta-nos pessoas que vivem abaixo da terra, em uma
habitação em forma de caverna. As pessoas, na tradução de Heidegger, não apenas
estão presas na caverna. Elas habitam a caverna, desde a infância, acorrentados pelas
pernas e pelo pescoço.
Entre elas e uma fogueira, que proporciona alguma luz, há um caminho, que
possui um muro construído em toda sua extensão. Ao longo desse muro passam pessoas
69
Ibidem, pág. 67.
Ibidem, pág. 67.
71
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 336.
70
37
carregando todo tipo de estatuetas e esculturas e outros artefatos. Alguns dos
carregadores conversam entre si.
Essas pessoas nunca viram outra coisa que não as sombras daquilo que
passa por sobre o muro, no caminho que se estende entre a fogueira e elas. Mesmo os
sons vindos de fora da caverna seriam considerados pelos habitantes da caverna como
vindo das sombras que veem constantemente à sua frente.
Por nada mais terem visto em suas vidas, os que estão acorrentados
considerariam apenas as sombras que veem na caverna, e nada mais, como algo a ser
descoberto.
A libertação dos prisioneiros inicia a cura da falta de discernimento dos
mesmos72. Desacorrentado, o prisioneiro é forçado a levantar-se, andar e levantar os
olhos para a luz, o que lhe causaria dor. O brilho inicialmente impediria que o
prisioneiro olhasse para os objetos dos quais via antes as sombras.
Voltado para os objetos, mais perto do que é mais entitativo, o prisioneiro
não saberia dizer nada sobre o que vê agora, e ainda consideraria como mais desoculto
aquilo que via antes, as sombras.
Forçado a olhar o fogo, que machuca seus olhos, o prisioneiro libertado
fugiria de volta para aquilo que antes podia ver melhor, decidindo, inclusive, que o que
via antes era mais claro.
Arrancado da caverna, o prisioneiro é, agora, exposto à luz do sol, que o
ofusca e o torna momentaneamente incapaz de ver aquilo que agora é revelado como o
mais desoculto. O prisioneiro libertado e arrancado da caverna precisa de algum tempo
para se acostumar com o que agora se lhe apresenta à luz do sol.
Inicialmente, veria as sombras das coisas e das pessoas e, depois, os reflexos
das coisas na água. Depois, estaria apto a ver as coisas mesmas, e não mais apenas os
seus reflexos. Mesmo podendo ver essas coisas na claridade, a pessoa veria melhor as
coisas do céu à noite.
Estando, depois, em condições de contemplar o sol diretamente, essa pessoa
compreenderia, então, que é o sol que determina tudo o que existe e também é a causa
de todas as coisas que as pessoas que estão na caverna têm diante dos olhos.
Recordando-se da sua antiga morada e das pessoas que estavam
acorrentadas consigo, essa pessoa se sentiria triste por elas. No entanto, mesmo sabendo
72
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 337.
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das honras que recebem aqueles dentre os prisioneiro da caverna que melhor veem as
sobras e reflexos o prisioneiro libertado preferiria não ter essas honras a ser novamente
o tipo de pessoa que habita a caverna.
Retornando à caverna, e ainda acostumando-se com as sombras, sustentando
opiniões sobre o que viu fora da caverna, essa pessoa seria agora ridicularizada pelos
que continuaram na caverna, e tomariam a sua dificuldade de ver nas sombras como
efeito nefasto da sua saída da caverna e, por fim, o matariam, julgando que não valeria
a pena sair da caverna para voltar com olhos estragados.
Em resumo, essa é a apresentação que Heidegger faz da Alegoria da
Caverna, antes de começar a sua interpretação.
Falta ainda a interpretação dada por Platão à Alegoria da Caverna73. Como a
interpretação de Platão é o início da interpretação heideggeriana, apresentaremos aquela
junto com a interpretação de Heidegger na seção seguinte.
Seção IV – A Interpretação Heideggeriana da Alegoria da Caverna
No presente trabalho, procuramos pensar com Heidegger, não apenas
utilizando noções por ele pensadas e refletidas, mas guardando a proximidade possível
com o modo de pensar fenomenológico presente na obra do pensador alemão.
Nesse intento, encontramos na Doutrina de Platão sobre a Verdade o mesmo
rigor e radicalidade de pensamento presente em Ser e Tempo.
Como já afirmado no início desse capítulo, a doutrina de um pensador é o
que sobra implícito dentro do que é expressamente dito, exposto ao homem, que dele
pode dispor sem pensar. Desvelar esse implícito é o que Heidegger empreendeu ao
interpretar a Alegoria da Caverna, trecho bastante lido e comentado da obra A
República, de Platão.
Já apresentamos no Capítulo II as interpretações tradicionais sobre a
Alegoria da Caverna de Platão. Indicamos, também, o que aquelas interpretações
trazem de comum no entendimento sobre o texto platônico.
Tendo apresentado a resenha da tradução da Alegoria feita por Heidegger,
iniciaremos a exposição e análise da interpretação heideggeriana.
73
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 340.
39
Heidegger, apresenta uma interpretação que, inicialmente, guarda elementos
de semelhança com as interpretações de outros pensadores.
Inicialmente, Heidegger diz que Platão apresenta ele próprio uma
interpretação da Alegoria, logo depois do texto em si. A caverna é uma imagem do
local onde residimos em nossa cotidianidade. A caverna é a habitação do homem: a
fogueira é o sol, o teto da caverna é a abóboda celeste. O que circunda aqueles que aí
habitam é para eles o real. O que existe fora da caverna seria o ente dos entes. Segundo
Heidegger, Platão considera a forma visível não apenas como um aspecto, mas como
um adiantar-se, como algo que se apresenta: “Situando-se nesta ‘forma visível’ o ente
mesmo mostra a si mesmo”74. Heidegger nos diz ainda que em grego “forma visível é
eidos, Idea.
Heidegger afirma que, para Platão, as pessoas julgam que veem diretamente
as coisas – árvores, pessoas, etc. Não sabem que aquilo o que torna possível a visão é a
“ideia”, a aparência das coisas. Aquilo que as pessoas veem, e que tomam pelo real, são
apenas sombras. O que está mais próximo das pessoas, mesmo sendo sombras, como
acontecia com os prisioneiros da caverna, mantém as pessoas prisioneiras. Não se
reconhecendo em uma prisão, as pessoas consideram que esse território cotidiano é “a
arena da experiência e do julgamento que oferece o único critério para todas as coisas e
relações e que fixa as únicas regras para sua disposição e arranjo.
Lançando o olhar ao fogo, as pessoas experimentariam uma ruptura do
comportamento habitual e da opinião corrente. Segundo Heidegger, mesmo a mera
sugestão desse olhar para o fogo, coisa artificial e que, portanto, deveria ser familiar aos
seres humanos, é rejeitada – as pessoas da caverna já julgam estar de posse do real.
O sol, que aparece no final da Alegoria, é a imagem que faz todas as outras
visíveis. “É a ‘imagem’ para a ideia das ideais”75.
As correspondências que Heidegger apresenta em sua interpretação – as
sombras e a realidade, o brilho do fogo da caverna e as ideias, o sol e a ideia mais
elevada, não exaurem, segundo o autor, o conteúdo da Alegoria. Para Heidegger, a
dimensão da Alegoria nem sequer veio à compreensão com o que até aqui foi
apresentado. Ou seja, nem a interpretação dada pelo próprio Platão à sua Alegoria da
Caverna nos entrega a dimensão completa do que pode ser compreendido do texto.
74
75
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 340.
Ibidem, pág. 341.
40
Heidegger chama a atenção para os movimentos constantes, que se sucedem
na alegoria: a liberdade inicial, que permite olhar ao redor, a saída da caverna, com o
encontro da luz do sol, que torna visível as coisas, e o retorno do aberto, à luz do sol,
para a caverna. Nesses movimentos, há um lento e constante adaptar-se a cada território
para o qual se move.
Nesses movimentos de passagem há duas possibilidades: as pessoas podem
sair da caverna, do escuro, onde ignoram o que é essencial e serem expostas a esse
essencial sem, no entanto, estarem preparadas para o mesmo. De outro lado, as pessoas
podem fugir do conhecimento do que é essencial e serem forçadas a voltar ao lugar das
sombras, do cotidiano, mas sem serem capazes de reconhecer o que aí existe como o
real.
Do mesmo modo que o olho, a alma também vai vagarosamente se
acostumando com essas passagens, acostumando-se com cada território em que se
encontra.
