Uma Polémica Amável Os textos que se seguem envolvem uma polémica cujo assunto é de esclarecimento de circunstâncias da história recente sobretudo de impacte individual. Dada a notoriedade dos intervenientes consagrámos este espaço da revista à reprodução integral dos seus argumentos. No entanto reservamo-nos o direito de proceder de outro modo, caso esta se prolongue, de modo a reservar o espaço e o nosso tempo em conformidade com critérios de interesse geral. (Nota da redacção) A Automitificação de Benjamim Marques Alfredo Margarido sempre com um prazer indesmentido que leio as declarações autobiográficas de Benjamim Marques, que revelam uma capacidade de criação que não me surpreende: cada um é responsável pela sua própria automitificação. Fiquei surpreendido: desta vez Benjamim Marques não declara ter sido crítico de artes plásticas no falecido Diário Ilustrado, como já o fez em outros momentos dessa automitificação. Sempre deixei passar tais declarações, embora pelo menos indirectamente me dissessem respeito, pois nos anos a que se refere Benjamim Marques, ocupei-me da relação com as artes plásticas no jornal, e no seu suplemento cultural Diálogo, onde publiquei reproduções de obras de José Escada, Gonçalo Duarte, Manuel d’Assunção, António Areal, António Senna e alguns outros mais. A minha intervenção agora devese à profunda ingratidão de É 74 Benjamim Marques em relação ao homem que desempenhou o papel central para obter a famosa bolsa da Gulbenkian: refiro-me ao arquitecto Mário de Oliveira, que não era apenas funcionário do Ministério do Ultramar, mas também pintor e crítico de arte no Diário Popular. B.M. não tem boa memória para as datas e assim ei-lo a sair de Portugal em 1958 com uma bolsa da Fundação Gulbenkian. O primeiro grupo de artistas plásticos que desembarca em Paris com bolsas da Gulbenkian, de facto em 1958, é formado pelos jovens artistas que criaram o KWY e aos quais se juntou José Manuel Simões, que não era criador plástico, mas antes um poeta que também publiquei no Diálogo. Conheci Benjamim Marques primeiro no Gelo lisboeta, quando em 1958 fui obrigado a regressar de Portugal, pelo governador-geral de Angola então território ultramarino. Encontrei-o com alguma irregularidade, e tive a surpresa de chocar com ele num corredor do Diário Ilustrado onde foi desenhador muito pouco tempo. Em conversa, Benjamim Marques manifestou o desejo de vir para Paris, evidentemente armado com a bolsa da Gulbenkian. Disse-lhe que era possível consegui-lo, mas que tal exigia alguma habilidade. As relações de Mário de Oliveira com a Gulbenkian eram então tais, que a operação podia resultar. Mário de Oliveira organizou um curto calendário: dada a inexistência de Benjamim Marques no plano da pintura - pois só publicara algu- mas belas caricaturas no Diário de Lisboa, pela mão de Artur Portela Filho - tornava-se necessário organizar uma exposição, dobrada de um catálogo, o qual serviria para convencer os serviços de BelasArtes do talento do jovem pintor. Assim se fez: Benjamim Marques expôs no Casino do Estoril, tendo eu redigido o prefácio, que pelo visto Benjamim Marques desvaloriza a ponto de se ter esquecido desta operação, substituída por um piscar de olho ao pobre do Almada Negreiros! Não sei qual é hoje a estratégia de Benjamim Marques sobretudo quando levamos em conta a sua fidelidade a certo estalinismo rançoso, de que pode ser exemplo a fotografia em companhia de Louis Aragon. O que sei, por ter estado ligado a tais operações, é não ter havido intervenção, na Gulbenkian, de Almada, nem do Artur Portela Filho. Aproveito para mais uma correcção: Arpad Szenes não era judeu, sendo antes um húngaro de origem rural, como ele me fez notar, salientando que Szenes se podia traduzir em francês como carvoeiro. Também me contou que o seu gosto pelas camisas vermelhas quase o fizera vítima da ferocidade da repressão durante a revolução de 1919, pois fora considerado um revolucionário, classificação que equivalia então a uma condenação à morte. Convém não ser apressado e estar pelo menos bem informado antes de dizer ou escrever seja o que for, sobretudo quando diz respeito a terceiros. Resposta (Amável) ao Texto de Alfredo Margarido Benjamin Marques oi com verdadeira pena que li o texto de Alfredo Margarido, intitulado “Automitificação de Benjamim Marques”. Sempre considerei o A.M. como alguém que estimo e que considero