Editorial
Estado atual do transplante no Brasil*
Paulo Manuel Pêgo-FernandesI
Valter Duro GarciaII
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil
Em 1964, transplantes renais começaram no Brasil e, em
1968, transplantes de coração, fígado, intestino e pâncreas foram realizados. Como em outros locais do mundo, os resultados desanimadores levaram à suspensão dos programas de
transplantes no início dos anos 70, incluindo todos os órgãos,
exceto rins.1 A descoberta da ciclosporina na década de 70 e sua
aplicação clínica inicial como medicamento imunossupressor
no início dos anos 80 levaram a melhores resultados no transplante renal. Subsequentemente, os programas para transplante
cardíaco (1984), hepático (1985) e pancreático (1987) foram
reativados, e um programa precoce de transplante pulmonar foi
instituído no Brasil (1989).1
Com relação à regulamentação, o processo de transplante
pode ser dividido em três fases. A primeira delas, referente à
demanda e alocação de órgãos sob responsabilidade dos centros de transplantes e sem controle do Ministério da Saúde,
estendeu-se de 1964 a 1987.1
A segunda fase começou em 1987, com a publicação, pelo
Ministério da Saúde, do Sistema Integrado para o Tratamento do Paciente Renal Crônico e do Transplante Renal (SIRCTRANS), elaborado para estabelecer padrões para reconhecimento e funcionamento de centros de transplante renal e para
determinar os pagamentos pelo sistema público de saúde.2 No
mesmo ano, em alguns estados, as agências governamentais e
fundações assumiram a responsabilidade da procura e/ou alocação de órgãos. As primeiras organizações foram o Programa
de Imunogenética e Transplante de Órgãos (PITO) no Rio de
Janeiro,3 o sistema do São Paulo Interior Transplant (SPIT) 4 e
o serviço de Coordenação de Transplantes do Rio Grande do
Sul (RS-Tx).5 A Constituição de 1988 proibiu a venda de órgãos, o que foi regulado pela lei de transplantes de 1992.6 No
mesmo ano, o Ministério da Saúde criou o Sistema Integrado para Procedimentos de Alta Complexidade (SIPAC) para
transplante renal, hepático, cardíaco, pulmonar e de medula
óssea. Isso estabeleceu mecanismos de controle de qualidade
para centros de transplantes, acreditação de serviços de transplante regulamentados e determinou os valores a serem pagos
para esses procedimentos.
A terceira fase começou em 1998 com a nova legislação sobre transplantes e com a criação do Sistema Nacional de Trans
plantes (SNT), além dos Centros de Notificação, Captação e
Distribuição de Órgãos (CNCDOs) no Distrito Federal. O
gerenciamento e os pagamentos envolvidos em todos os processos de doação e transplante se tornaram responsabilidade
do governo federal.1 A coordenação geral do SNT foi auxiliada pelos Grupos Técnicos de Assessoramento (GTAs) e pelos
Conselhos Técnicos para órgãos e tecidos específicos, e o SNT
se tornou responsável pelas políticas de transplante no país. Os
CNCDOs passaram a controlar a logística de doações e alocações nos estados.1 Em 1999, o Centro Nacional de Notificação,
Captação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO) foi criado.
O centro se estabeleceu no aeroporto de Brasília e ficou responsável pela distribuição de órgãos entre todos os estados.1
Em 2000, com base no modelo espanhol e por solicitação da
Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, um Hospital
Coordenador de Transplantes foi criado. Posteriormente, esta
instituição ficou conhecida como Comitê Intra-Hospitalar para
Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) e
passou a ser utilizada na maioria dos estados. São Paulo continuou com o modelo americano, usando as Organizações de
Procura de Órgãos (OPOs).1 Entre 2000 e 2004, dezenas de
cursos de treinamento foram realizados nos hospitais coordenadores de transplantes em 18 estados.7
Com esse sistema organizacional, a taxa de doações no país
permaneceu estável, variando de cerca de 3 por milhão de população (pmp) entre 1993 e 1998, aumentando para 7,4 pmp
entre 1999 e 2004. No entanto, a partir de 2005, houve uma
queda progressiva na taxa de doações, alcançando 5,4 pmp em
junho de 2007. Esse fato foi decorrência de diversos fatores, tais
como mudanças no SNT que interromperam os cursos. Houve então uma série de modificações e melhoras nas políticas
de transplantes que reverteram essa situação. Dois anos depois
(setembro de 2009), a taxa de doação foi de 8,6 pmp, mostrando um aumento de 54% no período, alcançando, assim,
a meta proposta para este ano. No entanto, os esforços nesta
área necessitam ser reduplicados para alcançar a taxa proposta
de doação de 10 pmp em 2010, 14 pmp em 2013 e 20 pmp
em 2017.
A previsão para 2009, a partir dos dados obtidos em setembro, é de 4.130 transplantes renais (21,8 pmp) realizados no
Professor associado do Departamento de Cardiopneumonologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil.
Diretor do Departamento de Transplante de Rim e de Pâncreas da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil.