Heidegger questiona, então, a necessidade desse acostumar-se da alma em
cada território ter que ser vagaroso e constante. Porque tem que ser dessa forma? A
razão é que esse processo de se mover ao redor, em cada território, tem a ver com o
ente do homem e tem lugar no solo da essência do homem76.
Esse processo de reorientação da essência humana para cada território é
chamada por Platão de paideia: o guiar de todo ser humano no movimento ao redor de
sua essência.
Segundo Heidegger, paideia não se traduz facilmente, indicando que a
palavra Bildung (educação, formação em alemão) é a que chega mais perto de capturar
o sentido de paideia. Bildung significa formar pessoas, imprimindo sobre elas um certo
caráter e, ao mesmo tempo, significa também guiar pessoas para um paradigma já
anteriormente escolhido. Paideia significaria educação no sentido de uma formação em
direção a um protótipo, a um paradigma anteriormente escolhido
A essência da paideia (educação no sentido mais geral de formação,
conforme exposto acima) para Platão não consiste em despejar conhecimento em uma
alma despreparada, como um recipiente vazio, mas sim em prender a alma e
transformá-la em sua totalidade, conduzindo-a, primeiramente, para o lugar do seu ser
primordial e ali a habituando.
76
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 342.
41
Segundo Heidegger, Platão afirma que a Alegoria da Caverna ilustra a
essência da instrução77. Porém, Heidegger, para além do que Platão diz expressamente
na Alegoria, vai buscar, nessa interpretação que faz da Alegoria da Caverna, a
“doutrina” platônica da verdade, aquilo que restou implícito na filosofia do pensador
grego.
Para Heidegger, como também para os alguns dos intérpretes de Platão que
apresentamos no capítulo II, o texto da Alegoria também diz algo sobre a educação,
sobre o modo de conhecimento da verdade, sobre a instrução. No entanto, as
semelhanças entre a interpretação heideggeriana e as demais param aí. Heidegger não
fica na superfície do texto, mas vai em busca do que está em-coberto no texto, do que
está velado.
Na interpretação que Heidegger faz, ele procura desvelar aquilo que restou
não-dito por Platão na “Alegoria da Caverna”. Heidegger enuncia a aletheia, a verdade,
no sentido grego de desocultação.
Preliminarmente, podemos dizer que o expressamente dito pode ser
considerado como fenômeno, manifesto no mundo, que, ao ser investigado,
questionado pelo pensar do pensador, desvela o implícito, a verdade.
Sobre o fenômeno, e a noção fenomenológica de fenômeno, já apresentamos
o pensamento de Heidegger sobre o assunto nesse capítulo, na Seção I.
O que permanece implícito, não-dito, no pensamento de Platão, e que
Heidegger busca desvelar em sua interpretação, é uma mudança na determinação da
essência da verdade. Para podermos propriamente tratar dessa mudança da essência da
verdade, precisamos falar, primeiramente, do que seria a essência da verdade para o
pensamento grego e para Heidegger.
Seção V – A Essência da Verdade
Heidegger busca uma compreensão da verdade nos escritos dos primeiros
pensadores gregos, encontrando na noção de aletheia aquilo que para os gregos seria a
essência da verdade.
77
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 344.
42
Para os primeiros pensadores gregos, a verdade relaciona-se com a
desocultação. A essência da verdade é a desocultação do oculto. Desocultação, para os
gregos, é chamada aletheia, sendo que Heidegger traduz este termo como “verdade”78 .
Para analisarmos o que Heidegger considera a doutrina implícita na
Alegoria da Caverna – a mudança da determinação da essência da verdade,
analisaremos um texto anterior de Heidegger, chamado Sobre a Essência da
Verdade79.As considerações feitas por Heidegger no texto indicado guardam estreita
relação não só com a interpretação que ele dá à Alegoria da Caverna como com o
próprio texto da Alegoria em si.
Em Sobre a Essência da Verdade Heidegger nos apresenta ao conceito
corrente de verdade, indicando, inicialmente, o que se entende ordinariamente por
verdade: aquilo que constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro. A verdade passa por
ser identificada inicialmente com o real e o autêntico. Usando o ouro como exemplo, o
ouro falso é aquilo que não é realmente o que aparenta ser, não é o ouro autêntico.
A autenticidade do ouro, por seu lado, consiste em estar de acordo com o
que se entende previamente como sendo o ouro. Segundo Heidegger, “O que,
entretanto, é ‘assim como deve ser’ nos faz dizer: está de acordo. A coisa está de
acordo”80.
Segundo Heidegger, não designamos como verdadeiro o ouro e outros entes
do mesmo gênero, mas também nossas enunciações sobre os entes. Assim, as
proposições que fazemos sobre os entes também podem ser verdadeiras ou falsas, caso
estejam ou em concordância com aquilo que designam.
A concordância se dá de duas maneiras, nas palavras de Heidegger:
Ser verdadeiro e verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas
maneiras: de um lado, a concordância entre uma coisa e o que dela
previamente se sabe, e, de outro, a conformidade entre o que é significado
pela enunciação e a coisa.81
78
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., 344.
HEIDEGGER, Martin, Sobre a Essência da Verdade, in Martin Heidegger - Coleção Os Pensadores,
Nova Cultural, São Paulo, 1999, pág. 149 a 170.
80
Ibidem, pág. 155.
81
Ibidem, pág. 155 e 156.
79
43
Depois de explicitar o caráter duplo da concordância, Heidegger nos traz a
definição tradicional de essência da verdade: “Veritas est adaequatio rei et intellectus”,
dizendo que isso pode significar: “Verdade é a adequação da coisa com o
conhecimento” ou, também, “Verdade é a adequação do conhecimento com a coisa”.
A definição dada acima é apresentada ordinariamente da seguinte forma:
“Veritas est adaequatio intellectus ad rem”. A verdade da proposição, no entanto, só é
possível quando é fundada na verdade da coisa, diz-nos Heidegger. Nesse sentido, a
verdade pensada como adequação da coisa com o conhecimento e a adequação do
conhecimento com a coisa significam “um conformar-se com... e pensam, assim, a
verdade como conformidade”.
Heidegger aponta, no entanto, que intellectus e res são pensados de modo
diferente nessas duas formulações da essência da verdade. A definição da essência da
verdade como adequação da coisa com o conhecimento decorre da ideia de que tanto as
coisas quanto o conhecimento correspondem à ideia concebida pelo espírito de Deus.
Assim, se a coisa é conforme à ideia divina e se o intelecto humano também se
conforma com essa ideia, a relação de conformidade entre a coisa e o intelecto humano
corresponderá à verdade.
Nas palavras de Heidegger,
Veritas significa por toda parte e essencialmente a convenientia e a
concordância dos entes entre si que, por sua vez, se fundam sobre a
concordância das criaturas com o criador, “harmonia’ determinada pela
ordem da criação.
Todavia, essa concepção da verdade como conformidade ou concordância
não necessita da referência teológica da ideia da criação, existindo independente dela
como ordem do mundo. O espírito, como razão universal, ordena os objetos, dando sua
própria lei e estabelecendo a inteligibilidade de seu processo, decidindo aquilo que se
considera como lógico. Nesse sentido, a verdade da coisa significa agora o acordo da
coisa com o seu conceito da forma que o concebe a razão.
44
Nas afirmações precedentes encontramo-nos com a parte final da Alegoria
da Caverna, na qual a ideia do Bem, segundo alguns dos interpretes de Platão82, é que é
a causa de todas as coisas, sendo a fonte do conhecimento verdadeiro sobre as coisas.
A definição da essência da verdade como adequação da coisa com o
intelecto, na forma como exposta até aqui, contem em si, segundo Heidegger, uma
interpretação da essência do homem como portador do intelecto, o que faz com que a
fórmula da essência da verdade (veritas est adaequatio intellectus et rei) adquira uma
validez evidente. Essa evidência da fórmula da essência da verdade, pensada de modo
inadequado e insuficiente, é o que torna possível que se pense numa não-verdade,
pensada como desacordo da coisa:
A não-verdade da proposição (não-conformidade) é a não concordância da
enunciação com a coisa. A não-verdade da coisa (inautenticidade) significa
o desacordo de um ente com sua essência. A não-verdade pode ser
compreendida cada vez como não estar de acordo. Isso fica excluído da
essência da verdade.
Se a essência da verdade é estar de acordo, seja esse acordo da enunciação
com a coisa ou da coisa com a sua essência, a não-verdade é deixada de lado quando se
pensa sobre a essência da verdade. Esse aspecto reveste-se de importância para nossa
pesquisa, quando voltarmos para a análise da interpretação heideggeriana da Alegoria
da Caverna.
