Secreto convívio – reflexões sobre o Monumento Mínimo, de Néle Azevedo
Num instante preciso, e sob determinado ângulo e iluminação, os monumentos
mínimos de Néle Azevedo podem aparecer como fantasmas, vultos translúcidos que o
nosso olhar identifica, mas atravessa. No entanto, no momento imediatamente
anterior, ou seguinte, ou naquele mesmo segundo, só que de outro ponto de vista, eles
podem parecer figuras inteiramente brancas e opacas, subtraídas à concretude do
fundo – anti-matéria resistente à porosidade do mundo.
Em que pese o caráter essencialmente físico e temporal do trabalho da artista
– a importância da experiência dilatada do tempo que é vivida durante os
imensuráveis vinte minutos que as suas “esculturas” levam para derreter por completo
–, é possível dizer que o seu registro fotográfico – não apenas documental, mas parte
complementar do trabalho – alcança grande expressividade na medida em que
exponencia a capacidade “natural” da fotografia de congelar o instante.
Sintomaticamente, no caso do trabalho de Néle, obra que se esvai no tempo, e
é vivenciada por transeuntes ocasionais nos espaços das cidades, o registro
fotográfico retém o instante literalmente congelado, isto é, o momento efêmero e para
sempre perdido em que o calor ainda não foi capaz de derreter o gelo. Situação
atípica em que o calor benfazejo, a temperatura do ar que aquece diariamente os
nossos corpos, e nos mantém vivos, surge paradoxalmente como ameaça – intruso
que vem dissolver a ordem frágil que ali se havia cristalizado.
Associamos normalmente o gelo às idéias de “frieza” e “pureza”, noções que
podem ser consideradas opostas e complementares. O trabalho de Néle lida
exatamente com essa ambigüidade. Suas figuras de gelo – solitárias ou em pares,
debruçando-se em lento lamentar – são entidades quase metafísicas, compungidas
diante de um mundo corrompido. Nesse sentido, elas parecem ser o elo frágil com
uma existência ainda “pura”, que entrevemos brevemente antes de percebê-la esvairse para sempre, como lágrimas de espanto que voltam ao mundo, e são nossas.
Por outro lado, elas parecem ser entidades alheias ao movimento diário das
pessoas, aos apelos ordinários da publicidade urbana, e aos encantos mundanos da
paisagem. Por isso, na integridade “fria” de sua recusa, essas figuras dão a estranha
impressão de ser, em algumas fotos, mais reais do que os humanos, que, escuros, à
contra-luz, se apagam em uma espécie de eternidade negativa. Elas, ao contrário,
concentradas em seu universo interior cristalino, vivem o contínuo inflar de uma
nuvem branca e embaçada dentro dos seus corpos de gelo, como uma espinha dorsal
que aumenta à medida que seu contorno exterior definha. Haveria melhor tradução
visual para a nossa idéia intangível de alma?
Aqui chegamos ao eixo central do trabalho de Néle Azevedo: a morte como
ritual, e o luto como transcendência, isto é, possibilidade continuada de vida. Daí a
recuperação da noção de “monumento”, cuja origem histórica está ligada aos ritos
funerários e sagrados – túmulos e templos. Seus monumentos, no entanto, são
mínimos. O movimento que instaura a obra vem menos da necessidade de perenizar
uma memória coletiva do que uma experiência individual, daí, também, o caráter
artesanal do seu trabalho.
No registro ampliado do “lugar” da arte na sociedade contemporânea, o
trabalho de Néle se aproxima das questões postas pela arte ambiental, e pela inclusão
do expectador como ator de uma vivência presente e efêmera. No entanto, nada mais
distante das ações exteriorizadas da land-art americana. Enquanto esta caminha para
a engenharia e a indústria, o trabalho de Néle se volta para a fabricação paciente de
unidades mínimas, procurando, paradoxalmente, moldar uma matéria evanescente,
sublimada.
É claro que o seu problema não é formal. Neutro como forma, o molde para as
figuras é sempre o mesmo. Por isso é que a artista não extrai conflito expressivo do
embate com a matéria. Daí a grande diferença, por exemplo, em relação à obra de
Giacometti, com quem compartilha um existencialismo esgarçante e fundamental, e
que é, evidentemente, uma matriz importante para o seu trabalho.
No entanto, outra comparação – mesmo que por oposição – pode ser, no caso,
mais profícua. Penso particularmente nas figuras informes de Henry Moore, de cujas
fraturas internas os monumentos de gelo se assemelham quando já estão por um fio.
Ocorre que na obra de Moore, a vida ancestral da matéria faz com que seus corpos
fetais não consigam nunca se desprender da terra, numa troca intermitente que
impede a individuação das figuras. No trabalho de Néle, ao contrário, a configuração
fluida e passageira desses “indivíduos” faz com que o drama em questão esteja
exatamente na impossibilidade que eles têm de aderir à terra, de deixar rastros,
memória depositada. Entre o gelo e o barro, ou a cera – materiais que a artista
experimentou –, um abismo de significação se interpõe.
Enquanto o mundo aludido por Henry Moore é uterino, anterior à história e à
distinção entre espaço e coisa, sujeito e objeto, o mundo onde as figuras de gelo de
Néle Azevedo brevemente contracenam é a cidade, o lugar fora da casa e do umbigo
maternal, o espaço das relações objetificadas. E a sua cidade é o lugar do cortejo, o
palco profano em que indivíduos minúsculos e inanimados dão-se à vida em nobre
sacrifício, para que, ao fim, nós sobrevivamos. O sentido trágico do trabalho, aqui,
cumpre o seu ritual secreto: um ciclo efêmero mas intenso de vida e morte. Imagem
que, em outro registro, poderíamos depreender da observação do trabalho mágico de
um fabricante de vidros: a vida é um sopro. Só que, nos recorda Néle, o sopro
também evapora.
Guilherme Wisnik,
Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP), 1998, Mestre em História Social pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), 2004, e Sócio do escritório Metro Arquitetos
Associados, sediado em São Paulo, desde 2000.
É autor do livro Lucio Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2001, e
publicou os textos: "Memoriais dos projetos", em Paulo Mendes da Rocha,
Rosa Artigas (org.). São Paulo: Cosac Naify, 2000; "A arquitetura lendo a
cultura", em Um modo de ser moderno Lucio Costa e a crítica
contemporânea, Ana Luiza Nobre, João Masao Kamita, Otavio Leonídio,
Roberto Conduru (org.). São Paulo: Cosac Naify, 2004; e "Dommed to
modernity", em Brazil¹s Modern Architecture, Adrian Forty and Elisabetta
Andreoli (org.). London, Phaidon Press, 2004.
Foi crítico de arquitetura do jornal Folha de S. Paulo entre junho de 2002 e
outubro de 2003, e roteirista do longa-metragem O risco Lucio Costa e a
utopia moderna (dirigido por Geraldo Motta Filho), prêmio especial do júri no
Festival de Gramado, 2003.
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