1 HOMILIA – Solenidade de Todos os Santos 2011 Quando o Outono começa a atapetar de um tom castanho-escuro os nossos caminhos, dando as árvores de folha caduca a impressão de terem entrado numa apressada e dolorosa agonia, eis que nos reunimos, no dia primeiro do décimo primeiro mês do ano, para contemplarmos uma “multidão imensa que ninguém podia contar, de todas as nações, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão” (Apocalipse). “Esses que estão vestidos de túnicas brancas, quem são e donde vieram?” São os Santos anónimos e esquecidos, essa multidão imensa de homens, mulheres, jovens, adolescentes e crianças que, acolhidos um dia na Igreja, membros do Corpo Místico de Cristo, e que tiveram por lema da sua caminhada aquela palavra-apelo tantas vezes repetida no Livro do Levítico: “sede santos, porque eu, o vosso Deus, sou santo!” Há pouco, São Mateus convidou-nos a “subir ao monte” para escutarmos o magistral sermão do “Rabi da Galileia”. Sentemo-nos a seus pés, ao lado da multidão que o acompanhava. Gravemos com estilete de bronze em nossos corações cada uma das suas palavras. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”. Ao escutar estas palavras do Mestre, lembro-me imediatamente de tantos e tantos homens santos – santos anónimos e esquecidos – esses homens do campo que, nas nossas aldeias, gastaram toda a sua vida em contacto com a natureza, magoando os pés nas fragas e tisnando o rosto ao sol, na eira, empapados de suor na hora da canícula ou tiritando de frio, sacudindo as mãos enregeladas na solidão dos montes e no silêncio das cavadas. “Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra”. Ao escutar estas palavras, lembro essa plêiade de santos e anónimos professores que, de modo muito particular nas aldeias perdidas do interior profundo votado ao abandono pelo poder central do Terreiro do Paço, formaram tantos homens e mulheres verdadeiramente grandes, e que mais não foram do que um cristalino sorriso de Deus! Afinal, como diz o poeta, “É como o sol o professor que ensina, Sol doirado que aquece e que ilumina O céu azul da mente da criança, - Botão que vai abrindo, na esperança De um fruto que mais tarde surgirá Apetitoso e cheio de vigor… Como de uma semente vem a flor, O Homem, da criança nascerá”. (Dinis de Vilarelho) 2 “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”. Neste momento vislumbro, no meio dessa “multidão imensa que ninguém podia contar” uma incalculável fila de mulheres sofridas – as mães santas e anónimas – que, no fim da peleja, “se foram da lei da morte libertando”, levando consigo um pedaço dos filhos que geraram para a vida. É que, como desabafava D. António Ferreira Gomes, em Roma, em Novembro de 1965, impossibilitado por Oliveira de Salazar de participar no funeral da sua mãe, “quando morre o pai ou a mãe, deixamos de ser meninos”. E, nesse momento, como Dinis de Vilarelho, exclamamos: “Mãe (…) Caiu um negro véu Por sobre mim… A terra agora é triste; Já não existem flores no jardim Nem estrelas no céu”. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. Vislumbro agora no meio da imensa multidão dos santos anónimos todos esses homens e mulheres que, à semelhança de Alves Correia, se recusaram a ser “cães mudos” e que, não tendo embora nunca recebido medalhas de mérito municipal, condecorações, estátuas e aplausos, foram construtores de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais humana e mais cristã. Afinal, “Nos caminhos sinuosos, Onde tanta gente passava, Uns viram calhaus rugosos, Poeira, lama, desgraça, Toscas e mortas raízes, Folhas secas, amarelas, E neles calados foram Porque tristes, infelizes. Pelo contrário, outros, Nos mesmos caminhos, Descobriram muitas estrelas E perfumadas violetas; Viram no ar borboletas, Aromas, pólen e flores, Aves, ninhos e canções, Um céu com nuvens às cores… E ouviram até pulsar, Das pedras, os corações. 3 E trilharam os nossos caminhos, Como alegres passarinhos, Sempre a salmodiar: ‘Cantarei, cantarei, mesmo quando tiver De colher as rosas entre os espinhos’”. (Adaptação de poema de Dinis de Vilarelho) “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Escuto esta bem-aventurança, fecho os olhos e contemplo essa multidão de homens e mulheres simples, verdadeiros anjos da paz que, finda a sua caminhada terrena, em paz consigo mesmos, exclamaram: “Recordo que sempre procurei semear amor E fui gratificado com a paz interior Do meu próprio amor semeado”. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Vejo agora, no meio dessa “multidão imensa que ninguém podia contar” os santos inocentes, crianças adolescentes e jovens, arrancados abruptamente dos caminhos do tempo, a quem se aplicam as palavras do poeta: Eu vim para a vida E ninguém me perguntou Se queria iniciar esta corrida… E só mais tarde pude compreender O que era viver, O que a vida em mim deixou: Profundos sulcos deste sofrimento. Mas então não podia já volver Ao momento Da partida. (Dinis de Vilarelho) “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”. Vislumbro, finalmente, no meio desse imenso cortejo de que nos fala João, o grupo dos santos anónimos – esses verdadeiros anjos de luz – que calcorrearam as ruas das buliçosas e trepidantes cidades, os silenciosos caminhos das nossas aldeias ou os ruidosos corredores dos hospitais, alentando as almas e tudo fazendo para cicatrizar as feridas de tantos corações, guiados por esta bússola: “não venci todas as vezes que lutei, mas perdi todas as vezes que deixei de lutar!” Por isso, no pôr do sol da sua caminhada, como Maria Teresa de Áustria, exclamaram: “nunca fechei o coração aos gritos dos infelizes: é a ideia mais consoladora que me assiste nos meus últimos momentos”. E, a par de Teresa de Ávila sussurraram: “enfim, morro filha da Igreja!” Esta é, pois, a geração dos que procuraram o Senhor!