O adequar-se da enunciação (proposição) com a coisa não está, entretanto,
totalmente esclarecida. Heidegger continua sua investigação, assinalando que a
adequação não significa um igualar-se material entre coisas desiguais. Heidegger
pergunta como pode uma enunciação, mantendo sua essência de ser enunciação,
igualar-se a uma coisa. E responde a questão dizendo há uma relação entre a
enunciação e a coisa que precisa ser elucidada, e que a elucidação dessa relação é que
permitirá toda e qualquer discussão sobre a “ possibilidade ou impossibilidade, sobre a
natureza e o grau dessa adequação”83.
82
Cf. capítulo II da presente dissertação, na qual apresentamos algumas das interpretações da Alegoria da
Caverna.
83
HEIDEGGER, Martin, Sobre a Essência da Verdade, op. cit., pág. 158.
45
Para Heidegger, a enunciação deixa surgir a coisa tal como ela é, enquanto
objeto, e é nessa possibilidade de deixar surgir a coisa que se funda a relação entre a
enunciação e a coisa. A aparição da coisa se dá numa abertura que é possibilitada pela
enunciação apresentativa. É esta relação que se dá entre a enunciação e a coisa. No
aberto possibilitado pela enunciação que faz surgir a coisa tal como ela é desencadeiase um comportamento que, estabelecido no campo do aberto, caracteriza-se por se
manter referido ao que aí se manifesta. E isso que aí se manifesta, segundo Heidegger,
é chamado “ente”.
Somente através da abertura do comportamento é que o que é manifesto
pode se tornar a medida de uma apresentação adequada. Assim, é a abertura que
possibilita a conformidade da enunciação que o que se manifesta, com o ente. Ora, se é
a abertura que possibilita a conformidade, ela possui então um direito mais original de
ser considerado como essência da verdade.
Observemos aqui a radicalidade do pensamento de Heidegger ao buscar
elucidar as questões que surgem na busca pela essência da verdade. A filosofia
ocidental parou sua busca na adequação, julgando ter encontrado na razão, substituta do
intellectus divinus, medida da verdade, uma vez que esta é que realizaria a adequação
da enunciação com a coisa. Heidegger vai além, pensando cada questão e cada resposta
que se apresenta, questionando, assim, o lugar da racionalidade como medida da
verdade.
A abertura, que possibilita a conformidade, tal como foi explicitada até aqui
por Heidegger, só se pode dar se se estiver livre para o ente que se manifesta no aberto.
A abertura da qual depende a relação entre a enunciação e o ente se funda na
liberdade84. Dessa forma, afirma Heidegger que a essência da verdade é a liberdade.
Isso não significa entregar a verdade ao arbítrio humano. No entanto,
afirmar ser a liberdade a essência da verdade desloca a verdade para a subjetividade do
sujeito humano, afirma Heidegger.
Todos os modos de não-verdade – mentira, falsidade, logro, etc. – são
colocados na conta do homem, lembrando que, na definição da essência da verdade
como conformidade a não-verdade foi excluída da essência da verdade. Estando a nãoverdade, que se origina do homem, fora da definição da essência da verdade, vem a se
confirmar que a essência da verdade encontra-se acima do homem. Sendo eterna e
84
HEIDEGGER, Martin, Sobre a Essência da Verdade, op. cit., pág. 160.
46
imperecível, a verdade, assim como é entendida pela metafísica, não pode ser
construída sobre o ser humano.
No entanto, Heidegger encontrou em suas investigações, analisadas até aqui,
a liberdade como essência da verdade. Ele afirma que a hostilidade quanto a essa
afirmação vem de preconceitos quanto à natureza da liberdade e do homem.
Esses preconceitos podem ser confrontados desde que estejamos dispostos
para a transformação do pensamento, continua Heidegger. Aqui nos encontramos com o
pensamento heideggeriano contido em Ser e Tempo, na qual, para que se pense o
sentido do ser dos entes, Heidegger inicia com a analítica do Dasein.
A liberdade deixa ser o ente que se revela na abertura ser o ente que é. Dessa
forma, “A liberdade se revela então como o que deixa-ser o ente”85.
Esse deixar-ser, entretanto, não é um abandonar do ente, uma omissão, mas
sim um entregar-se ao ente que vem ao encontro no aberto. O aberto segundo
Heidegger, foi concebido como tà aletheia, o desvelado.
Ao traduzir aletheia por desvelamento, ao invés de verdade, Heidegger
busca não só uma tradução mais literal, mas principalmente repensar a noção corrente
de verdade no sentido de desvelamento do ente.
A entrega ao caráter de ser desvelado não significa um perder-se no ente,
mas o estabelecimento de uma abertura na qual o ente possa manifestar-se naquilo que
ele é, como é, de maneira que a enunciação receba dele a sua conformidade.
Liberdade, segundo Heidegger, não é só apenas a veleidade de se ir daqui
para ali, ou a ausência pura e simples de qualquer constrangimento face às nossas
possibilidades de agir ou não agir. Antes de tudo, “a liberdade é o abandono ao
desvelamento do ente como tal”86.
Não é o homem, entretanto, que possui a liberdade. A liberdade, como
abertura que permite ao ente desvelar-se enquanto tal, é que possui o homem. E
somente essa liberdade, entendida como abandono ao desvelamento do ente enquanto
tal, é que permite à humanidade a relação com o ente em sua totalidade, relação essa
sobre a qual se funda a história.
Sendo a liberdade a essência da verdade, conforme pensada por Heidegger,
a verdade deixa de ser a conformidade de uma enunciação feita por um sujeito com
85
86
HEIDEGGER, Martin, Sobre a Essência da Verdade, op. cit., pág. 161.
Ibidem, pág. 162.
47
relação a um objeto. A verdade, como pensada por Heidegger, é o “desvelamento do
ente graças ao qual se realiza uma abertura”87, abertura que só se pode dar na
liberdade pensada como deixar-ser do ente.
Sendo a verdade liberdade em essência, o homem, deixando o ente ser, pode
não deixá-lo ser como é, encobrindo e dissimulando o ente, deixando agora a aparência
dominar e possibilitando o surgimento da não-essência da verdade. Diferentemente da
definição da essência da verdade como conformidade, a verdade pensada como
liberdade não exclui a não-verdade da essência da verdade, restando, então, investigar a
não-verdade enquanto não-essência da verdade.
A não-verdade é explicada por Heidegger como dissimulação. O deixar-ser,
expõe o Dasein ao ente em sua totalidade. Essa totalidade não deve ser entendida como
a soma dos entes que são realmente conhecidos. O ente em sua totalidade se revela da
maneira mais essencial onde o ente é pouco conhecido. Lá onde o ente é mais
conhecido ocorre um nivelamento que torna superficial a revelação do ente, dando-se o
esquecimento do ente.
O “em sua totalidade”, embora se perpasse a tudo, não se deixa captar a
partir do ente que se manifesta. O mesmo deixar-ser que é a abertura para que o ente se
manifeste tal qual é, dissimula o ente em sua totalidade. O deixar-ser é, assim,
simultaneamente, uma dissimulação, diz-nos Heidegger, e essa dissimulação é o
velamento.
Dessa forma, Heidegger explica o pertencimento da não-verdade à essência
da verdade: o velamento se dá a partir da verdade pensada como desvelamento.
Velamento e desvelamento se co-pertencem na essência da verdade. Segundo
Heidegger, o velamento é mais antigo que o próprio deixar-ser que possibilita o
desvelamento. A não-essência original da verdade é indicada por Heidegger como
sendo o mistério, no sentido daquilo que dissimula o que está velado.
A não-essência original da verdade aponta para aquilo que ainda não foi
explorado na verdade do ser, para aquilo que pré-existe. Não se trata de uma
degradação da essência da verdade, mas visa antes à essência pré-existente da essência
da verdade.
O texto de Heidegger continua, mas para o escopo de nossa pesquisa o que
foi até aqui exposto é suficiente para permitir a continuação de nossa investigação sobre
87
HEIDEGGER, Martin, Sobre a Essência da Verdade, op. cit., pág. 162.
48
a mudança na essência da verdade encontrada por Heidegger na Alegoria da Caverna de
Platão.
Seção VI – A mudança na essência da verdade
No texto Sobre a Essência da Verdade encontramos a noção de verdade
como desvelamento e a sua essência como liberdade. Desvelamento é a tradução literal
que Heidegger usa para o termo grego aletheia.
