ID: 50686081
08-11-2013
Tiragem: 38650
Pág: 56
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 26,65 x 30,32 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
O que a reforma do
Estado não é, e devia ser
José Manuel Fernandes
Extremo Ocidental
Vale a pena comparar o que
não está nas 112 páginas de
Portas com o que está no
recente “discurso da Coroa”
do monarca holandês
F
alou-se e escreveu-se mais sobre
o corpo 16 e a entrelinha a dois
espaços do documento sobre
a reforma do Estado do que
sobre o seu conteúdo. É pena,
apesar de revelar muito sobre a
pobreza do debate político. E é
sobretudo pena por poucos terem
sublinhado o mais importante: o
texto que Paulo Portas apresentou
não traduz nenhuma nova visão do papel do
Estado no Portugal do século XXI, como se
esperava e se exigia que fizesse.
O problema não é o documento ser
palavroso e cheio de frases feitas — já li
muitas dessas frases, mais coisa, menos
coisa, em programas eleitorais ou em
programas de Governo e ninguém
estranhou, muito menos se indignou.
O problema também não é carecer de
medidas concretas explicadas em detalhe
— não é ainda o tempo de legislar. O
problema também não é recapitular as
medidas tomadas ao longo destes dois
anos e meio — o objectivo de diminuir o
peso da despesa pública será sempre um
objectivo de qualquer reforma do Estado.
O problema, por fim, também não é,
como alguns protestam, o de se pretender
“acabar com o Estado social” — essa
acusação, por regra, é repetida sempre que
se faz alguma coisa em Portugal e é cada
vez mais um slogan sem significado.
O problema do documento apresentado
por Paulo Portas é que ele é cobarde e
é incoerente. É cobarde porque revela
um imenso receio de definir uma nova
aproximação às funções do Estado,
ficando-se quase sempre pela vacuidade
das intenções, pelo politiquês da “maior
eficiência” ou por proclamações sobre
a “pós-burocracia”. E é incoerente pois
nem todas as medidas que enuncia vão
num mesmo sentido: há as que procuram
realmente abrir as funções do Estado à
sociedade e as que se ficam pelas promessas
de boa administração da coisa pública.
Há no documento algumas ideias
avulsas que seria importante discutir —
na Segurança Social, na Educação, por
exemplo —, mas falta-lhe um discurso
articulado capaz de permitir a construção
de um novo consenso político. Pior só
mesmo a recusa obstinada e oportunista do
PS em discutir seja o que for. Se de um lado
O
temos o vazio, do outro temos o vácuo. O
vácuo absoluto.
que é que se esperava
deste guião? Eu diria que
um mínimo razoável seria
situar-se no mesmo patamar
do “discurso da Coroa”
pronunciado pelo rei
Guilherme-Alexandre perante
o Parlamento holandês a 17 de
Setembro. Foi nesse discurso,
que reflecte as opiniões do
Governo apoiado por uma coligação liberalsocialista, que se defendeu a substituição
do “clássico Estado do bem-estar da
segunda metade do século XX por uma
sociedade participativa”. Isto porque as
obrigações do actual modelo social “já não
são sustentáveis, nem estão adaptadas às
expectativas dos cidadãos”.
Muita gente na Europa ficou de boca
aberta ao escutar esta sinceridade e
frontalidade e não faltou quem comentasse
que, nos seus países, mesmo mais pobres
e mais “insustentáveis”, as elites políticas
nunca teriam tanta coragem. Paulo Portas
terá pensado o mesmo — se é que pensou
alguma coisa.
O que o rei holandês anunciou foi que
o seu país teria de evoluir de um modelo
em que o Estado se ocupa de todos os
problemas e necessidades sociais, para
um outro modelo em que uma parte das
necessidades associadas à velhice, à saúde
ou à educação passarão a ser asseguradas
num sistema de partilha com as famílias
e com as instituições da sociedade civil.
Será um sistema
onde haverá mais
responsabilização
dos cidadãos e onde
o Estado deixa de
ser o provedor
universal, uma
espécie de ama-seca
que trata de todos
do nascimento
até à morte, antes
assumindo um
papel de regulador e
de facilitador.
Para os países do
Norte da Europa,
precisamente os
que levaram mais
longe as funções
previdenciais do
Estado, a evolução
nesta direcção
não é novidade.