como um excelente jornalista e escritor o que me inspira amizade, se bem que tenha muita pena de o ter perdido de vista durante largos anos. Foi pois com uma triste sensação de surpresa que li esse texto de um tom profundamente e inutilmente agressivo de guéguerre de tertúlia lisboeta. Esperava melhor do A.M., enfim... Passemos sobre as considerações sobre o que eu não disse, sobre o ter ou não ter sido crítico de arte no Diário Ilustrado, não declarei nada disso na entrevista em questão, não percebo por que é que isso tudo vem como preâmbulo... Vejamos a cronologia da bolsa da Gulbenkian. Eu agradeço-lhe, ó Alfredo Margarido, o seu texto, principalmente e somente porque isso me vai permitir de publicamente, aproveitar a ocasião para, muito sinceramente lhe agradecer o papel que desempenhou generosamente, nessa altura, (e tal como o conta), em dar ocasião de ter conhecido esse homem de excepção, a quem devo, sem alguma dúvida, não somente ter intervido na Gulbenkian para preparar o dossier da minha bolsa, mas igualmente com imensa paciência, generosidade, e uma grande abertura de espírito, ter proporcionado a realização da minha primeira exposição individual no Casino do Estoril, quero aqui citar com imenso prazer o arquitecto Mário de Oliveira. É absolutamente incontestável que a acção do A. Margarido em me apresentar o Mário de Oliveira e a acção deste junto da Gulbenkian foram importantes para a obtenção da bolsa - bem hajam! pois. O que lamento é que a vida me tenha impedido de continuar a desfrutar da sua e da presença do F n° 19 - décembre 2003 LATITUDES Mário de Oliveira... Mas, ó A. Margarido, isso não impossibilita o facto que o Almada Negreiros assinando a carta escrita pelo Portela, na noite do banquete da inauguração do I Salão de Arte Moderna da Casa da Imprensa, e disso eu estou sinceramente convencido, ter sido determinante (em se ajuntando a paciente acção do Mário de Oliveira) para a bolsa me ser atribuída. E, ó Margarido, não veja nisto, não sei que maquiavélica estratégia de mitificação ou de mistificação ou sei lá o quê! O que se passa é que a entrevista era já enorme, que a pergunta que tinha sido posta era: porque razão eu tinha vindo para França. O importante era a razão ou as razões que me tinham feito vir para Paris. Ou seja a raiva burocrática de um governo tacanho, ignorante, inculto, provincial, paternalista, fascista e policial, a tudo o que fosse cultural, criador, a falta de pintura de qualidade em Portugal, e a necessidade, para mim, de poder respirar. Assim, sobre a bolsa, limitei-me a sublinhar o que me pareceu ser ignorado do leitor e não explicitar todos os detalhes e prestar homenagem a todos aqueles que, felizmente, me ajudaram. Agora, com esta declaração fica a coisa feita cabalmente, (isto sem estratégias mitificadoras, ó Margarido). Quanto à minha boa ou má memória quanto às datas, permitame, meu caro Alfredo, lembrar-lhe que me vou fazendo velho; estou já nos meus 65 anos e, no curso fluente de uma entrevista, é possível que me engane mais ano menos ano. É assim tão importante? Tudo resto, desculpe, ó Margarido, mas me parece de menos interesse, coisas muito secundárias, detalhes de detalhes... O José Manuel Simões sempre foi um poeta, tradutor, escritor, para além de ser um “honesto homem”. Nunca disse que ele tinha sido pintor, ó Margarido, ponha os seus óculos e leia de novo a minha entrevista. Quanto ao facto de eu estar convencido que o Arpad era judeu... Estou vagamente lembrado que um dia, numa conversa de café, com o Guy Wellen, este mo tinha afirmado, na altura em que ele me contou o tal episódio triste da não protecção do governo de Salazar ao casal (Vieira e Arpad), bom! Você parece estar certo que ele não era judeu, ó Margarido, mais judeu, menos judeu! O importante é sublinhar que a política de não apoio aos criadores era uma constante da sociedade portuguesa de então, e mesmo de agora! Um bom artista é um artista morto! A propósito (e com isto termino enviando-lhe um abraço, um abraço ao Margarido, sem estratégias nem mitificações), sabe, amigo, para mim, um amigo é um amigo, tenha ele a etiqueta política que tiver (sem ser fascista, evidentemente). É por isso que o Aragon era um amigo meu, porque grande poeta, alguém que se mostrou sempre generoso, atencioso, delicado, sem estratégias, sem agressividade - só amigo - ó Margarido. Sempre seu Paris, Outubro 2003 75