Inicialmente, podemos esclarecer a importância da análise do texto Sobre a
Essência da Verdade no presente trabalho, que trata da interpretação heideggeriana
sobre a Alegoria da Caverna de Platão: a noção da essência da verdade como liberdade.
A libertação do prisioneiro da caverna é que possibilita a passagem deste pra os outros
níveis de desvelamento do ser dos entes.
Heidegger, em sua interpretação da Alegoria da Caverna, encontra, ou
desvela, uma mudança na determinação da verdade. Acompanhando o pensamento de
Heidegger, e após termos analisado como Heidegger entende a essência da verdade,
vamos descobrindo que mudança é essa e como ela ocorre.
Para Heidegger, Platão inicia sua Alegoria seguindo a noção de verdade
como desvelamento. A própria alegoria possibilita o movimento entre desvelamento e
velamento. Percebemos, também, que a caverna possui a natureza da essência e da nãoessência da verdade. O velamento proporcionado pela caverna pré-existe ao
desvelamento que vai gradativamente ocorrendo com a libertação do prisioneiro.
Na alegoria, há pessoas acorrentadas na caverna, de costas para a entrada,
que veem sombras de objetos carregados por pessoas do lado de fora da caverna,
sombras projetadas numa parede aos fundos da caverna. As pessoas não podem moverse nem movimentar as cabeças. O eco dos sons exteriores levam essas pessoas a
pensarem que o som vem das sombras. Aqui impera o velamento, pré-existente a
qualquer desvelamento que possa se dar. No entanto, é esse velamento que possibilita o
desvelamento ao prisioneiro da caverna.
Narra-se a libertação de uma dessas pessoas que estava aprisionada na
caverna, que pode, inicialmente, virar a cabeça para a entrada da caverna. Em seguida,
dá-se a saída dessa pessoa da caverna, e a dificuldade que esta tem em ver tudo sob a
luz do sol. Acostumando-se com o “fora”, ele percebe que o sol seria a causa daquelas
49
coisas que as pessoas que habitam a caverna tem diante dos olhos. Posteriormente,
narra-se a volta dessa pessoa para a caverna.
A caverna, para os que nela habitam, é o lugar da residência cotidiana, do
que é revelado pela visão enquanto se olha ao redor. Aquilo que se tem ao redor, na
cotidianidade, é o mais conhecido, mas também o mais dissimulado. As sombras que se
manifestam na caverna são tomadas pelo mais real e não se percebe que essa
manifestação é mera aparência.
O fogo, que inicialmente ilumina as coisas cujas sombras se projetam dentro
da caverna, é a imagem para o sol. Aquilo que circunda os que estão na caverna é, para
eles, o “real”.
Embora a caverna e a parte de fora sejam o território onde a estória se
exaure, Heidegger aponta para a importância dos movimentos de passagem: a saída da
caverna para o lado externo, a mudança do fogo artificial para a luz solar, assim como a
volta para a escuridão da caverna.
Esses movimentos também ilustram o que foi discutido sobre a essência da
verdade, sobre a não-essência da verdade, sobre o desvelamento e a dissimulação.
Velamento e desvelamento se dão de maneira simultânea. A caverna ilustra bem isso.
Embora seja fechada, possui a abertura que possibilita o acesso à verdade do ser dos
entes.
Até a saída da caverna, segundo Heidegger, Platão está lidando com a
desocultação, o desvelamento. Cada plano da Alegoria, cada etapa na qual se
movimenta o prisioneiro da caverna, carrega em si a essência da verdade como
desocultação: o libertar-se das correntes, a descoberta do fogo como o que traz as
sombras das coisas para a caverna, a descoberta do sol, que é o que origina o fogo,
sendo, assim, mais originário em relação ao fogo.
As coisas fora da caverna são a imagem para o que propriamente o ente dos
entes consiste. A forma visível pela qual os entes aparecem não é um mero aspecto,
tendo algo de um adiantar-se, mediante o qual uma coisa se “apresenta”, torna-se
presente. Nesta forma visível, o ente mesmo mostra a si mesmo.
Segundo Heidegger, já do lado de fora da caverna Platão faz tudo depender
do resplandecer. A desocultação é considerada somente em sua capacidade de tornar
tudo o que aparece acessível na sua forma visível (eidós) e em termos de como faz esta
forma visível, como aquela que se mostra (idea) ser visível.
50
Na alegoria, as coisas que são visíveis à luz do dia são uma ilustração
concreta das “ideias”. Para Platão, as pessoas não veem diretamente as coisas, mas
veem sempre e apenas na luz das ideias. O que se presume ser o real permanece sempre
como uma sombra da ideia, como acontecia com as pessoas no interior da caverna.
Aquilo que para os prisioneiros da caverna está mais próximo, mesmo sendo apenas
sombras, os mantém dia a dia prisioneiros, pois passam por ser o real.
Retomando o tema da paideia, Heidegger encontra na Alegoria da Caverna
uma conexão entre a instrução e a verdade. Platão afirma que a Alegoria é uma
ilustração para a essência da instrução. No entanto, Heidegger empreende sua
interpretação buscando uma mudança na essência da verdade, “que se torna a lei oculta
governadora do que o pensador expressa”88.
Heidegger expressa a relação que encontra entre a instrução e a verdade,
dizendo que a essência da verdade e a mudança que ela sofre é que torna possível a
instrução.
A paideia se dá pelo movimentar-se dos seres humanos, dos locais onde eles
se encontram, para outros locais, onde seres aparecem, transferência possibilitada pela
transformação de tudo que o que foi antes manifestado aos seres humanos. Tudo o que
foi desocultado tem que ser transformado. Encontramo-nos aqui, novamente, com a
noção de aletheia, desocultação, também traduzida por “verdade”.
A relação entre instrução e verdade vai sendo elucidada por Heidegger.
Heidegger divide a Alegoria em quatro planos, cada plano tendo seu tipo de
desvelamento (alethés) diferente. O prisioneiro é movido de um plano a outro, do
mesmo modo que se dá a paideia. O primeiro plano é a caverna, na qual se veem
apenas as sombras, pois os moradores encontram-se acorrentados. O que há de mais
desoculto para eles são as sombras, nas quais ficam absortos.
O segundo plano é o da remoção das correntes. Embora ainda permaneçam
dentro da caverna, os seus moradores podem olhar ao redor. Antes viam apenas as
sombras; agora podem ver mais do que as coisas são. Liberto das sombras, o prisioneiro
pode ver agora algo mais desoculto do que as sombras que via antes. No entanto, a
simples liberação das correntes não faz com que o prisioneiro da caverna esteja de fato
livre para o mais desoculto. O brilho do fogo ainda ofusca suas vistas e ele ainda
considera como mais desoculto as sombras que via antes.
88
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 344.
51
No terceiro plano se dá a liberdade real. A pessoa é retirada da caverna,
transportada para o aberto, no qual todas as coisas se manifestam. A abertura não é o
espaço ilimitado; o aberto dá o limite para as coisas. Esse nível é definido pelo que aí é
desoculto. No entanto, o desoculto que é alcançado nesse nível é definido por Platão
como o mais desoculto. O mais desoculto é chamado assim por Platão, nesse plano da
Alegoria, porque o que aí aparece faz tudo o que aparece ser acessível. Nesse plano
realiza-se a essência da instrução, pois é nesse plano que se tem acesso ao mais
verdadeiro, “a verdade no sentido próprio”89.
A Alegoria não termina com a chegada na parte de fora da caverna, mas
continua com a descida do prisioneiro que foi libertado de volta para a caverna, a fim
de poder liderar os que lá ficaram para longe do oculto e para próximo do mais
desoculto. Essa tarefa não é livre de perigos. O libertado enfrenta o risco de ser
engolfado pelo tipo de verdade que impera dentro da caverna, havendo o risco mesmo
de perder sua vida.
Esse retorno à caverna e a luta com os que aí se encontram é o quarto plano
da Alegoria, no qual Platão não sua mais a palavra alethés, o desoculto. No entanto, o
desoculto era também relatado no primeiro plano da Alegoria. As sombras eram o
desoculto que se dava aos prisioneiros da caverna, todos ainda acorrentados.
Heidegger nos diz que a ocultação, para os gregos, permeou sempre a
essência do ente e, assim, também determinou a presença e o acesso aos entes. Verdade
então é um arrancar da ocultação, é desvelamento, aletheia. Do primeiro ao terceiro
plano o desoculto vai sendo arrancado da ocultação. Em cada plano o oculto e o
desoculto se dão, num movimento que acompanha a saída do prisioneiro da caverna.