*Este editorial foi publicado no periódico São Paulo Medical Journal, volume 128, edição no1, de 6 de janeiro de 2010.
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Diagn Tratamento. 2010;15(2):51-2
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Estado atual do transplante no Brasil
Brasil, ou seja, 31% dos 13.300 casos que entram na lista de
espera a cada ano (70 pmp); 1.301 transplantes hepáticos (6,9
pmp): 31% dos 4.160 necessários (25 pmp); 193 transplantes
cardíacos (1,0 pmp): 18% dos 1.104 necessários (6 pmp); 169
transplantes pancreáticos (0,9 pmp): 30% dos 570 necessários
(3 pmp); e 63 transplantes pulmonares (0,3 pmp): cerca de 4%
dos 1.472 necessários (8 pmp). O uso de órgãos no Brasil é extremamente variável, excedendo 70% para rins e fígado, cerca
de 15% para coração e apenas 5% para pulmões.8-10
Com relação a transplante de córneas, que também se
originam de doadores até seis horas após a morte, 13.052
transplantes (71 pmp) devem ser realizados, isto é, 79% dos
16.560 necessários (90 pmp). Alguns estados, como São Paulo e Paraíba, já começaram a diminuir a lista de espera de
córneas para zero.8,9
Para que o transplante de órgãos aumente no Brasil é essencial que se melhorem os quatro pilares que apoiam o processo
de doação para transplante: legislação, financiamento, organização e educação. As medidas legais incluem a implementação
de um sistema de registro de doadores voluntários, e a prevenção de qualquer forma de comércio por meio de maior controle
sobre transplantes entre doadores não familiares, bem como a
proibição de transplantes envolvendo doadores mortos que não
sejam residentes no país.
Em relação às medidas financeiras, ajustes à verba disponível para captação e transplantes são necessários para que novas
medicações como belatacept, rituximab e bortezomib possam
ser incluídas e fornecidas pelo sistema público de saúde aos
pacientes transplantados. Além disso, é necessário incluir no
serviço público de saúde o pagamento de novos procedimentos diagnósticos, como C4d em biópsias, antigenemia ou testes
de reação em cadeia da polimerase (PCR) para diagnóstico de
citomegalovírus, medida quantitativa de carga viral para vírus
Epstein-Barr (EBV) e vírus BK (BKV).
Entre as medidas organizacionais consideradas essenciais,
estão o treinamento e motivação dos médicos de terapia intensiva e de neurologistas, visando diagnóstico de morte cerebral
e manutenção de potenciais doadores. Os hospitais também
precisam ser equipados por meio da compra de equipamentos
que documentem a morte cerebral, do treinamento nos hospitais coordenadores de transplantes e também de grupos para
captação e transplante de órgãos disponíveis 24 horas por dia,
em todos os estados. Por fim, políticas de educação também são
necessárias, tanto para profissionais quanto para estudantes das
áreas de saúde e para a população.
INFORMAÇÕES:
Endereço para correspondencia:
Paulo Manuel Pêgo-Fernandes
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
Instituto do Coração (InCor)
Secretaria do Serviço de Cirurgia Torácica, 2o andar — bloco 2 — sala 9
São Paulo (SP)
CEP 05403-000
Tel. (+55 11) 3069-5248
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Fonte de fomento: nenhuma declarada
Conflito de interesse: nenhum declarado
REFERÊNCIAS
1. Garcia VD, Pestana JOM, Ianhez LE. História dos transplantes no Brasil. In:
Garcia VD, Abbud-Filho M, Neumann J, Pestana JOM, editors. Transplante de
órgãos e tecidos. 2a ed. São Paulo: Segmento Pharma; 2006. p. 27-42.
2. Garcia VD, Abbud-Filho M, Keitel E, Neumann J. Situação atual do processo
doação – transplante. In: Garcia VD, editor. Por uma política de transplantes
no Brasil. São Paulo: Office Editora e Publicidade Ltda; 2000. p. 19-35.
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6. Brasil. Lei no 8.489, de 18 de novembro de 1992. Dispõe sobre a retirada
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www.prosangue.sp.gov.br/pdf/Lei%20n.8489%20de%2018.11.92%20conf.
pdf. Acessado em 2010 (14 abr).
7. Garcia VD, Miranda T, Luca L, Nothen R, Teixeira Pinto JB. Training hospital
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8. Garcia VD. Editorial. RBT Registro Brasileiro de Transplantes. 2009;15(3):3.
Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov02/portugues/populacao/rbt/
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9. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Dados gerais. RBT
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www.abto.org.br/abtov02/portugues/populacao/rbt/anoXV_n3/index.
aspx?idCategoria=2. Acessado em 2010 (14 abr).
10.Fernandes PM, Samano MN, Junqueira JJ, Waisberg DR, Noleto GS, Jatene FB.
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em 2006 [Lung donor profile in the State of São Paulo, Brazil, in 2006]. J Bras
Pneumol. 2008;34(7):497-505.
Data de entrada: 12/4/2010
Data da última modificação: 12/4/2010
Data de aceitação: 16/4/2010
Diagn Tratamento. 2010;15(2):51-2
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