Muitos deles estão
a percorrer este
caminho há quase
duas décadas,
procurando
soluções novas
mas conseguindo
O Estadoprovidência
do passado
tornou-se na
baby-sitter
das classes
médias, e
isso não é
sustentável
num mundo
globalizado e
competitivo
diminuir o montante dos seus encargos
sociais sem provocar rupturas. A forma
como o têm feito é muito interessante
e devia ser estudada por nós. Passe a
publicidade, é o que faz Fernando Adão da
Fonseca num interessante artigo publicado
numa revista anual que eu dirijo e que acaba
de ser posta à venda, a XXI, Ter Opinião, da
Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ele
conta-nos como a Suécia reformou o seu
Estado nos últimos 20 anos, num processo
que envolveu tanto a direita liberal como a
esquerda social-democrata, um processo
gradualista onde mudanças no sistema de
incentivos permitiram manter elevados
níveis de protecção social, aumentar a
liberdade e responsabilidade dos cidadãos e
recuperar a competitividade económica.
Em Portugal, preferimos ficar pelos tabus,
e um deles é o da imutabilidade do chamado
“Estado social”, um termo que devemos não
à democracia, mas a Marcelo Caetano. Tenho
pena que não prefiramos o conceito mais
correcto e preciso de “Estado-providência”,
uma designação que só costumo ouvir a
Francisco Assis. Em Portugal, tudo o que
não seja um Estado que, de forma o mais
centralizada e napoleónica possível, trate de
providenciar directamente todos os serviços
sociais é sempre visto como representando
um “recuo civilizacional”. Com o flop que
representa o documento Portas, perdeu-se
mais uma oportunidade de mostrar que isso
não é assim.
O
rei da Holanda falou de
uma nova “sociedade
participativa”. Pessoas como
Fernando Adão da Fonseca
têm escrito sobre a hipótese
de um “Estado garantia”.
Paulo Portas preferiu os
lugares-comuns — apenas
deseja “um Estado melhor”
(será que alguém não deseja?).
Não surpreende por isso que, por ausência
de fio condutor, o documento arrisque
algumas reformas na Educação — mais
autonomia, mais poder das autarquias,
escolas independentes, ensaio de chequeensino — mas não saia dos parâmetros mais
habituais quando fala de Saúde.
Era possível ter ido mais longe, pelo
menos no campo das ideias. Na mesma
revista que já referi, a XXI, Ter Opinião,
Isabel Vaz propõe um novo paradigma de
gestão para o Serviço Nacional de Saúde,
mudando as regras do seu financiamento.
Nesse modelo, e cito, o Estado deixaria de
ser o fornecedor universal para ser antes a
garantia de universalidade do fornecimento
dos serviços de saúde. Interviria sobretudo
como regulador, corrigindo as distorções do
mercado, e seria implacável na aplicação de
regras — nomeadamente regras de acesso
—, que seriam iguais para todos os sectores
(público, privado e social). É uma proposta,
mas é sobretudo uma ideia de reforma
HUGO CORREIA/REUTERS
que corresponde a uma visão diferente do
Estado.
O que custa neste processo é verificar
como tudo se mistura. A reforma do Estado
não é apenas cortes na despesa pública, por
mais indispensáveis e urgentes que estes
sejam. A reforma do Estado também não é
apenas sobre a qualidade e a eficiência da
máquina pública. A reforma do Estado é
sobre a necessidade de um Estado diferente
para o século XXI, porque a sociedade e o
mundo também são diferentes.
O Estado-providência do passado
tornou-se na baby-sitter das classes
médias — em Portugal, foi mesmo ele que
fez a classe média —, e isso não é, num
mundo globalizado, a melhor forma, ou
a forma mais justa, ou sobretudo a forma
sustentável, de gerir uma economia. É que,
como recordava Jorge Almeida Fernandes
neste jornal há duas semanas, no seu artigo
sobre o “discurso da Coroa” holandês,
“a UE representa 7% da população
mundial; detém 25% da riqueza mundial; e
representa 50% da despesa social de todo o
mundo”.
Digam todo o mal que quiserem da
entrelinha do “documento Portas”, mas
não se refugiem nisso para iludir um debate
que temos de fazer, apesar desse mesmo
“documento Portas”.
P.S.: Muitos leitores escreveram-me a
propósito do meu texto sobre as pensões.
Não os desiludirei e, como prometido,
regressarei em breve a esse tema.
Jornalista. Escreve à sexta-feira
[email protected]
Download

O que a reforma do Estado não é, e devia ser