Em seu retorno à caverna, o prisioneiro se depara com a privação do mais desoculto
que havia encontrado junto ao sol, do lado de fora da caverna. Essa privação também
pertence à essência da verdade. Assim, da mesma forma que os outros três planos da
Alegoria, esse quarto plano também lida com a aletheia.
O fato de Platão ter escolhido a imagem da caverna para situar sua alegoria
sobre a verdade e sobre o conhecimento não foi aleatória, segundo Heidegger. Algo codeterminou que a estrutura da alegoria fosse a imagem de uma caverna, sendo esse algo
89
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit. pág. 347.
52
a “experiência fundamental da aletheia, a desocultação dos entes, o que era alguma
coisa auto-evidente para os gregos”90.
Platão falava, portanto, da aletheia, desocultação, através da caverna, “algo
aberto em si mesmo que permanece ao mesmo tempo coberto por uma abóbada e,
apesar da entrada, desmurada e cercada por terra circundante”91.
A caverna, inicialmente, nos traz a noção de abrigo, de um lugar onde o
homem e os animais podem abrigar-se, resguardando-se. Porém, ser caverna indica que
permanece a abertura para o mundo. A possibilidade de desocultação daquilo que se
oculta na caverna permanece, juntamente com a possibilidade de permanecer oculto. A
não-essência da verdade, que participa da essência da verdade, aqui fica mais
esclarecida ainda. Na caverna, se dão ocultação e desocultação, ambas como
possibilidades não dicotômicas, mas que se dão conjuntamente.
No entanto, o que Platão indica como importante em sua alegoria é o fogo, o
brilho do fogo, a claridade do dia, a luz solar e o sol. Embora a desocultação seja
apresentada na Alegoria, ela é apenas considerada no seu papel de tornar acessível o
que aparece em sua forma visível – a ideia, que é a forma visível que oferece uma visão
do que se apresenta.
Tomados que somos pelo resplandecer da “ideia”, nada mais pode
resplandecer e aparecer. A essência do ser não é mais desocultação, desvelamento, mas
a vinda para presença proporcionada pelo resplandecer da “ideia”. “O ente se torna
presente em cada caso em seu o que é”. A desocultação possível, segundo esse
direcionar-se para as ideias, é a desocultação daquilo “que é conhecido no ato de
conhecer”. Essa orientação (para as ideias) que Platão imprime na busca pela verdade
vai determinar, daí por diante, segundo Heidegger, a essência da apreensão e a essência
da “razão”.
Ligada agora ao “ver”, a desocultação se torna “relativa” ao ver. O que
relaciona a coisa vista e o ato de ver é, agora, a ideia, pois ela é que permite que a coisa
seja vista e que o conhecedor possa conhecer a coisa (“vê-la”).
A “ideia do bem” é o que dá visibilidade e que possibilita toda visão. O
bem, aqui, não deve ser entendido no sentido moral, como valor. Heidegger indica que
essa noção é a última e a mais fraca descendência do tò agatón grego, que significa
90
91
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 335.
Ibidem, pág. 348.
53
“aquilo que é capaz de algo e possibilita outro a ser capaz de algo”. Uma ideia é
capaz de “fazer possível o aparecer, em toda sua visibilidade, de todo presente”. A
“ideia do bem” “é o nome para aquela ideia distinta que, como ideia das ideias, é o
que possibilita tudo o mais”92. No caso da Alegoria, o sol, que ao resplandecer faz tudo
o mais aparecer e resplandecer.
O bem é a “ideia mais elevada” no sentido hierárquico e também porque vêla é uma tarefa árdua – olhar diretamente para cima. O bem está presente mesmo onde
não é visto – nas sombras da caverna, que só são possíveis graças ao fogo da fogueira,
que só é possível graças ao sol. Mesmo invisível – nas sombras – o sol está presente,
pois ele as nutre. O sol não só confere “desocultação”, mas ele é que possibilita que
tudo venha a ser.
Ora, uma vez que o sol confere “desocultação”, não seria o caso, pergunta
Heidegger, da Alegoria da Caverna lidar especificamente com a aletheia, com a
verdade enquanto desvelamento, desocultação? Heidegger diz que não, apontando para
o fato de que a alegoria funda-se “no evento tácito por meio do qual a idea ganha
dominância sobre a aletheia”. Aqui reside o algo não dito por Platão, do qual
Heidegger já nos alerta no início de seu texto:
“...a essência da verdade não é, como a essência da desocultação, o
desdobrar-se da própria e essencial plenitude, mas, antes, o deslocar-se para
a essência da idea. A essência da verdade desiste de seu traço fundamental
de desocultação”.93
A busca pela verdade torna-se uma “correção do olhar atento”. Há algo que
é para ser visto da maneira correta. A busca da verdade torna-se a busca da maneira
correta de se ver algo. A verdade desloca-se daquilo sobre o qual queremos descobrir a
verdade para a “visão” daquele que quer descobrir a verdade:
“Com essa transformação da essência da verdade, ocorre ali, ao mesmo
tempo, uma mudança no lugar da verdade. Como desocultação, a verdade
ainda é um traço fundamental dos entes mesmos. Porém, como correção do
92
93
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 351.
Ibidem, pag. 353.
54
“olhar”, ela se torna uma característica do comportamento humano com
respeito aos entes”94.
Os desdobramentos dessa transformação da essência da verdade podem ser
percebidos pelas interpretações que apresentamos da Alegoria da Caverna, no presente
trabalho95.
Heidegger demonstra a ambigüidade da doutrina de Platão: “enquanto a
aletheia é o que é nomeado e discutido, é a optotes que é significada e colocada como
reguladora – e tudo isso numa única seqüência de pensamento”96. A “ideia do bem” é
apresentada como a fonte de todo bem e de todo belo e também como o que confere
desocultação e apreensão, sendo que a apreensão correta corresponde ao que é correto e
sua correção e o belo corresponde ao desoculto. Nesse ponto, a verdade ainda é
desocultação e correção, embora Heidegger indique que a desocultação já está, aqui,
sob o jugo da idea.
A verdade agora tem nova morada: o julgamento intelectual e a afirmação.
A verdade agora é pensada como correção, aletheia como oposto de pseudos (no
sentido de incorreto), caracterização que passa a regular o pensamento ocidental.
Heidegger cita, como evidência do que acabou de afirmar, algumas teses
que tipificam a essência da verdade, indo de Thomas de Aquino (“ A verdade é
encontrada propriamente no intelecto, seja humano ou divino”) a Nietzsche (A verdade
é o tipo de erro sem o qual um determinado tipo de seres vivos não pode viver. Em
última análise, o valor para a vida é o que é decisivo”), passando por Descartes (“A
verdade ou a falsidade, em sentido próprio, não pode estar em nenhuma outra parte que
senão apenas no intelecto”).
No texto de Thomas de Aquino, Heidegger ressalta que a verdade não é
mais aletheia, mas adaequatio . Sobre Nietzsche, Heidegger diz que a determinação da
verdade, nesse filósofo, “como a incorreção do pensar está de acordo com a essência da
verdade tradicional como a correção da afirmação (logos)”, sendo que esse conceito
94
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 354.
Note-se que tanto as concepções teocêntricas quanto as antropocêntricas parecem ter sua origem nessa
transformação desvelada por Heidegger. A diferença entre as concepções dar-se-ia no lugar onde se julga
habitar a ideia organizadora do mundo: em Deus ou na razão humana. Tal questão encontra-se fora do
escopo da presente pesquisa, razão pela qual deixamos de aprofundar a pesquisa sobre o tema, embora
não pudéssemos deixar de fazer essa observação.
96
Ibidem, pág. 354.
95
55
“exibe o último vislumbre da mais extrema conseqüência da mudança da verdade, da
desocultação dos entes a correção do olhar atento”.
Consequentemente, o estar presente não é mais a emergência do oculto em
desocultação, onde esta constitui o traço fundamental do estar presente. Para Platão, o
estar presente é o resplandecer (o mostrar-se), que pode logo ser chamado de
desocultação, sendo que, agora, a “idea é o fundamento que faz a aléthéia possível”97.
Não sendo mais a aletheia o traço fundamental do ser mesmo, a verdade
tornada correção “será a característica do conhecimento dos entes”. Nesse ponto,
podemos notar um que a verdade passa a ter certo conteúdo moral, visto que correto e
incorreto são termos que também podem ser aplicados ao comportamento humano, nos
seus sentidos de certo e errado.
Heidegger agora faz uma re-interpretação da palavra filosofia, indicando que
fora da caverna a perspicácia (sophia) torna-se em uma predileção e amizade (philia)
com as “ideias”, que conferem o desoculto. “Fora da caverna, sophia é philosophia”,
predileção pelas ideias, ou pelo caminho que define o ser dos entes como ideia.
O pensar, segundo Platão, vai mais além das coisas, para fora delas mesmas,
em direção às “ideias”, que são o suprassensível, sendo que a ideia de todas as ideias
“permanece a causa da existência e aparição de todos os entes”. Nesse ponto de sua
interpretação, Heidegger afirma que a palavra “metafísica” já está prefigurada na
apresentação de Platão: o pensar vai para “mais além” das coisas, em direção para fora
dessas coisas, para as ideias.
A ideia, apresentada como a causa de tudo, é chamada também “o bem”.
Essa causa primeira é chamada tò teion, o divino. Heidegger diz que “desde então o ser
foi interpretado como idea, o pensar sobre o ser dos entes tornou-se metafísico, e a
metafísica tornou-se teológica”98. E a “instrução” (paideia) dos seres humanos deve
corresponder, portanto, a essa interpretação do ser como idea.
Aqui se situaria o começo da metafísica no pensamento de Platão, o que,
segundo Heidegger, indica também o começo do humanismo, entendido como o
processo por meio do qual os seres humanos se movem para um lugar central entre os
entes, mesmo sem ser o ente mais elevado entre todos os entes.
97
98
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 356.
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 357.
56
Essa proeminência dada ao homem pelo pensar metafísico é corolário da
adoção da ideia como essência da verdade. Dado que a verdade está além das coisas,
dos entes, da phisis, recebendo sua validade na “ideia do bem”, o ente mais elevado
dentre todos os entes deve ser aquele que pode ascender ao entendimento dessa “ideia”.
No caso, o homem. Portanto, natural que para a metafísica platônica o lugar central
entre os entes seja ocupado pelo homem, ser pensante, único racional dentre os entes
que compõe a totalidade dos entes conhecidos.
Essa centralidade que a metafísica operou se dá de modo a sempre conduzir
os “seres humanos” “para a liberação de suas possibilidades, para a certeza dos seus
destinos e para a proteção de suas vidas”99: conformação de comportamentos morais,
salvação das almas imortais, desenvolvimento da razão, despertar de sentidos cívicos
(‘revolução’ de 64 – “Brasil – Ame-o ou deixe-o”), desenvolvimento dos corpos. Causa
estranheza, à primeira vista, que o culto à boa forma, por exemplo, deva a sua vigência
à metafísica. No entanto, a boa forma física segue um padrão ditado pela imagem do
corpo belo, perfeito, um padrão que existe além da realidade dos entes humanos
considerados e que deve ser atingido porque é bom.
Mesmo que Heidegger não o afirmasse no texto (e ele o faz), a quem estuda
a sua interpretação sobre a “Alegoria da Caverna” de Platão “resplandece” a atualidade,
a “presenticidade” da doutrina de Platão sobre a verdade. Essa doutrina não foi
preservada como um legado histórico, como história da filosofia no sentido de um saber
de museu. Essa doutrina
está presente como a toda poderosa realidade fundamental – estabelecida
por longo tempo e, consequentemente, ainda adequada – da, sempre em
avanço, história mundial do planeta neste mais moderno dos tempos
modernos.100
O que orienta o pensar atual (desde Platão) sobre os entes são as “ideias” e
toda a realidade é avaliada de acordo com os “valores”. Apenas esse trecho da obra de
Heidegger já demonstraria a importância que tem seu pensamento para o Direito e para
a Filosofia do Direito. Não se pode negar a pertinência jurídica do trecho a seguir:
99
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 358
Ibidem, pág. 358.
100
57
Aquilo que sozinho, e em primeiro lugar, é decisivo não é quais ideias e
quais valores são postos, mas antes, o fato de que o real é interpretado sob
qualquer condição de acordo com as “ideias” e que o “mundo” é pesado sob
qualquer condição de acordo com os “valores”.
101
Não basta, assim, apenas questionar quais ideias e quais valores são postos.
Esse questionamento ainda estará sendo feito no seio da metafísica. Talvez
descubramos ideias e valores mais sociais, mais justos. Ainda assim, o caminho para a
desocultação do ser estará na procura da melhor ideia, do melhor valor, e toda
discussão recairá no seio mesmo da metafísica, sem questionar o ser. Um
questionamento que passará ao largo do ser.
Entretanto, Heidegger, com sua obra, nos tem lembrado a essência da
verdade original, dizendo que “A desocultação se revela para esta lembrança como o
traço fundamental dos entes mesmos”102. Heidegger, o Obscuro, nos arrasta novamente
para dentro da caverna, demonstrando que o excesso de iluminação faz com que
vejamos bem menos do que julgamos ver. A verdade, se assim podemos dizer, estava lá
com os prisioneiros da caverna, dentro dela, e não fora. Do mesmo modo, a verdade do
ente deve ser questionada a partir do ente, buscando o desvelamento do seu ser no ente
mesmo, e não em nossa razão.
101
102
HEIDEGGER, Martin, A Doutrina de Platão sobre a Verdade, op. cit., pág. 359.
Ibidem, pág. 359.
58
Capítulo IV – Conclusão
59
Seção I – Crítica da Metafísica
A filosofia, como Heidegger a designa, “é apenas o pôr em marcha a
metafísica, na qual a filosofia toma consciência de si e conquista seus temas expressos”.
Ser e pensar, para Heidegger, é o mesmo. A filosofia está nas possibilidades
fundamentais do Dasein, sendo que o pôr-se em movimento da filosofia depende de um
salto, cujas condições Heidegger expõe:
(...) primeiro, o dar espaço para o ente em sua totalidade; segundo; o
abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que
cada qual possui e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e por
último: permitir que se desenvolva esse estar suspenso para que
constantemente retorne a questão fundamental da metafísica que domina o
próprio nada:
Porque existe afinal ente e não antes Nada?”103
O que é a metafísica em seu fundamento? A questão que Heidegger faz
sobre a metafísica se deve ao fato de que esta, desde Platão, tem se perguntado pelo o
que é o ente, mirando-se o ente enquanto tal, como ele se apresenta à luz da razão. Esse
“à luz da razão” não é uma mera figura de linguagem: partindo-se da filosofia
elaborada por Platão, conforme foi apresentado no capítulo acerca da interpretação
heideggeriana da “Alegoria da Caverna”, a luz da razão, cuja morada vem a ser o
intelecto humano, é a condição para o conhecimento dos entes, a dizer também,
condição para o conhecimento do ser dos entes.
No perguntar-se pelo ser dos entes, mantendo-se na luz da razão, não se tem
questionado a luz sob a qual se tem em conta o ente, como se esta luz estivesse
suficientemente esclarecida por garantir transparência ao ente. Dessa forma, em seu
questionar pelo ser dos entes, a metafísica não tem pensado a partir da verdade do ser,
muito embora fale do ser enquanto responde às perguntas pelo ente. A verdade do ser
permanece como a raiz da metafísica, de onde esta tira o seu alimento e onde se apóia,
mas permanece junto ao ente, não se voltando ao ser.
Através da metafísica, a filosofia abandonou o seu fundamento – o ser –, o
solo de onde partiu. Por isso o questionamento da metafísica em Heidegger, e a sua
103
HEIDEGGER, Martin, O que é metafísica, op. cit., pág. 44.
60
interpretação da Alegoria da Caverna, questionam o próprio caminhar da filosofia
ocidental desde Platão. Não é um questionar sobre uma disciplina filosófica, mas um
questionar sobre o próprio pensamento.
O pensamento que se volta para pensar a verdade do ser abandona a
metafísica, segundo Heidegger. Esse pensamento, no entanto, cava o chão da
metafísica, não pensando com nem contra esta: permanece a metafísica como primeira
instância da filosofia, mas não como primeira instância do pensar. Isso porque o pensar
filosófico tradicional não é o único modo de se pensar. Os pensadores gregos
originários, anteriores à elaboração do pensamento de Platão, pensavam o ser de outro
modo, em sua verdade, origem e unidade. Por isso, para eles a verdade era aletheia,
desocultação. O oculto e o desoculto se davam numa unidade, num conjunto.
Superar a metafísica tradicional, obra empreendida por Heidegger, não tem
como resultado a rejeição da metafísica, o seu abandono. Esta permanecerá enquanto o
homem se compreender como animal racional. Com a superação da metafísica está em
jogo algo além de uma disciplina mais originária: está em jogo a proximidade ou a
distância daquilo de que a filosofia recebe sua essência e sua necessidade: a verdade do
ser.
A metafísica expressa a verdade do ser como representação, na forma
derivada da verdade do conhecimento e da enunciação – adequatio rei ad intellectus.
Ela visa o ente e fala do ser, sempre trocando o ente pelo ser, troca essa que não deve
ser pensada como engano, mas como acontecimento – um acontecimento que tem
afastado cada vez mais o pensamento da verdade do ser e levado o Dasein cada vez
mais para perto do ente, de tal forma que a sua relação com sua essência – a verdade do
ser – já ter sido abandonada, restando, ademais, esquecido mesmo esse abandono.
O pensar deve prestar atenção a esse esquecimento do ser para que possa,
novamente, experimentar o pensamento da essência do ser, pois isto é pensar o já
pensado. E isso porque o já pensado pode não ter sido pensado suficientemente, dado o
abandono da verdade do ser pelo pensar metafísico, que pensa o sente enquanto fala do
ser. Segundo Heidegger, não se pensa mais no que foi pensado: inventam-se coisas.
No caminho do pensamento que pensa a verdade do ser, que está a serviço
da verdade do ser, torna-se necessário pensar a essência do homem, pois a experiência
do esquecimento do ser depende da compreensão de que a relação do ser com o homem
pertence ao próprio ser.
61
O nome ser-aí, Dasein, reúne a relação do ser com a essência do homem,
como também a referência do homem à abertura do ser. Dasein não substitui
consciência, mas designa outro âmbito – o lugar da verdade do ser e que assim deve ser
adequadamente pensado.
A essência do Dasein é existência. Esta caracteriza o ser do homem,
designando um modo de ser daquele ente que está aberto para a abertura (Da) do ser,
enquanto a sustenta. Esse sustentar a abertura do ser é a pré-ocupação – a abertura para
que o ente seja em suas possibilidades mais próprias.
A essência ekstática do Dasein não é apenas um “situar-se fora de” como
“afastado da interioridade”. Esse fora deve ser pensado como o espaço de abertura do
próprio ser. Por isso a caverna pode ser usada como imagem para Platão falar da
essência da verdade: ocultação e possibilidade de desocultação. O situar-se fora é a
possibilidade do desvelamento, da aletheia. Por que a verdade não está “dentro do
intelecto” mas junto ao ser é que a essência da verdade deve ser pensada como
desvelamento, desocultação, e não como iluminação.
O iluminismo moderno, com a “retomada” da racionalidade e da razão
humana como medida de todas as coisas nada mais fez que retomar a elaboração final
da Alegoria da Caverna de Platão. A queda de Deus e a volta do antropocentrismo é
uma retomada direta e sem mediações da metafísica platônica. O curioso é notarmos
que a figura da “luz” como doadora da verdade e do conhecimento possibilitou tanto a
elaboração teológica cristã quanto o iluminismo que pretendia afastar as determinações
divinas da política e dos governos. Permaneceu-se, lá e aqui, junto ao ente, no
esquecimento do ser, e recusou-se a pensar o já pensado, pensando-se tudo da mesma
forma. Houve, apenas, uma troca de valores, e isso tudo possibilitado pela metafísica
que, por permanecer não pensando a verdade do ser e sim o ente sob a luz da razão,
pode servir de fundamento e, por que não, de instrumento de reflexão e de validação
tanto para a teologia cristã quanto para o iluminismo.
O ser do Dasein acontece no “fora” e no “aí” (Da) do desvelamento, numa
in-sistência. A existência, pensada no caminho da verdade do ser, é uma in-sistência.
Somente o homem é ao modo da existência.
Daí o nome Dasein para designar o homem: ser humano existente no mundo
com o outro em situação histórica. A verdade do homem está em seu existir epocal e
não em qualquer determinação ou pré-determinação externa ou interna que lhe designe
62
ou determine o ser. O ser do homem só pode ser pensado em sua existência. Daí a
necessidade de se experimentar o esquecimento do ser, para que se possa pensar o que
já foi pensado, embora nunca suficientemente, dado que o pensamento nunca poderá
abarcar o ser em sua totalidade no qual o Dasein, assim como os demais entes, está
colocado, embora disso se esqueça cotidianamente.
Toda consciência pressupõe a existência pensada na abertura do ser como
essentia do homem, essentia como aquilo que é o modo próprio do homem ser
enquanto homem que é. Só há consciência – intencionalidade – porque o homem já tem
sua essência na in-sistência.
Heidegger explica que o ser enquanto tal se constitui ocultamente de tempo:
presentar-se. Einai, palavras grega cuja tradução literal é ser, significa presentar-se.
Nesse presentar-se, tornar-se presente, está oculto o presente e a duração. O tempo
remete à verdade do ser, que é desvelamento. O tempo é o que primeiro deve ser
considerado para que se experiencie a verdade do ser.
O tempo está presente tanto lá na origem do pensamento que pensou o ser
em sua essência, nos primeiros pensadores gregos, quanto no final desse pensamento,
no “eterno retorno do mesmo” nietzschiano. Já durante o império da metafísica, a
história do ser está atravessada por uma essência de tempo que não foi pensada.
No questionar do fundamento da metafísica deparamo-nos, assim, com o
esquecimento do ser, bem como com a essência de tempo que perpassou todo o pensar
metafísico sobre o ser desde os gregos e que restou impensada.
Essas questões, todas retomadas por Heidegger em sua obra, colocam para o
pensamento o desafio de novamente pensar a verdade do ser, cuja essência, apresentada
como desvelamento, aletheia, ao modo dos gregos que primeiramente pensarem o ser,
foi abandonada desde os primórdios da metafísica tradicional, cuja superação
Heidegger empreendeu.
Questionar o fundamento da metafísica permitiu a Heidegger, e também nos
permite, uma vez que acompanhemos o caminho do pensar iniciado por Heidegger,
elaborar uma crítica à toda filosofia ocidental.
63
Seção II - O Direito como pesquisa do justo
Toda ciência busca constituir seu campo próprio de atuação, procurando
livrar-se daquilo que a confundiria com outras ciências. Toda ciência busca autonomia.
Entendido como ciência, o Direito também aspira distinguir-se como campo
autônomo de saber. O Direito, porém, não é só um saber, mas também uma prática. E
esse seu caráter de ser uma ciência que se dirige à prática termina por influenciar o seu
modo de autonomização.
Na busca de definir aquilo que seria puramente o direito, nenhum teorizador
foi mais radical que Hans Kelsen. Sua obra magna denomina-se, de modo
despretensioso, Teoria Pura do Direito. Nessa obra, Kelsen busca
garantir um conhecimento dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento
tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela [a Teoria
Pura do Direito] pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos
que lhe são estranhos.104
Seguindo seu projeto, Kelsen eleva a norma jurídica como o esquema
principal de interpretação do Direito. Segundo ele, o que dá juridicidade a um fato do
mundo não é a sua facticidade, mas sim uma norma, “que lhe empresta a significação
jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma”105. Não
iremos nos aprofundar, aqui, na análise da obra de Kelsen. Apenas queremos trazer ao
estudo presente o elemento que para Kelsen define o Direito – a norma jurídica.
Para Kelsen, “o Direito, que constitui objeto desse conhecimento
[conhecimento jurídico], é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um
sistema de normas que regulam o comportamento humano” 106.
Tendo essa definição como horizonte, o Direito regulou a existência
humana, consolidando essa regulação num corpo de normas que se dirige a um fato do
mundo, normatizando-o. Para isso, porém, o legislador precisou fazer o que podemos
104
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 6ª ed., Martins Fontes, São Paulo, 1998, pág. 1.
Ibidem, pág. 4.
106
Ibidem, pág. 5.
105
64
chamar de corte normatizante, em analogia ao corte epistemológico que as ciências
executam, a fim de poderem estudar seu objeto.
Vivido dessa forma no cotidiano da advocacia, o jurista está pronto a
perceber as ocasiões onde, por falhar, o Direito revela aquilo que está encoberto pela
regulação normativa.
Numa compreensão positivista do Direito, apenas se espera que as normas
jurídicas sejam cumpridas.
Visto como conjunto de normas positivadas pela autoridade do legislador, o
Direito é, por vezes, a negação das possibilidades do Dasein. O Direito, debitário da
metafísica, evidenciada na formulação kelseniana da norma fundamental, tem se
prestado apenas para a manutenção do status quo, realizando a mediação entre os
interesses em conflito, porém sem resolvê-los.
Seria o caso de, numa análise mais radical e profunda do Direito enquanto
fenômeno, revelar aquilo que se encobre na legislação e no Direito como um todo, a
fim de procurar recuperar para o Dasein suas possibilidades mais próprias de
existência?.
Nesse ponto, a filosofia é o caminho que pode recuperar para o Direito
aquilo que foi abstraído pela legislação e pelo positivismo jurídico. Pesquisando no
caminho proposto pela fenomenologia heideggeriana, a Profª. Drª. Jeannette A. Maman
define o Direito como a pesquisa do justo107. O justo é entendido, autenticamente, como
a realização do ser108. Pensado assim, o Direito é visto como atividade109 do jurista – é,
portanto, um fazer. Fazer concreto, que se realiza no mundo e que se direciona aos
outros, que são co-existentes, dentro do mesmo mundo.
Dentro dessa concepção, todo o Direito se abre como campo de
questionamento ao jurista. O trabalho do jurista não se resume, portanto, a aplicar a lei
aos casos concretos, mas sim a pesquisar o justo em cada caso, valendo-se da lei, mas
também da equidade, da sua compreensão da existência e das necessidades históricas,
sociais e econômicas daqueles a quem sua atividade se dirige.
Heidegger, em Ser e Tempo, questiona o ser do Dasein, demonstrando que a
existência deste pode dar-se de modo autêntico ou inautêntico, sendo que o primeiro
107
MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia Existencial do Direito, São Paulo, Edipro, 2000,
pág. 72.
108
109
Ibidem, pág. 90.
Ibidem, pág. 92.
65
modo desvela para o Dasein suas possibilidades mais próprias de existência, enquanto
que o modo inautêntico de ser é aquele que encobre essas mesmas possibilidades,
negando o acesso ao ser do Dasein.
Nenhum fenômeno se dá a conhecer de modo imediato, o mesmo ocorrendo
com o Direito. A fim de que se possa ter acesso ao que está velado na manifestação do
fenômeno, precisamos questioná-lo de maneira correta. Direcionando-se ao ser do
Dasein, a atividade do jurista deve questioná-lo lá onde a sua existência acontece – em
seu cotidiano. O cotidiano, no entanto, é geralmente o mais inautêntico.
Porém, compreendido de modo autêntico, o Direito pode, pelo
questionamento radical da realidade cotidiana e das relações que aí se dão, devolver-lhe
ao Dasein suas possibilidades de existência, ao realizar o des-encobrimento da situação
existencial de exploração a que este é submetido.
No modo de ser autêntico, atendendo ao cuidado, o direito pode ser mais
que apenas superestrutura110, diferente do que Marx apontava no Prefácio da
Contribuição à Crítica da Economia Política111. Na verdade, caberia mesmo uma
releitura do que Marx afirma no Prefácio, uma vez que ele aponta que as relações
jurídicas não podem ser compreendidas a partir de si mesmas, nem a partir do
desenvolvimento geral do espírito humano, mas se enraízam nas relações materiais da
vida, visão que também é compartilhada pela fenomenologia existencial do direito.
Experienciado e vivido dessa forma, o Direito, esse mesmo Direito que
aliena o Dasein, privando-o de suas possibilidades mais próprias, pode recuperar para
este o seu existir mais próprio, desvelando as condições de exploração a que este é
submetido e servindo como mais um instrumento de resistência e luta contra as
desigualdades sociais existentes.
Tendo como horizonte o desvelamento da mudança na determinação da
verdade, empreendido por Heidegger em sua interpretação da Alegoria da Caverna de
Platão, o Direito pode ser enviado novamente para a o aberto do pensamento humano.
Aquilo que foi pensado, tendo como solo a metafísica tradicional, deve novamente ser
pensado, a fim de que o pensamento possa operar o desvelamento daquilo que se
encontra oculto no modo de ser jurídico.
110
MAMAN, Jeannette Antonios, Fenomenologia Existencial do Direito, op. cit., pág. 91.
MARX, Karl. Prefácio à Crítica da Economia Política, in Marx – Coleção ‘Os Pensadores”,
Nova Cultural, São Paulo, 1999, pág. 52.
111
66
Deixando de lado os valores, que tem orientado o pensamento jurídico,
juntamente com as teorias fundadas na metafísica inaugurada por Platão, o jusfilósofo
deve retomar o seu pensamento junto ao solo de onde o Direito nasce: a existência
humana. O desvelar da justiça e de suas possibilidades deve ser buscado junto aos entes
e não junto às ideias.
A busca do jusfilósofo deve encontrar aquilo que sirva ao Dasein, que
atenda as suas possibilidades mais próprias, que faça transparecer a sua verdade,
desocultando-lhe o seu sentido.
Embora essa pesquisa elabore uma crítica à metafísica inaugurada por
Platão, encontramos, seguindo o caminho proposto por Heidegger, um Platão bem mais
complexo e intrigante que o apresentado pelos intérpretes que consultamos em nossa
pesquisa. A radicalidade do pensamento heideggeriano, demonstrada no cuidado com
que ele analisa e interpreta o texto de Platão, abre o campo da obra platônica
novamente para o pensamento. Mesmo após mais de dois milênios Platão ainda resta
não pensado adequadamente.
Heidegger,assim, envia não só o Direito para o campo do aberto do
pensamento humano, mas também envia a obra de Platão para esse campo, indicando
que ela ainda não foi adequadamente pensada pelos pensadores que se seguiram ao
filósofo grego.
Finalizando nossa conclusão, gostaríamos de apontar uma interpretação
literária da Alegoria da Caverna feita pelo escritor português José Saramago em seu
livro A Caverna. O impacto causado pela leitura do livro de Saramago esteve presente
durante a pesquisa e o desenvolvimento da presente dissertação.
Não realizaremos aqui qualquer análise da obra do escritor português, mas
nos permitimos, assumindo o risco de estragar a surpresa de quem ainda não seu o
livro, terminar a conclusão dessa pesquisa com uma citação d’ A Caverna, de
Saramago, presente na última página dessa obra:
(...)Subiram para a furgoneta, os dois homens à frente, as duas mulheres atrás,
com o Achado ao meio, e quando Marçal ia pôr o carro em movimento,
Cipriano Algor disse bruscamente, Espera. Saiu da furgoneta e dirigiu os
passos para o forno, Aonde vai, perguntou Marta, Que irá ele fazer, murmurou
Isaura. A porta do forno foi aberta, Cipriano Algor entrou. Quando daí a
pouco saiu vinha em mangas de camisa e servia-se do casaco para transportar
67
algo pesado, uns quantos bonecos, não poderia ser outra coisa, Quer levá-los
de recordação, disse Marçal, mas enganava-se, Cipriano Algor aproximou-se
da porta da casa e começou a dispor as estatuetas no chão, de pé, firmes na
terra molhada, e quando as colocou a todas voltou ao forno, nessa altura já os
outros viajantes tinham descido da furgoneta, nenhum deles fez perguntas, um
a um entraram também no forno e trouxeram bonecos para fora, Isaura correu
à furgoneta para buscar um cesto, um saco, qualquer coisa, e os bonecos iam
pouco a pouco ocupando o espaço em frente da casa, e então Cipriano Algor
entrou na olaria e retirou com todo o cuidado da prateleira as estatuetas
defeituosas que ali tinha juntado, e reuniu-as às suas irmãs escorreitas e sãs,
com a chuva tornar-se-ão em lama, e depois em pó quando o sol a secar, mas
esse é o destino de qualquer de nós, agora já não é só diante da casa que as
estatuetas estão de guarda, também defendem a entrada da olaria, no fim serão
mais de trezentos bonecos olhando a direito, palhaços, bobos, esquimós,
mandarins, enfermeiras, assírios de barbas, até agora o Achado ainda não
deitou abaixo nenhum, o Achado é um cão consciente, sensível, quase
humano, não precisa que lhe expliquem o que se está a passar aqui. Cipriano
Algor foi fechar a porta do forno, disse, Agora podemos ir-nos. A furgoneta
fez a manobra e desceu a ladeira. Chegando à estrada virou à esquerda. Marta
chorava com os olhos secos, Isaura abraçava-a, enquanto o Achado se
enroscava a um canto do assento por não saber a quem acudir. Alguns
quilómetros andados, Marçal disse, Escreverei aos meus pais quando
pararmos para almoçar. E logo, dirigindo-se a Isaura e ao sogro, Havia um
cartaz, daqueles grandes, na fachada do Centro, são capazes de adivinhar o
que ele dizia, perguntou, Não temos ideia, responderam ambos, e então
Marçal disse, como se recitasse, BREVEMENTE, ABERTURA AO
PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA,
ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA.112
112
SARAMAGO, José, A Caverna, Editorial Caminho, 2000.
68
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